Capítulo 3 Uma História de Tangos
Nos primeiros dias na Paulicéia era um caminhar levando choques. Nada me fazia lembrar da calmaria e mesmices do internato e muito menos de Águas Mansas. O rio aqui tinha o nome parecido, mas olhando
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estas águas me perguntava: o que foi feito dele e de mim? Por que não queria prosa comigo? Por que nenhum conselho? “Ol’ Man River, that Ol’ Man River He don’t say nothing’, but He must know somethin’ He Just keeps rollin’ He keeps on rollin’ along”. Parecia revoltado com minhas indiferenças e falta de amor... “He don’t plant tatters, and He don’t plant cotton And them what plants en, are soon forgotten But ol’ Man River, Just keeps rollin’ along”. Nada pois a fazer em suas margens, voltei meus passos para o centro, aos atrativos da cidade grande, começando a contaminar minha mente e o corpo. E foi assim contaminado que voltei a Águas Mansas, para talvez a última festa de aniversário da fazenda, tamanho era o movimento de homens e máquinas da represa. O meu banco não estava mais lá. Caminhei pelo gramado com Naná, fomos sentar no chão, perto da margem e o mais importante da minha conversa tendenciosa ficou para ela resolver. Durante o jantar não pensei noutra coisa. Satisfeito vi seus pais naufragando nos vinhos, a começar pelo Porto, depois o branco, o tinto e os licores. De carnes, a codorninha triste para começar, depois o peru, a leitoa e qualquer bicho desventurado que passasse por perto. Tudo como eu queria. Logo seus pais serão dois porcos roncando até assobiar e Naná poderia ir deitar um pouco comigo, como lhe havia pedido. Só que deitou demais e afinal aconteceu o que eu queria, sem pensar nas consequências. No dia seguinte fui embora; quase dois meses depois uma cartinha chorosa. Estava grávida. Indiferente à gravidade do acontecido, não respondi. Prevendo que eu não daria a menor atenção ao caso, Naná correu a salvar as aparências. Enviou-me um convite para seu casamento com Aderbal, conhecido na praça pelos homens amigos e sem registro de namoro anterior com moça. Caçado, subiram correndo ao altar, antes que a barriga denunciasse meu crime. Ao nascer o garotinho, de sete meses por conveniência comunicou-me e como de costume joguei sua cartinha
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no cesto das minhas sujeiras, dei rédeas ao matungo da vida e pu-lo a correr. Ao vê-lo na Faculdade, bem calçado e muito bem vestido, queixei ‑me ao colega da qualidade dos ternos e sapatos que eu comprava e muitas vezes punha de lado. Nem mesmo comprando o tecido e indo a um dos muitos alfaiates que havia, ficava satisfeito. Ele me disse que os comprava em Buenos Aires, aconselhou-me a fazer o mesmo. E que não deixasse de ir a uma noite de tango num dos muitos clubes da cidade. Porque ir à capital portenha e não se deixar contaminar pela música de Carlos Gardel, transpondo já os limites americanos, seria crime imperdoável. Não pelo tango de que pouco ouvira falar, mas pelos ternos e sapatos da última moda européia, segui para a “capital” da America do Sul e temendo tornar-me criminoso, procurei conhecer algo da vida de Gardel. O pouco que sabia do tango ouvi do cantor Nelson Gonçalves “en passant” na composição Carlos Gardel, dos brasileiros David Nasser e Herivelto Martins. A letra dizia que o tenor argentino falava das tragédias das perdidas. Para não cometer o crime de não ir à noite de tango e indo nada conhecer dele, fui ler alguma coisa, começando pela palavra tango que apresentando várias e controversas origens, deixei de lado, apenas guardando que era muito antiga, da era colonial, antes mesmo de se tornar música e dança. Como música também se originou de mistura de ritmos. Nas letras, o imigrante muitas vezes vendo frustrados seus sonhos, gravou tragédias e desilusões, misérias e angústias, enfim dramas individuais das ruelas, do bairro pobre da Boca, das alcovas, das corridas nos hipódromos... Surgem os instrumentos: flauta, guitarra, violino, bandoneón. Desenvolve-se