Introdução
O desenvolvimento de trabalho na área educacional exige do educador o exercício de práticas voltadas para o transformar e transformar-se como pessoa, como profissional e como sujeito social. Na prática da administração escolar, esses exercícios também são essenciais. As práticas autoritárias e centralizadoras presentes na gestão escolar expressam a organização estruturada pela sociedade capitalista que procura, em última instância, a manutenção das relações sociais de produção, refletindo as divisões sociais existentes, com tendências a perpetuá-las e acentuá-las, enfatizando, assim, a manutenção do poder da classe dominante. Para sistematizar a compreensão que fazia sobre as possibilidades da gestão escolar para a construção de uma educação transformadora, realizei, em 1992, a pesquisa intitulada A gestão democrática em educação e a relação escola-comunidade: artes e ofícios, em cujo resultado, uma das constatações foi a de que a gestão democrática em educação está intimamente articulada ao compromisso sociopolítico com os interesses reais e coletivos da classe dos trabalhadores, extrapolando as batalhas internas da educação institucionalizada, e sua solução está condicionada à questão da distribuição e apropriação da riqueza e dos benefícios que transcendem os limites da escola (Hora, 1994). Esse estudo demonstrou que é possível exercer democraticamente a administração da escola pública pela construção coletiva, exercida, por exemplo, na escola-campo daquela pesquisa, presente nas reflexões e nas ações cotidianas dos sujeitos envolvidos, o que gerou a necessidade de fazer uma investigação que tivesse como foco a política educacional brasileira.
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Em 1996, concluí uma pesquisa iniciada em 1994, denominada A modernização falaciosa: contornos políticos da educação no Brasil (1989-1994), que tratava das propostas do primeiro governo federal eleito diretamente pela população após o período de ditadura militar e da chamada “transição para a democracia”, analisando a política educacional brasileira, tomando o papel do Estado como mediador entre as classes sociais, que busca a legitimação dos interesses hegemônicos daqueles que detêm o poder político global da sociedade na formulação e implementação das políticas sociais. Entre essas políticas, inclui-se a educação que, ao longo da história, sempre esteve atrelada às exigências do modelo econômico vigente, sendo a separação entre política econômica e política social uma divisão apenas formal. A marca da modernização presente nas políticas educacionais demonstrou que o discurso governamental daquele período operou uma inculcação ideológica, segundo a qual a capacidade de fazer funcionar bem, com eficiência, era atributo exclusivo da iniciativa privada, o que justificava a conservação, a expansão e a radicalização das estruturas básicas do capitalismo, sob as vestes do modelo neoliberal. As políticas governamentais ali traçadas para a educação brasileira a articularam aos objetivos econômicos, voltados a interesses desvinculados da realidade e das necessidades sociais do país. Foi retomado o discurso da mesma elite que há décadas governou o Brasil, intensificado pela sobrevalorização dos meios técnicos, desconsiderando o processo de educação como meta do seu povo e instrumento de construção de uma modernidade democrática que significasse a ampliação da liberdade e da justiça social (Hora, 1996). No governo iniciado em 1995, ocorre a intensificação e a consolidação de um projeto explicitamente subordinado à nova ordem internacional e aos processos de globalização, marcados pela lógica da exclusão social, em fina sintonia e relação com os organismos internacionais, especialmente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, que no Estado neoliberal, no Brasil, preserva, no campo educacional, o autoritarismo histórico presente nas nossas relações de poder, reduzindo a patamares mínimos os limites da nossa democracia social (Neves, 2000, p. 31), embora mantenha vivo o discurso da gestão
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A oficialização dada pelos dispositivos legais e pelos programas governamentais de gestão democrática tem contribuído, em grande medida, para uma compreensão enviesada dessa prática. As iniciativas de participação dos sujeitos sociais na gestão dos processos educativos, ainda pontuais e tímidas, são, muitas vezes, defendidas equivocadamente como gestão democrática, especialmente se considerarmos os mecanismos adotados pelo governo federal para a implementação das mudanças operadas no sistema educacional brasileiro. Desse modo, o presente trabalho apresenta-se para aprofundar estudos e discussões que possibilitem a compreensão mais clara a respeito dos fundamentos que sustentam os mecanismos de concepção e operação das políticas educacionais, no que se refere à gestão educacional em seu caráter democrático. Verifica como se manifestam essas relações, buscando respostas a questões referentes às concepções de gestão que orientam as políticas e as propostas de educação geradas nos órgãos administrativos do sistema federal de ensino brasileiro; às manifestações dessas concepções de gestão democrática na política educacional operada no Brasil no período de 1995 a 2002; ao modo como as políticas e as práticas de gestão democrática têm contribuído para a construção de relações mais participativas e emancipatórias entre os sujeitos no interior da instituição escolar pública. A decisão de realizar um estudo científico requer, ao lado da vontade acadêmica, a indicação dos alvos que se pretendem atingir, de modo que fiquem evidenciadas as intenções pelas quais o pesquisador se encontra movido. Desse modo, a realização deste trabalho tem como finalidade estudar as concepções de gestão democrática assumidas pela política educacional brasileira, analisar os programas de gestão democrática implantados no sistema de ensino brasileiro e investigar a percepção dos sujeitos educacionais sobre a construção de ações e de relações transformadoras e participativas geradas pela gestão democrática da escola. O desdobramento dessa finalidade pode ser expresso pelos seguintes objetivos específicos: problematizar as concepções de gestão que orientam as políticas e as propostas de educação geradas nos órgãos administrativos do sistema federal de ensino brasileiro, a partir de 1995; identificar as formas pelas quais se manifestam as
