Contra-Discurso do Desenvolvimento Sustentรกvel
Marcionila Fernandes Lemuel Guerra Organizadores
Contra-Discurso do Desenvolvimento Sustentรกvel
Associação de Universidades Amazônicas – UNAMAZ GIUSEPPE E. GIANNETTO PACE – Presidente Rector de la Universidad Central de Venezuela FABIAN RODAL COELHO – Vice-Presidente (Bolívia) Rector de la Universidad Técnica del Beni MANOEL MALHEIROS TOURINHO – Vice-Presidente (Brasil) Reitor da Universidade Federal Rural da Amazônia VICTOR MANUEL MONCAYO CRUZ – Vice-Presidente (Colômbia) Rector de la Universidad Nacional de Colombia REINALDO VALAREZO GARCIA – Vice-Presidente (Equador) Rector de la Universidad Nacional de Loja JAMES ROSE – Vice-Presidente (Guiana) Vice-Chancellor of the University of Guyana VICTOR MANUEL CHAVEZ VASQUEZ Presidente (Peru) Rector de la Universidad Nacional de Ucayali
–
Vice-
GREGORY RUSLAND – Vice-Presidente (Suriname) Chairman of the Board – Anton de Kom Universiteit van Suriname AMÉRICA PERDOMO – Vice-Presidente (Venezuela) Directora del Centro para Investigación y Control de Enfermedades Tropicales “Simón Bolívar”
Contra-Discurso do Desenvolvimento Sustentável 2a edição revista Marcionila Fernandes Lemuel Guerra Organizadores
Belém 2007
ASSOCIAÇÃO DE UNIVERSIDADES AMAZÔNICAS Travessa 3 de Maio, 1573 – São Braz CEP. 66063-390 Belém – Pará – Brasil Tel.: (+55-91) 3229-4478 E-mail: unamaz@ufpa.br http://www.ufpa.br/unamaz
Vice-Presidente UNAMAZ – Brasil: Prof. Dr. Manoel Malheiros Tourinho Diretora da Sede Institucional: Profa Rosa Elizabeth Acevedo Marin Os trabalhos aqui apresentados são de inteira responsabilidade dos autores. Impresso no Brasil / Printed in Brazil Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com a Lei no 1825, de 20 de dezembro de 1907.
Contra discursos do desenvolvimento sustentável / Organizado por Marcionila Fernandes e Lemuel Guerra. — 2. ed. rev. — Belém: Associação de Universidades Amazônicas, 2007. p. ISBN 85-86037-13-3 1. Desenvolvimento sustentável. I. Fernandes, Marcionila. II. Guerra, Lemuel. III. Associação de Universidades Amazônicas.
CDD: 333.71509811
SUMÁRIO PREFÁCIO DA 1A EDIÇÃO..........................................
9
PREFÁCIO DA 2A EDIÇÃO..........................................
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APRESENTAÇÃO...........................................................
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A Filosofia Política do Ecologismo João Almino.......................................................................
27
Os novos Discursos da Sustentabilidade Michael R. Redclift.............................................................
51
Quem Sustenta o Desenvolvimento de quem? O Desenvolvimento Sustentável e Reinvenção da Natureza Subhabrata Bobby Banerjee..............................................
77
Desenvolvimento Sustentável: Antinomias de um Conceito Marcionila Fernandes........................................................
129
Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável: Considerações sobre um Discurso de Inferiorização dos Povos da Floresta Manuel Dutra.....................................................................
167
Desenvolvimento Sustentável e seus Limites TeóricosMetodológicos David Ferreira Carvalho...................................................
195
O Padrão Insustentável da Demanda Material da Economia do Brasil José Alberto da Costa Machado........................................
231
PREFÁCIO DA 1A EDIÇÃO
Desenvolvimento sustentável: um modelo (teórico) ou uma ideologia ecocêntrica? Ao término de um primeiro mandato, a VicePresidência da UNAMAZ –Brasil, sente-se feliz em apresentar à comunidade acadêmica e político-institucional um livro com textos que procuram apresentar – para a reflexão de todos - um contraponto ao discurso do desenvolvimento sustentável. Tese da década que fechou o século XX, esse discurso impregnou as grandes agências de fomento ao crescimento econômico e desenvolvimento social como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura. Foi baseada nestas circunstâncias que a proposta de publicação deste livro tomou corpo nos planos da Sede Institucional da UNAMAZ – Brasil, a partir do ano de 2001, quando apresentamos ao conjunto dos membros da Associação, na Jornada Programa UNAMAZ, 2000-2003, a lista de temas de publicações. A proposta foi igualmente apresentada, na programação dos Conselhos Deliberativos da UNAMAZ, em Boa Vista - Roraima e em Loja – Equador, tendo-se solicitado contribuições dos afiliados sob forma de artigos.
Tendo em vista a quase unanimidade que se estabeleceu em círculos políticos e intelectuais em relação à positivi-
dade do conceito de desenvolvimento sustentável, é uma ousadia organizar um livro e intitulá-lo de Contra-Discurso do Desenvolvimento Sustentável, buscando suscitar questionamentos sobre esta noção que, infiltrada nas instituições acadêmicas e de pesquisa, adquiriu foros de cientificidade e de prática legitimada. Como e de onde surgiu o conceito de desenvolvimento sustentável? E em que bases se estabeleceu o consenso e a legitimação dessa noção ambígua que, por suas propriedades – uma delas, o mimetismo –, adquiriu livre trânsito na academia? Por que, na passagem do milênio, tal conceito se estabelece como exigência nas proposições públicas governamentais e não-governamentais? Por que os idealizadores e defensores externos não fizeram nenhum reparo a essa noção que passou a ter ampla vigência no Brasil, talvez muito mais do que em outros países do Hemisfério Sul Como se tecem os fios de Ariadne dessa política global? Quais suas implicações teóricas e metodológicas?
Aqui mesmo, e na Universidade Federal do Pará com maior destaque que em outras Universidades regionais, vimos serem criados, desde o início da década de noventa, programas formados nessa matriz, tal como ocorreu no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA); no Programa Pobreza e Meio Ambiente na Amazônia (POEMA), no Centro Agroambiental do Tocantins (CAT), no Centro Agropecuário (CAP) e Núcleo de Meio Ambiente (NUMA). Do mesmo modo, tem-se feito do conceito logomarca de cursos de pós-
graduação (cursos em nível de especialização, mestrado e doutorado em Desenvolvimento Sustentável dos Trópicos Úmidos, em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável, em Sistemas Agroflorestais), e realizados seminários, congressos e conferências sobre o tema. A noção de desenvolvimento sustentável encontra-se ainda na memória recente da Associação das Universidades Amazônicas, UNAMAZ, e da Assessoria de Relações Nacionais e Internacionais da UFPA e da UFRA, sem contar as instituições que ocupam posição no quadro de verticalização de políticas de intervenção como o PPG 7. A essas memórias institucionais soma-se a preocupação presente nas atividades de pesquisa para diagnosticar e realizar a mediação entre as propostas de planos de manejo dos recursos naturais e as comunidades negras, indígenas e camponesas. Portanto, podemos estar sendo induzidos a tratar temas apelativos da nossa época em busca da tese da sustentabilidade, ou levados a fazer proposições que, partindo de leituras do mundo social e cultural, produzem mitos que aparecem com toda a força no discurso oficial atual.
No conjunto de conhecimentos modernos coube à Ecologia um papel básico na definição do conteúdo da sustentabilidade, muito embora filósofos contemporâneos já tivessem produzido a crítica a um tipo de progresso que caminhava para a catástrofe. A ecologia abraça, então, a crítica ao mal-estar social, conseqüência dos padrões de industrialização e do crescimento urbano. Ela assume a vanguarda da ex-
plicação da crise ambiental. Daí que o desenvolvimento sustentável, como uma espécie de offspring ecológico, não se descola da crise ecológica que turbina uma espécie de medo coletivo sobre a iminência da catástrofe e, ao mesmo tempo, detona uma espécie de consciência da finitude da vida humana no planeta e de forma insistente o homem procura saídas dentro do mesmo parâmetro: políticas de preservação, de controle, gestão e manejo de ecossistemas.
Segundo Jean Paul Deléage, essas predições encarniçadas derivam de um mal-entendido que se origina no fato de a sociedade tratar a questão ambiental como se fosse um pêndulo que vai da idéia do “small is beautifull”, sobretudo se o pequeno for verde, à noção da ecologia como uma “mercadoria banal”. Esse movimento pendular deve-se, segundo o autor, a derivações perniciosas que aconteceram (e acontecem...) em relação ao conteúdo político, técnico e ideológico ponderado no conceito. Por isso Deléage1 explica que, embora privilegie a inclusão de conteúdos políticos e ideológicos ao conceituar sustentabilidade, acrescentou uma derivação científica. Por isto as ciências sociais, na tentativa de alavancar a construção de seu espaço nessa problemática, têm encontrado dificuldades para medir as relações entre trabalho científico e engajamento político, deixando escapar recortes 1
DELEAGE, Jean-Paul. História da Ecologia: uma ciência do homem e da natureza. Lisboa: D. Quixote, 1993; DELEAGE, Jean-Paul. Uma Ecologia-Mundo. In: CASTRO, Edna; PINTON, Florence (Orgs.). Faces do Trópico Úmido: conceitos e questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. Belém: CEJUP, UFPA. NAEA, 1997. p. 23-52.
importantes das relações sociais implícitas naquele processo, não captadas também pelas correntes biocêntricas, (ecocêntrica do fato social) e sociobiológicas, uma vez que não situam a dimensão social, política e ideológica do problema ecológico, por desconhecerem, tais correntes, a teia de relações sociais que se estruturam na modernidade, como escreve Fernandes2. Desta forma a discussão sobre o desenvolvimento sustentável em voga necessita ter presentes algumas teses e fatos que não devem ser negligenciados: primeiro, que o reconhecimento tardio da crise do meio ambiente deve-se a duas dinâmicas: uma relacionada ao processo de artificialização da sociedade humana em níveis inaceitáveis, e outra, vinculada a uma característica inerente ao capitalismo que, para se estabelecer como sistema econômico, necessita adquirir hegemonia como modelo social universal. Entre a afirmação da hegemonia do capitalismo mundial, a partir do fim da oposição entre blocos geopolíticos e econômicos, e a planetarização da crise existe uma relação direta; segundo, que as inclusões das sociedades tradicionais no capitalismo por meio do mercantilismo dos seus espaços naturais e culturais, do consumo de produtos industrializados, da formação de áreas comuns de mercados e dos decréscimos de grandes movimentos sociais emancipatórios, estão dando novas feições à política mundial 2
FERNANDES, Marcionila. Implicações teóricas e praticas do desenvolvimento sustentável: um estudo com base no Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicas do Brasil. Recife: [s.n], 2001. 350 p. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2001.
