O Trabalho Contemporâneo no Brasil: realidade e desafios

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o Trabalho Contemporâneo no Brasil realidade e desafios

ORGANIZADORES

Antônio Fernando Gomes Alves Taynã M. Bonifácio


DIRETOR GERAL Wilon Mazalla Jr. COORDENAÇÃO EDITORIAL Willian F. Mighton COORDENAÇÃO DE REVISÃO E COPYDESK Alice A. Gomes REVISÃO DE TEXTOS Paola Maria Felipe dos Anjos EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Fabio Diego da Silva Tatiane de Lima CAPA Camila Lagoeiro Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) O Trabalho contemporâneo no Brasil : realidades e desafios / organizadores, Antônio Fernando Gomes Alves, Taynã M. Bonifácio. -- Campinas, SP : Editora Alínea, 2016. Bibliografia. 1. Burnout (Psicologia) 2. Direitos humanos 3. Economia 4. Geração Y 5. Relações entre gerações 6. Trabalho e classes trabalhadoras I. Alves, Antônio Fernando Gomes. II. Bonifácio, Taynã M.. 16-08208

CDD-302

Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Trabalho contemporâneo : diversidade e educação profissional : Psicologia social ISBN 978-85-7516-787-8 Todos os direitos reservados ao

Grupo Átomo e Alínea Rua Tiradentes, 1053 - Guanabara - Campinas-SP CEP 13023-191 - PABX: (19) 3232.9340 e 3232.0047 www.atomoealinea.com.br Impresso no Brasil


Sumário

Apresentação.......................................................................................................................5 Capítulo 1 Identidade e Consciência como Elementos Fundamentais para um Projeto de Vida Humanístico............................................................................. 15 Antônio Fernando Gomes Alves Capítulo 2 Direitos Humanos, Trabalho e Economia: a busca pelo equilíbrio................................39 Aarão Miranda da Silva Capítulo 3 Grupos e Processos Intersubjetivos nas Organizações..................................................53 Arilson Pereira da Silva Capítulo 4 Qualidade de Vida no Trabalho: vencer o burnout por meio da interação entre os sujeitos............................................69 Gabriel Santa Rosa e Bárbara de Oliveira Turatti Capítulo 5 Como as Novas Tecnologias Impactam no Mercado de Trabalho da Geração Y.........83 Ricardo Alexandre Bontempo Capítulo 6 A Angústia da Geração Y: a busca pela felicidade e sentido no trabalho na modernidade líquida......................97 Taynã Malaspina Bonifácio


Capítulo 7 Juventude e Trabalho no Município de São Paulo........................................................ 113 Ana Maria Belavenuto e Freitas Capítulo 8 Mulher e Trabalho: uma breve história.......................................................................... 139 Andréa Peres Mendes

Sobre os Autores.............................................................................................................. 153


Apresentação O Trabalho Contemporâneo no Brasil: realidade e desafios, é um livro com finalidade didática pela sua expectativa de uso na sala de aula, mas não se trata de uma abordagem simples do assunto, de um manual no estilo dos handbooks estadunidenses. É um estudo complexo que procura discutir temas do mundo do trabalho partindo da relação entre trabalho e Direitos Humanos e chegando até a construção de projetos de vida, enfocando as formas identitárias e a produção da consciência. Traz também a presença do jovem e da mulher como temas de interesse no atual cenário brasileiro, a saúde do trabalhador/trabalhadora, assim como o processo grupal nas organizações. Trata-se de uma obra atual e, a despeito de seus objetivos imediatos, poderá ser lida por todos os que se interessarem pela temática, com a fluência que caracteriza um bom debate. Um primeiro apontamento que cabe fazer aos leitores é que o livro trata do trabalho nas condições atuais do capitalismo tardio, considerando o capitalismo no período pós-Segunda Guerra Mundial. A grande destruição das forças produtivas na Europa e o colapso da economia em todo o mundo, bem como a devastação efetiva de cidades em toda a Europa e no Japão (o caso de Hiroshima e Nagasaki, cidades japonesas, assoladas integralmente por bombardeio atômico estadunidense) exigiu um plano de reconstrução que envolveu a produção industrial do planeta inteiro e iniciou o processo que hoje conhecemos com globalização. Além disso, o pós-guerra no Japão, derrotado e empobrecido, demandou grande criatividade do povo nipônico e ali foram desenvolvidas estratégias produtivas e administrativas que visavam contornar a precariedade em


