Apresentação A Reforma curricular do Ministério da Educação promovida em 1994, diferentemente da legislação anterior, passou a prever a obrigatoriedade do ensino de Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Agora, com status de disciplina, a Sociologia Jurídica principiou a integrar, em seqüência à chamada Sociologia Geral, os currículos das Faculdades de Direito brasileiras. A partir de então, alguns manuais de Sociologia Jurídica têm sido publicados, iniciando-se, em nosso país, novos grupos de discussão a respeito das relações entre o universo jurídico e o social. Preocupados com a sistematização de um curso que estabeleça a integração das duas disciplinas curriculares – Sociologia Geral e Sociologia Jurídica – este grupo de professores, com experiência de trabalho em instituições de ensino jurídico predominantemente privadas, resolveu construir este material. Miranda Rosa, clássico da Sociologia Jurídica brasileira, chama a atenção para o fato de que a ciência jurídica demonstra forte resistência a incorporar o pensamento sociológico no seio das discussões por ela consideradas centrais, e que, por outro lado, da mesma forma, a Sociologia não raramente adota certa postura de desprezo em relação ao Direito e à Ciência Jurídica. No texto Posição e autonomia da Sociologia do Direito, publicado na coletânea Sociologia e Direito, organizado por Claudio Souto e Joaquim Falcão, ele afirma: O teórico do direito procura obter o grau mais alto de coerência interna com um mínimo de mudança no seu sistema conceptual, de modo a contribuir para a manutenção da máxima “segurança jurídica”, ou seja, da possibilidade de prever a aplicação de normas e princípios jurídicos aos casos particulares. Dessa maneira, é criada uma impressão de que o núcleo do direito é constituído em grande parte de princípios permanentes, incidindo as transformações principalmente sobre aspectos periféricos ou secundários da ordem jurídica ou, então, operando as mudanças mais importantes segundo modos preestabelecidos e gradualmente, sem afetar a unidade interna do sistema. Logo, se novas cogitações invadem o seu mundo de valores e formas de conduta, de regras formando um todo sistemático, alternado-lhe a maneira de apresentação e insistindo na adoção de métodos experimentais, no estudo, não da norma em si e em relação a outras normas do mesmo e de outros sistemas
igualmente integrados, mas da norma em relação com a realidade do meio social em que ocorre, de que é resultado e que, por sua vez, ela condiciona e modifica, é fácil concluir que sua natural reação seja de hostilidade. Não é menos verdade, entretanto, que os sociólogos se têm mostrado curiosamente frios em relação ao desenvolvimento da sociologia do direito. Parece que o fato de ter o direito sido, por muito tempo e como foi dito, a principal, se não a única, ciência social verdadeiramente desenvolvida, e o fato de que os juristas, em certa fase, foram numerosos e muito atuantes nos passos mais importantes para a formação da própria Sociologia como ciência, despertaram alguns ressentimentos e certas reservas intelectuais entre os sociólogos. Além disso, o chamado “imperialismo sociológico” de Comte, com a tendência de imergir o direito na sociologia, aceito com variações por muitos outros importantes nomes dos estudos sociológicos, rejeitou por bastante tempo a idéia de que se pudesse falar de uma Sociologia Jurídica. (ROSA, Miranda. Posição e autonomia da Sociologia do Direito)
Marcos Nobre, na Revista Cebrap, julho de 2003, numa reflexão sobre a pesquisa em Direito no Brasil, explica os motivos que permitem entender porque o direito como disciplina acadêmica não tem conseguido acompanhar o vertiginoso crescimento qualitativo da pesquisa científica em ciências humanas no Brasil, nos últimos trinta anos. E, em
um debate sobre Sociologia e Direito, no XIº Congresso Brasileiro de Sociologia,setembro de 2003, indaga: Como foi possível que nos últimos quarenta anos a Sociologia tenha ignorado o Direito, se os clássicos da Sociologia (Marx, Durkheim e Weber) se preocuparam com o Direito e famosos juristas brasileiros (Vitor Nunes Leal e Raymundo Faoro) se preocuparam com a Sociologia? Para ele, há dois fatores fundamentais: a baixa
credibilidade das instituições jurídicas, já que as vertentes marxistas, dominantes na Sociologia, consideravam o Direito como fenômeno superestrutural, e portanto secundário, e a implantação do ensino jurídico brasileiro que não acompanhou o salto qualitativo que fez a Sociologia, pois o Direito se isolou em relação às demais ciências humanas, não seguindo o rigor científico que elas procuraram seguir. Em resumo, sua hipótese fundamental para os questionamentos levantados é a de que esse “atraso relativo” do Direito em relação às outras ciências humanas se deveu a uma combinação de dois fatores fundamentais: o isolamento em relação a outras disciplinas das ciências humanas, pois o Direito, devido ao seu princípio de antigüidade, colocava-se como uma ciência rainha; e uma total confusão existente no Brasil entre prática jurídica, teoria jurídica e ensino jurídico. Embora o presente livro não seja uma obra de pesquisa jurídica, mas de elementos para o ensino da Sociologia do Direito, é importante lembrar que há uma indissociabilidade entre ensino e pesquisa. O isolamento do Direito como disciplina pode ser uma das razões pelas quais não só a pesquisa como também o ensino jurídico não avançaram na mesma proporção verificada em outras disciplinas das ciências humanas. É o que parece estar presente em diagnóstico feito pelo Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), já na década de 1980, no qual se afirma o seguinte: Numa sociedade em que as Faculdades de Direito não produzem aquilo que transmitem e o que se transmite não reflete o conhecimento produzido, sistematizado ou empiricamente identificado, a pesquisa jurídica científica, se não está inviabilizada, está comprometida.