através da convergência de produtos e processos e do consenso do ponto de vista econômico, fatos que determinam a fragmentação social e cultural das economias tradicionais. De nenhum modo a solução da crise ambiental deve ser buscada em formas de produção que conduzam a modificações no modo capitalista de produção e de consumo de mercadorias; terceiro, que a divisão ecológica internacional (FERNANDES, 2001) estabelece, de um lado, áreas ricas em florestas, situadas principalmente em países subdesenvolvidos, às quais é atribuída a função precípua de assegurar o equilíbrio ambiental global, que, por isso, são tratadas como patrimônio da humanidade; do outro lado, áreas industrializadas, financeiramente influentes, e, por isso, com capacidade para estabelecer um domínio político-ideológico e econômico que assegura sua permanência e continuidade dentro de padrões de produção e consumo; quarto, que a repercussão mundial da crise ambiental dotou de legitimidade o debate público sobre a deterioração da natureza, possibilitando a emergência de movimentos ambientalistas, ONGs de abrangência supranacional; de centros e institutos científicos dedicados à pesquisa e à formação de recursos humanos especializados em meio ambiente, incluindo-se aí os organismos internacionais com a atribuição de gerenciar as políticas ambientais globais a partir dos países centrais; quinto, que a formulação da crise ambiental como problema mundial tem contribuído para a secundarização das diferenças entre as nações e, conseqüentemente, das relações de poder entre elas. Sob a alegação de que a
Terra estaria em risco e sua salvação dependeria de uma ação de todos, justificam-se intervenções em áreas eleitas como nichos ecológicos capazes de definir o futuro do planeta – a grande maioria delas localizadas nos países do Sul – suplantando-se as fronteiras geopolíticas, resguardando-se, assim, as áreas historicamente geradoras dos grandes problemas ligados à exaustão dos recursos naturais e do comprometimento da biosfera. A lógica de mundialização do problema protege os modelos de exploração dos recursos naturais ligados à forma de produção capitalista dos países centrais, impedindo a reflexão sobre a indicação de responsabilidade na geração da crise do meio ambiente. Há, então, em curso, uma proposta de reterritorialização dos espaços que se contrapõem às fronteiras políticas e sociais nacionalmente conquistadas; sexto, que a crise ambiental desencadeou, além dos conflitos, tentativas de implantação de políticas de partilha e de gerência desses recursos, tendo em vista a repercussão dos limites energéticos, hídricos, minerais, genéticos para a continuação da expansão do sistema capitalista. As florestas, incluindo as da Pan-Amazônia, foram definidas como celeiro da biodiversidade e passaram a ser consideradas como as principais responsáveis pelo equilíbrio do ecossistema terrestre. A divisão ecológica internacional determina a confluência entre as áreas destinadas a reproduzir modos tradicionais de produção, manutenção e formas de apropriação e processamento dos recursos naturais “limpos” (FERNANDES, 2001). E é nessa junção que aparece o desenvolvimento sustentável, produzindo a
preservação ambiental com desenvolvimento econômico; sétimo, que o pensamento hegemônico a respeito da temática ambiental mantém os privilégios e as estruturas do projeto de modernidade pós-capitalista cuja premissa básica é estimular, cada vez mais, processos crescentes de consumo e manutenção de estratégias de apropriação praticadas há muito e que resultam em níveis crescentes de exclusão social e de artificialização da vida humana. As formulações de uma política ambiental global não conduzem a um novo contrato social com base em novas relações entre sociedades e natureza, o que significaria o questionamento das bases do sistema de produção da vida material e das formas de apropriação dos recursos naturais. A visão ecocêntrica tende a apagar a reflexão sobre a condição humana nas sociedades modernas, principalmente aquela que se orienta para o enfrentamento das contradições existentes nas relações sociais. Ao finalizarmos este capítulo introdutório queremos agradecer, de forma muito especial, à professora Marcionila Fernandes por sua colaboração ao reunir artigos e discutir o conteúdo dos mesmos. A esse trabalho somou-se o do professor Lemuel Guerra, a quem a UNAMAZ – Brasil também agradece pela dedicação. Um reconhecimento especial da Vice-presidência vai para a Professora Rosa Elizabeth Acevedo Marin, Coordenadora da Sede Institucional, que compartilhou todos os momentos da produção, responsabilizandose pelas decisões finais da publicação. Em tempos de luta
para continuar os ideais de sobrevivência da universidade pública, sem a participação decidida da Professora Rosa, não nos teria sido possível conduzir a elaboração desse livro que acreditamos importante para a reflexão crítica sobre o que significa para a Amazônia o desenvolvimento sustentável visto num recorte das políticas mundiais. A todos que se interessarem pelo tema, desejamos uma produtiva leitura.
Manoel Malheiros Tourinho Reitor pro-tempore da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) Vice-Presidente da UNAMAZ – Brasil
APRESENTAÇÃO
Lúcio Flávio Pinto Entre as décadas de 50 e 90 a integração – forçada e mesmo manu militari – da Amazônia às economias externas, nacional e internacional, seguiu o velho modelo do homem agrícola: substituição de sua floresta por campos de pastagem, culturas comerciais, cultivos de subsistência e qualquer outra forma das já conhecidas de abertura de fronteira, com sua fauna acompanhante de estradas de rodagem, cidades, hidrelétricas, etc. O principal resultado desse “modelo”, apenas com variações tecnológicas em relação ao modo de fazer do homo sapiens (com seu sinônimo compulsório, o homo agrícolas) foi o mais feroz processo de destruição de floresta da história da humanidade. Nesse período, sob lemas como “integrar para não entregar”, o desmatamento passou de menos de 1% para 17% da superfície da Amazônia. Quase 600 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa vieram abaixo, duas vezes a extensão de São Paulo, “locomotiva” do Brasil, com mais de um terço da riqueza nacional. Essa fantástica incorporação de recursos naturais realizou os sonhos de progresso da fronteira, onde está a maior reserva de recursos biológicos do planeta? Os resultados das mais recentes aferições dessas quatro décadas mostram que não: a Amazônia ficou exatamente igual ao Brasil mais anti-
go, ou pior. O Atlas do Desenvolvimento Humano, lançado em 2003, mostra que a Amazônia cresce menos do que as outras regiões brasileiras, de onde partem as frentes de expansão no rumo norte, e o produto da atividade produtiva é partilhado por um número cada vez menor de pessoas. Se a concentração econômica é a grande e estigmatizante marca do Brasil do século XX, em sua maior fronteira esse sinete se tornou ainda mais forte. Deixando de ser a ilusão do paraíso perdido, como Euclides da Cunha a viu quando o século apenas começava, ela penetrou no novo milênio mais próxima do inferno humano e ecológico, ainda passível de atenuação, mas já visível no horizonte da rotina. Para que pudesse render economicamente para o país e para o mundo, cumprindo uma agenda predeterminada a partir de fora, a Amazônia perdeu nessas quatro décadas 17% do seu bem mais nobre e valioso, a floresta. Os 570 mil quilômetros quadrados que foram transformados pela ação dos colonizadores, entretanto, não resultaram em desenvolvimento para os nativos, seja os de nascimento como os de adoção, cada vez mais numerosos em função de elevadas taxas de imigração. De promessa de futuro, a Amazônia está sendo despejada para o clube dos mais pobres Estados da federação, o Brasil n0 3, o enjeitado. Conforme os dados do Atlas, elaborado em conjunto pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) e Fundação João Pinheiro, todos os Estados da Amazônia (a Clássica como a Legal) tiveram desenvolvimento – entre 1991 e 2000 – abaixo da média nacional. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil na década cresceu de 0,696 para 0,766 (o máximo é 1). Todos os 27 Estados também cresceram, mas o ritmo amazônico foi menor do que o desempenho médio. O Nordeste acompanhou-o. Os Estados nordestinos mais assolados pelas secas se fundiram com os Estados amazônicos mais pobres nesse Brasil de terceira classe.
O Pará, Amazonas, Acre e Tocantins estão nessa faixa mais pobre, na companhia de (pela ordem) Pernambuco, Sergipe, Ceará, Bahia, Piauí, Paraíba, Alagoas e Maranhão. No segmento intermediário de desenvolvimento estão, também em escala decrescente, Amapá, Roraima, Mato Grosso e Rondônia. Se a fronteira mais visada e celebrizada é a Amazônia, a que está cumprindo esse papel é o Centro-Oeste, que agora tem mais do que o dobro da participação amazônica no PIB (Produto Interno Bruto). O mapa da evolução espacial do desenvolvimento explica a razão da melhoria do IDH em todo o território amazônico: atividades produtivas em áreas pioneiras exerceram um efeito exponencial que se irradiou pela vizinhança, antes destituída de fontes de renda. No entanto, é cada vez menor o número de pessoas que se beneficiam desse rendimento. Em 1991 apenas Roraima apresentava um índice de Gini (da concentração da renda) acima de 0,65 ou mais (o máximo de concentração é 1). Em 2000 aconteceu exatamente o inverno na Amazônia: Roraima, o único Estado (da região e de todo país) que apresentou melhoria da concentração, tinha Gini entre 0,61 e 0,62, igual ao de Rondônia, enquanto todos os demais Estados passaram para a faixa mais grave, a mesma da qual faziam parte apenas os Estados nordestinos assolados pelo flagelo da seca (agravado pela incúria do homem). O Pará, o Estado com a maior população, o maior PIB, o segundo maior território e a mais diversificada pauta de recursos (e de produtos) econômicos, é o caso mais grave de concentração da renda (como da maioria dos demais subindicadores do IDH). O Estado apresenta, ao mesmo tempo, os maiores índices nos dois extremos da pirâmide: o dos mais ricos e o dos mais pobres. Era o 10º em concentração da riqueza em 1991: 10% dos mais ricos detinham 51,7% da riqueza estadual. Tornou-se o 9º pior em 2000: esses mesmos 10% já abocanhavam 54,7% da renda do Estado. Os 20% mais pobres, que só tinham acesso a 2,6% da renda total em 1991, no ano 2000 ficaram com tão-somente 1,5% (o Estado passou do 8º para o 7º lugar entre os de maior pobreza).
A deterioração, porém, não é apenas de renda. O que os técnicos chamam de vulnerabilidade, com base no IDH (que mede a expectativa de vida, as condições de trabalho e o nível de escolaridade), se alastrou pela região junto com as cunhas migratórias. Excetuado o Amazonas (que tem metade da sua população enquistada em Manaus, numa concentração sem paralelo nacional), em todos os demais Estados amazônicos cresceu o trabalho infantil, em níveis que só têm paralelo com os nordestinos. A região é líder na quantidade de crianças fora da escola (sendo a educação, em geral, a razão principal para o crescimento constante do IDH, mais do que renda e expectativa de vida, embora se deva recear pela qualidade desse ensino). O Pará é responsável pelo quinto índice mais grave em todo país, passando à frente de Alagoas, que havia sido o Estado campeão do trabalho infantil em 1991. O abandono e o isolamento são causas de desempenhos sofríveis de certos municípios da Amazônia. Jordão, no Acre, tinha o segundo pior índice de desenvolvimento humano (0,475) em 2000, abaixo apenas de Manari, em Pernambuco (0,467), e o maior percentual de analfabetos (60,66%), acima apenas de Itamarati, no Amazonas (59,95%). Centro do Guilherme, no Maranhão, ficou em quinto lugar nesse item, mas ocupava constrangedora primeira posição em matéria de renda per capita (cada um de seus moradores recebia, em média, R$ 28,38, para um salário mínimo de R$ 150). Problema apenas do sertão? Ledo engano. Belém, a metrópole da Amazônia, foi a que mais perdeu posições na relação do IDH metropolitano: ocupava o 130 lugar entre as regiões metropolitanas brasileiras em 1991; despencou para a 25a posição em 2000. É um desempenho aviltante, independentemente de saber quem é o responsável (na eterna quedade-braço entre a prefeitura municipal petista e o governo estadual tucano) ou se vai mudar a partir de agora. Ainda que mude – e para bem melhor – talvez não se chegue em 2009 na posição de 1991.
Se o modelo de ocupação da Amazônia é colonial, espoliativo e concentrador (e é realmente), as elites o agravam ainda mais com sua inação ou sua participação predatória, como abutres na carcaça. O Maranhão do ex-presidente e senador José Sarney tinha a menor IDH em 1991 (0,543) e continuou a ter o menor IDH (0,636) em 2000, enquanto a média nacional nesses dois anos foi de 0,696 e 0,766. Já Alagoas, do ex-presidente Fernando Collor de Mello, é o Estado brasileiro mais desigual, onde os 10% mais ricos ficam com 58% da renda. Os defensores intransigentes da Zona Franca de Manaus precisam ser mais receptivos às relativizações: o Amazonas perdeu três posições entre 1991 e 2000, caindo do 130 IDH para o 160. Seu índice cresceu, de qualquer maneira, mas a uma taxa inferior ao da média regional. Foi, aliás, a perder posição. E os péssimos indicadores no interior fazem pensar nos estragos que resultarão de uma crise maior da Zona Franca de Manaus, ou da insuficiência de seu dinamismo como fator de dispersão de efeitos. Fariam bem as elites em refletir sobre o distorcido espelho que colocaram diante de si e o povo, em geral, de sair da resignação. Melhorar o perfil da Amazônia ainda está ao alcance de todos, mas se o desafio for assumido logo. Não há muito tempo para começar. Os autores deste livro sabem disso. O que suas reflexões procuram mostrar é que se o modelo exógeno (e colonial) está fracassando, não se pode deixar para depois (porque o “depois” pode ser desgraçadamente tardio) de assumir o desafio de experimentar uma nova forma de desenvolvimento. Neste livro, checado por muitos e profundos questionamentos conceituais e empíricos, o que se propõe é algo absolutamente novo para a humanidade: o desenvolvimento sustentável baseado naquilo que define, legitima e oferece o máximo de ganho para a Amazônia, que é a sua floresta nativa, um terço do que resta no planeta desse excepcional tipo de cobertura vegetal. Nada existe de mais rico em vida do que a floresta tropical. Nós ainda temos a maior de todas, apesar de termos
nos tornado, na Amazônia (para consagração desse irracionalismo doidivanas, entre Behemoth e Leviatã), o povo que mais destruiu florestas. Ainda é possível, entretanto, refazer alguns dos estragos e corrigir o avanço, ou só avançar com conhecimento de causa, orientado pelas ferramentas que a inventiva humana já colocou ao nosso alcance e que do nosso âmbito afastamos, preferindo nos manter nessa corrida selvagem do Atlântico ao Pacífico (e, agora, vice-versa). Substituir a cultura do desmatamento pela cultura da floresta é, no momento, um dos maiores desafios postos diante da espécie humana, com seu teatro de operações estendido pela Amazônia sul-americana, um verdadeiro continente ainda majoritariamente verde. Queremos continuar a colocar fogo nessa fantástica reserva de biodiversidade, substituindoa por uma savana cinza e infértil, ou daremos mais atenção à aplicabilidade de reflexões inovadoras e encorajadoras como as que se seguem neste livro? Com a palavra, depois dos autores, o leitor. Com o verbo, a nossa esperança. Apesar de tudo.