6 Apresentação que passaram a viver. Uma das mais conhecidas foi desenvolvida nas fábricas da Toyota, hoje conhecido complexo automotivo que produz automóveis muito consumidos, inclusive, no Brasil. O sistema consistia em produzir com rapidez e flexibilidade atendendo ao mercado no menor tempo possível. Isso significava evitar estoque e, assim, não empatar capital que dependeria do fluxo do mercado. Para cumprir esse plano, foi necessário desenvolver tecnologia própria e adequada a essa rapidez e qualificar os operários para uma dinâmica de trabalho mais ágil e flexível. O modelo mais tarde ficou conhecido com toyotismo e seu modo de produção como just-in-time. Esse modelo diferenciava-se do tradicional, conhecido como just-in-case e que havia sido desenvolvido no início do século XX aproveitando a então nova teoria administrativa de Taylor e a invenção da linha de produção concebida na fábrica Ford de automóveis. Esse modelo, que ficou conhecido como fordista-taylorista ou fordo-taylorista, e foi revolucionário para o desenvolvimento das forças produtivas – e consequentemente do capitalismo –, começou a apresentar um certo esgotamento no final da década de 1970. Nesse momento, as linhas de produção ganharam uma novidade: iniciou-se o processo de automação com a introdução do chip nas máquinas e, com isso, o aumento da velocidade e a diminuição do tamanho do maquinário. A aliança dessa novidade tecnológica e a adaptação do modelo japonês de administração aplicada ao sistema industrial ocidental (entenda-se nos EUA e países ricos europeus) gerou o que ficou conhecido como Reestruturação Produtiva ou Terceira Revolução Industrial. Boa parte das análises presentes neste livro são advindas do processo de renovação das relações de trabalho, oriundos do novo sistema produtivo, e de como isso afetou a vida dos trabalhadores tanto objetivamente quanto subjetivamente. Muita coisa mudou. Tal processo de reestruturação produtiva está em curso até o momento e, na verdade, não terá fim. Primeiramente, tratou-se da lenta adaptação do modelo fordista-taylorista que dominava o chão de fábrica nos principais centros produtivos e emulava seu modelo para os países mais pobres e que serviam de plataforma de expansão do capitalismo, como foi (e ainda é) o caso do Brasil e da Argentina na América do Sul. Durante os anos de 1980 até 2000, o modelo fordista foi sendo modificado e substituído pelo modelo


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japonês com as adaptações e reformulações que se faziam necessárias. O fato é que, aos poucos, passamos do sistema de estocagem (produzir, estocar e depois vender) just-in-case para o sistema de pré-venda, o just-in-time. Hoje, os consumidores estão habituados à customização dos produtos e a sua personalização é propiciada pela maior rapidez do sistema produtivo. A automação é uma realidade e o passo atual é a produção de relações interativas e inteligentes entre robôs (que passam a ser maleáveis) e os seres humanos, operários e operárias que irão conviver e trabalhar conjuntamente com máquinas inteligentes lado a lado. Podemos afirmar que isso ainda é pouco para o que se anuncia para um futuro próximo. Com o desenvolvimento das impressoras 3D, a customização da produção chega a um limite que pode colocar em cheque o próprio toyotismo e o sistema produtivo que conhecemos hoje. A fábrica com a mais avançada reestruturação produtiva e a mais rigorosa administração toyotista ainda é semelhante à fábrica do início do fordismo. Trata-se de uma lógica semelhante, apesar das profundas diferenças observadas na forma. A impressora 3D poderá superar esse modelo, essa lógica, familiarizando a produção, ou seja, teremos a possibilidade de produzir coisas em nossas próprias casas e boa parte dos produtos de uso comum deixará de ser produzidas em grandes fábricas. Uma outra importante observação é a de que quando tratamos do trabalho não os referimos apenas ao emprego, que é uma expressão a forma pela qual trabalho foi capturado no modo de produção capitalista, mas ao trabalho visto de maneira ampla, o qual está presente desde sempre e é responsável pela nossa própria humanização. Atualmente, temos muitas evidências de que o Homo habilis, que viveu há mais de 2,5 milhões de anos teria sido a primeira geração do gênero Homo a utilizar instrumentos feitos de pedra no cotidiano. Somente a utilização de um instrumento não diz muita coisa, pois muitos animais o fazem frequentemente, mas o fato é que o Homo habilis não somente empregava o instrumento, mas também o criava lapidando a pedra para transformá-la em utensílio. Isso significa dizer que ele apresentava uma determinada consciência do uso que faria desse artefato. Essa é a condição revolucionária que foi sendo


