Psicologia & Sociedade interfaces no debate sobre a questão social

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Capítulo 1

Da Opressão à Libertação: uma Perspectiva Urgente para a Psicologia A c o n c l u s ã o de um projeto, a a b e r t u r a de perspectivas Raquel Souza Lobo Guzzo

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ste livro tem uma história. Como toda obra, ele é fruto do trabalho de um grupo de pessoas que se comprometeram com uma construção alternativa para a Psicologia brasileira e latino-americana e resulta, direta e indiretamente, desse compromisso. Esse grupo constituiu-se daqueles que participavam do Grupo de Pesquisa Avaliação e intervenção psicossocial – prevenção, comunidade e libertação, do programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade de Campinas, responsável pela realização do Congresso no Brasil e por profissionais de diferentes universidades brasileiras e estrangeiras que entenderam o sentido e a importância desse evento, especialmente para disseminar a obra e a proposta de Ignácio Martín-Baró. O evento, trazido para a América do Sul pela primeira vez, teve, como objetivo, oferecer a oportunidade de socializar as obras e ideias da Psicologia da Libertação, para além dos espaços em que vinha sendo difundida, com estudantes de Psicologia do Brasil e pesquisadores próxi­


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mos ou interessados nesse campo de produção científica e intervenção. Um movimento intenso e rápido que trouxe resultados importantes para a Psicologia brasileira, sob forma de publicações e aprofundamento dos estudos na área da Psicologia Social da Libertação em diferentes universidades. Hoje, apesar das imensas dificuldades em fazer circular o pensamento de Martín-Baró, vemos com mais frequência suas referências em estudos de algumas instituições de ensino superior do país. À guisa de esclarecimento, o VI Congreso Internacional de Psicología Social de la Liberación, aconteceu em 2003, dentro da Vila Kostka – Mosteiro de Itaici, uma instituição jesuíta que abriga os históricos encontros da CNBB e que, por ser também comprometida com as causas do povo, tornou-se parceira de nossa iniciativa. Parte da produção desse evento resultou em um primeiro livro sobre a temática, editado em 2009, com o título de Psicologia social para a América latina – o resgate da psicologia da libertação (Guzzo & Lacerda Jr., 2009). A outra parte constitui esta produção. Com este livro, encerra-se um projeto iniciado em 2003, o que não significa dar por concluída a construção deste caminho dentro da Psicologia, abrindo-se, portanto perspectivas comprometidas de investigação e construção do conhecimento que servirão ao estudo da questão social com um horizonte de mudar o status quo. Mesmo organizado e disponibilizado sete anos depois do evento, revela, de maneira muito atual, que lidar com a questão social é ainda algo a ser posto como prioridade para a Psicologia. De maneira direta ou indireta, este caminho será percorrido apenas e se existirem pessoas dispostas a enfrentar os dissabores de uma luta contra a hegemonia e a dominação de uma psicologia que serve de instrumento para a manutenção do status quo, que se coloca a serviço da classe dominante e que explica os problemas existenciais a partir do fracasso do indivíduo. Mudar os fundamentos dessa ciência, romper suas amarras, é tarefa para quem assume a crítica como elemento da análise da realidade e a história, como seu fundamento. O tema do congresso, “Da opressão à libertação – uma perspectiva urgente para a psicologia”, foi proposto por razões pertinentes ao próprio apelo da Psicologia Social da Libertação – um campo teórico de caráter ético-político, que destaca a importância do movimento histórico na


