psicologia política crítica Insurgências na América Latina organizadores
Domenico Uhng Hur Fernando Lacerda Júnior
DIRETOR GERAL Wilon Mazalla Jr. COORDENAÇÃO EDITORIAL Willian F. Mighton COORDENAÇÃO DE REVISÃO E COPYDESK Alice A. Gomes REVISÃO DE TEXTOS Paola Maria Felipe dos Anjos EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Fabio Diego da Silva Tatiane de Lima CAPA Patrícia Lagoeiro Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Psicologia política crítica : insurgências na América Latina / organizadores Domenico Uhng Hur, Fernando Lacerda Júnior. -- Campinas, SP : Editora Alínea, 2016. Vários autores. Bibliografia. 1. Psicologia política I. Hur, Domenico Uhng. II. Lacerda Júnior, Fernando. 16-03499
CDD-320.019
Índices para catálogo sistemático: 1. Psicologia política 320.019 ISBN 978-85-7516-766-3 Todos os direitos reservados ao
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Sumário Apresentação Psicologia Política Crítica: insurgências em tempos de crise.......................................5 Domenico Uhng Hur e Fernando Lacerda Júnior Capítulo 1 Crise e Insurgência, Controle da Subversão e Subversão do Controle: o papel da Psicologia Política.....................................................................................15 Elio Rodolfo Parisí Capítulo 2 Para uma Redefinição Marxista da Psicologia Política..............................................33 David Pavón-Cuéllar Capítulo 3 Insurgência, Psicologia Política e Emancipação Humana..........................................49 Fernando Lacerda Júnior CAPÍTULO 4 Ontologia Negativa e o Político: contribuições para a Psicologia Política.....................................................................65 Frederico Viana Machado e Frederico Alves Costa Capítulo 5 Cidadania e Ação Política: as marchas pela dignidade...............................................81 Xiana Vilas, Cristina Gómez-Román e José Manuel Sabucedo
Capítulo 6 A Psicologia (Crítica) Permanentemente na Encruzilhada: servos do poder ou ferramentas para a emancipação?................................................95 Athanasios Marvakis Capítulo 7 Agenciamentos Psicopolíticos: estratopolítica, tecnopolítica e nomadopolítica.........................................................105 Domenico Uhng Hur Capítulo 8 Micropolíticas Revolucionárias e Insurgências Macropolíticas: devir imanência/ser dialética.....................................................................................121 Gregório Esteban Kazi Capítulo 9 Psicologia Política Latino-Americana: reflexões sobre seu lugar e desafios..........................................................................137 Hugo Adrián Morales Sobre os Autores.......................................................................................................145
Apresentação
Psicologia Política Crítica Insurgências em tempos de crise Domenico Uhng Hur e Fernando Lacerda Júnior
A
Psicologia Política é um campo de estudos desenvolvido ao longo do século XX no hemisfério norte do planeta e teve como um de seus focos iniciais a compreensão do comportamento humano relacionado aos processos políticos. De uma perspectiva mais ampliada, pode-se dizer que a Psicologia Política se originou com as reflexões filosóficas na antiga Grécia sobre o indivíduo e a governabilidade, mas obviamente sem constituir-se como uma disciplina autônoma. Alguns autores afirmam que a Psicologia Política surgiu até antes da constituição da Psicologia Social, no fim do século XIX, com os estudos das massas e multidões) e não é, portanto, uma subdivisão da Psicologia Social (Dorna, 2007; Parisí, 2007). Entretanto, no seu decorrer histórico, houve um processo de institucionalização, que a tornou, de certa forma, despolitizada. A política passou, assim, a ser apenas um objeto de estudo, abordado assepticamente, com base nas metodologias tradicionais. Pior ainda, tal como argumentam Parker (2007) e Guareschi (2007), muitas vezes, o social e o político foram abordados como processos semelhantes aos problemas patológicos. Essa questão fica ainda mais clara quando a Psicologia Política e a Psicologia Social estudam a atividade sociopolítica que busca transformar o mundo. Ao tomarem como ponto de partida o indivíduo isolado que deve pensar, agir e sentir como sujeito democrático, feliz e equilibrado, psicólogos políticos tradicionais, por mais paradoxal que isso possa parecer, frequentemente suspeitam do político, coletivo e grupal. Na América Latina, a Psicologia Política encontrou território que germinou importantes mudanças. O campo não se reduziu à mera reprodução do que estava