8 Apresentação preservada durante a evolução do gênero: transformar um pedaço de pedra em instrumento e, a seguir, em ferramenta de trabalho. Desse modo, o trabalho nasceu com a criação do instrumento de trabalho e, ao mesmo tempo, com a aquisição da consciência de sua aplicação. O instrumento de trabalho só pode ser assim denominado se foi possível simbolizá-lo, ou seja, produzir a sua representação mental juntamente com a sua definição. Não seria possível fabricar a ferramenta se ela não pudesse ser conceituada. Para deixar mais claro, vamos imaginar que um grupo desses primeiros ancestrais passava por uma estiagem severa numa savana africana e que se alimentava dos restos de animais mortos por predadores maiores. Primeiro, uma leoa caçou um gnu e alimentou sua alcateia, em seguida, os restos foram consumidos por hienas famintas e, somente ao escurecer, com alguma segurança, o grupo humano buscou o que sobrou. Entretanto, havia restado apenas um pouco de carne e cartilagens presas fortemente aos ossos do animal. A solução foi raspar o osso com um pedaço de pedra afiada encontrada nas proximidades. Nada espantoso até então. A seca prolongada exigiu que esse procedimento fosse muitas vezes repetido o que permitiu um processo de aprendizagem, de autoaprendizagem. Esse grupo possuía condições especiais como dedo opositor – que viabiliza apreensão de objetos – era bípede, ficava com os membros superiores livres e, por fim, apresentava uma caixa craniana um pouco maior que os antropoides contemporâneos. Caixa craniana maior significa um cérebro maior e maior possibilidade de sinapses. Nessas condições, o uso repetido do instrumento (que ainda não se transformou em instrumento de trabalho) possibilitou que, na sua falta, ele fosse fabricado com um pedaço de pedra para quebrar uma outra ou para afiá-la. Essa ação é tão elaborada, tão sofisticada, que exige consideráveis conexões sinápticas. A ação força algumas conexões e cria novos padrões de apropriação do mundo ao redor. Trata-se de um conhecimento de outra ordem, de um conhecimento que foi criado pelos indivíduos desse grupo e essa produção intelectual, acumulada na memória, produziu o que conhecemos como consciência. O registro intelectual da ação só é possível com a sua elaboração simbólica: a representação da ação. O símbolo é o elemento primordial da linguagem.


