Apresentação A implantação das políticas de inclusão escolar, assim como os resultados obtidos nos diferentes instrumentos de avaliação da qualidade da educação – sejam nacionais ou internacionais –, tem dado crescente visibilidade a uma população escolar que se constitui em constante desafio para os educadores: os alunos que apresentam dificuldades para aprender e os alunos com deficiências. Enfrentar essa temática constitui o, principal, foco deste livro. Ele foi escrito com o objetivo de trazer contribuições para a reflexão dos contextos inclusivos, das práticas sociais e de novas concepções, assim como, especificamente, trazer uma compreensão dos processos de aprendizagem dos alunos com dificuldades e deficiência, na direção de estimular, principalmente, novas práticas pedagógicas. Práticas essas que, tendo em conta a complexidade da aprendizagem, possam ser mais efetivas tanto na educação dos alunos com dificuldades e deficiências quanto de todos aqueles presentes na sala de aula. O interesse pela reflexão e pela pesquisa sobre a complexidade da aprendizagem escolar, junto com o compromisso com a melhoria da qualidade da educação nos levou, como pesquisadores, a formar, em 2002, o Grupo de Pesquisa Aprendizagem, escolarização e desenvolvimento humano, reconhecido como Grupo de Pesquisa no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e integrado por pesquisadores de oito instituições de ensino superior, de sete estados diferentes do país. As pesquisas do Grupo se orientam para o estudo e análise de diferentes processos e tipos de aprendizagem, visando novas compreensões dos mesmos, a partir do reconhecimento da aprendizagem escolar como processo complexo.
Orientam-se também para o estudo das inter-relações entre aprendizagem e ensino em diferentes níveis de escolarização e modalidades educativas, assim como do impacto destes processos no desenvolvimento dos indivíduos O livro que apresentamos ao leitor é o segundo dos livros produzidos pelo Grupo1 e representa uma amostra da produção científica de parte de seus integrantes, especialmente aquela que procura desmistificar a forma simplista e naturalizada de compreender as dificuldades de aprendizagem ainda dominante no contexto educativo. O livro combina, de forma harmônica, resultados de pesquisas derivadas de dissertações de mestrado e teses de doutorado, resultados de pesquisas realizadas pelos próprios pesquisadores e trabalhos teóricos oriundos do desenvolvimento de linhas de pesquisas já consolidadas por eles. Consideramos importante destacar que as diferentes políticas e estratégias de inclusão escolar têm se centrado, especialmente, na garantia de acesso dos diversos grupos populacionais ao sistema regular de ensino, especialmente dos alunos com algum tipo de deficiência, assim como na garantia dos recursos de infraestrutura e técnicos ou de acessibilidade, necessários para que esses alunos possam realmente usufruir o que a escola lhes pode oferecer. Entretanto, o que consideramos essencial para a efetiva inclusão escolar não tem sido objeto de atenção central por parte dessas políticas: a aprendizagem de todos aqueles que, hoje, estão na escola, mas que não conseguem acompanhar suas exigências. Garantir o acesso e os recursos infraestruturais e técnicos é apenas uma condição necessária, porém não suficiente para a promoção de uma aprendizagem real, o que consideramos ser o objetivo central da perspectiva inclusiva em educação. Por isso, no livro, enfocamos a aprendizagem escolar a partir da importância de enfatizar, não as políticas de inclusão em primeiro plano, mas as condições e oportunidades que, na escola, permitem aos sujeitos superarem obstáculos pessoais, subjetivos, relacionais e sociais 1. O primeiro foi A complexidade da aprendizagem – destaque ao ensino superior, Campinas: Alínea, 2009.