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sendo praticado nos Estados Unidos e na Europa, mas singularizou-se de acordo com as lutas sociais e políticas que se disseminaram pelo continente entre as décadas de 1960 e 1980. Entrou em ressonância com a agitação e efervescência política e popular, assumindo, assim, um compromisso político e crítico com o status quo, sem adotar a ideologia de uma suposta neutralidade, tão em voga nas psicologias praticadas até então, e sem patologizar a atividade de transformar o mundo. A mudança é tão importante que, em vez de uma Psicologia Política ‘liberal’ que adota a perspectiva individualista e essencialista e valoriza temáticas como a democracia, indivíduos equilibrados e racionais etc. (Parker, 2007), podemos encontrar na obra de um eminente psicólogo político latinoamericano1, Martín-Baró (1981), uma abordagem completamente diferente. Ao invés de patologizar movimentos sociais revolucionários, ele não descreve o ódio como afeto ‘negativo’, a violência revolucionária como ‘desequilíbrio irracional’ ou a prática de justiçamento como fruto de ‘personalidades autoritárias’. Dessa perspectiva, esses processos e atividades são respostas à violência estrutural e parte necessária dos anseios por libertação dos setores populares e da formação de homens e mulheres novos. Em outras palavras, a imersão na luta armada foi entendida pelo autor como um salto qualitativo na formação de novas identidades políticas, menos oprimidas e submissas. Essa diferença qualitativa não foi um aspecto isolado nos textos de MartínBaró. Em obra que sistematizou os trabalhos de Psicologia Política publicados entre 1956 e 1986 disponíveis na América Latina, Montero (1987a) identificou algumas tendências importantes. Em primeiro lugar, somente 30% dos trabalhos de Psicologia Política Latinoamericana eram estudos que, em alguma medida, se aproximavam dos tradicionais estudos de Psicologia da Política, isto é, que utilizavam de conhecimentos e conceitos da Psicologia tradicional (atitudes, comportamento, percepção, cognição etc.) para estudar os processos políticos. A maior parte dos trabalhos buscava, muitas vezes de forma original, analisar criticamente problemáticas produzidas por ditaduras militares e sociedades estruturalmente desiguais. Assim, a Psicologia Política Latinoamericana esteve preocupada em estudar problemas como o trauma político, conscientização, alienação, ideologia, violência de Estado, tortura e, também, o papel político da Psicologia e seus profissionais (neste caso, estão os diversos estudos sobre políticas da Psicologia). Portanto, a Psicologia Política na América Latina transformou-se e adotou um enfoque mais crítico e politizado o que na Europa e nos Estados Unidos, em grande parte impulsionada pelas lutas libertárias contra oligarquias arcaicas, ditaduras 1. Optamos por escrever ‘latinoamericano’ e não ‘latino-americano’, para utilizar a grafia mais propagada entre os países da América Latina.
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sanguinárias, as inúmeras contradições sociais e o projeto capitalista que se intensificou no continente. Essa perspectiva crítica e de transformação social refletiu-se em inúmeros campos da Psicologia na América Latina. A Psicologia Social Comunitária gestada no continente diferenciou-se do que era desenvolvido no hemisfério norte, tornando-se referência mundial para um projeto político de transformação, mudança social, conscientização, empoderamento e compromisso com setores oprimidos (Montero, 2004). Mesmo a psicanálise, campo de saber frequentemente criticado como despolitizado, a-histórico e correia de transmissão da axiomática do Capital, sentiu as ondas da agitação e crítica insurgente latinoamericanas. Enrique Pichon-Rivière, José Bleger (1958), Gregório Baremblitt e outros psicanalistas argentinos (Langer, 1973; Rodrigues, Fernandes & Duarte, 2001) comandaram uma virada epistemológica na psicanálise, em que agregaram, aos estudos do inconsciente, questões históricas e políticas, inicialmente com base nas reflexões e na crítica marxista, gerando uma produção singular, inovadora e crítica que articulou a clínica e a política. Ignacio Martín-Baró, com sua Psicologia da Libertação, figura como um dos ícones desse período turbulento, no qual produziu e inspirou muitas obras no campo da Psicologia Política Latinoamericana e das lutas sociais libertárias. Participando do processo de construção da Psicologia Política na América Latina, o autor via, nesse campo, a possibilidade de se construir uma ciência consciente de seus próprios condicionamentos políticos e que contribua para uma nova consciência da e na atividade política, cumprindo uma função de desideologização (Martín-Baró, 2013, p. 565). Em outras palavras,
por ser uma área que articula a Política e a Psicologia, a Psicologia Política deve pautar-se por uma crítica das políticas da Psicologia, ou seja, por uma suspeição e questionamento das funções sociais desempenhadas por ideias e práticas psicológicas até então. Desse modo, são condições essenciais para a construção de uma Psicologia Política desde a especificidade das formações sociais latinoamericanas a tomada de consciência dos projetos sociopolíticos em disputa no interior da própria Psicologia e a compreensão e crítica do papel que ela assume dentro de uma sociedade desigual, em que muitas vezes reproduziu e reproduz alienadamente os enunciados da classe dominante, fazendo parte do aparato ideológico desta. Somente assim, libertando-se de seus próprios grilhões, da adesão irrefletida à ideologia, é que a Psicologia Política pode configurar-se como o campo que se ocupa com o estudo dos processos psíquicos pelos quais as pessoas e os grupos conformam, lutam e exercem o poder necessário para satisfazer determinados interesses sociais em uma formação social (Martín-Baró, 1995, pp. 214-215).