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concepções de gestão democrática na política educacional operada no Brasil naquele período; verificar a visão de alunos, professores e gestores acerca da contribuição que as políticas e as práticas de gestão democrática têm oferecido para a construção de relações mais participativas e emancipatórias entre os sujeitos no interior da instituição escolar pública e apontar as possibilidades que a escola pública tem para construir seu projeto pedagógico fundado na gestão democrática das ações escolares. Um estudo crítico implica a articulação das dimensões objetiva e subjetiva da realidade a ser estudada. Implica, no caso deste trabalho, considerar a política educacional brasileira como contraditória, atravessada por interesses políticos, econômicos e culturais que entre si são antagônicos, tanto no que diz respeito aos que produzem políticas e saberes no interior dos órgãos administrativos centrais e no interior das instituições educacionais, quanto à sociedade como um todo. Nesse sentido, a reflexão aqui delineada está encaminhada na perspectiva de desdobrar as manifestações políticas e pedagógicas embutidas nas propostas de democratização da educação brasileira em geral, a partir do confronto entre as suas concepções expressas nos documentos normativos e nas práticas realizadas. Assim, os educadores e a comunidade em geral poderão perceber melhor os movimentos que sustentam as políticas que orientam os fazeres educativos. Dessa forma, para que possa alcançar os objetivos propostos neste estudo, especificamente o aprofundamento conceitual de gestão e gestão democrática e as concepções que elas assumem nas propostas governamentais do final dos anos 90 e início dos anos 2000, a organização metodológica deste trabalho foi delineada em duas grandes partes: a primeira, organizada em dois momentos específicos. No primeiro, a pesquisa bibliográfica, em que foram selecionadas as fontes que puderam oferecer a fundamentação conceitual para análise e, também, registraram os movimentos históricos dos conceitos de política, economia política, gestão e gestão democrática da educação e da política educacional brasileira no final do século XX e início do século XXI. Nesse momento, foram discutidos e articulados conceitos como gestão, democracia, participação, gestão educacional, alicerçados por estudos de outros pesquisadores – elaborados com propriedade e
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consistência –, como Fávero e Semeraro (2002); Benevides (2002); Coutinho (2002); Bobbio (2000); Paro (1996a, 1996b, 2001a, 2001b, 2001c, 2002); Braverman (1987); Skinner (1996), entre outros. No segundo, foi realizada a análise documental, procedimento metodológico que encaminhou o desvelamento das concepções que as propostas governamentais assumiram a respeito da educação, quando intensificaram seu discurso modernizador e democratizante. Trata-se da interpretação de normas, programas e projetos do período de 1995 a 2002, correspondente ao governo de Fernando Henrique Cardoso, marcado pela agudização do projeto neoliberal. Para tal, foram analisadas as propostas traduzidas em documentos como: Planejamento Estratégico do MEC 1995/1998, Plano Plurianual 2000/2003, Lei n.º 9.394/96 e Lei n.º 10.219/2001 – Plano Nacional de Educação. Esse período justifica-se, entre outros motivos, pelo fato de que é presente, em nível nacional, um arcabouço jurídico-normativo no campo educacional amplo e consolidado, o que permitiu o avanço das transformações nos níveis estaduais e, principalmente, a implantação de diversos programas educacionais, como, por exemplo, no Rio de Janeiro, o programa Nova Escola que desenvolve a avaliação institucional das unidades escolares – inspirado em um programa federal – e os movimentos de postergação dos processos de eleição de dirigentes das unidades escolares. Na segunda parte, foi executado o trabalho empírico em que foi realizada entrevista semiestruturada, aplicada, em grupos de discussão, a gestores educacionais dos níveis centrais (Secretaria de Educação e Conselho Estadual de Educação), do nível intermediário (Coordenadorias de Ensino) e do nível local (unidades escolares), para que esses sujeitos manifestassem suas percepções a respeito das formas como têm sido operadas as iniciativas denominadas de democráticas na gestão dos processos educativos do Estado. Foi realizado, também, trabalho empírico em escola pública da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, privilegiando o emprego de técnicas qualitativas de informação, que possibilitam o exame acurado dos diferentes aspectos que estão presentes nas concepções e nas relações gestionárias no interior da escola e os impactos que provocam nos sujeitos sociais que constroem o espaço educativo. Nessa ação, foi utilizada a técnica de observação
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das práticas e das relações organizativas que se tecem no interior da escola e revelaram-se os movimentos democráticos concretos e o modo como se manifestam. Foram alvo de observação as mais diferentes atividades como reuniões de planejamento, de estudos, pedagógicas, administrativas, de pais e professores, de conselho de classe, de Conselho de Escola, atividades rotineiras etc. A entrevista, em sua versão semiestruturada, foi empregada para ouvir professores, estudantes, gestores, pais, funcionários, a respeito das suas percepções sobre o processo de gestão e suas características, pelo que vivenciam na escola. O recurso metodológico utilizado para analisar as informações e os resultados obtidos pela pesquisa foi a análise de conjuntura, identificando acontecimentos relevantes no campo da política educacional e dos programas deles advindos; caracterização dos cenários político-econômico-sociais e suas particularidades, em que foram gerados e divulgados os discursos de democratização e as propostas que deles emergiram, por ser uma linha de análise, como diz Souza (1984, p. 8): A análise de conjuntura é uma mistura de conhecimento e descoberta, é uma leitura especial da realidade e que se faz sempre em função de uma necessidade ou interesse. Nesse sentido, não há análise de conjuntura neutra, desinteressada: ela pode ser objetiva mas estará sempre relacionada a uma determinada visão do sentido e do rumo dos acontecimentos.
