Videogame, Educação e Cultura

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Apresentação A tarefa de escrever um livro sobre temática recente e relevante como a do videogame não é nada fácil quando se objetiva aprofundar fundamentos históricos e epistemológicos aliados a proposta humanista e educativa. Essa dificuldade me acompanha desde o ano de 1999, momento em que resolvi escrever sobre os primeiros resultados de pesquisas e estudos sobre o assunto. Foi quando me aventurei nesse universo desconhecido e fascinante para os educadores daquele período. Foi assim que, antes mesmo de terminar o doutorado em psicologia escolar, iniciei um percurso sem volta, uma tarefa apresentada como dilema e desafio ao mesmo tempo em que abria horizontes de descobertas. Movida pela necessidade de que a pesquisa fosse relevante socialmente, esse dilema se desdobrava em perguntas simples: escrever para quem? Pais, pesquisadores, professores, crianças? Como organizar e sistematizar um estudo sobre uma temática dessa que envolve tanto a urgência da prática quanto a solidez da teoria? Por onde começar em um objeto tão dinâmico no cotidiano e tão carente de dados científicos como era o videogame? Entretanto, ao longo de dez anos, conforme as pesquisas se sucederam e o referencial teórico foi amadurecendo à luz dos embates práticos, inerentes ao movimento do objeto, os dilemas foram se desmitificando; as resistências enfraqueceram aos poucos, e embora não se ausentasse por completo, pôde se


vislumbrar caminhos filosóficos e científicos por onde trilhar. Essa elaboração resultou de um trabalho conjunto envolvendo experiências com vários atores e autores: alunos da graduação e da pós-graduação, do ensino fundamental da rede pública e particular, crianças amigas, colegas pesquisadores e professores, instituições de pesquisas como o CNPq, escolas municipais e estaduais, e a Universidade Federal de Goiás. A iniciativa de escrever um livro sobre o jogo eletrônico e a educação veio do acúmulo de experiências e dados coletados, sobretudo dos resultados das pesquisas: A influência do videogame na formação de crianças de 3a a 4a série – um estudo do jogo eletrônico como mediação para a educação infantil (1999); Indústria Cultural e Infância – um estudo com Crianças de 1ª e 2ª séries do Ensino Fundamental sobre a Identificação com a violência no universo do videogame (2004); Jogos eletrônicos e massificação infantil – uma análise da imposição e aceitação de valores culturais na infância à luz da teoria crítica (2005) e Jogos eletrônicos e massificação infantil – estudo da relação entre o conteúdo de jogos violentos com aspectos ideológicos do sistema capitalista (2006). Pesquisas realizadas com o financiamento do CNPq e com o apoio da Universidade Federal de Goiás. A cada etapa do ciclo de estudos, conforme se realizava a análise dos dados, as descobertas apresentavam a necessidade de ampliação das pesquisas, por exemplo, quando da informação que as crianças estão jogando cada vez mais cedo. Assim, a faixa etária foi redimensionada abaixo daquela trabalhada em pesquisas anteriores. As contribuições dos relatórios das pesquisas foram decisivas para a elaboração de três artigos científicos: Indústria cultural e infância: estudo sobre formação de valores em crianças no universo do videogame (2007); Decifra-me ou devoro-te: o enigma do videogame na educação (2009a), e, O videogame no crepúsculo da educação – a produção de sentido na interface com a comunicação (2009b); dos quais algumas ideias comparecem neste trabalho. Foram produzidos também artigos para jornais, palestras, entrevistas para rádio e televisão, atividades acompanhadas de grande interesse, especialmente da parte de pais e educadores.


Quando o assunto é computador e videogame, a história se repete: os pais temem a dependência, violência e falta de limite; comportamentos apresentados pela criança na relação com o conteúdo e a administração do tempo. Na realidade, o relato recorrente sobre essas preocupações dos pais demonstra que a autoridade em tempos de mundo virtual passa por uma crise. O desamparo sempre é maior frente àquilo que não se conhece e não se domina. O primeiro passo para que os pais reconquistem a autoridade perdida é aceitar que o mundo virtual é uma realidade desconhecida o que gera desconforto e a insegurança. Essa percepção deve servir de alerta para alguns perigos virtuais tais como incitação à violência, à pedofilia, ao suicídio. O segundo passo é consequência: os pais devem acompanhar as incursões dos filhos à internet e conversar sobre sua vida virtual, amigos, comunidades e sites frequentados; ajudá-los a escolherem filmes, personagens e jogos, sobretudo, limitar o tempo que a criança despende ao computador e ao videogame. O objetivo deste livro não é elaborar uma receita de como os pais devem agir em tais situações, mas promover um alerta frente às possibilidades de extensão da violência a partir do videogame. O resultado dessa extensão não se pode prever até que se passem décadas esta ‘febre’. Não cabe responsabilizar apenas o videogame pela violência crescente no universo infantil, pois isso seria banalizar as pesquisas realizadas. Entretanto, há sinais de que as influências do conteúdo dos jogos violentos tendem a não ser positivas para a saúde física e psíquica de crianças e adolescentes. Os estudos realizados poderão dizer mais dessas hipóteses. Não obstante, essas experiências resultaram neste livro que pretende manter a tensão da relação sujeito e objeto da teoria crítica frankfurtiana. Não se pode garantir que o intento tenha se concretizado, pois não há como traduzir essa problemática em perspectivas simplistas para que se torne totalmente compreensível sob o prisma do senso comum. Entretanto, com base em estudos que remetem à teoria do conhecimento, a experiência científica pôde se tornar possível.