Em suma, em razão dos conflitos e contradições sociais vivenciados em nosso continente, cujos pensadores não se ausentaram das lutas e da implicação política do
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intelectual, criou-se e instaurou-se uma Tradição Crítica na Psicologia disseminada em seus diversos ramos de conhecimento. Tal verve insurgente e insubordinada diante das contradições e lutas sociais fez que nossa Psicologia Política se tornasse tão singular, que consideramos que houve uma diferenciação dentro de seu domínio. O pesquisador em Psicologia Política na América Latina, muitas vezes, não é caracterizado apenas por realizar estudos sobre comportamento eleitoral ou persuasão, como mudança de atitudes em relação ao voto. Grande parte dos pesquisadores direciona-se à Psicologia Política por um compromisso ético, político e militante com os grupos sociais que são historicamente esmagados na América Latina, seja por questões financeiras, sociais, étnico-culturais, de raça, gênero, orientação sexual etc. A maioria das pesquisas vem assumindo uma implicação política por aquele que é explorado e oprimido, tentando impulsionar uma potencialização dos movimentos e da organização desses coletivos sociais, tendo como horizonte a autonomia e a emancipação. Portanto, o compromisso não é mais com o patrão, mas, sim, com o operário que está sendo explorado todo dia, não é com o latifundiário, mas com o trabalhador campesino de que é subtraída terra, não é com o homem-ocidental-macho, mas com os outros gêneros e orientações sexuais que vão além do binarismo sexual e da lógica do patriarcado e não apenas é com o branco, mas, sobretudo, com o negro, quilombola e indígena que foram escravizados, torturados e esmagados por séculos para a constituição desta ‘ficção’ chamada Brasil. Citamos um significativo exemplo que ilustra o que se afirmou no parágrafo anterior. Durante o VIII Simpósio Brasileiro de Psicologia Política, realizado em 2014, na Universidade Federal de Goiás, diversos trabalhos abordaram diretamente as jornadas de junho de 2013. Nenhum deles patologizou as ações insurgentes dos coletivos e massas sociais. Pelo contrário, além de análises sobre estratégias de ações políticas dos coletivos, a crítica das apresentações recaía sobre as ações violentas do Estado e o papel desempenhado pela mídia oficial nas tentativas de criminalizar os movimentos sociais. Enfim, o compromisso não é com o Estado, ou as classes dominantes, mas, sim, com uma sociedade que se organiza por meio de inúmeros e diversos movimentos sociais para lutar contra o regime de exploração e opressões históricas. Portanto, a Psicologia Política Latinoamericana tem como grito de guerra o “Ya Basta” zapatista. Já basta de nos mantermos calados e submetidos à lógica da exploração que vigora neste continente por mais de cinco séculos. Seja a dominação imperialista ibérica, seja, agora, a do Capitalismo Mundial Integrado. Já basta de os pobres continuarem enriquecendo os ricos. Já basta de mulheres servindo o homem na família nuclear tradicional. Já basta da patologização da diversidade sexual. Já basta da normatização e codificação da vida. Com tudo isso, queremos expressar como nossa produção e
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campo acadêmico, explicitamente, assumem sua faceta política e de luta pela dignidade e defesa dos que são diariamente massacrados e oprimidos. Somos herdeiros dessa tradição crítica e de combate e, por isso, temos o compromisso ético-político de prosseguir com essas lutas e reflexões. Entendemos, assim, que chegamos a um ponto de inflexão em que ousamos afirmar que, na atualidade, não nos reconhecemos dentro da mesma tradição clássica da ‘Psicologia Política’. O que fazemos da Psicologia Política na América Latina não é o mesmo que se faz historicamente dela no hemisfério norte. Nossa Tradição Crítica resultante das inúmeras lutas sociais que nos constituiu e continua a nos constituir como continente nos faz pensar que ‘Psicologia Política Crítica’ é um termo que define muito melhor a Psicologia Política Latinoamericana, especialmente aquela que nasceu de intensos debates promovidos por