rapidamente nos bordéis, nos cabarés e em ambientes dissolutos. Mais tarde, continuando a ser voz do povo, passaria aos salões. A língua principal o lunfardo, dialeto coloquial que encontrou no tango algum lugar de perpetuação, na sintaxe da língua espanhola. Ficou-me gravada a cena de sua morte no aeroporto de Medellín às 14:58 horas do dia 24 de Junho de 1935, quando o avião em que viajava chocou-se com outro na pista, em acidente nunca bem explicado. Tinha 45 anos e sua fama chegara à Europa, depois de filmes nos Estados Unidos. Seus restos mortais, hoje no Cemitério da Chacarita, nos livros
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e na boca do povo um mito que mesmo morto dizem “aquel que cada dia canta mejor”. Estes e outros fatos que li e ouvi, alguns tangos com música de Gardel e letras de seu amigo Alfredo Le Pera que morreu no mesmo acidente, levaram-me a uma noite de tango dançado e cantado no Caño 14 que no lunfardo é vivienda precária. Eu que fora a Buenos Aires para passar três dias, não tendo motivos para voltar, ninguém me esperando no aeroporto, e mesmo se lá estivessem mulheres de cabelos úmidos pela garoa, fui ficando. Frequentei umas aulas com dançarina a caráter, a longa saia justa de cetim, o rasgo ameaçador até o alto. Ela, percebendo minha mão cheia e aberta convidou-me para seu apartamento. Como o poeta, voltando à casa paterna depois de longa ausência, exclamei “resistir quem há de?” Eu que não sou da Itabira do ferro e sim daquela fraca humana carne, tentei acompanhá-la em seus passos de tango por algum tempo. Não contei os dias. Cheguei até a arrotar alguns sincopados, Margot, seu nome de guerra, rostinho frio colado ao meu muito quente dos sóis de Águas Mansas. A todo momento corrigindo meu espanhol, tentando dobrar-me a espinhela... e mucha plata no pedaço. Em poucos dias mergulhei-me nas estrellas celosas, no cotorro abandonado, nas nieves del tiempo e outras maravilhas da língua de Cervantes, mesclada pela enxurrada dos vocábulos dos bairros, das ruas, das tragédias. A todo instante me perguntava o que fora feito daquele indiferente roceiro, mentiroso enganador de ingênuas criaturas, a peso de ouro comprando tudo. E agora, até gostando de ser enganado por Margot, cujo nome verdadeiro talvez fosse Maria das Dores, Dolores ou Joana, tanto faz.
Alfredo de Le Pera
Carlos Gardel
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De pronto percebi a sensibilidade daquela gente para quem piso é pisito, lanterna é farolito de la calle em que nací, caminho é caminito, janela é ventanita de mis calles de arrabal, cabelos brancos são las nieves del tiempo, bairro é rinconcito arrabalero, debaixo de um farolito de rua, era bajo su inquieta lucecita yo la vi. Diante de pisito, caminito, farolito, lucecita e tantas outras doces expressões nos lábios das cantoras e dançarinas, previa minhas dificuldades ao planejar o que seriam minhas noites de tango na Paulicéia, há vários dias me invadindo. Como colocar em lábios femininos alguns versos de Tomo y Obligo, de Gardel e Manuel Romero um convite para beber: Tomo y obligo, mándese un trago que hoy necesito el recuerdo matar sin un amigo, lejos del pago, quiero en su pecho mi pena volcar. Beba conmigo, y si se empaña de vez en cuando mi voz al cantar, no es que la llore porque me engaña, y sé que un hombre no debe llorar. Si los pastos conversaran, esta pampa le diria con qué fiebre la quería, de qué modo la adoré, cuántas veces de rodillas, tembloroso, yo me he hincado bajo el árbol deshojado donde un día la besé. Y hoy al verla envilecida, y a otros brazos entregada, Fue pa’ mi una puñalada y de celos me cegué. Y le juro, todavía no consigo convencerme Cómo pude contenerme y ahí nomás no la maté. Tomo y obligo, mándese un trago, de las mujeres mejor no hay que hablar, todas, amigo, dan muy mal pago, y hoy mi experiencia lo puede afirmar. Siga un consejo, no se enamore y si uma vuelta le toca hocicar, fuerza, canejo, sufra y no llore que um hombre macho no debe llorar.