A
FILOSOFIA
POLÍTICA
DO
ECO-
LOGISMO
João Almino
Natureza e progresso na modernidade A reflexão sobre a natureza remonta a Epicuro ou Lucrécio e idéias que hoje chamaríamos de "ecológicas" são encontradas em textos da antiguidade clássica, de que são exemplo os escritos de Platão. De fato, em Platão já está presente a idéia de uma degradação e de uma corrupção (que implicam a noção de natureza) decorrentes da desobediência humana aos desígnios divinos. Para ele, em sua República, o que destrói e corrompe é o mal e o bem é o que preserva e é útil. As bases filosóficas para uma visão tanto anti-ecológica quanto ecológica da natureza podem ser também atribuídas a correntes da doutrina judaico-cristã. Esta doutrina teria sido anti-ecológica ao lançar os fundamentos da linearidade histórica, que reviu a noção de tempo cíclico da antiguidade clássica ocidental, sem o que seria impossível a noção de progresso, e ao fincar o marco de uma relação de exterioridade entre homem e natureza, sobre a qual se baseia a idéia antropocêntrica de dominação daquele sobre esta. O progresso, conquistado com esforço e trabalho, seria um sacrifício imposto ao homem como forma de recuperar a harmonia do estado natural paradisíaco perdido com o pecado original. A ética judaico-cristã, ao colocar o homem acima da natureza em nome de Deus, favoreceria o desenvolvimento da tecnologia, o industrialismo e a vontade de explorar. Por outro
lado, a perspectiva ecológica é atribuída ao pensamento cristão medieval de São Francisco de Assis, que encarava o homem como igual às demais criaturas e não como um ser superior. Seria, além disso, possível remontar a tempos imemoriais a história da degradação ambiental. São marcos nesta história a utilização do fogo, o início da metalurgia, a introdução dos cultivos agrícolas e do pastorialismo, o início do aproveitamento da água e do vento como fonte de energia, a invenção da pólvora, da máquina a vapor, da eletricidade, do motor a explosão e da energia nuclear. Um resumo da história da degradação ambiental teria que se concentrar em dois momentos de aceleração da história. O primeiro deles foi a revolução neolítica, que correspondeu ao desenvolvimento da agricultura, da tecelagem e da cerâmica, à domesticação de animais e à sedentarização humana. Mas foi apenas no segundo momento, com a revolução industrial, que houve densidade e generalização da degradação ambiental, facilitada pela fusão entre ciência (especulativa) e tecnologia (empírica), pela mentalidade dominante no tipo de sociedade inaugurada com o capitalismo, e, de forma mais ampla, por determinada visão de progresso e natureza que vinha pouco a pouco se firmando na modernidade, ou seja, desde o Renascimento. É inegável a vinculação entre as várias formas de manifestação da preocupação ecológica e as consequências da revolução industrial. Entretanto, esta preocupação não é expressão mecânica de uma realidade que precisa ser urgentemente modificada. Se assim fosse, a ecologia não teria aguardado até a segunda metade do século XIX para se desenvolver. Seria importante, por conseguinte, analisar o contexto geral da discussão filosófica da modernidade que fornece os fundamentos para a questão ecológica. Ao longo da modernidade, a natureza, do latim "natura" – nascimento – tem sido definida sobretudo de forma negativa, pelo que não é mais do que pelo que é. Em primeiro lugar, ela pode ser oposta a uma sobrenatureza ou ao espírito. O natural, antônimo de sobrenatural, corresponderia ao
mundo físico, à "physis" (natureza) grega, entendida como o conjunto da matéria, a base atomística do mundo ou todos os processos físicos, químicos e biológicos. Embora Heidegger, em Introdução à metafísica, acredite que esta concepção deriva de uma leitura do cristianismo, esta tem sido a interpretação mais corrente do sentido da "physis". Mas a natureza pode também ser vista como o nascimento, o estado original, por oposição a toda história. Ou então como a história que se repete, ou seja, o costumeiro. Uma variante é opor natureza e cultura, por exemplo, quando esta é contestada em nome daquela ou vice-versa. Estas oposições derivam de outra, a que confronta natureza com artifício, entendido como obra do homem, ele mesmo parte da natureza. Não se concebe aqui a extensão do dom do artifício a outras espécies, pois sua intervenção cíclica e não acumulativa na natureza não a altera. A natureza seria o contrário da "ars", técnica ou arte. Seria o que se faz por si mesmo, o que não foi transformado ou mesmo tocado pelo homem. Atribui-se em geral neste caso sentido à natureza, o que pressupõe que ela não seja mero acaso, mas, ao contrário, algo ordenado, regulado por princípios ou leis. Esta conceitualização antitética está na base tanto do artificialismo quanto do naturalismo. Ela pode aplicar-se também mutatis mutandi às noções de estado de natureza e de natureza humana. De um lado, o conceito de estado de natureza, básico para os contratualistas e os chamados jusnaturalistas, deve ser entendido em contexto históricofilosófico específico, como peça da explicação do surgimento das sociedades políticas, e não se confunde com o de natureza. De outro, ele não é estranho ao conceito de natureza e está baseado nos mesmos fundamentos deste último conceito. De fato, o estado de natureza é o estado original, o nascimento, aquele que a humanidade recebeu como um dado, opondo-se à construção política e social humana. Coerente com esta definição, o estado de natureza é, ademais, pensado, às vezes, como oposto ao de civilização. Além disso, é possível conceber que o homem, parte da natureza (e, portanto, natural) tenha uma natureza, cujo conceito, da mesma forma, envolveria a idéia de uma origem e a de ausência da obra civilizadora. Assim, o homem natural e com natureza
criaria, por sua intervenção, a anti-natureza, superaria, por própria vontade, o estado de natureza e se afastaria, através de sua obra de civilização, de sua natureza. Para o artificialismo, a natureza é ilusória, porque inexiste ou é impossível determinar o estado original. Alternativamente, é puro artifício, fruto da civilização. A natureza, criação humana, poderia ser por ele sempre aperfeiçoada, como na composição da paisagem. O filósofo francês Clément Rosset, em A anti-natureza, ele mesmo assumindo esta perspectiva, crê que, na modernidade, Maquiavel e Hobbes não têm como ponto de partida para suas filosofias uma natureza. Porque inexiste uma natureza, base de uma moral passível de ser violentada, os meios preconizados por Maquiavel não poderiam ser considerados imorais. O ponto de partida de Hobbes não seria, por sua vez, uma natureza, pois o que ele assim denomina é o produto do acaso.3 Em Hobbes, além disso, o estado de natureza universal, do qual derivaria (como consequência lógica e não histórica) o bellum omnium contra omnes, é uma pura hipótese da razão. Jamais existiu nem existirá. Não existiu sequer uma vez no tempo, no início da história da humanidade, não podendo, portanto, ser considerado estado originário.4 Se aceitarmos a interpretação de Rosset, nenhum sentido de bom e de mau vincula-se ao estado de natureza em Hobbes, pois o estado de guerra, que, em princípio, caracterizaria o mal deste estado, é independente da idéia de uma agressividade natural necessária, já que, fora da instituição, os desejos do homem são sobretudo erráticos. Aquilo que chamaríamos de natureza humana é produto cultural ou social, não sendo, portanto, uma natureza, mas sim artifício. Se Maquiavel nunca fala de moral é porque ignora a natureza humana, instância necessária a toda moral. O ponto de partida de Hobbes, por sua vez, não é uma natureza humana: chama de "natureza humana" o produto da instituição social. Para ele, os homens não dispõem de natureza sequer para concluir o contrato social, pois este também é obra do acaso, como esclareceu em De cive (I, 2): "se se consideram com acuidade as causas pelas quais os 3
. Clément Rosset. A anti-natureza. p. 179-186; 202-205. 4 . Norberto Bobbio. Sociedade e estado na filosofia política moderna. p. 49-50.
homens se reúnem e se comprazem numa sociedade mútua, percebe-se logo que isto não ocorre senão por acidente, e não por uma necessária disposição da natureza." Para o naturalismo, ao contrário, a natureza é a origem de todos os seus opostos. É, portanto, a substância básica a partir da qual pode existir ou se pode pensar a história, a cultura, a civilização, a arte, o sobrenatural. Como afirmou Heidegger: "Quaisquer que sejam a força e o alcance atribuídos à palavra 'Natureza' nas diversas fases da história ocidental, cada vez esta palavra contém uma interpretação do ser em seu conjunto – mesmo ali onde aparentemente ela é apenas entendida como noção antitética. Em todas estas distinções (NaturezaSobrenatureza, Natureza-Arte, Natureza-História, Natureza-Espírito), a natureza não adquire somente significado como termo de oposição, mas é ela que é primeira, na medida em que é sempre e em primeiro lugar por oposição à natureza que as distinções são feitas; por conseguinte, o que se distingue dela recebe sua determinação a partir dela."5 Os autores que crêem na existência da natureza têm se debatido sobre se ela é intrinsecamente boa ou má, daí decorrendo uma moral e proposições sobre a relação homem-natureza. O deus Pan, espírito local da natureza na Arcádia, e no Império Romano deus da natureza, transformado em símbolo do universo porque seu nome era sinônimo de "todos", causava medo irracional nos viajantes, dele originando-se a palavra "pânico". De fato, não foram naturais as eras glaciais bem como os grandes terremotos e erupções vulcânicas que destruíram cidades inteiras? Num naturalismo negativo, a natureza pode, assim, aparecer como ameaçadora ao homem, dotada de grande capacidade de destruição, base da idéia de necessidade de controle humano sobre seus ímpetos destrutivos, da crença baconiana de que o conhecimento científico significa poder tecnológico sobre a natureza e da 5
HEIDEGGER, Martin. Ce qu'est et comment se détermine la physis. In: Questions II. p. 180.
proposta cartesiana de que o homem atinge o conhecimento e a verdade para tornar-se mestre e possuidor da natureza. Não sem uma dose de ironia, dizia Nietzsche no aforismo 225 de seu livro A gaia ciência: "'O mal sempre se assegurou do maior efeito! E a natureza é má! Sejamos portanto naturais!' Assim concluem secretamente aqueles que na humanidade visam aos grandes efeitos, os quais muito frequentemente temos contado entre os grandes homens!" O naturalismo negativo também pode aplicar-se às concepções sobre o estado de natureza e a natureza humana. Em Locke e Kant, apesar de ser o estado de natureza associado ao bem, este bem não é estável e permanente. Locke defendeu que, precedendo o estado civil, o estado de natureza é inato ao homem, nele já existindo a posse, embora ainda não a propriedade, sobre os bens da natureza. No “Segundo Tratado de Governo”, o estado de natureza comporta uma razão natural, uma justiça natural e leis naturais e está associado ao bem. No entanto, para ele, a partir da introdução da moeda e a possibilidade de acumulação, este estado pode degenerar num estado de guerra. Mesmo em Kant está presente a idéia de um estado de natureza original não corrompido, estado, contudo, provisório, que, embora podendo comportar a justiça e o contrato entre os homens, estava desprovido de qualquer garantia legal, nele não podendo o homem continuar a viver indefinidamente.6 Quanto à natureza humana, na ética judaico-cristã, embora o homem tenha sido criado à imagem e semelhança de Deus e sua natureza, anterior ao pecado, seja vista como boa, existe também paradoxalmente a percepção de que, para chegar a Deus, os homens devem superar em si mesmos os ímpetos de sua natureza primitiva. O estado de natureza humana é considerado aqui estado de perdição, o oposto do estado de graça. No início da modernidade, porém, era mais corrente vincular a natureza com o bem original. De fato, entre os autores do Renascimento é frequente a associação entre natureza e Deus, e entre a produção (artificial) do homem e o 6
. BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. p. 88; Idem. Sociedade e estado na filosofia política moderna. p. 55.