no seu processo de aprender. São sujeitos que deveriam ser pensados nas muitas possibilidades que têm para aprender e se desenvolver e, assim, também, para participar da vida social de forma mais efetiva. Isso significa desobstruir os acessos e desenvolver estratégias para que o conhecimento produzido socialmente seja colocado de forma acessível a qualquer um que seja. Compreendemos ser esta a forma mais assertiva de inclusão social. Ressaltamos que a abordagem teórica do livro traz as marcas da psicologia histórico-cultural direcionando-se também para a compreensão do sujeito da aprendizagem a partir da perspectiva da subjetividade humana desenvolvida com base nesse referencial teórico2. Nessa perspectiva, a subjetividade, na sua simultânea condição individual e social, aparece como um sistema de sentidos que estão organizados em múltiplas configurações subjetivas e que têm sua gênese nas ações que os indivíduos praticam e nas relações que estabelecem nos múltiplos sistemas socioculturais em que estão inseridos. Assim sendo, a obra está organizada de forma a indicar as condições sociorrelacionais e as oportunidades oferecidas a sujeitos que trazem as marcas biológicas ou sociais da deficiência e os aspectos subjetivos de seu desenvolvimento. Destacam-se as formas possíveis e reais de superação, quando se cria oportunidade de vivência de situações significativas e organizadas de aprendizagem tendo em vista a singularidade de quem aprende. Isso permite trazer o tema da aprendizagem e da dificuldade de aprendizagem em outra análise e perspectiva interpretativas. Apresentam‑se como valorosas as análises teóricas, as experiências práticas e sugestões nos capítulos que abordam o sujeito, a deficiência, a dificuldade de apren dizagem, a fala e audição, impondo pensar as especificidades de cada um dos sujeitos que estão na escola para aprender. A deficiência mental, ou visual é vista pelo lado dos sujeitos e dos sentidos subjetivos da própria deficiência e 2. Ver dentre outros, González Rey, F. Epistemologia qualitativa y subjetividad. São Paulo: EDUC, 1997 e González Rey, F. Sujeito e subjetividade: uma perspectiva histórico-cultural. São Paulo: Thomson, 2002.
em relação ao contexto e às pessoas que a vivenciam. Na condição da surdez, discute-se a comunicação em libras e a ação pedagógica de intérpretes educacionais. As situações reais relatadas mostram que estratégias podem e precisam estar articuladas quando o essencial é o enfrentamento de aspectos que podem estar obstacularizando ou se interpondo em diferentes momentos de aprendizagem de diferentes sujeitos. Nas abordagens assumidas, pensamos trazer uma análise crítica que intenta contribuir para mudar algumas concepções equivocadas e preconceituosas em relação às possibilidades de aprendizagem de alunos que frequentam a escola. Todos os capítulos apresentam princípios, ideias ou estratégias que, sem constituir receitas ou prescrições, podem ser compreendidos em sua formulação criativa, na intenção de possibilitar mudanças significativas nas práticas pedagógicas em prol da promoção da aprendizagem dos alunos com dificuldades e deficiências. De forma mais específica indicamos a coerência temática da obra a partir de seus diferentes capítulos: O livro inicia-se com o capítulo Deficiência como iatrogênese que questiona e denuncia o lugar do diagnóstico médico na fabricação de deficiências, assim como seu papel nos processos de aprendizagem e desenvolvimento das pessoas com deficiências. Nele, as autoras Ingrid L. F. Raad e Elizabeth Tunes, a partir de resultados de pesquisa, analisam o diagnóstico médico e suas repercussões quando é recebido, principalmente, pela família e pela escola. As autoras alertam para o quanto ele pode converter as pessoas com deficiências em simples corpos, objeto de especulação e de conhecimento científico, longe de seu acolhimento como pessoas em sua inteireza. O capítulo Os aspectos subjetivos no desenvolvimento de crianças com necessidades educacionais especiais: além dos limites concretos do defeito de Fernando L. González Rey destaca as dimensões subjetiva, singular e relacional dos alunos com deficiência e suas implicações para a estruturação do trabalho pedagógico sobre novas bases. Ao retomar as ideias de Vigotski, o autor avança quando mostra o valor dos sentidos