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construção do cotidiano da vida social, do compromisso ético que con­ fronta as pessoas com seus valores e escolhas e da perspectiva política que, a partir da crítica à ideologia dominante, fornece sentido e horizonte libertador a um conhecimento e a uma prática profissional que se mantêm aprisionados à dominação ideológica. A leitura do livro de Bulhan (1985), “Frantz Fanon e a Psicologia da Opressão”, confirma o papel da Psicologia como instrumento poderoso servindo a diferentes causas sociais. Na introdução, o autor contrasta a história de vida de dois profissionais que se utilizavam da psicologia em suas posições de trabalho – um era um branco, filho de colonizador europeu, simpatizante do nazismo, liderança do Apartheid conduzido pelo Partido Nacional na África do Sul. O outro, Frantz Fanon, um negro que se dedicou à luta pela libertação da Argélia, de origem caribenha, filho de trabalhadores, identificado, desde muito cedo, com o sofrimento dos povos colonizados pela aristocracia branca. Fanon, aos 17 anos, desligou-se da família e lutou na França, durante a Segunda Guerra Mundial, contra a ocupação nazista. Depois, foi estudar psicologia e psiquiatria para entender e cuidar de pessoas atormentadas pelas consequências da guerra. Ao final de sua vida, lutou pela libertação da Argélia do colonialismo francês. Uma trajetória de vida dedicada à luta contra a opressão. Fanon e Verwoerd foram homens que colocaram em prática suas profissões de tal forma, que fizeram história e afetaram a vida de milhões de pessoas. O primeiro, pela militância comprometida com a libertação e a produção de um conhecimento relacionado às lutas contra a opressão, o racismo, o sexismo e o colonialismo. O segundo, construindo leis raciais que controlavam, regulavam e tiranizavam os negros nas fazendas, nas cidades e nos espaços reservados para seus confinamentos. Negros e brancos, ricos e pobres, opressores e oprimidos são como duas margens de um mesmo rio, conforme apresenta o autor – convivem em conflito e em disputa pelo poder de uns sobre os outros. Duas histórias distintas de vida podem ser evidência irrefutável de que é possível construir alternativa para a psicologia, particularmente suas teorias e concepções, no compromisso com diferentes faces da mesma realidade social. O contraste entre a vida de um filho de escravos e a de um filho de imigrante colonizador; um lutando contra o povo oprimido, outro, a


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favor da supremacia branca demonstra dois horizontes diferenciados de sentido na prática e na ciência que defendiam: um, a partir da perspectiva euro-americana comprometida com questões da dominação, enquanto o outro, da perspectiva africana, envolvida com a causa da justiça, da libertação dos oprimidos e colonizados. Relembrar o movimento de Frantz Fanon na África, neste livro, que procura tornar visíveis alternativas para a psicologia brasileira, é chamar a atenção para os desafios que estão colocados diante daqueles que procuram entender e intervir na realidade, tendo definido em qual margem do rio estarão. É ter em conta que a produção científica e sua contribuição para a realidade estão, inegavelmente, relacionadas às lutas cotidianas. Fanon, assim como Martín-Baró produziram práticas e conhecimentos absolutamente envolvidos com os acontecimentos políticos de sua época e realidade social. Escreveram com paixão e urgência, buscando uma real contribuição para o que estava presente na materialidade do dia a dia, direcionando seus trabalhos de acordo com prioridades, orientações e conceitos teóricos que serviam aos objetivos políticos e sociais, contrários ao status quo, intolerável e hostil às necessidades humanas. Ao falarmos em opressão e libertação, caracterizamos um movi­ mento que pressupõe, antes de tudo, tomada de consciência e radical posicionamento que define a direção e o compromisso do conhecimento produzido e da prática no exercício profissional da Psicologia. Além disso, é preciso reconhecer que estas não têm sido categorias presentes na ciência e na profissão da psicologia brasileira. Reconhecer a opressão como um fenômeno psicossocial, que resulta em diferentes formas de violência e sofrimento individual e coletivo, exige uma análise e uma interpretação do cotidiano a partir de uma perspectiva materialista e histórica. Como aponta Mészáros (2009), os parâmetros da era do capital, como um todo, deixaram lastro de uma formação social marcada por uma hierarquia estrutural na dinâmica da dominação e da subordinação, caracterizada por um círculo vicioso que ele resume da seguinte maneira: a família nuclear, como microcosmo da sociedade, os meios de produção alienados e sua forma personificada, o dinheiro, assumindo formas dominantes no desenvolvimento histórico, o fetiche como forma de satisfação das necessidades humanas, o trabalho assalariado coagido e explorado pela compulsão econômica, a formação