diabólico. Erasmo afirma, por exemplo, em Dulce bellum inexpertis, que, quando se afasta da natureza, o homem necessariamente realiza uma obra diabólica, sobretudo através da técnica, das tecnologias da guerra, com as quais inventa armas cada vez mais destruidoras. Mais tarde, no século XVIII, Rousseau talvez seja o expoente maior deste naturalismo positivo. Para ele, a natureza presente é apenas residual, não correspondendo mais inteiramente à natureza original, ainda não corrompida e por isso intrinsicamente boa. Rousseau, além disso, vê o estado de natureza inequivocamente de forma positiva e, de uma maneira geral, recusa o artifício. Embora alguns de seus textos sugiram que não considerou possível nem desejável a volta ao "estado de natureza", tanto no seu “Discurso sobre a origem das desigualdades” quanto no “Contrato Social” está presente a idéia de um estado de natureza que precede um estado de civilização pervertido, para cuja recuperação serve como referência, o que é ilustrado pelo mito do bom selvagem. O estado de natureza é, para Rousseau, o estado original a partir do qual a humanidade decai para entrar na "sociedade civil". Quanto à natureza humana, em Erasmo, La Boétie ou em Rousseau está presente a associação entre decadência do homem e sua desnaturação. Na modernidade, a definição da relação homemnatureza não depende, porém, somente do valor atribuído à natureza, ao estado de natureza ou à natureza humana. Ela assenta-se também e principalmente no reforço da idéia cristã do homem como centro do mundo. O homem passa a ser pensado como ser autônomo e como sujeito de uma história linear terrena, o que permitirá não apenas o surgimento de uma visão de progresso ligada à imagem de um domínio crescente sobre a natureza, mas também o aparecimento de reações críticas a esta visão, entre as quais vieram a incluirse as do ecologismo. O marco para a modernidade é o Renascimento, base tanto do subjetivismo quanto do humanismo. É com o iluminismo, contudo, que a proposta moderna, que implica a autonomia da razão humana, atinge sua maturidade. Para o filósofo político Claude Lefort, o humanismo nasce em Flo-
rença, seu significado não podendo reduzir-se a um tipo de ensino oposto à escolástica. "É a idéia de que o mundo é o único teatro da aventura humana, de que o homem nele é autor, ator e espectador de sua história; é a idéia de uma auto-inteligibilidade de princípio do discurso humano, é a emancipação desse discurso de toda autoridade que lhe fixasse de fora os critérios de legitimidade, que dão ao humanismo sua plena significação..."7 Alain Renaut considera que o humanismo é a concepção e a valorização da humanidade como capacidade de autonomia e que o homem do humanismo é aquele que não julga mais receber suas normas e suas leis nem da natureza das coisas nem de Deus, mas as funda ele mesmo a partir de sua razão e de sua vontade. O humanismo contém, assim, uma promessa de liberdade para o homem, consistindo em nele valorizar a dupla capacidade de ser consciente de si mesmo (auto-reflexão) e de fundar seu próprio destino (a liberdade como auto-fundação), incluindo-se, entre seus valores, a consciência, o controle, a vontade, a auto-fundação e a autonomia.8 Há quem, como Louis Dumont, associe a sociedade moderna ao individualismo e considere que, na ideologia moderna, o indivíduo aparece como o ser moral independente. O valor individualista, para ele, reina sem restrições nem limitações e está na base do artificialismo moderno, que remonta às expressões pós-renascentistas do cristianismo, como em Calvino, para quem a extramundanidade se concentra na vontade individual. Segundo Dumont, o holismo não é moderno. O próprio totalitarismo não apenas não poderia dissociar-se do individualismo, mas também teria expressões individualistas. Ele seria "uma doença da sociedade moderna" resultante da tentativa, numa sociedade onde o individualismo está profundamente enraizado e é predominante, sobretudo no campo da cultura e das criações pessoais, de o subordinar ao primado da sociedade como totalidade. Os traços individualistas (ou modernos) do nazismo, por exemplo, estariam evidenciados pela doutrina a que estava "real7 8
LEFORT, Claude. La naissance de l'idéologie et l'humanisme. In: Les formes de l'histoire. p. 265. RENAUT, Alain. L'ère de l'individu. p. 14, 16 e 53.
mente ligado" o pensamento de Adolf Hitler, a da luta de todos contra todos, um darwinismo social em que os sujeitos reais são os indivíduos biológicos.9 No entanto, um humanismo que reduzisse sua proposta à completa independência humana e que implicasse a idéia de controle total do homem sobre sua história e sobre a natureza, assim como um progressismo disto resultante, seria, na concepção de Alain Renaut e Luc Ferry, em La pensée 68, "metafísico" e "ingênuo". Talvez se deva dizer que ele não é necessário, embora tenha sido predominante a partir do século XIX, quando gerou, entre outras, reações românticas e ecológicas. O ecologismo, em parte, desenvolve-se como uma crítica naturalista de uma visão moderna, humanista e artificialista que culminou, sobretudo no século XIX, no individualismo à outrance e na redução da natureza a recursos para a exploração ávida e predatória por parte do homem. Fundase principalmente numa crítica a uma concepção de progresso derivada de uma história essencial e tornada natural. A própria "história" que se estabelece a partir do século XVIII é herdeira da história natural e, segundo Foucault, para que esta existisse, foi necessário, primeiro, que a história se tornasse natural, ou seja, que deixassem de existir histórias e passasse a existir "a" história essencial (Les mots et les choses, Capítulo V, "Classer"). Essa história essencial e naturalizada veio a ser a expressão moderna da natureza, base de toda evolução e da crença de que a história humana segue um curso linear progressivo resultante de um conjunto de ações humanas individuais e egoístas. Ou seja, a história transforma-se em outro nome para a natureza, na medida em que é uma e passa a desempenhar o papel, que antes era da natureza, de servir como referencial a partir do qual o mundo e as ações humanas ganham significado. Esse humanismo moderno artificialista atribuiu ao indivíduo um papel central como explorador da natureza. Acreditando demasiado no progresso histórico, endeusando o novo e o moderno, favorecendo uma razão puramente ins9
DUMONT, Louis. O individualismo. p. 67, 75, 151, 161, 165 e 167.
trumental e a crença na capacidade transformadora ilimitada da tecnologia, levou à destruição da natureza para atingir objetivos estreitos do presente, prejudiciais ao homem numa perspectiva longa de história. Segundo a formulação do filósofo brasileiro Gerd Bornheim: "O espetáculo da construção da história parece totalmente entregue às forças transformadoras da razão instrumental. E tais forças tendem a desrespeitar, como é notório, qualquer limite, qualquer forma de autocontrole. Elas são constituídas por um complexo de fatores que se estende do individualismo capitalista à suficiência por assim dizer fatalista das inovações tecnológicas."10 A noção de progresso serviu à construção de uma ética de apropriação, exploração e controle da natureza. Robert Nisbet, em seu livro “História da idéia de progresso”, defende que esta idéia existe desde a antiguidade. Não há dúvida, contudo, que ela somente poderia ter eficácia social nas sociedades históricas, entendidas aqui não em oposição às primitivas (ou pré-históricas), mas como aquelas empenhadas na busca de sua origem e de seu fim terrenos, com as quais se inaugura um imaginário distinto do medieval. Se a tradição judaico-cristã implica uma linearidade histórica, esta é concebida como passagem do terreno ao divino. Seria difícil comprovar que nela já estivesse concebida a idéia de progresso terrreno conduzido pelo próprio homem. Como a ordem da natureza e a das sociedades humanas eram divinas, assim como todo poder, os homens somente poderiam almejar a sua plena realização após a morte, já que eram incapazes de modificar esta ordem. E mesmo na modernidade, não apenas a idéia de progresso está ausente em alguns de seus grandes autores, como Maquiavel, para quem a história era repetitiva, mas também alguns dos primeiros embriões da idéia de progresso, no século XVI, apontaram em sentido negativo, como na descrição do processo de degenerescência da humanidade que faz Erasmo em Dulce Bellum Inexpertis e na imagem do "mau encontro", com a qual La Boétie, em 10
BORNHEIN, Gerd. As origens antagônicas da ecologia. p. 10.
Da Servidão Voluntária, descreve a transição das sociedades primitivas, que vivem em estado natural, para as sociedades com Estado. Ainda no século XVIII, Rousseau, com a noção de progresso da desigualdade, se alinha a esta corrente. Sobretudo em Erasmo e La Boétie, o progresso criticado significava seu distanciamento da natureza e da natureza humana. A noção de progresso, contudo, foi se firmando pouco a pouco na modernidade num sentido positivo e veio a ser instrumental para a revolução industrial inglesa. Entre os autores artificialistas, Hobbes valorizou positivamente a mudança do passado para o presente. Entre os naturalistas, Locke, apesar de associar o estado de natureza ao bem, achava necessário, por considerá-lo inseguro, sua superação através do contrato e a criação do estado civil. Foi somente na época da revolução industrial que se estabeleceu, porém, amplamente a idéia de que o progresso leva a humanidade para um mundo melhor, através do domínio da natureza pelo homem, na linha das formulações de Bacon e Descartes. Como afirma David Pepper, num estudo sobre as raízes do ambientalismo moderno, "para o homem racional do século XVIII a beleza era a terra bem conformada e cultivada, e as áreas silvestres não exerciam atração."11 O iluminismo, por sua vez, se, de um lado, endeusou a natureza, de outro, acreditando na autonomia do homem e de sua razão, favoreceu a consolidação da idéia de progresso. Em fins do século XVIII, esta idéia conquistou definitivamente o espaço históricofilosófico, sendo Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, de Kant, talvez sua expressão mais acabada. Ali, Kant defendia que a humanidade caminha sempre para seu aperfeiçoamento, através das oposições e dos conflitos. Lançava, com isso, a base para as filosofias da história de Hegel e de Marx. A idéia de progresso veio a ser dominante no século XIX, sendo alçada quase ao nível de uma religião. A ecologia tem como uma de suas raízes a reação romântica no próprio século XIX ao iluminismo e à revolução industrial. De uma forma geral, o culto da natureza é 11
PEPPER, David. The roots of modern environmentalism. p. 80.
subproduto da sociedade industrial. Na formulação de Pepper, "...os românticos se revoltaram contra as 'excrescências' do capitalismo industrial," entre as quais "a pobreza, a imundície, o materialismo e a poluição... Estas excrescências foram simbolizadas na cidade do século XIX, e o antiurbanismo é um dos principais traços do pensamento romântico."12 Há uma subversão da simbologia medieval, que contrastava o "sagrado" da cidade, como santuário a Deus e expressão das mais altas conquistas espirituais do homem, ao "profano" dos campos virgens. A reação romântica cresceu na medida em que a agricultura foi tomando os campos e, mais tarde, o processo de industrialização transformou terras e espécies em recursos e matérias-primas. Mas se, de um lado, surgiu como reação às conquistas da Revolução Industrial, a consciência ecológica, de outro, foi alimentada pelo próprio progresso tecnológico e o desenvolvimento científico, em especial da biologia e da economia. No final do século XVIII e início do século XIX, a partir da História Natural e após o surgimento do conceito de "vida", sistematizou-se a ciência da biologia, para estudála. Como diz Foucault, "pretende-se fazer histórias da biologia no século XVIII, sem se dar conta de que a biologia não existia... a própria vida não existia. Existiam somente seres vivos, e que apareciam através de uma malha do saber constituída pela história natural."13 No bojo do processo de crescente fragmentação do saber, os estudos sobre a riqueza, que datam dos séculos XVII e XVIII, levaram também à consolidação, a partir da segunda metade do século XVIII, da ciência econômica.14 Embora grandes clássicos da economia política, como a “Riqueza das Nações”, de Adam Smith, datem da segunda metade do século XVIII, a nova ciência somente foi ministrada pela primeira vez, em Oxford, nos anos vinte do século XIX. Os conceitos de crescimento e desenvolvimento, que, como o de ecologia, são herdados da biologia, 12 13
Idem, ibidem. p. 84.