subjetivos associados ao defeito. Interessantes sugestões pedagógicas são dadas para contribuir para a emergência e desenvolvimento de configurações subjetivas geradoras de aprendizagem e desenvolvimento nas crianças com dificuldades. No capítulo A superação das dificuldades de aprendizagem e as mudanças na subjetividade de Maristela Rossato e Albertina Mitjáns Martínez, mostra-se e analisa-se um processo relativamente pouco investigado: o de superação de dificuldades de aprendizagem. As análises e reflexões apresentadas são decorrentes de três estudos de caso com alunos de ensino fundamental que superaram suas dificuldades de aprendizagem em função de mudanças produzidas na sua subjetividade derivadas de processos históricos, contextuais, relacionais e propriamente subjetivos. A compreensão daquilo que promoveu as mudanças na subjetividade e consequentemente a superação das dificuldades de aprendizagem é a essência do capítulo e constitui uma importante fonte de ideais para o delineamento do trabalho pedagógico com os alunos que apresentam dificuldades para aprender estejam elas associadas ou não a causas orgânicas. O capítulo de Alexandra A. Anache intitulado Aprendizagem de pessoas com deficiência intelectual: desafios para o professor traz um instigante estudo de caso com uma criança que apresentava indicadores de deficiência mental e não se comunicava pela linguagem oral em decorrência de uma lesão cerebral. Também, a partir de uma crítica ao modelo biomédico de compreensão da deficiência e assumindo a perspectiva histórico-cultural, a autora investiu na construção de meios alternativos para investigar a dinâmica da aprendizagem da criança – essência do diagnóstico psicopedagógico em contraposição ao diagnóstico médico – assim como em recursos e alternativas de comunicação. O trabalho de intervenção pedagógica traz consequências muito importantes para a aprendizagem da criança e instiga a reflexão sobre aspectos da subjetividade social repercutindo nas possibilidades de aprendizagem da criança deficiente mental. Iniciando o capítulo com uma parábola cheia de simbolismos em relação às ideias de normalidade e loucura, Anelice Batista da Silva e
Maria Carmen V. R. Tacca, questionam as formas como a escola percebe e lida com a deficiência. Assim, o capítulo: Errata: onde se lê deficiente mental, leia-se criança que aprende como sujeito de possibilidades, apresenta a análise um episódio do qual participa uma aluna em fase inicial da escolarização, com expectativa de diagnóstico de deficiência mental e que frequenta uma sala de aula do ensino regular. O relato procura registrar o olhar de duas pessoas sobre a aluna e as práticas direcionadoras ou para suas possibilidades ou para os limites de sua aprendizagem. As perspectivas relacionais, a singularidade do sujeito que aprende, as concepções e crenças sobre a deficiência ou dificuldades de aprendizagem são, também, nesse capítulo, balizadores das reflexões e direcionadores das proposições quanto ao alcance da ação pedagógica. A partir de uma concepção ampla da linguagem como um sistema sígnico dual, que simultaneamente organiza o pensamento e constrói as expressões da interatividade humana, Cristina Madeira Coelho, no capítulo Linguagem, fala e audição nos processo de aprendizagem: desafios e estratégias, indica os desafios decorrentes da centralidade de processos de desenvolvimento da linguagem, da fala e da audição para o processo de ensino-aprendizagem em contextos pedagógicos da Educação Especial. A dimensão subjetiva da aprendizagem fica em evidência no argumento de que tais desafios vão imprimir a característica única e “irrepetível” de processos de ensino-aprendizagem. Por meio de exemplos oriundos de sua experiência empírica como professora/ fonoaudióloga, a autora procura estabelecer princípios e indicar estratégias que sejam úteis para essas organizações singulares, salientando o caráter relacional e dialógico das situações em que a aprendizagem tem lugar. O capítulo Significação e aprendizagem do aluno surdo de Celeste Azulay Kelman apresenta uma sistematização crítica das principais concepções acerca dos processos de aprendizagem das crianças surdas, assim como dos principais desafios que a educação destas crianças coloca para a prática pedagógica. A partir da revisão de uma extensa bibliografia, assim como da produção científica da autora, são abordados diversos