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A complicar meu plano, muitos tangos, quando expressão das dores de cotovelos de homens soavam para mim ridículos quando interpretados por lábios de mulheres lindas. celosas – ciumentas cotorro – quarto de solteiro obligo – obrigo hocicar – afocinhar canejo – beberrão, borracho Mesmo assim algumas tentavam dar sabor a Mano a Mano, Esta Noche Me Emborracho, Sentimiento Gaucho e muitos outros. A solução seria que minha bailarina e cantora exclusiva cantasse apenas as partes em que a letra falasse dos sentimentos de modo geral. Quanto às vestes não havia discussão: o vestido longo justo, de cetim macio e lustroso, com aquele rasgo a afrontar minha imaginação. Viejo está em todo lugar. Em nenhum, entretanto com aquele sentido de traste velho, de imprestável, de pé na cova. No mais das vezes traz no bojo alguma esperança e mesmo nas tragédias existe algo que não morre totalmente, porque em nenhuma passagem consta proibição de sonhar e perdoar. Y mañana cuando seas descolado mueble viejo, en un viejo almacén del Paseo Colón donde van los que tienen perdida la fe..., vieja pared del arrabal, tu sombra fue mi compañera, e para não me alongar, porque em próximas ocasiões o viejo continuará aparecendo, apenas mais uma: y la viejecita de canas mui blancas se quedó muy sola... Cansado de Margot, tendo ido já ao banco pedir transferência de dinheiro e sem interesse de pedir mais, resolvi voltar. Antes tive um entrevero de poucos dias com Luna que tirando-me para dançar fingiu haver admirado meus passos ousados. Não lhe disse que tinha aprendido com Margot, para evitar broncas entre duas tangueiras que seriam de arrancar fogo. Quando meu “affaire” com Luna pretendeu seguir os mesmos passos de Margot, reservei passagem de navio; lentamente navegando teria mais tempo para pensar naquele plano que até os mais destrambelhados chamariam de maluquice; e eu de “hobby” milionário; usaria também o tempo para outros pensares, mania que você já conhece e que me levava para a beira do meu rio desde menino e que continuou no internato.
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Não pude aplicar em Margot e a Luna aquele adjetivo perdidas. Se lhes pesassem, pelo menos na minha presença disfarçavam com maestria. Não me lembro de haver levado nenhuma mulher para esses caminhos, nem mesmo a inocente Clarice que segundo soube, voltou para a roça. Quanto às outras, já eram do ramo quando passei a frequentar aqueles lugares por onde moços de boas famílias não deviam passar. Com pretexto de catar gabirobas perambulei por lá acostumando-me logo com as casinhas pobres, sem flores nas janelas, até chegar aos requintados e afinal montando com egoísmo o meu próprio refúgio na Paulicéia, quando o tango, se fosse pretexto, tornou-se realidade. Nas casinhas mal caiadas do bairro proibido de Águas Mansas, o reboco falho, desenhando muitas vezes mapas ou bichos, podia até existir a tragédia das perdidas. Vem daí a minha curiosidade que na sua evolução iria cair no modo de ser das pessoas e no final incitado pelo tango, conjuro que em português é conspiração. O tango El Choclo fala em conjuro o amor hecho cadencia. Os amigos, impressionados com minhas sabedorias tangueiras, a todo instante me estimulavam a contar mais, inclusive sobre o sabor da dançarina responsável pelo alongar dos meus dias em Buenos Aires e detalhes do meu plano, sobre o qual eu tocara de leve. Mesmo porque, nada havendo de concreto, eu nem sabia por onde começar, tendo apenas conversado uma vez com o professor de tangos, modestamente instalado num prédio velho da praça da Sé. Tinha poucos alunos, ainda enferrujados para as correrias dos passos, melhores para os lentos do “fox”, quase parados e encharcados de uísque barato, pensando em tudo, menos na dança. Seus olhos brilharam de pronto, apenas visualizando a possibilidade de novas alunas, pelo entusiasmo que eu havia mostrado vendo os vestidos longos colados ao corpo... o recorte ameaçador e tudo mais. Poucos planos na faculdade, no estudo cansativo das leis, do direito romano e outros que para mim não teriam a menor valia no Brasil, vagando mais nas minhas lembranças dos aprendizados iniciais dos tangos, costumes e tradições da terra querida de Gardel, quando um telegrama de Águas Mansas me chamava porque minha mãe estava nas últimas. Uma pontada vinda do fundo; pedi ao motorista do táxi que voasse para lá. Chegando, um movimento incomum ao pé da