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. p. 139; ver para esta discussão, o capítulo V, "Classer", p. 137 a 176. 14 Para uma análise do surgimento da ciência econômica, ver o capítulo VI, "Échanger", de Les mots et les choses, de Michel Foucault.
foram incorporados à economia num momento em que esta alçou-se ao primeiro plano das preocupações internas e internacionais dos Estados. Na biologia, o marco para o pensamento ecológico é o enfoque holístico do zoólogo e biólogo alemão Ernst Haeckel, que empregou a palavra ecologia (em alemão "Oekologie") pela primeira vez em 1866, em seu livro “Morfologia geral dos organismos”, que relaciona a teoria da evolução das espécies por seleção natural, de Charles Darwin, à morfologia animal. A nova disciplina proposta por Haeckel, circunscrita ao universo da biologia, teria como objetivo estudar a relação das espécies com seus meios ambientes orgânico e inorgânico. Ela contribuiu para ressaltar os vínculos do homem com os demais animais, enfatizando, ademais, sua interdependência, num meio ambiente em equilíbrio, com a terra, o ar e as várias fontes de alimentação. Na economia, Malthus sublinhou a desproporção entre o crescimento geométrico da população e o crescimento aritmético da produção de alimentos. O malthusianismo enfocou o problema dos recursos escassos e não renováveis, seguindo mais Ricardo do que Adam Smith, e adotando uma concepção mais próxima da visão hobbesiana da escassez e da impossibilidade de plena satisfação das necessidades humanas, do que da perspectiva lockeana da abundância. Ainda dentro da economia, o problema dos custos ambientais, das economias ou deseconomias externas, começava, com Marshall, em seus “Princípios de economia”, a ser analisado no fim do século passado. O ecologismo está, assim, no cerne da própria proposta moderna. Ele se indaga sobre a relação entre o homem e a natureza e o papel desempenhado pelo homem no mundo; sobre o sentido da história e a idéia de progresso. Pode adotar, neste contexto, uma posição de reforço do humanismo individualista e do progresso "metafísico", baseado na crença cega na capacidade de aprimoramento crescente do homem e de seu meio, através da técnica e da ciência. Pode assumir, ao contrário, uma postura anti-humanista, descrente na capacidade que teria o homem de controlar seu destino, de aprimorar o mundo ou transformar positivamente a natureza,
tendo como fundamento a negação do progresso e do desenvolvimento tecnológico. Ou pode contribuir para a revisão de aspectos da modernidade, sem fugir de seus pressupostos básicos, através de um neo-humanismo. O ecocentrismo O ecocentrismo domina setores influentes do ecologismo contemporâneo, entre os quais o chamado "ecologismo profundo”. Apóia-se na negação do antropocentrismo. Ao afirmar que o homem é nada mais que parte da natureza e deve, diante dela, mostrar-se humilde, critica o papel central atribuído ao homem na modernidade como sujeito da história. Um argumento frequente é o de que, numa escala de bilhões de anos em que existe vida no universo, os homens só existem há um milhão de anos, havendo registrado sua passagem por vários milhares de anos. O homem seria uma experiência de ponta, conquista evolucionária no topo de um ecossistema global. É, portanto, apenas resultado de processo que absolutamente não controlou. De forma mais radical, o ecocentrismo partilha a crítica da filosofia do sujeito. Parte de uma perspectiva holista para negar ao homem o papel de sujeito de seu mundo e de sua história. Denuncia, sobretudo, a subjetividade instrumental, voltada para a dominação e a conquista da natureza. Frisa que o esforço vão do homem para controlar a natureza e sua tentativa de desobedecê-la, apenas levou à vingança desta, que, ameaçada, ameaça agora a humanidade. Superpõe, assim, à imagem de uma natureza frágil que está sendo morta pelo homem, outra imagem, a de uma natureza violenta e vingativa, capaz de destruir uma humanidade sem defesas. Afirma que a natureza existe por si própria, independentemente do homem, ao mesmo tempo em que a diviniza ou a antropomorfiza. Crê que a natureza sabe, se ordena, é boa e pode até punir quem, como o homem, se ponha no seu caminho. Gaia, por exemplo, seria um ser vivo, perfeito e belo, que, se necessário, por instinto de conservação, poderá sacrificar a espécie humana. Teria destino próprio, inde-
pendente do homem e acima dele, sendo capaz de puni-lo ou a quaisquer outras espécies se perturbarem seu curso. O ecocentrismo, de um lado, critica a concepção da relação de exterioridade entre homem e natureza e afirma que o homem é parte da natureza. Mas, de outro, implicitamente defende, de forma contraditória, esta relação de exterioridade, já que, se o homem fosse efetivamente parte integrante da natureza, não poderia ser a fonte de seu desequilíbrio; para que sua intervenção perturbe a harmonia da natureza, é necessário que homem e natureza sejam pensados numa relação de exterioridade. Ou seja, se o homem integra a natureza, é apenas como corpo estranho. O homem, no fundo, não seria parte da natureza. Fora dela, é causa de desequilíbrio de uma natureza que, sem sua intervenção, é harmoniosa. Nesta relação de exterioridade, o ecocentrismo é otimista quanto à natureza, vista como harmoniosa, e pessimista quanto ao homem, considerado esbanjador e destruidor. A separação do homem e da natureza é o que permite a predominância de um determinismo naturalista, segundo o qual os ecossistemas devem condicionar até mesmo as formas de ocupação e de organização humana. Da concepção ecocêntrica da relação homemnatureza deriva uma ética cosmológica. A natureza, que é a inocência, pureza primitiva, é a base a partir da qual é possível pensar a infração humana. A natureza é fundamento para uma moral e tem caráter normativo, legisferante, ditando regras ao homem. Os homens teriam obrigações não apenas diante de outros homens em relação à natureza, mas também obrigações diretamente para com a própria natureza. Esta concepção defende que não se pode, portanto, reduzir as obrigações concernentes às espécies a obrigações para com pessoas em relação às espécies. Julga insuficiente o argumento arrolado para a preservação das espécies com base em considerações econômicas, que, ao defender a preservação de outras espécies em nome da obrigação do homem em relação à sua própria espécie, frisa que a extinção de espécies pode afetar amplamente a economia, as potencialidades industriais e agrícolas, o desenvolvimento da química e da medicina, já que es-
tes setores econômicos dependem em grande medida dos recursos genéticos encontrados em animais e plantas. Tal argumento econômico é considerado pelo ecocentrismo ainda preso à tradição judaico-cristã de ver a relação homemnatureza como relação de exterioridade em que o homem domina as outras espécies. Para os defensores ecocêntricos de uma ética ambiental, as espécies não devem ser consideradas como recursos, pois se limitássemos as obrigações para com espécies aos interesses dos homens em "recursos", criaríamos uma ética que justificaria o desaparecimento de muitas espécies ameaçadas que não têm valor como recurso. Seria, portanto, imoral e egoísta valorar as outras espécies por interesses humanos. Seria com base num valor próprio das outras espécies, que se estabeleceria a proibição de sua destruição. A subordinação da espécie humana a supostos direitos da natureza pode chegar a justificar o cerceamento das vontades e da criatividade humana. O ecocentrismo nem sempre defende uma natureza ou um ecossistema estáticos, contra uma intervenção humana que os modificaria. Freqüentemente deixa claro que a natureza ou o ecossistema, embora em equilíbrio, são dinâmicos. Mas encara os sistemas naturais, no fundo, como fechados, porque cíclicos e com leis imutáveis. Diferencia um dinamismo natural, que independe do homem, de um dinamismo espúrio da natureza, que resulta da intervenção humana. Não reconhece, assim, aos homens, embora partes da natureza, um direito de interferir no dinamismo considerado natural da própria natureza. Esta tem sua ordem dinâmica própria, através da qual alcança seu equilíbrio, essencial para a preservação das espécies, inclusive a humana. Do homem se requer que não altere tal ordem e equilíbrio. A natureza, portanto, envolve o homem, mas ao envolvê-lo, o apaga. Tendo de omitir-se de ser parte ativa no seu dinamismo, o homem perde sua capacidade de ação própria e autônoma. A negação da autonomia humana e da visão do homem como sujeito da história, leva à restauração de um enfoque heteronomista que, substituída a idéia de natureza pela de Deus ou acrescentada à natureza seu caráter divino, era utilizado no pensamento clássico e medieval.
O enfoque heteronomista segue uma via antihumanista, pois o humanismo, como assinalei, pressupõe a autonomia humana e o homem como sujeito racional de sua história. O homem se distinguiria das demais espécies por ser capaz de usar sua razão. O ecocentrismo vê no homem a única espécie capaz de ser nociva à natureza, justamente porque faz uso de uma razão e consciência, o que permitirá o surgimento de sua arrogância, de sua vontade de domínio sobre as demais espécies e de sua ambição de exploração, progresso infinito e acumulação. Não sendo mero acaso e tendo um sentido, que deve ser imitado pelo homem, a natureza seria, ela também, racional. A razão humana contrariaria, portanto, a razão da natureza. Não se vê no efeito destruidor da natureza, mesmo quando mais devastador do que o dos homens, uma maldade a ela inerente. Quando cruel com os homens e outras espécies, a natureza apenas estaria se renovando, seguindo seu curso e seu processo, ou então respondendo às ameaças a ela lançadas pelos homens. Por outro lado, a razão e a consciência humanas são consideradas um agravante para a maldade praticada pelo homem contra a natureza. O reducionismo tecnológico Chamo de ecologismo tecnocêntrico ou de tecnocentrismo ecológico o reducionismo tecnológico que crê que as mudanças tecnológicas trariam embutidas em si esta revisão da relação homem-natureza e do sentido do progresso humano. Para ele, essas mudanças estão também na base da definição de um novo modelo político e de sociedade. Em geral, o argumento ecológico-tecnocentrista enfatiza que tipos de tecnologia são portadores de padrões de relações sociais ou defende que a revolução tecnológica em curso já engendra novas formas políticas e sociais. De fato, em primeiro lugar, sustenta que as tecnologias implicariam uma concepção da produção, da divisão do trabalho e da distribuição espacial e econômica. As tecnologias duras seriam concentradoras de poder, enquanto as tecnologias suaves seriam necessariamente mais democráticas.