latinoamericanos que contribuíram na mudança dos referenciais teóricos e das perspectivas políticas dominantes na Psicologia desde os anos 1970. Vale citar que, nesta história, são de grande importância duas publicações do fim da década de 1980 (Montero, 1987b, 19912) que revelam o processo de elaboração consciente da Psicologia Política Latinoamericana por psicólogas e psicólogos de diferentes países da América Latina (Argentina, Brasil, Cuba, El Salvador, Venezuela e outros). Tal debate, bem como esses livros, demonstra por que, para nós, ‘Psicologia Política Latinoamericana’ é sinônimo de ‘Psicologia Política Crítica’. Ressaltamos que esse posicionamento se fortaleceu e se multiplicou no encontro e debates realizados no VIII Simpósio Brasileiro de Psicologia Política, anteriormente citado, que teve como tema “Crise e Insurgência: controle da subversão e subversão do controle”. Nas discussões e trabalhos submetidos3 (Hur, Lacerda Jr. & Palla, 2014), constatou-se, em sua quase totalidade, um caráter crítico e um comprometimento ético-político com o projeto da transformação social. Consolida-se, dessa forma, uma Psicologia Política brasileira que assume um perfil político crítico, politizado e militante, com uma preocupação com a transformação social, com a expressão dos grupos sociais minoritários e marginalizados e, muitas vezes, numa luta contra as práticas instituídas de Estado, independendo das ferramentas teóricas que se adote. Do ponto de vista do referencial teórico, percebeu-se a presença de uma diversidade de teorias, o que corrobora o perfil da Psicologia Política brasileira (Sandoval, Hur & Dantas, 2014), de se ater mais ao campo e aos fenômenos estudados, em vez de uma 2. O livro Acción y discurso: Problemas de Psicología Politica en America Latina foi publicado em 1991, mas foi finalizado em 1989. 3. Ressalta-se o curioso fato de não ter havido a inscrição de trabalhos no eixo “Comportamento Eleitoral e Marketing Político”, campo tradicional nos estudos da Psicologia Política, principalmente norteamericana. Também nos chama a atenção o aumento do número de trabalhos relacionados aos Estudos de Gênero, bem como a referência a pensadores considerados pós-estruturalistas, como Félix Guattari, Michel Foucault e Gilles Deleuze. O evento contou com o apoio do CNPq, Capes e Fapeg.
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preocupação dogmática em reproduzir determinados sistemas teóricos. Trata-se de um domínio em que, as teorias não são totalizadoras e aparecem mais como ‘caixas de ferramentas’ (Deleuze, 1979), ou melhor, instrumentos de luta. Consideramos que a Psicologia Política Crítica é a materialização acadêmica de uma esfera de saberes de uma sociedade contra o Estado, na qual as teorias são as ferramentas conceituais de combate e produção de novas alternativas perante o que está instituído e que opera por meio do método da insurgência. Desse modo, este livro busca apresentar e debater diferentes facetas da Psicologia Política que atualizam o potencial crítico e insurgente desta com contribuições inéditas de autores de diferentes países4. Os capítulos apresentam reflexões e pesquisas que abordam dois eixos: em primeiro lugar, textos que dão subsídios para analisar os fundamentos ou a definição de uma Psicologia Política Crítica; em segundo lugar, textos que apresentam análises ou reflexões de problemáticas específicas estudadas da perspectiva desse novo campo. O primeiro eixo contém um conjunto de contribuições que aborda pressupostos, referenciais e condições sociais que facilitam a constituição de um campo crítico na Psicologia e definem, especificamente, as preocupações da Psicologia Política Crítica. Esse é o caso dos capítulos de Elio Rodolfo Parisí (cap. 1), David PavónCuéllar (cap. 2), Athanasios Marvakis (cap. 6) e Hugo Adrián Morales (cap. 9). O segundo eixo contém análises e investigações sobre problemáticas pertinentes à Psicologia Política Crítica. Assim, não oferece apenas um conjunto aleatório de temáticas, mas analisa questões que se articulam com o político. Em outras palavras, os capítulos estão estreitamente relacionados com o aprofundamento da democracia e com