Este livro se divide basicamente em duas partes: na primeira, predominam discussões mais próprias à chamada Sociologia Geral, e, na segunda, debates atinentes à Sociologia Jurídica. O propósito, porém, não é tratar tais cadeiras de forma estanque, separando-as umas das outras. Ao contrário, nosso objetivo é mostrar como uma se relaciona com a outra. Assim, na primeira parte deste livro, analisaremos qual a importância da Sociologia no universo científico, como as ciências humanas nasceram e se desenvolveram ao longo dos séculos XIX e XX, principalmente no que concerne às suas teorias clássicas, formuladas pelos positivistas franceses Auguste Comte e Émile Durkheim, pelo alemão Max Weber e pelo judeu-alemão Karl Marx e seu companheiro Friedrich Engels. Toda a teoria da Sociologia Clássica, estudada na primeira parte deste livro, tem uma relação intrínseca com o Direito. É importante que se saiba que cada um dos autores estudados tem formulações peculiares e muito importantes sobre o pensamento jurídico, de modo que produzem uma compreensão global desse universo. Assim, ainda na primeira parte deste trabalho, apresentaremos, na seqüência de cada capítulo destinado a tais intelectuais, apreciações a respeito de sua relação com o Direito, revelando conexões entre a Sociologia Geral e a Ciência Jurídica. Tais teorias, bem como a noção que se possa ter a respeito da história da Sociologia e do debate sobre a existência das ciências humanas, são fundamentais não só para que tenhamos condições de compreender um pouco dessa importante forma de pensamento, basal inclusive para o conhecimento jurídico, como veremos logo adiante, mas, sobretudo, para que possamos ter subsídios para pensar o mundo. A Sociologia serve para auxiliar as pessoas a refletirem sobre a vida, principalmente a vida social, aquela que todos nós temos inevitavelmente, queiramos ou não. Até um ermitão algum dia em sua vida teve contato com a sociedade, com pelo menos uma comunidade, ou na mais peculiar das hipóteses, com sua mãe, o que quer dizer que teve o contato com o outro, que lhe ensinou algo, sem o que ele não teria a mínima condição de sobreviver. O sociólogo Wright Mills, em seu livro A imaginação sociológica afirma: O que precisam (os seres humanos), e o que sentem precisar, é uma qualidade de espírito que lhes ajude a usar a informação e a desenvolver a razão, a fim de perceber, com lucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmos. É essa qualidade, afirmo, que jornalistas e professores, artistas e público, cientistas e editores estão começando a esperar daquilo que poderemos chamar de imaginação sociológica.
E continua, a imaginação sociológica capacita seu possuidor a compreender o cenário histórico mais amplo, em termos de seu significado para a vida íntima e para a carreira exterior de numerosos indivíduos. Permite-lhe levar em conta como os indivíduos, na agitação de sua experiência diária, adquirem freqüentemente uma consciência falsa de suas posições sociais.
O que buscaremos, na primeira parte deste livro, será justamente apresentar ao leitor alguns conceitos fundamentais para que se possa desenvolver essa imaginação sociológica. Poderíamos ter selecionado outros autores da Sociologia, também extremamente importantes para o entendimento da realidade do mundo moderno, como por exemplo os integrantes da famosa Escola de Frankfurt, ou representantes da fenomenologia, do evolucionismo, das teorias da ação social, da ação comunicativa ou do interacionismo simbólico, estes muito importantes nas análises sobre o mundo contemporâneo, também chamado pelos especialistas de pós-modernos. Mas, como salienta o Professor Octávio Ianni, em um texto intitulado A Sociologia numa era de globalização, publicado na coletânea A Sociologia no horizonte do século XXI, organizado por Leila Ferreira, o marxismo, o funcionalismo (positivismo) e a teoria weberiana são as três poderosas matrizes do pensamento científico que nunca deixaram de contemplar o indivíduo, a ação social, o cotidiano e outras manifestações das diversidades da vida social.