Assim, o tipo de energia empregado influiria na forma de organização da produção do setor energético, com repercussões sociais e políticas amplas. Usinas nucleares, por exemplo, requereriam determinado grau de concentração do poder, enquanto a utilização da energia do sol ou dos ventos estaria necessariamente vinculada à descentralização. Em segundo lugar, existe a idéia, defendida, sobretudo, por tecnocêntricos otimistas, humanistas conservadores na esteira da sociologia norte-americana de Daniel Bell, autor de “The coming of post-industrial society”, de que, através da nova revolução tecnológica, ingressamos numa era pós-industrial, com a qual surgem sociedades pós-industriais, ou de que, com esta revolução, o modo de produção capitalista (inclusive em sua manifestação socialista) estaria sendo ultrapassado. O mundo pós-industrial estaria caracterizado pela expansão dos serviços e da informática, pelo uso menos intensivo dos recursos naturais propiciado pelo emprego de novos materiais e pelo desenvolvimento de tecnologias em campos novos (biotecnologia, por exemplo). As novas tecnologias, de uma maneira geral, seriam tecnologias "limpas", não poluentes, ao contrário das tecnologias geradas pela revolução industrial. Os tecnocêntricos otimistas são, em geral, expansionistas, ou seja, acreditam no progresso continuado como base para a solução dos problemas ambientais. Ao contrário dos ecocêntricos, não vêm a natureza como necessariamente finita. Sendo ilimitadas a engenhosidade técnica e a inventividade humanas e sendo igualmente ilimitada a capacidade da natureza de absorver as mudanças às quais está submetida, os desequilíbrios ecológicos poderiam ser corrigidos através da tecnologia adequada. Tanto um quanto outro argumento, o que defende que as tecnologias são portadoras das relações sociais e o que crê que isto já ocorre com a revolução tecnológica em curso, defendem, em geral, que, porque são portadoras das relações sociais, as tecnologias empregadas pelo capitalismo (ou por sua variante socialista) implicariam um mesmo padrão de relações sociais, que seria alterado quando se introduzissem as novas tecnologias. Ou então o pós-
industrialismo, na medida em que revê os fundamentos da revolução industrial, superaria tanto o capitalismo quanto sua variante socialista, que têm como marco aquela revolução. Desenvolvimento sustentável e o neo-humanismo ecológico A partir da década de oitenta do século passado, ganha terreno, contudo, uma concepção ecológica que parte não da ética ambiental, própria do ecocentrismo, mas de uma ética social humana. Nesta perspectiva, que defino como neo-humanista, o desenvolvimento não é negado. Opõe-se, contudo, um verdadeiro desenvolvimento àquele criticável por seus efeitos ambientais. Não se abandona a crença no progresso, mas defende-se a revisão de erros cometidos no passado para que um novo tipo de progresso, em outra direção, possa prevalecer. Esta postura não implica tampouco o abandono da razão, como sugeri que ocorresse com o ecocentrismo. Ao contrário, é com base em critérios mais racionais que o da razão instrumental própria do tecnocentrismo que se propõe uma utilização mais racional dos recursos, incorporando a dimensão do futuro nas decisões do presente. Na realidade, na visão que foi cada vez ganhando maior espaço político na década de oitenta, inicialmente circunscrita a países desenvolvidos, mas hoje já de ampla aceitação, meio ambiente e desenvolvimento econômico não seriam mais dois campos separados, mas comporiam um único universo conceitual, o do desenvolvimento sustentável. A hipótese é de que não há verdadeiro desenvolvimento se os impactos ambientais dos projetos de desenvolvimento não são totalmente levados em conta, pois o que se ganha momentaneamente com o uso de alguns recursos pode ser perdido a longo prazo, quando os efeitos negativos deste uso se fizerem sentir. A natureza apresentará a conta no futuro ao próprio desenvolvimento econômico pela destruição do meio ambiente no presente. Muitas das formulações contemporâneas que têm sido canalizadas para a discussão sobre o desenvolvimento sustentável devem, na realidade, parte de seu arsenal teórico aos estudos sobre ecodesenvolvimento, cujos principais ex-
poentes, desde a década de setenta, talvez sejam os professores Ignacy Sachs e Johann Galtung. O ecodesenvolvimento valeu-se de uma sociologia do desenvolvimento para mostrar que as desigualdades sociais implicam formas diferenciadas de exploração da natureza por parte de ricos e pobres, em razão do tipo de tecnologia de que fazem uso, sendo cada uma dessas classes sociais, a seu modo, destrutiva da natureza. Uma ecotecnologia seria viável, sobretudo em nível de pequenas comunidades auto-suficientes. Incluir a dimensão ecológica nas preocupações com o desenvolvimento corresponde a uma ampliação do campo de visão do planejamento, segundo Ignacy Sachs.15 A eventual revisão das formas de desenvolvimento parte da crítica às sociedades industriais que vem sendo formulada pelo ecologismo e que poderia resumir-se na imagem da bela e ampla auto-estrada que leva a humanidade, cada vez a uma velocidade mais alta, em direção ao abismo. Ou seja, o que se pensou ser progresso e desenvolvimento não podia se sustentar no tempo, por ser fonte de grandes problemas insuspeitados. O questionamento sobre os rumos do progresso implicou uma crítica ao desenvolvimento tal como ocorreu desde a revolução industrial. De fato, os países que têm sido bem sucedidos do ponto de vista econômico em geral, ou seja, os países desenvolvidos, causaram danos ambientais não apenas em seus territórios, mas também em suas colônias e posteriormente em vastas áreas do chamado Terceiro Mundo que lhes forneceram os recursos naturais necessários a seu processo de industrialização. Seria possível concluir que os países desenvolvidos erraram e não pagaram, alguns por já cerca de dois séculos, custos que hoje se consideram fundamentais. Estes países, bem como os países em desenvolvimento, continuam até agora esquecendo muitos desses custos, que não são contabilizados no processo de industrialização. O que se quer não é, porém, apenas que os custos atuais da poluição sejam pagos, mas também que se preservem as opções de desenvolvimento para o futuro. Na fórmu15
. Environment and planning. In: Ecosocial systems and ecopolitics, p. 33.
la consagrada pelo Relatório Brundtland e que serviu de base às formulações posteriores que culminaram na Conferência do Rio de 1992, "desenvolvimento sustentável é desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender suas próprias necessidades. Contém dois conceitos chave: o conceito de 'necessidades', em particular as necessidades essenciais dos pobres do mundo, aos quais deve ser dada prioridade absoluta; e a idéia de limitações impostas pelo estado de tecnologia e organização social sobre a capacidade para o meio ambiente de atender as necessidades do presente e do futuro."16 Nesta nova perspectiva do desenvolvimento, a dimensão ambiental está integrada ao planejamento econômico bem concebido. Trata-se, no fundo, de um conceito de desenvolvimento em que o longo prazo prevalece sobre o curto prazo. É necessário estar atento para a possibilidade de que o crescimento seja apenas ilusório, podendo envolver custos que só mais tarde serão percebidos. O ecologismo tem formulado uma crítica correta à estreiteza de determinadas análises econômicas, ampliando o horizonte do economista para que incorpore em seus cálculos custos antes não internalizados. Tem também contribuído para que as perspectivas de mais longo prazo predominem sobre aquelas voltadas para ganhos rápidos e orientadas por conceitos de produtividade e rentabilidade dominados por visão de curto prazo. Apesar das dificuldades técnicas e políticas da aplicação do conceito de desenvolvimento sustentável, ele tem, entre outros, o mérito de apontar erros cometidos no passado quanto às formas de encarar o progresso, o crescimento e o desenvolvimento econômico. É possível entender que as novas formas de desenvolvimento compatíveis com a preservação ambiental estariam, na realidade, aperfeiçoando e implementando de maneira 16
Our common future. p. 43. Trata-se do relatório preparado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, estabelecida pelas Nações Unidas, cujos trabalhos foram presididos por Gro Harlem Brundtland, então líder da oposição no Parlamento da Noruega. O referido relatório foi acolhido pela 42a Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1987.
mais rigorosa as formas já estabelecidas de desenvolvimento econômico. Pois não deveriam ser estranhas às formas de desenvolvimento adotadas desde a revolução industrial as preocupações com o futuro e com o uso dos recursos naturais. Se o que se praticou levou a uma prosperidade ilusória e até criou pobreza; se existem custos que não se conhecia mas são reais e devem ser pagos; se, enfim, o que havia era apenas impressão, por uma visão distorcida de curto prazo, de desenvolvimento, então o que se praticou não foi desenvolvimento. Celso Furtado já havia, aliás, mostrado, em “Análise do Modelo Brasileiro”, ao estudar o modelo da agricultura itinerante no Brasil e suas conseqüências, entre outras, sobre a degradação dos solos, que "crescer sem capitalizar-se, mediante a destruição de recursos não reprodutíveis, dificilmente poderia ser interpretado como uma forma de desenvolvimento."17 Ou seja, o desenvolvimento sustentável seria a verdadeira face do desenvolvimento, não sendo desenvolvimento aquele que não fosse sustentável. O ecologismo neo-humanista rejeita a visão de uma relação de exterioridade entre homem e natureza, que está na base da idéia do domínio, do controle e da exploração do homem sobre a natureza ou, por outro lado, do determinismo naturalista, que reduz o homem a uma consequência das forças da natureza, considerando o papel do homem o de mero seguidor da natureza. As correntes ecologistas neo-humanistas estão atentas à necessidade de reforçar os valores básicos da modernidade e de buscar na revisão da organização social e política, nas reformas sociais e do Estado, ou seja, no próprio homem, soluções para problemas ecológicos por ele criados. Para estas correntes, as conquistas ecológicas não ocorrerão com a substituição da idéia de direitos do homem pela de responsabilidade, obrigação e dever do homem para com a natureza, mas, ao contrário, com a expansão do campo dos direitos. Contrapondo-se a correntes ecológicas que desejam substituir os valores da modernidade por valores pré-modernos, pretendem reforçar os valores da modernidade, através da ex17
FURTADO, Celso. Análise do Modelo Brasileiro. p. 111.
pansão da democracia, da maior participação dos cidadãos nas decisões do Estado e do reforço do papel do homem na definição de seu rumo histórico, entre outras razões, para que seja capaz de corrigir ou evitar erros com conseqüências ecológicas negativas.
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OS NOVOS DISCURSOS DE SUSTENTABILIDADE18 Michael R. Redclift
A sustentabilidade desde a ECO-92 Há muito tempo que a "sustentabilidade" tem existido sempre entre aspas. O poder desse conceito parece estar mais nos discursos que o cercam do que em qualquer valor heurístico ou substantivo partilhado que ele possa ter. Faz sentido, portanto, examinar esses discursos mais detalhadamente. A tese que defendemos neste trabalho é a de que a idéia de sustentabilidade ainda é útil, mas que não deve se associar unicamente à "natureza exterior". As mudanças nas comunicações globais e na genética têm alterado tão substancialmente nossas relações com o meio ambiente, que seria pouco produtivo inscrevê-las fora da "natureza" que descrevemos como "sustentável". No século XXI, faz sentido considerar-nos nós mesmos como parte do discurso da sustentabilidade. A re-emergência da economia de mercado, das políticas neo-liberais nos anos 80 do século passado, com as quais a medida da sustentabilidade é associada, claramente marca um divisor de águas para a política ambiental. De maneira crescentemente freqüente, a "sustentabilidade" foi se separando do meio ambiente e a sustentabilidade ambiental foi confundida com questões mais amplas de eqüidade, governabilidade e justiça social, o que serviu para transferir a discussão política para diferentes lugares. A "sustentabilidade" foi usada como um sufixo para quase qualquer coisa julgada desejável. As primeiras discussões sobre a "sustentabilidade" e sobre o "desenvolvimento sustentável" se preocupavam, de modo particular e não exclusivo, com as necessidades humanas. Como o debate sobre a sustentabilidade tornou-se mais 18
Tradução de Lemuel Dourado Guerra.
forte a partir de 1980, muito dele foi influenciado pela economia neoclássica, tentando-se traduzir escolhas ambientais por preferências de mercado, seguindo a ortodoxia neoliberal. A crescente atenção dedicada à construção de sistemas de medições capazes de avaliar a situação das variáveis ambientais foi um corolário necessário dessa tendência, emergindo uma busca acentuada de maneiras práticas pelas quais a sustentabilidade pudesse ser construída, através da inserção da preocupação ecológica no âmbito das políticas e nos planejamentos estatais. A disseminação dos sistemas de medição acima mencionados ampliou o uso de que foi objeto o termo “sustentabilidade”, e abriu um novo discurso sobre desenvolvimento, com um grande apelo aos tecnocratas e aos empresários. Talvez em resposta à incorporação da economia ambiental às políticas mais centrais ou para compensar uma história de negligenciamento, muito da discussão sobre a sustentabilidade como um processo político foi feita por outras disciplinas que não a economia ambiental. Uma conseqüência disso é que a discussão sobre a sustentabilidade moveu-se, quase imperceptivelmente, para longe do tópico das necessidades humanas, que foi a preocupação original da Comissão Brundtland, para o tópico dos direitos. A ênfase tanto nos direitos humanos como nos direitos não-humanos, por sua vez, dirigiu a discussão referente à sustentabilidade para outras preocupações mais "ortodoxas" das ciências sociais: as questões do poder, da distribuição e da eqüidade. Argumentamos neste capítulo, que as ligações entre o meio ambiente, a justiça social e a governabilidade têm se tornado crescentemente vagas em alguns discursos de sustentabilidade, e que as relações estruturais entre o poder, a consciência e o meio ambiente têm sido gradualmente obscurecidas. Temos também observado que, na busca de uma visão mais inclusiva da sustentabilidade, a retórica política tem, freqüentemente, substituído a discussão sobre as questões ambientais.