processos de transformação social. Dessa forma, o tema da insurgência contra o instituído e processos de opressão é o eixo gravitacional dessas contribuições. Tal é o caso dos capítulos de Fernando Lacerda Júnior (cap. 3), Frederico Viana Machado e Frederico Alves Costa (cap. 4), Xiana Vilas, Cristina Gómez-Román e José Manuel Sabucedo (cap. 5), Domenico Uhng Hur (cap. 7) e Gregório Esteban Kazi (cap. 8). Vale fazer uma breve menção a alguns aspectos que são encontrados nos diferentes capítulos. Inicia-se o livro com o argentino Elio Rodolfo Parisí. Seu texto destaca como as novas dinâmicas latinoamericanas e os debates sobre ‘epistemologias desde o sul’ podem orientar a Psicologia Política Crítica como dispositivo de análise da realidade latinoamericana com um sentido emancipador. Realiza uma ‘virada crítica’ da Psicologia Política Latinoamericana, compreendendo que neste continente ela assume explicitamente um projeto político e militante, diante do primado ‘academicista’ e despolitizado. 4. Com exceção do capítulo 6, que foi publicado anteriormente na língua espanhola.
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Em seguida, o mexicano David Pavón-Cuéllar critica uma certa despolitização da Psicologia Política tradicional e suas vertentes conservadoras. O autor indica como o marxismo pode ser um referencial teórico que orienta a construção de uma Psicologia Política Crítica que não reproduz os problemas tradicionais da Psicologia (a-historicismo, individualismo, assepsia, descompromisso com a realidade latinoamericana etc.), mas que está direcionada à transformação. Para a Psicologia Política se constituir como uma Psicologia Política Crítica, deve se transformar. O texto de Fernando Lacerda Júnior explora, com fundamento em um estudo psicossocial de um dos autores mais marcantes da Psicologia Política Latinoamericana, Ignacio Martín-Baró, como as concepções tradicional e crítica de Psicologia Política abordaram o tema da insurgência. Na primeira concepção, a insurgência é uma anomalia a ser controlada. Na segunda, a insurgência é parte do processo de humanização, conscientização, participação política, mobilização e transformação psicossocial. O quarto capítulo traz a contribuição de Frederico Viana Machado e Frederico Alves Costa, que debatem contribuições de perspectivas consideradas ‘não essencialistas’ à Psicologia Política. Com base nas contribuições de autores contemporâneos, Laclau, Mouffe e Rancière, discutem como a Psicologia Política pode definir ‘política’ e ‘político’ de forma que se fomentem processos de aprofundamento da democracia, subjetivação política e transformação social na América Latina. O capítulo preparado por Xiana Vilas, Cristina Gómez-Román e José Manuel Sabucedo, assim como o texto de Athanasios Marvakis são contribuições de convidados de países de fora da América Latina, Espanha e Grécia, pois apresentam os resultados de um rico intercâmbio conosco, uma vez que se trata de autores que visitaram a América Latina diversas vezes. O primeiro apresenta uma revisão sobre as principais bases psicossociais em processos de mobilização para ações coletivas. É destacada a importância das seguintes dimensões como elementos de mobilização: injustiça e ira, eficácia política, identidade, moral e emoções. Por fim, o texto mostra como essas dimensões se diferenciam entre participantes de movimentos sociais, destacando a articulação entre mobilização política e elementos afetivos. Já o segundo traz uma análise sobre como a relação da Psicologia com movimentos sociais pode servir para a constituição de um campo crítico. Além de analisar a importância dos conflitos políticos e das lutas por mudança social na constituição da Psicologia, o autor destaca algumas das principais ideias e práticas que podem ser chamadas de críticas na Psicologia. Realiza leitura crítica acerca do papel das Ciências Sociais para a reprodução ou não das relações de forças instituídas e do papel dos movimentos sociais para renovar as Ciências Sociais. Os dois capítulos seguintes discutem contribuições de um referencial teórico contemporâneo que vem crescendo, a esquizoanálise, na Psicologia Política Crítica.