A intenção não foi apresentar apenas o lado negativo do videogame. Algumas reportagens apresentam estudos, mesmo que frágeis, que demonstram o desenvolvimento da percepção de espaço e tempo, da agilidade em resolver operações concretas em participantes de jogos eletrônicos. Além disso, ao menos aparentemente, a realidade virtual trouxe várias vantagens para o indivíduo, como a facilidade de comunicação e informação. Embora isso seja importante, não se pode fugir à realidade que a questão que se coloca extrapola a aquisição de habilidades perceptivas; a saber: até que ponto o videogame pode promover a violência ou a formação de valores tendo como base a interação das crianças com o seu conteúdo, e em que medida sua estrutura e representação dificultam ou facilitam essa promoção. O fato é que, ao longo das pesquisas, duas lições se destacaram: a necessidade de um trabalho conjunto que envolva os mais dife­ rentes segmentos sociais na luta contra a violência e a barbárie na cultura infantil e, a importância de pais e educadores resistirem ao processo devastador da perda da autoridade e de valores humanistas que assola a educação via administração capitalista da cultura e da diversão. Assim, é importante que os adultos se mantenham atentos à radical influência da indústria cultural que, na maioria das vezes, desinteressada dos conteúdos educativos, visa apenas promover o consumismo infantil em função do lucro. No videogame violento existe uma cadência artística fúnebre, uma estética da morte que não encontra desculpa em especialistas que defendem a catarse da agressividade como parte da vida humana. Mas o que causa mal-estar é que a criança que entende tudo como uma brincadeirinha não percebe que o problema não é a morte física, mas a morte da ausência de valores como possibilidade de sublimação de suas necessidades imediatas menos nobres. O mundo virtual possui a qualidade de alimentar o imaginário e a fantasia em relação ao que não se aceita no mundo real. E, consequentemente, permite a confusão entre a realidade e o delírio. Crianças e adolescentes em situação de compulsão pelo jogo, de dependência e fixação, encobrem uma tentativa desesperada de


encontrar o seu lugar no mundo, uma ligação com a vida, laços e vínculos, perdidos ou reencontrados. Para muitas crianças e adolescentes, pelos mais variados motivos, o mundo real não possibilita um lugar em que possam sentir-se em casa, e o mundo virtual é uma maneira de habitar esse lugar escolhido e construído, mesmo que idealmente. Quando o avatar, um personagem fictício, toma o lugar de um indivíduo na sociedade, a realidade cobra a sua cota para manter a fantasia; o preço é pago com a identidade, a possibilidade de se reconhecer como um sujeito imperfeito, contraditório, entretanto, real. O vício pelo videogame poderia ser qualquer outro tipo de vício quando as condições a priori são dadas. A semente da dependência brota onde a ausência de afeto, de autoridade e educação é solo fértil. Em razão disso, a dependência em relação ao videogame e à internet extrapola o contexto educacional, e se torna um problema de saúde pública. Nesse sentido, defendemos que a qualidade de vida de crianças e adolescentes, em contato exagerado com o jogo eletrônico, deve ser objeto de atenção de todas as ciências: exatas, humanas e biológicas. O que se espera, de fato, com este trabalho, é que os objetivos dos jogos de videogame extrapolem os interesses da grande indústria do lucro e possam constituir instrumento em prol da autonomia e da humanização da sociedade; que seu conteúdo manifeste valores verdadeiramente educativos e que milite na luta contra a barbárie. Esse não é um problema que remete somente às condições materiais, mas à perspectiva de preservação da humanidade. Porquanto, até que essa consciência seja possível, que emirja cada vez mais estudos e pesquisas que possam prosseguir nessa busca. Entretanto, sobretudo, fica o desejo que haja resistência de pais e educadores no sentido de favorecer a construção daquele lugar da identidade e do autorreconhecimento, espaço tão ansiado por crianças e adolescentes ao recorrerem aos jogos violentos de videogame e às comunidades virtuais destrutivas.



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