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Portanto, a atividade concreta, a consciência que se tem dela e a comunicação por intermédio da linguagem são os elementos que irão permitir uma transformação objetiva do mundo ao redor. Esse processo de transformação consciente do mundo chama-se trabalho. Concebendo o trabalho dessa maneira, encontramos sua real importância nas nossas vidas, modificação caracteriza como atividade que se constitui na relação dialética entre a transformação da realidade para garantia da sobrevivência e a construção da consciência humana. Assim, é considerando-o como categoria ontológica, que propicia a constituição do ser, que se desenvolve o presente estudo. O gênero Homo tem uma longa história e o trabalho, inicialmente uma condição de sobrevivência, vem mudando com a evolução humana. Na árvore em que é representado esse gênero, existem várias espécies e a mais recente é o Homo sapiens, que data de 140 mil anos. A nossa subespécie, Homo sapiens sapiens tem, aproximadamente, 60 mil. Esta última foi a que se espalhou pelo planeta e que, partindo da África, desenvolveu a agricultura, criou tecnologia para trabalhar os metais, domesticou animais e deixou a condição nômade para se sedentarizar formando comunidades. Nessa nova condição, desenvolveu uma cultura humana e uma memória social que passa de geração a geração, construindo a noção de história. A vida ganhou complexidade e o ser humano (o Homo sapiens sapiens) agora vive em comunidade relativamente organizada política e economicamente, que se expressa por meio dos modos de produção que representam os estágios de desenvolvimento da humanidade. O trabalho ganha características próprias em cada um desses modos de produção: o antigo (como ocorria na Grécia antes da era cristã e na Roma latina), o feudal e, atualmente, o capitalista. O trabalho como garantia de sobrevivência, permaneceu até o momento em que a sociedade humana se dividiu em classes e um segmento social deixou de trabalhar (por acordos produzidos pela cultura) e passou a ser sustentado pelos demais que trabalham (geralmente na terra). O advento da noção de família patrilinear (na qual o pai sabe quem é seu filho) e a propriedade privada de meios de produção estabeleceram definitivamente a noção de classe social e a dominação de classes (uma ou mais classes dominam outras que, para ela, irão produzir bens).


10 Apresentação Tal mentalidade permite o acúmulo de riquezas e manutenção de uma dinâmica social que coloca o trabalho numa nova e original condição: os dominados trabalham e os setores dominantes vivem desse trabalho. Agora estamos falando de um fenômeno social que se desenvolveu há pouco mais de cinco mil anos, o que é possível de se verificar nos registros mais antigos que conhecemos, como os da cultura judaico-cristã, dos mitos greco-romanos, das lendas hindus, para ficar nas referências da nossa cultura ocidental.1 O fato é que, depois do advento da sociedade dividida em classes, o trabalho ganhou conotação de tarefa penosa, e geralmente era exercido de maneira forçada por meio da escravização dos povos ou comunidades dominados pela força. Na Grécia antiga, no período áureo da produção da filosofia e das artes clássicas, trabalhar era considerado atividade negativa. Um cidadão (homem, rico e poderoso) deveria dedicar-se aos prazeres intelectuais e físicos. O trabalho destinava-se aos animais (não aos humanos) e os escravos eram tidos como ‘animais portadores de voz’. Evidentemente, o trabalho nessa época não engrandecia ninguém (refiro-me ao dito popular de que o trabalho engrandece o homem) e era considerado como uma das piores atividades de que se tinha notícia. Tal noção de trabalho desagradável e atividade sem prestígio perdurou até os nossos dias e a memória da cultura de toda a sociedade ocidental (para não dizer toda a cultura humana) carrega esse estigma. O surgimento do capitalismo alterou sobremaneira essa perspectiva, apesar de não eliminá-la. É preciso considerar que a fase pré-capitalista de acúmulo de capital por parte de uma nascente burguesia foi acompanhada de profundas reformas na Europa. Há um processo paulatino e irreversível de construção do humanismo moderno e isso começou a ocorrer nas artes, com o renascimento; na religião, com São Tomás de Aquino, e a noção de livre arbítrio introduzida no catolicismo e a Reforma Protestante; no conhecimento, 1. Considere que os índios sul-americanos, que vivem em aldeias sem interferência da cultura ocidental, mantêm uma relação de trabalho comunitária definida pela própria cultura. Não há divisão de classes, preserva-se um nomadismo relativo e vivem da caça e agricultura. O livro de Philippe Descola, As lanças do crepúsculo (São Paulo: Cosac Naify, 2006) faz um profundo e emocionante relato desse tipo de vida tomando como base a cultura achuar no norte do Peru.