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Domenico Hur, referenciado nas teorizações de Deleuze e Guattari, expõe uma análise sobre as diferentes articulações entre psiquismo e política demonstrando como diferentes projetos políticos se relacionam com distintas formas de subjetivação. Propõe três modalidades de agenciamentos psicopolíticos, estratopolítica, tecnopolítica e nomadopolítica, que oferecem uma nova perspectiva para a leitura de fenômenos psicossociais. O trabalho também apresenta a nomadopolítica como um tipo de agenciamento psicopolítico que contribui para processos de insurgência e transformação. O argentino radicado no Brasil, Gregório Kazi, utiliza as contribuições da esquizoanálise para pensar como a Psicologia Política pode ser espaço de crítica aos modos de racionalidade que reproduzem e mantêm a axiomática do Capital e o aprisionamento do ser, realizando uma discussão filosófica e ética sobre a diferença e a transformação, e o que impede e bloqueia as potências de vida. Finalmente, o capítulo do argentino Hugo Adrián Morales apresenta uma reflexão ética e política sobre como a Psicologia Política Latinoamericana é um campo crítico que rompe com concepções modernas e dominantes/dominadoras de ciência e que possui um potencial de contribuir para a crítica e transformação da realidade latinoamericana. Discute o lugar e os desafios da Psicologia Política Latinoamericana, trazendo à tona seu processo dinâmico de autoconstituição referida às demandas históricas de nosso continente. Em síntese, os diferentes capítulos mantêm a diversidade teórica característica da área da Psicologia Política, tendo como eixo comum a assunção explícita de sua faceta crítica e transformadora. Este livro apresenta a denominação de Psicologia Política Crítica tendo como finalidade reatualizar o compromisso político e as preocupações que pautaram a Psicologia Política Latinoamericana desde as suas origens. Além de não abandonar as preocupações com a política e o papel da Psicologia em processos de mudança social, radicaliza a sua importância, assumindo como central o projeto ético-político da transformação, seja nos âmbitos psíquico e/ou social. Afirma-se explicitamente seu potencial crítico e militante. Por isso, seu conteúdo é matéria de interesse para estudantes, pesquisadores e profissionais de Psicologia, das Ciências Sociais e Políticas, da Filosofia, da Educação, da História, bem como militantes de movimentos sociais, populares e participantes de organizações do terceiro setor. Espera-se, com esta obra, criar um ponto de partida para discussões e reflexões acerca da constituição da Psicologia Política Crítica como uma vertente latinoamericana com uma larga tradição de estudos, mas ainda pouco visibilizada e, de certa forma, marginal e outsider na Academia. A Psicologia Política Crítica assume explicitamente um projeto político de transformação e sua implicação no fomento à autonomia, nos mais diversos âmbitos de vida. Nesta coletânea, preocupa-nos a construção de um campo comum, baseado na heterogeneidade das concepções teóricas trazidas pelos distintos autores. Um campo
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comum que responde muito mais a questões de ordem ético-política que epistemológicas. Um campo que se articula a partir de um desassossego e inquietude com o presente e aposta na insurgência como um dispositivo de expressão, potencialização e transformação. Insurgência que foi incitada neste encontro de muitos e que se expressa nos capítulos que compõem este livro. Então nossa aposta, nossa utopia ativa, é na multiplicação e intensificação dessas insurgências nas práticas cotidianas, sejam micropolíticas e ou macropolíticas, e nos saberes e fazeres da Psicologia Política Latinoamericana para, quem sabe, haver o fomento de outras práticas e processos de subjetivação que vão em direção oposta à axiomática capitalista. Espera-se, assim, que esta obra possa configurar-se como uma espécie de grito, uma janela aberta por onde se possa respirar um pouco de ar fresco, para a constituição e produção de psicologias políticas alicerçadas em outros mundos e subjetivações possíveis. Os capítulos dos autores estrangeiros foram traduzidos pelos organizadores do livro. Os capítulos Crise e Insurgência, Controle da Subversão e Subversão do Controle: o papel da Psicologia Política, Para uma Definição Marxista da Psicologia Política, Cidadania e Ação Política: as marchas pela dignidade e Psicologia Política Latinoamericana: reflexões sobre seu lugar e desafios foram traduzidos do castelhano por Domenico Uhng Hur. O capítulo Psicologia Crítica na Encruzilhada: servos do poder ou ferramenta de emancipação? foi traduzido do original em inglês por Fernando Lacerda Júnior. Todas as citações a textos em outras línguas também foram traduzidas para o português, seja pelos autores, seja pelos organizadores do livro.
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