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escadaria da igreja, o caixão descendo lentamente os degraus, meu velho capengando, Gervásio na alça de trás no lado direito; me viu de soslaio, continuou de cabeça baixa, às vezes parecia chorar. E a hipocrisia em fila, empurrando‑se para agarrar por instantes uma alça, como a dizer ao velho dono de Águas Mansas que como amigo estava ali. Um que tentou substituir Gervásio foi despachado com fulminante olhar e de cabeça baixa, como sempre diante de Isabel, a conduziu até a morada final. Eu não tive vontade de ir à fazenda depois do enterro; Águas Mansas agonizava nos meus planos de vida. Levei meu velho a um bar, tomamos café, disse-lhe o que pensava para ele, nos despedimos, abracei Gervásio que à porta, em pé o esperava e caminhei apressado para o táxi. Um conhecido parou‑me por instantes para dizer-me que o Aderbalzinho, para um menino nascido de sete meses, com pouco mais de três quilos, era um tourinho de forte. Que tinha a minha cara, insinuando‑me a visitá-lo. Subiu-me o sangue, com um coice da mão direita o deixaria no chão. Apenas o empurrei, entrei no táxi e não sei porque estava com pressa de sair dali, quando nada de importante, por enquanto, me esperava na Capital. Durante a viagem me arrependi de não ter dado o tal coice no filho da puta, quando até as éguas, fora do cio davam no garanhão e só o aceitavam se fossem peadas. Joguei fora os outros pensares e usei o tempo todo da viagem recordando o triste definhar de minha mãe, os modos de agir de meu pai procurando Dora e na solução do que pretendia para ele quando Águas Mansas desaparecesse do mapa. Era minha obrigação de filho. As horas lentas da longa viagem passando, o pensamento de mal agradecido voltava sempre para pedir perdão à minha mãe, como a dizer-me que não a amara tanto quanto merecia. Senti que desde cedo cantava coisas que eu não entendia mas crescidinho já, certa vez a ouvi: que bonitos ojos tiene e acreditei que deve ter cantado para mim essa canção e que não podendo alimentar-me no próprio seio, chegou a ter ciúme de Joana, achando que eu me apegara mais a ela. O pior é que isso me parecia verdade, nunca soube porque e preferia não pensar nesse assunto. O que sentia é que mesmo sem saber se é verdade, às vezes doía. Nessa época eu já ocupava um espaçoso apartamento no centro e dentro dos planos, logo no início das provocações mentais, mandei revestir à
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prova de som o quarto e a grande sala. Pretendia continuar ouvindo meus tangos, sem perturbar ninguém com músicas ou gemidos. Entretanto a morte de minha mãe amorteceu por longo tempo meus sonhos tangueiros e vaguei pela cidade à procura não sabia bem do que. Nessas andanças frequentei terreiros e centros sem participar de cultos e práticas, apenas observando e, às vezes analisando os tais milagres realizados com estiletes e bisturis, muletas jogadas num canto, coxos andando e loas ao Senhor. Nessa hora eu balançava, recorrendo às leituras da Bíblia que começaram no internato. Jesus, uma única vez havia usado instrumento de cura: um chicote para expulsar do templo vendedores desonestos e honestos, porque o templo é lugar de oração. E na maioria das vezes curou sem encostar no enfermo. A hemorroíssa apenas tocou a fímbria de seu vestido, Jesus voltou-se para ela e disse “a tua fé te salvou” e a mulher ficou sã. O mudo falou, a mão seca voltou à vida, cegos e estropiados foram curados. Lázaro, sepultado há quatro dias e segundo Marta, sua irmã, já cheirava mal. Na frente do túmulo Jesus bradou em alta voz: “Lázaro, sai para fora” já que da morte havia saído sem que ninguém percebesse e imediatamente o que estivera morto saiu. Tudo sem nenhum objeto cortante. E os que vi nos centros os usavam, dizendo todavia que eram curas e cirurgias espirituais. O servo do centurião foi curado sem que Jesus o visse; deu vida ao filho da viúva de Naim, morto e já dentro do caixão. Da morte de minha mãe calou-me profundamente a triste verdade do irreversível caminhar para o fim. E eu não gostava nem de pensar nisso; mas nos endoidecidos planos que já no navio voltando de Buenos Aires saltitavam, e mesmo como ruminante que sou, punha sempre de lado a hipótese de causar mal a alguém. Para isso iria contratar e pagar bem as mulheres do ramo, profissionais rodadas, sem humilhá-las, porém. Tudo a portas e ruídos fechados. Intimamente me perguntava se tendo já causado tristezas, não estaria penitenciando-me, ou se não era medo do inferno, a todo instante batido e rebatido pelos conferencistas no ginásio, frequentemente convidados pelo diretor. Embora achasse que a suprema bondade do Pai não jogaria um filho no fogo eterno. Primeiro porque em poucos minutos a fogueira consumiria o condenado que deixaria de sofrer; depois porque a simples impossibilidade do contato da alma pecadora com seu Criador já seria castigo pior que o tal fogo eterno.