Ressalte-se, ainda, que Durkheim está presente no estruturalismo e na teoria sistêmica, pois autores modernos redescobrem o princípio da causação funcional com o qual nasceram e se desenvolveram o funcionalismo e os neofuncionalismos. Marx serve de inspiração a muitos autores dedicados a interpretar as configurações e os movimentos da sociedade global, interpretações inspiradas, em última instância, no princípio da contradição. E na medida em que se multiplicam os estudos sobre a mundialização e a racionalização do mundo, a ocidentalização de outras sociedades, tribos, nações e nacionalidades, Weber torna-se presente. Ou seja, essas teorias, ainda hoje, no início do século XXI, com afirma Ianni, fertilizam a maior parte de tudo o que se produz e se discute sobre as configurações e movimentos da sociedade global. Sendo assim, temos a certeza de que esses fundamentos conceituais da Sociologia Clássica são importantíssimos para o desenvolvimento da imaginação sociológica. Tais conceitos constituem o que poderíamos chamar de alicerces para o raciocínio que se pretende científico no campo das ciências humanas. Por meio do contato com as idéias de evolução social, movimentos dinâmico e estático, organicismo, fato social, consciência coletiva, anomia, solidariedade orgânica e mecânica elaboradas pelos positivistas; dos conceitos de ação social, relação social e tipo ideal, ancorados na subjetividade humana e no historicismo analítico, criando-se com isso o método compreensivo weberiano; e, finalmente, do extenso estudo sobre a história humana fundamentado no método dialético, originando o materialismo histórico, e, com ele, toda uma profunda análise sobre a economia dos povos como
infra-estrutura das relações políticas, das culturas, das religiões, e dos direitos das civilizações, estudo este desenvolvido pelo marxismo, é que se pode chegar a uma compreensão racional-científica do mundo, é que se pode enxergar o que aparentemente não existe, ver o invisível, compreender, enfim, cientificamente o que está por trás das relações sociais, religiosas, econômicas e políticas que se estabelecem entre os seres humanos, ou seja, elaborar a imaginação sociológica. Esta é, portanto, a capacidade de entendimento científico do universo e de criação intelectual do novo, daquilo que pode ser realizado no futuro. Deve-se ressaltar aqui que o desempenho de qualquer outro tipo de conhecimento, do religioso, do artístico, do filosófico, e do senso-comum, conforme já se disse na primeira parte deste livro, é absolutamente legítimo. Não sabe mais o cientista que o homem do campo, não sabe mais, portanto, o sociólogo, que o lavrador ou o operário. Sabe, apenas, de modo diferente. Queremos dizer, com isso, que aqueles que não desenvolvem a imaginação sociológica, - e aqui cabe esclarecer que para nós a imaginação sociológica não torna ninguém superior ou mais inteligente que os outros -, simplesmente não desenvolvem a capacidade de compreensão do mundo, segundo os parâmetros da ciência social, e se o Direito é entendido como ciência, aqueles que o estudam devem, portanto, desenvolver o raciocínio científico, e se, ainda mais, o Direito configura a Ciência Jurídica e Social, devem os que se inclinam a estudá-la poder raciocinar sobre os objetos de tal ciência de modo apropriado, ou seja, ser capazes de desempenhar a imaginação sociológica. Na segunda parte deste trabalho, introduziremos o leitor no universo mais propriamente da Sociologia Jurídica. Há posições divergentes a respeito de seu lugar no campo das ciências humanas. Alguns autores afirmam que ela é um ramo da Sociologia e outros que se trata de um ramo do Direito. Para nós, a Sociologia Jurídica é uma ciência, cujo objeto é a interdependência entre o social e o jurídico, ou seja, a influência da sociedade sobre o Direito e vice-versa. Busca compreender as relações entre o ordenamento jurídico e os acontecimentos sociais, entre o conjunto de formulações teóricas a respeito da lei e da realidade social. Alguns autores distinguem “Sociologia Jurídica” e “Sociologia do Direito”. Abordaremos, talvez por preciosismo, tal distinção, muito embora não adotemos a postura de estabelecer diferenças entre as duas. Faremos um panorama das diferentes abordagens sociológicas sobre o sistema jurídico contemporâneo, como a eficácia do Direito, o pluralismo jurídico e as discussões sobre o acesso à justiça. Na seqüência, abordaremos parte do universo contemporâneo do Direito por meio de temas contemporâneos de Sociologia Jurídica, tais como, os direitos humanos, a criminalidade nos grandes centros urbanos, as transformações do trabalho no mundo contemporâneo, o processo de globalização,as mudanças nos valores familiares, o poder da mídia, o meio ambiente, o direito do consumidor e os novos sujeitos sociais, os movimentos sociais. Finalmente, analisaremos o tema “os operadores do Direito”, com textos sobre a advocacia, o ministério público e a magistratura.
Tais capítulos, além de abordar temas relevantes para a compreensão do universo social e jurídico atual, se prestam a servir como subsídios e fontes para trabalhos de cursos individuais ou em grupo, envolvendo pesquisas bibliográficas e de campo, no sentido de conduzir os estudantes a mais que estudar a Sociologia Jurídica, realizá-la, pois tratam de temas jurídicos na perspectiva do pluralismo jurídico, da eficácia do Direito ou do acesso à justiça. Os organizadores