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com as novas tecnologias de navegação, a descoberta da América, os avanços científicos e o estabelecimento do método com Descartes e, na política, com a consolidação da noção de Estado e da monarquia constitucionalista que centraliza o poder. Nesse período, foram forjadas as noções de cidadão, de liberdade individual e de uma nova ética, como é possível identificar nos escritos de Espinosa. A decadência do modelo feudal levou milhares de pessoas para as cidades em condições de indigência e elas foram aproveitadas no trabalho das primeiras fábricas, que nasceram nesse período. A mudança é profunda e a nascente classe burguesa, que ainda não era dominante, acumulava cada vez mais riqueza e conseguia isso porque trabalhava. Tratava-se de uma novidade! Até então, desde a Grécia clássica, as classes dominantes abominavam o trabalho. A aristocracia do século XVI e XVII, nos países mais ricos da Europa, estavam preocupadas em viver faustosamente, em construir palácios deslumbrantes, com as formas de exploração cada vez maiores para manter esse tipo de vida e não notavam a crise que iria superar o modo de produção feudal. Uma nova visão de mundo que crescia no vácuo deixado pelo estilo de vida aristocrático passou a colocar o trabalho em um novo patamar. O trabalho nas fábricas, assim que consolidado como modo de produção, concebia o trabalhador com liberdade para escolher o local de trabalho. Há uma diferença fundamental em comparação com a posição do servo da gleba no feudalismo, o qual pertencia à terra, que, por sua vez, pertencia ao senhor feudal. Tal mudança de estatuto garantiu a existência autônoma da classe trabalhadora, que começou a discutir e conquistar direitos e seus integrantes a se conceberem como cidadãos, ou seja, como sujeitos de direitos e também permitiu aos trabalhadores se identificarem como classe social e se organizarem politicamente. Quando estabelecido o novo modo de produção, o modo capitalista, o trabalho deixou de ser condição de submissão para se transformar em trabalho livre e em direito. A revolução francesa, que foi o símbolo da derrocada do modo de produção feudal, foi realizada por burgueses e trabalhadores contra a rica aristocracia. Todos lutavam por liberdade e cidadania e, por esse motivo, a tríade dessa revolução era ‘liberdade, igualdade e fraternidade’, cuja expressão política era a república. Todos aspiravam a ser iguais e cidadãos.


12 Apresentação Sabemos que essa igualdade e essa fraternidade eram colocadas em termos relativos e que a nova classe burguesa se estabeleceu como dominante imediatamente. Mas o novo estatuto político ocultava essa dominação e passou a expressá-la em relações aparentemente livres. O limite da liberdade do trabalhador tornou-se, na realidade, a liberdade de vender a sua força de trabalho ao burguês e este, em última instância, é quem determina o preço dessa força. O novo regime vem, então, funcionando por meio da exploração da mais-valia, a qual fica ocultada no produto (e hoje cada vez mais oculta) que se transforma em mercadoria. Instituiu-se o mercado e o consumo como matrizes desse modelo e o mercado e a livre-iniciativa têm-se caracterizado como o elo dominante da nova cadeia. Assim, o trabalho ganhou nova roupagem e a garantia de que é o modo por excelência da ascensão social. Somente trabalhando é possível melhorar de vida. A burguesia era o santo desse milagre e conquistava poder dessa maneira, trabalhando duro e acumulando riquezas enquanto os nobres aristocratas desfrutavam de todo luxo sem se dar conta de sua decadência. Aí está a origem da valorização do trabalho nos tempos modernos. Sabemos hoje que esse modelo burguês era fantasioso e que um trabalhador, dedicando toda a sua vida ao trabalho duro das fábricas, não iria além da manutenção de sua própria vida e de sua família. O trabalhador vive para gerar novos trabalhadores. Isso é a reprodução das relações que eternizam o modo de produção capitalista. Logo que se estabilizou esse modelo produtivo, os trabalhadores reconheceram-se, identificaram-se como classe social e desvelaram a real condição de trabalho na modernidade, o que fez que este ganhasse conotação ambígua de garantia de vida, de sustento, de ascensão social e, ao mesmo tempo, de atividade penosa, de adoecimento, de submissão e de exploração. Por sua vez, a burguesia, com o formidável acúmulo de riquezas propiciado pelo novo modo de produção, ocupa o lugar simbólico que antes era da aristocracia e repete, adaptando às novas condições de vida, o modo de vida aristocrático. O grande romancista francês, Marcel Proust, um dos maiores literatos que conhecemos, retratou de forma impressionante a passagem do modo de vida aristocrático para o modo de vida burguês e as suas diferenças e