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Afinal, superadas as dores da morte de minha mãe, sabendo que seu bom lugar há muito estava reservado, coloquei em papel o que tinha na mente desde Margot e Luna. A escolhida deveria de início ter o corpo, a voz e o jeito do tango que cantaria e dançaria só para mim no apartamento à prova de gente também. Nas letras não encontrei muito das tragédias das perdidas mas amarguras outras, separações doídas, sonhos desfeitos, deses peranças, lágrimas presas, dores-de-cotovelo. Música e letras que parecendo privilégio do tango, fora de suas notas agoureiras pouco representavam. O difícil era contaminar as escolhidas, muitas vezes sem cultura e outras frias e mercantis, desse meu envolvimento. Teria que enviá-las ao professor, oferecer-lhes aulas, pagar bem e até provocá-las com vinhos argentinos e uísques batizados. Às especiais os melhores sem batismo. Procurando-as vaguei por mafuás e lugares mal frequentados, na esperança de uma surpresa tipo “flor do lodo”, para depois de burilada, torná-la digna de pisar nos meus tapetes. Para que não digam que só penso nisso – e nem me perguntem porque, pois não sei – voltava o pensamento ao meu rio; supondo estar colhendo aqui e acolá as razões dos seres e as minhas, quem sabe um dia juntaria as contas desse meu complicado rosário e aprendesse rezar. Minhas professoras atuais entretanto quando dopadas, desandavam a falar de suas andanças e sofreres; algumas mentiam, pretendendo criar clima para receber mais, pouco acrescentando às experiências que desde menino eu vinha acumulando. Como é difícil saber o que pleiteia a lágrima fácil ou sincera da mulher. Nenhuma soube que ali estava um candidato a analista, graduado num internato e com pós graduação na universidade da vida, capaz da cafajestagem de, após usufruir quase tudo que pelo dinheiro lhe fora dado, vinha com lições de moral para que abandonasse aquela vida... Fiquei estusiasmado quando o professor telefonou dizendo que encontrara dançarina muito linda, com boa experiência numa casa de tangos, A Media Luz numa travessa da Rua da Glória frequentada por borrachos e donde van los que tienen perdida la fe, como no tango Sentimiento Gaucho. Já havia levado a moça a uma costureira, o vestido de cetim vermelho superjusto estava pronto; podia escolher o tango e marcar o dia. Só não pedisse a ela para cantar, porque de canto nada sabia.
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Mãos à obra, escolhi Melodia de Arrabal para minha primeira experiência. Havia uma casa de pássaros, coelhos, macaquinhos e bichos exóticos perto do Largo de São Francisco. Fui procurar lá un gorrión de que fala a letra da melodia, para dar mais autenticidade à cena, mas o vendedor disse que nem sabia da sua existência. No dicionário de português não existe gorrião; no de espanhol consta pardal dos telhados, no de lunfardo está pájaro pequeno y mui voraz. Como pardal não canta e muito menos é sentimental, dei‑me por vencido, comprei um pássaro qualquer de terracota, com a vantagem de não sujar meu tapete. Quanto à alma inquieta do gorrión é assunto para o Criador. Procurando criar local condizente com a Melodia de Arrabal, de Le Pera, Battistella e Gardel não podendo fazer na sala um piso de pedras pelo qual escorreria a lágrima, deixei a fita no jeito, Gardel começaria cantando: Barrio plateado por la luna, rumores de milonga1, que es toda mi fortuna. Hay un fuelle2 que rezonga en la cortada mistonga3. Mientras que una pebeta, linda cómo una flor, espera coqueta bajo la quieta luz de un farol. Barrio... Barrio... que tenés el alma inquieta de um gorrión4 sentimental. Penas...ruego... es todo el barrio malevo melodia de arrabal. 1 2 3 4
Milonga – toada popular Fuelle – fole Mistonga – pobre, humilde Gorrión – pássaro pequeno