Foram adotados neste trabalho os procedimentos de análise de discurso, considerada como uma proposta crítica que busca problematizar as formas de reflexões estabelecidas, situada enquanto objeto teórico porque: a) pressupõe a lingüística mas se destaca dela: não é nenhuma teoria descritiva, nem uma teoria explicativa. Pretende ser uma teoria crítica que trata da determinação histórica dos processos de significação; b) considera como fato fundamental a relação necessária entre linguagem e o contexto de sua produção, juntando para a compreensão do texto as teorias das formações sociais e as teorias da sintaxe e da enunciação; c) pela sua especificidade, ela é
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cisonista (sic) em dois sentidos: 1) procura problematizar as evidências e explicitar seu caráter ideológico, revela que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia; 2) denuncia o encobrimento das formas de dominação política que se manifestam numa razão disciplinar e instrumental (Orlandi, 1987, p. 11-13).
Pela análise de discurso, procurei desvendar o sentido da comunicação dos planos e programas educacionais dos governos federal e estadual e, busquei a revelação das contradições, das convergências, das divergências e dos equívocos presentes nos conceitos de democratização da gestão empregados nos programas educacionais implantados no Brasil de 1995 a 2002. Para a compreensão das percepções dos professores, alunos, gestores, pais e funcionários sobre as transformações nas relações organizativas da escola, foi empregada a análise de enunciação que, considera que na produção da palavra elabora-se ao mesmo tempo um sentido e operam-se transformações. Por isso o discurso não é um produto acabado, mas um momento de criação de significados com tudo o que isso comporta de contradições, incoerências e imperfeições. Leva em conta que, nas entrevistas, a produção é ao mesmo tempo espontânea e constrangida pela situação. Portanto a análise de enunciação trabalha com: a) as condições de produção da palavra. Parte do princípio de que a estrutura de qualquer comunicação se dá numa triangulação entre o locutor, seu objeto de discurso e o interlocutor. Ao se expressar, o locutor projeta seus conflitos básicos através de palavras, silêncios, lacunas, dentro de processos, na sua maioria inconscientes; b) o continente do discurso e suas modalidades (Minayo 1996, p. 206).
Esses procedimentos trataram o volume das informações contidas nas comunicações a categorias conceituais de modo que ultrapassem os elementos meramente descritivos, buscando interpretar e compreender as práticas gestoras que concretamente têm emergido das falas governamentais. Os resultados desse estudo estão organizados neste texto, em quatro capítulos: o primeiro faz uma discussão a respeito dos conceitos
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de democracia, educação e gestão democrática, destacando a socialização da participação política por meio da socialização do poder, a relação pedagógica entre educação e democracia – uma discussão a respeito da escola como espaço de formação e foco da gestão escolar – e a gestão da escola pública no contexto brasileiro. O segundo capítulo trata das concepções e programas do governo federal no período de 1995 a 2002, descrevendo e discutindo o Planejamento Político Estratégico do MEC 1995-1998 e o Plano Plurianual 2002-2003 no que se refere à educação. O terceiro capítulo apresenta a pesquisa empírica que obteve as percepções dos sujeitos de uma escola municipal do Rio de Janeiro a respeito da construção de ações e de relações transformadoras e participativas geradas no interior da escola. Finalmente, o capítulo quatro apresenta algumas possibilidades de construção de ações e de relações escolares democráticas, tendo como eixo fundante a experiência do Estado do Rio Grande do Sul no período de 1999 a 2002.