temas de relevância para a aprendizagem dessas crianças. Particular atenção é prestada à análise de como a criança surda produz significados, destacando-se a importância de considerar a multimodalidade do signo linguístico por um lado e o papel da qualidade relacional da comunicação, por outro. Em correspondência com as análises que são realizadas, tece ‑se um conjunto de importantes considerações e recomendações para o aprimoramento da prática pedagógica com crianças surdas. A aprendizagem da criança surda é também o aspecto direcionador do capítulo: O intérprete de língua de sinais e sua ação pedagógica no processo de aprendizagem do sujeito surdo, quando se traz para o debate o papel do intérprete de Língua de Sinais (LIBRAS). As autoras, Bianca Carrijo Cordova e Maria Carmen V. R. Tacca, colocam a questão da importância e da especificidade do trabalho do intérprete educacional, questionando se sua atuação se resume, de fato, a uma interpretação técnica e linguística, posicionando-se apenas como intermediador das relações entre professor e aluno. A partir de uma pesquisa com intérpretes educacionais dos diferentes níveis de ensino, procurou-se conhecer como eles mesmos compreendiam o seu papel e de que forma assumiam a sua atividade profissional na escola junto ao aluno surdo. Mediante os resultados, identificaram-se as exigências e as especificidades desse profissional no contexto educativo e, principalmente, sua importância como apoio imprescindível para a aprendizagem do aluno surdo, visto como sujeito singular. Por último, o capítulo A aprendizagem dos alunos com deficiência visual: reflexões a partir de uma pesquisa no Ensino Superior, de Patrícia Neves Raposo e Albertina Mitjáns Martínez, mostra o significativo papel dos aspectos subjetivos e relacionais na aprendizagem de alunos com deficiência visual e também discute suas implicações para a modificação das práticas pedagógicas no trabalho com esses alunos. As reflexões apresentadas têm como base uma pesquisa cujo objetivo foi compreender o impacto dos alunos-tutores, dentre outros elementos, na aprendizagem de alunos universitários com deficiência visual. A análise do processo de aprendizagem dos casos estudados evidencia que a preocupação
para a efetiva inclusão escolar desses alunos tem que ir muito além de providenciar-lhes ferramentas para compensar a falta de visão. A partir da compreensão de alguns dos diversos aspectos subjetivos e relacionais que participaram no processo de aprendizagem dos alunos estudados, são apontados alguns princípios a se ter em conta no processo de ensino dos alunos com deficiência visual. Assim, nesta apresentação, procuramos identificar os objetivos que nos mobilizaram e os aspectos relevantes de cada capítulo que selecionamos para compor a obra, com a ideia de alcançar profissionais, estudantes e demais interessados no tema da aprendizagem de pessoas que apresentam especificidades em seu desenvolvimento. Pensamos que conseguimos trazer para reflexão ideais pedagógicos e processos interventivos ancorados em princípios teóricos inovadores, que nos permitem justificar o título da obra: Possibilidades de Aprendizagem: ações pedagógicas para alunos com dificuldades e deficiências. Estamos direcionados pela crença ou convencidos de que projetar as possibilidades e não os limites e as faltas é o que nos permite criar meios alternativos para ajudar qualquer aluno a encontrar os caminhos de seus processos de aprender. Assumir a teoria da subjetividade e a singularidade de quem aprende nos induz e nos desafia a alcançar os estudantes na complexidade de suas necessidades, interesses e motivações, o que significa desenvolver um trabalho honesto na perspectiva da inclusão social. Para nós, autores e pesquisadores, que trazemos aqui nossas pesquisas, investigações e proposições fica a satisfação de poder compartilhar aquilo que produzimos com o que intentamos, também, contribuir para a área de conhecimento da aprendizagem. Nossa expectativa é, sem dúvida, abrir um profícuo espaço de debates que poderá ser identificador do valor das ideias que trazemos em cada um dos capítulos do livro. Sinta-se convidado a entrar em discussão conosco.
Organizadoras