A principal corrente do debate sobre sustentabilidade originou-se nos grupos ambientalistas e em outros grupos caracterizados por se distanciar das soluções neoliberais para os problemas ambientais e sociais. Todavia, argumentamos no sentido de que os discursos ambientais que reivindicam a precedência dos "direitos", e que são conduzidos em altos níveis de abstração e de agregação geográfica, estão, em seus fundamentos, apenas frouxamente ligados com escolhas culturais e decisões políticas. Ao mesmo tempo, a crítica à economia de mercado, que tem caracterizado as Organizações não-Governamentais internacionais (ONGs), apresenta problemas em si mesma. A oposição ao neoliberalismo é mais efetiva quando ela vai além da crítica às instituições, incluindo as novas redes de comunicações globais. Isso ficou evidente na oposição 'virtual', mas muito material, à Organização Mundial do Comércio (OMC), manifestada na conferência de Seattle, em 1999, e nos protestos de rua em Washington, Praga e na Holanda, em 2000. Esses discursos "oposicionistas" de inspiração ambientalista representam a comunicabilidade de diferentes códigos, mas freqüentemente dependem da mesma terminologia formal que cerca a sustentabilidade. Eles marcam práticas de comunicação que carregam em si mesmas significados simbólicos e políticos – referências a um "poder democrático", à "autonomização", à "justiça natural" – vistos pelos seus defensores como uma alternativa à falência da democracia representativa (ESTEVA, 1999). As referências acima citadas, centrais nos novos discursos de sustentabilidade, têm uma ligação pouco consistente com os desdobramentos da política ambiental. Todavia, esses novos discursos ambientais refletem as mudanças da globalização, na genética e nas comunicações, desde a Eco-92, e demonstram, vivamente, a importância das novas desigualdades espaciais. Nesse sentido elas podem ser definidas como discursos da "pós-sustentabilidade". Há outras fontes de inquietação no terreno as "sustentabilidade": a chave para entender os novos discursos elaborados sobre esta temática está em seus significados simbóli-
cos, mas também nos avanços tecnológicos e, por conseguinte, nas comunicações. O principal exemplo, que discutimos mais tarde neste trabalho, é o da Internet. Outro exemplo é o da recente revolução observada tanto na genética humana quanto na genética em geral. Ao mesmo tempo em que as comunicações globais estão sendo revolucionadas, mudanças radicais têm ocorrido na "natureza". As fronteiras entre espécies têm sido subvertidas, e a "nova biologia", junto com a revolução na tecnologia da informação, está alterando a definição tradicional de "indivíduo", e de sua participação nas sociedades civis. O desafio formal representado pela Conferência da Terra (Rio-92), não passou de acordo envolvendo o sistema de governo global, a respeito de novos princípios de sustentabilidade que pressupunha um meio ambiente global, e um conjunto de instituições que o exploravam e administravam. Porém, durante a última década o sistema global alargou-se e se reconstituiu. Instituições tais como a Organização do Comércio Mundial, o Projeto Genoma Humano e a WEB, foram a ele integradas, sendo tão globais quanto a Organização das Nações Unidas. Nesse novo sistema global de territorialidade, a propriedade do meio ambiental não é mais necessária, mas apenas uma marca condicional. Não é mais apenas um território comum que mantém as pessoas juntas, no qual reivindicações de direitos universais são feitas para todos. As persistentes reivindicações de que os direitos "naturais" sejam protegidos, e de uma melhor governabilidade do meio ambiente precisam ser localizadas em um novo contexto, no qual tanto as escalas da justiça têm se alargado, quanto a "sustentabilidade" demonstra ser uma propriedade de discursos diferentes e opostos. Neste trabalho argumentamos que, antes de podermos explicar completamente muitas das questões que cercam a sustentabilidade, devemos desvendar alguns dos discursos que têm modificado o seu sentido. Inicialmente, vejamos os relacionados com a "globalização".
Discursos da Globalização De acordo com Castells (2000), a globalização está ligada a um novo paradigma tecnológico, cujas raízes estariam na microeletrônica, nas novas tecnologia de informação e de comunicação e na engenharia genética (CASTELLS, 2000). Os dois elementos-chave desse paradigma são a "comunicação interativa... e a criação e a manipulação de organismos vivos, incluindo partes do corpo humano" (CASTELLS, 2000, p. 10). Essas mudanças estão destinadas a penetrar "... todos os domínios do nosso sistema eco-social..." através do desenvolvimento de "... códigos instrumentais e correntes culturais...” embutidos na articulação global, os quais constituem o que Castells chama de sociedade de redes. A "nova economia" é, de acordo com esse autor, informacional, globalizadaa e em rede. As transformações às quais Castells se refere colocam o meio ambiente no centro da globalização, já que, de um lado, a natureza material é "manipulada" e "modificada", e, por outro lado, a "natureza" simbólica é interativa comunicada, local e universalmente comunicada. O estabelecimento dos regimes ambientais, desde a Conferência da Terra, em 1992, provê exemplos de ambos os processos citados. A Declaração do Rio/92 – Agenda 21 – refletiu uma crescente preocupação com as questões ambientais, qual levou ao estabelecimento de um conjunto de mecanismos institucionais internacionais, a fim de assegurar que os problemas ambientais fossem tratados de maneira mais eficiente. Por trás dessa preocupação estavam alguns pressupostos. O primeiro, era o de que os problemas ambientais internacionais notadamente a mudança climática e a perda da biodiversidade - eram "... anomalias das relações existentes entre política e ciência e da capacidade destas lidarem com problemas..." (BECKER, JAHN & STEIS, 1999, p. 284, itálico de Redclift). O segundo pressuposto que orientou a Conferência da Terra, de 1992, foi o de que o Norte e o Sul têm um interesse
comum de assegurar que o desenvolvimento econômico futuro não seja prejudicial ao meio ambiente. Num determinado nível essa abordagem normativa foi muito atraente: ela marcou a superação de divisões antigas, especialmente pós-1945, e é um reconhecimento da vulnerabilidade do planeta. Essa abordagem do "consenso liberal" ainda representa o discurso dominante em torno de conceitos chaves tais como "desenvolvimento sustentável", "segurança humana" e "mudança ambiental global". De acordo com Law & Barnet (2000, p. 55), a globalização "constrói o presente como um momento, que é parte de uma transformação histórica fundamental e tem se tornado a grande narrativa que justifica o fim de qualquer outra referente à mudança social". A globalização, portanto, toma sobre si o manto da modernidade, referindo-se o mesmo simultaneamente tanto à viagem quanto ao destino por ela desencadeados. Na perspectiva do novo século, os discursos políticos desse tipo são suportes ideológicos essenciais para uma ação articulada por governos nacionais e organizações internacionais (BAUMAN, 1998). Eles traduzem idéias tais como a de "sustentabilidade" para o terreno discursivo, providenciando um esquema que normalmente não se encontra na diplomacia internacional. Eles também sugerem oportunidade para diferentes atores e grupos se mobilizarem em torno de políticas e, no processo, lhes darem legitimidade. Os diferentes atores são também capazes de elaborar e articular esses discursos, criando maneiras de refiná-los ou de modificá-los. Essas narrativas discursivas são, de um lado, a matéria-prima da atual política ambiental internacional, e, por outro lado, são negociadas e trocadas em distintos níveis espaciais. Para citar um exemplo comum: dentro da conservação internacional do meio ambiente, a palavra natureza é usada em uma grande variedade de maneiras, para expressar os interesses sociais e econômicos ambientais. Os conservacionistas a usam significando um "objeto", tal como um habitat, um campo, uma floresta, um pântano ou corais. Grupos am-
bientalistas, todavia, também têm adotado a palavra "natureza", para expressar identidades locais; seu próprio meio ambiente (natural) legítimo. Finalmente, "natureza" é usada em discursos políticos para expressar um julgamento profissional sobre o tipo ou valor de um recurso - "capital natural crítico", "nichos de biodiversidade", "cadeia de recursos", "bacias naturais" e outros dessa natureza. Cada uma dessas definições de natureza provê significados diferenciados para diferentes grupos de pessoas e reflete seus diferentes interesses. De modo semelhante, no caso do gerenciamento de florestas tropicais, podemos identificar discursos e alianças muito contrastantes, através dos quais a natureza é caracterizada e os objetivos de conservação são expressos. Proteger a "natureza" torna-se sinônimo de proteger o meio ambiente, os sistemas ecológicos sob riscos, bem como as "populações indígenas e locais" que habitam esses ambientes. Também não é totalmente claro em que esses interesses se sobrepõem ou divergem. Há outra faceta dos novos discursos em torno da natureza, à qual pouca atenção tem sido dada. Sob a globalização, os discursos narrativos freqüentemente obscurecem os processos sociais espacializados, que removem e redirecionam recursos biológicos de um lugar para outro. As florestas tropicais se tornam, literalmente, um recurso global, para ser explorado por vários agentes nos interesses da "ciência", bem como nos do mercado. Antes da mercantilização dos benefícios da biodiversidade, eles precisam ser primeiro privatizados, e sua propriedade claramente estabelecida. Este é o importante, e altamente contestado, domínio dos direitos da propriedade intelectual, o qual, de acordo com McAfee é construído sobre areias movediças: Ao contrário da premissa do paradigma econômico global, não pode haver uma medida internacional para comparar e trocar valores reais da natureza entre diferentes grupos de diferentes culturas, e com amplos e diferentes graus de poder econômico e político (McAFEE, 1999, p. 133).
As mudanças sócio-econômico-políticas atualmente em curso acarretam claras conseqüências em termos de relações de poder em nível mundial. Os processos através dos quais a globalização ocorre, e os acordos ambientais são firmados, envolvem sistemas de informação e de capital altamente desiguais, aos quais grupos de pessoas e governos, têm um acesso altamente desigual. Vogler mostra como alguns membros da comunidade internacional denunciam o poder desproporcional: Na maioria... dos regimes... há uma clara evidência da maneira pela qual as normas e regras emanadas das práticas e legislações dos Estados Unidos são traduzidas para o nível internacional (VOGLER, 2000. p. 209). É um paradoxo da globalização o fato de que as deliberações que acompanham as decisões de exploração de material biogenético, por exemplo, são raramente de caráter público, no sentido em que eram as decisões políticas no passado. Um desconforto básico com essas novas realidades tem, por sua vez, estimulado novas formas de protestos sociais e novas práticas de legitimação.