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dos estados do capital em diferentes variedades – estados nacionais auto­ ‑orientados – e o mercado mundial descontrolado, lançando sementes de conflitos destrutivos. Segundo esse autor, com base em dolorosa evidência histórica, o capitalismo tem sucesso em impor-se, por meio das interconexões estruturais de suas partes constitutivas, sobre os esforços emancipatórios parciais dirigidos a alvos específicos e limitados. E neste processo, que papel tem cumprido a Psicologia? A tese de doutorado de Lacerda Jr, defendida em 2010, procurou analisar alguns projetos psicológicos ao longo da história, problematizar a relação entre os desdobramentos internos da psicologia com os aconte­ cimentos históricos e sociais, ao mesmo tempo, com debates filosóficos mais gerais. Seu trabalho apresenta características “não visíveis a olho nu” da psicologia, como um complexo social específico nascido nas entranhas da burguesia com o objetivo de compreender a autoatividade humana, visando justificar, naturalizar e fazer a apologia da ordem social instituída. Conclui que, mesmo se pretendendo críticas, algumas psicologias são propostas teóricas incapazes de superar o ponto de vista do capital, criando explicações para a subjetividade humana que sintonizam a existência da sociedade burguesa, absolutizando uma forma histórica de individualidade como condição universal. Nesse cenário, buscar outro horizonte para a psicologia significa, em primeiro lugar, reconhecer a história de sua construção e seus compro­ missos sociais e políticos. A relação entre Psicologia e Política ainda não se apresenta como um debate presente na produção científica brasileira, muito menos em espaços de formação básica de futuros psicólogos, apesar dos esforços empreendidos por pesquisadores que fundaram a Associação Brasileira de Psicologia Política e continuam mantendo uma revista dentro dessa linha editorial e congressos nacionais. Como um tabu, relacionar psicologia com política é visto como um desmerecimento do caráter científico da área, como se a Psicologia estivesse imune e isenta de qualquer compromisso com os fatos reais e suas relações sociais, políticas e econômicas. O caráter científico da Psicologia acabou por se legitimar dentro do espectro das ciências positivistas, que servem a um modelo de organização social. A relação entre psicologia dominante e mudança social, visível apenas em uma contextualização social e histórica, foi considerada uma tarefa sem perspectivas para aqueles que buscavam, pela


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crítica, propor direções e compromissos diferentes da ciência para com a sociedade (Jimenez-Domínguez, 1990). Novos desenvolvimentos para a Psicologia, que apontam para uma perspectiva crítica voltada à América Latina, segundo Jimenez-Domínguez (1990), podem ser resumidos no seguinte: adotar um enfoque interdisciplinar contextualizado pelo desenvolvimento histórico e social, enfatizar um enfoque antirreducionista e antimecanicista que assume objeto psicológico como processo de mudanças contínuas e qualitativas, planejar propostas emancipadoras e reveladoras das contradições presentes nos problemas psicológicos, em oposição aos critérios tradicionais de equilíbrio e adaptação às normas e circunstâncias vigentes, adotar uma posição crítica frente à psicologia dominante e frente à sociedade que a gera e a sustenta, assumir o marxismo como fundamento para uma análise da realidade concreta e seus impactos na formação da subjetividade. Com esses desafios, abrem-se as perspectivas para a construção de uma ciência e uma profissão que sirvam a um novo modelo de sociedade, combatam o sistema vigente e fortaleçam homens e mulheres para um processo de conquistas e libertação.

ReferÊncias Bulhan, H. A. (1985) Frantz Fanon and the psychology of oppression. New York: Plenun Press. Guzzo, R. S. L. & Lacerda Jr., F. (2009) Psicologia social para a América Latina – o resgate da Psicologia da Libertação. Campinas: Alínea. Jiménez-Domínguez, B. (1990) Psicologia – Política: notas criticas sobre la psicologia dominante. In: B. Jiménez-Domínguez (Coord.). Aportes críticos a la psicologia em latinoamerica. Guadalajara: Editorial Universidad de Guadalajara, p. 112-38. Lacerda Jr., F. (2010). Psicologia para fazer a crítica? Apologética, individualismo e marxismo em alguns projetos psi. Tese (Doutorado não publicada). Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Mészáros, I. (2009). Estrutura social e formas de consciência a determinação social do método. São Paulo: Boitempo Editorial.


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