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semelhanças no excepcional romance Em Busca do Tempo Perdido. Ele relata a história do menino Carlinhos até a sua fase adulta, na passagem do século XIX para o XX. É curioso notar que, apesar de a revolução francesa ter ocorrido há mais de cem anos, somente naquele momento o modo de vida burguês superou o aristocrático. Também é importante observar como foi feita a adaptação entre o modo anterior aos ambos, cujo resultado é a combinação da ostentação e do supérfluo com o pragmatismo e a eficiência. A distância entre o modo de vida aristocrático e o plebeu é superada por uma forma de emulação do modo de vida burguês pelos trabalhadores. Ao reproduzir tal estilo de vida burguês com o pouco que têm, os trabalhadores aderem ao mercado e ao consumo e a um circuito comercial de constante reprodução material, que é a alma do capitalismo. Estamos hoje em uma fase que é denominada capitalismo tardio, em que as relações apresentadas ganharam formidável complexidade e a classe trabalhadora e o mercado de trabalho assumiram nova característica. O mercado é o senhor quase absoluto de nossas vidas e o modo de vida burguês é adotado em todo o planeta. A hibridização global da cultura, como aponta Néstor Garcia Canclini2, faz que as maneiras de se viver sejam homogeneizadas e particularizadas ao mesmo tempo (por exemplo, vê-se uma chola boliviana, com seus trajes típicos, falando em um smartphone). Perdemos nossas referências mais antigas e a vida ganha velocidade e hibridismo como forma de atender à demanda da produção. Não mais nos orientamos pelas necessidades e suas demandas, mas pelo consumo do que se produz para moldar nossas necessidades. Assim, trabalhamos mais para atender demandas impositivas que não são nossas, mas acabam se tornando indispensáveis. O que origina esse tipo de vida? É exatamente a busca de respostas para essa questão que está nas páginas deste livro, por meio do exame detalhado de tal realidade, de suas consequências, que vai desde a consciência possível dela ao fenômeno da produção de uma identidade para enfrentar estes novos tempos. Identidade que reproduz 2. GARCIA CANCLINI, N. Culturas Hibridas. México: Grijalbo, 1989; Latino-americanos à procura de um lugar neste século. São Paulo: Iluminuras, 2008; Consumidores e Cidadãos, 8. ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2010.


14 Apresentação um mal-estar e o oculta na relação de consumo, mas que, ao mesmo tempo, o revela no adoecimento do trabalhador que se submete à própria sina para não perder o emprego. Dessa perspectiva, discutem-se o reconhecimento do emprego como única ou mais razoável forma de reproduzir a vida; à alienação como condição que nos impede de conceber nossos próprios direitos como legítimos; das dificuldades que enfrentam os jovens e as mulheres na atual fase do capitalismo; o controle das organizações sobre nós e o comprometimento da qualidade de vida que ele acarreta. O leitor encontrará aqui um ótimo material para um debate profundo sobre esses vários temas e elementos para compreender o mundo em que vivemos e, com alguma sorte e empenho, a possibilidade de alterarmos essa realidade com a esperança de que possamos, todos, viver em um mundo melhor. Somente pesquisando e desvelando nossa realidade será possível compreendermos o papel do trabalho em nossas vidas e superarmos as atuais limitações. Boa leitura!

Prof. Dr. Odair Furtado Coordenador, Professor e Pesquisador do Programa de Psicologia Social da PUC-SP


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