Regimes Ambientais Internacionais Dentro da tradição realista das relações internacionais, podemos distinguir outras práticas discursivas. Depois de 1992, novos regimes ambientais internacionais foram estabelecidos para ajudar a implementar os princípios do desenvolvimento sustentável (op. cit.). Esses regimes são processos legais, institucionais e políticos, funcionando como garantia para a natureza ubíqua dos discursos de alianças. Atualmente existem centenas de regimes ambientais, procurando regular, ou controlar, virtualmente todas as facetas do ambiente natural, a fim de favorecer os objetivos e interesses de diferentes coalizões de grupos sociais. Todavia, a efetividade dos novos regimes ambientais depende, criticamente, da maneira pela qual eles são percebidos por uma grande variedade de grupos interessados. Vogler argumenta, nesse sentido:
...Observando o processo de expansão dos regimes comuns, uma hipótese apareceria para prover a melhor explicação para a incidência de instituições eficientes e bem desenvolvidas. Há uma clara relação entre a vulnerabilidade mútua, a interdependência e a efetividade dos regimes (op. cit., p. 208). Para ajudar na aceitação e legitimação dos regimes ambientais, um conjunto de medidas são tomadas para prover tanto incentivos como obstáculos para a implantação dos regimes. Essas medidas incluem o perdão de dívidas externas, a transferência de tecnologia e "trocas" internacionais tais como incentivos fiscais ou o reflorestamento. Tais medidas constroem uma armadura de "leis suaves", adotadas para compensar "distorções" globais e a desigualdade entre nações, e dentro delas. Como sugerido antes, as medidas mencionadas são uma conclusão lógica da visão de que as desigualdades globais são "distorções", aberrações do sistema global, e não conseqüências deste. A existência de "regimes" ambientais também serve para obscurecer algumas marcas-chave da nova política ambiental global. Por trás da fachada dos acordos ambientais, estão as questões fundamentais da justiça e da eqüidade, que os regimes em si mesmos não abordam. O que constitui um nível "justo" de emissão de carbono? Deveriam os cortes nos níveis de emissão serem iguais, em todos os lugares do planeta? Deveriam eles estarem ligados à variável do desenvolvimento econômico? Há uma falha ainda maior nos regimes ambientais internacionais que surgiram durante a última década. Argumenta-se que a "lei suave" instituída através deles contribui para uma pedagogia social, engajando todos no processo. Todavia, através deles arrisca-se enfraquecer as obrigações internacionais existentes, particularmente aquelas do mundo industrializado. Quanto mais a "consulta" resulta na não aceitação, menos as sanções legalmente instituídas são aplicadas. A ilusão da negociação e a legitimação do expediente da aceita-
ção asseguram que a distribuição de poder existente no sistema global não seja nem confrontada nem desafiada. A Segurança Humana e o Meio Ambiente Ao lado dos discursos da globalização e dos regimes ambientais internacionais, o interesse pela "segurança humana" tem ampliado a abrangência do discurso do desenvolvimento sustentável, provendo o suporte ético necessário às políticas ambientais globais. Muitas dos símbolos desse discurso são exemplificadas pelo então Vice-Presidente dos EUA, Al Gore, defendendo o “Plano Marshall Global": ...a tarefa de restaurar o equilíbrio natural do sistema ecológica da Terra... pode ser vista como uma nova missão do interesse na 'justiça social', na democracia e na liberdade de mercado da América... (GORE, 1992, p. 270). Como vemos, nessa fala o meio ambiente se transforma no meio para atingir outros objetivos, de natureza social e política (democracia liberal) e sua proteção alude a propriedades universais (que ele chama de "equilíbrio natural"), ao invés de mencionar valores políticos que lhe subjazem. Há seis pontos principais no "Plano Marshall" de Gore: a estabilização da população mundial; o desenvolvimento de tecnologias apropriadas; as técnicas da avaliação ecológica; o melhoramento de esquemas regulatórios; a reeducação da população global sobre as necessidades ambientais e o estabelecimento de modelos de desenvolvimento sustentável. Os críticos da abordagem de Gore argumentam que: ... produzir discursos ecológicos, articular planos de desenvolvimento sustentável, e propagar definições literárias de meio ambiente para os indivíduos contemporâneos, simplesmente adiciona novos reforços ao padrão muito específico de que a formação do estado constitui-se... numa matriz moderna da individualização (LUKE, 1999, p.149). Todavia, o significado político dos discursos da globalização não se confina no nível individual. O meio ambien-
te, visto como um recurso estratégico, pode ser gerenciado em grande medida como foi o status de "não-aliado" durante a Guerra Fria. Para aumentar a segurança humana, organizações supranacionais podem ser vistas como operando a favor do "interesse global", já que a estabilidade ambiental é percebida tanto como um problema "compartilhado" pelo mundo desenvolvido como também pelo mundo "menos" desenvolvido. O discurso da segurança do planeta, ou da segurança humana, é um dos mais qualificados suportes para intervenções apresentadas como necessárias para reduzir vulnerabilidades ambientais, na medida em que, nele, a natureza política dessas intervenções é obnubilada. Um princípio do novo "ambientalismo global" é, então, o papel atribuído ao estados e a instituições supranacionais. O sistema ecológico e o "meio ambiente" deixam o domínio moral, sob essa perspectiva, e se transformam em coisas que o estado, ou os supra-estados, devem administrar, observando um distanciamento, do que se conhecia como o princípio da soberania nacional, defendido pelos teóricos da tradição realista das relações internacionais. Ao mesmo tempo, o novo paradigma advoga uma divisão da responsabilidade pelo meio ambiente, como vimos acima. As ideologias da "parceria" enfatizam os benefícios de um melhor gerenciamento tanto para "populações em risco", como para os ecossistemas. Finalmente, embora o discurso da segurança ambiental parta, aparentemente, da lógica do estado nacional, defendida pela escola realista, ele é construído, de uma nova maneira, a partir do consenso liberal do pósguerra, proporcionando um tipo de neo-keynesianismo para o meio ambiente, baseado no planejamento e na intervenção internacional. Termos tais como "uso racional", "gestão ambiental", e "direitos soberanos de propriedade", fazem os princípios da ecologia ressoarem apropriadamente para públicos específicos, particularmente aqueles da América do Norte, mas são defendidos como aplicáveis para todo o mundo.
Antes de examinar algumas das maneiras pelas quais a materialidade e a consciência estão mudando os discursos e políticas globais, nos dedicaremos a analisar em que medida o peso do "meio ambiente", e, em particular, o "gerenciamento da natureza", é afetado quando relacionado com outros fatores.
O Gerenciamento da Natureza e a Justiça Ambiental Uma das propostas afirmadas nos acordos internacionais pós-RIO/92 é a de que a "avaliação científica" levaria à constituição de um melhor perfil de áreas e espécies protegidas. A Agenda 21 registra que: ... fortalecendo a base científica do gerenciamento sustentável... melhorado o conhecimento científico... estaria se constituindo uma capacitação e uma capacidade “científicas” (AGENDA 21, 1992). Isso, por sua vez, tem levado a crescentes esforços para proteger o meio ambiente através de acordos firmados no nível internacional. Um exemplo disso é a Declaração Universal das Responsabilidades Humanas, preparada pela 53a Assembléia Geral das Nações Unidas, em conjunção com a comemoração dos 50 anos do aniversário da Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Dois dos 19 princípios da Declaração Universal das Responsabilidades Humanas, referem-se particularmente ao meio ambiente: Artigo 7: Todos dos povos têm a responsabilidade de proteger o ar, a água e o solo da Terra para o bem das gerações presentes e futuras... e Artigo 9: ...todos os povos devem promover o desenvolvimento sustentável em todo o mundo, para assegurar dignidade, liberdade, segurança e justiça para todos... Westing (1999) argumenta que a Declaração Universal das Responsabilidades Humanas das Nações Unidas deveria ser uma convenção obrigatória em muito menos que os
18 anos levados pela Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948-1966), e que o Tratado Mundial pela Natureza (1982) deveria ser transformado numa ...convenção obrigatória, com garantias explícitas para os direitos apropriados da natureza per se (op. cit., p. 157). Na verdade, ambas as questões - a base científica do discurso da "sustentabilidade' e o uso desse discurso a favor dos "direitos naturais" - requerem uma maior atenção. Malentendidos no que é central nessa área têm espalhado uma significativa confusão.
A Base Científica para o Manejo do Meio Ambiente A crença numa ciência "global", implícita na Agenda 21, é altamente contestada, não apenas por muitos cientistas. O que tem sido proposto para dar conta dos problemas globais é uma combinação de tradições científicas variadas e descontínuas, cujas raízes se encontram em diferentes corpos teórico-disciplinares. Por exemplo, a química ambiental é usada para pesquisar a poluição, o conhecimento de botânica para identificar espécies em perigo de extinção... Essas tradições habitualmente insistem que elas estão esculpindo a natureza conjuntamente, embora obedecendo a fronteiras que já existem no mundo natural. Muitas das diferentes disciplinas não têm nada a dizer sobre essas questões-chave, corretamente identificadas na Agenda 21 como ... ligações... entre o sistema ambiental humano e o natural..., não sendo nem prescritivas nem preditivas. A idéia de "sustentabilidade" é evocada em discursos políticos que aludem ao método objetivo científico, sem as complicações do julgamento humano. Na prática, isto é rotineiramente usado como uma maneira de guiar as ações humanas. A parte central da tradição científica, que tem impulsionado para frente às fronteiras heurísticas do conhecimento, tem imposto limites, categorias e taxonomias à natureza, usados para fazer julgamentos que refletem as preocupações humanas e interesses políticos.
O manejo da natureza e dos recursos naturais, então, é ligado mais às questões das necessidades e valores humanos do que a uma compreensão científica abstrata. Às vezes é afirmado, usualmente por estrangeiros “desinteressados”, que a “comunidade” ou “grupo” deveria ser a unidade de manejo nas áreas protegidas, porque esses grupos se adequam às funções ecológicas. Por exemplo, os caboclos amazônicos são interpretados como um ingrediente essencial para reconciliar a extração e manejo florestais, porque esses grupos são habitantes naturais da região Amazônica. Todavia, como uma recente abordagem de Browder (1995) afirma a respeito do desmatamento na América Latina, os paradigmas globais são usados para analisar os problemas ambientais locais, como também as preocupações especificamente globais. O desmatamento é "compreendido" em termos das teorias genéricas do desenvolvimento e do meio ambiente, quer sejam as neoclássicas, as neomalthuseanas ou as derivadas da economia política. O autor conclui que ...é útil que as variações do 'local' sejam pensadas sob a ótica dos padrões globais (op. cit., p. 135). Os discursos globais sobre o meio ambiente e sobre a sustentabilidade são, desse modo, usados para obscurecer as evidências e, pelo dificultamento do entendimento, provêm poucas dicas para o esclarecimento dos significados da degradação ambiental. De maneira similar, muito da retórica que acompanha a sustentabilidade falha em reconhecer que os objetivos ambientais e sociais são, freqüentemente, diferentes, e às vezes, contraditórios. Essas contradições são expressas e freqüentemente formuladas por seções dos "lobby" dos financiadores, na visão de que o sobre-consumo no Norte é responsável pela maioria dos problemas ambientais (REDCLIFT, 1996). Tal visão não considera as políticas e tecnologias que encorajam o mau uso e superprodução de hidrocarbonetos, a inabilidade para reciclar os lixo, e a recusa para contabilizar os custos ambientais externos. Por outro lado, também há um perigo real inerente em não fazer a crítica do sobre-consumo
no Norte, que é o de falhar em olhar por trás do comportamento consumista, deixando de considerar o fato de que muitas pessoas, no Sul como também no Norte, não levarão a sério o que eles vêem apenas como uma prescrição moral para se comportarem diferentemente. Culpar indivíduos pelos comportamentos que podem ser melhor compreendidos em seu contexto social é como culpar os jovens pela sua incapacidade de dizer "não às drogas", sem considerar a conjuntura em que os usos de drogas emergem.
Os "Direitos" da Natureza e o Meio Ambiente A temática dos direitos da natureza permeia a crescente literatura sobre "direitos" e o meio ambiente, como alguns comentadores têm notado (DOBSON, 1998; LOW & GLEESON, 1998; MILLER, 1998). Hoje, os "direitos da natureza" são, usualmente, traduzidos como "direitos humanos". A idéia de que a natureza nos dotou de direitos naturais e inalienáveis, dos quais os governos, em alguns casos, quer nos privar, é profundamente inspirada pela consciência política, estando já na Declaração Universal do Direitos Humanos da ONU, como temos visto, e tem uma história que remete para antes da Declaração Francesa dos Direitos, de 1789, e da Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776. O problema, porém, é que esse sentido dos "direitos", no contexto político, é derivado da lei natural, rotineiramente confundida, nos discursos ambientais, com as "leis da natureza". Essas leis – o cânone da ciência – incluem a crescentemente contestada idéia de homeostase, tanto na Biologia como na Cibernética, e as leis da termodinâmica, que expressam o princípio de que os processos físicos são irreversíveis. Mais uma vez as leis são encaradas como "naturais, tal como leis tendem a ser confundidas com as implicações políticas e sociais que se seguem a sua adoção (das leis). A sustentabilidade é um desses casos. Dobson (1998, p. 241) nota que as teorias de sustentabilidade às vezes aparecem submetidas à justiça, mas fre-
qüentemente observa-se o contrário, e a justiça fica submissa à sustentabilidade. Essa posição subordinada da justiça em relação à sustentabilidade é dissimulada pela linguagem da 'funcionalidade', e somente vem à tona quando a relação entre vencedores, comumente fundamentadas em teorias do desenvolvimento sustentável, é substituída por uma relação vencedores-perdedores. Ela também vem à luz quando são examinados casos, lugares e comunidades atualmente existentes. Dobson (op. cit., p. 242) também observa que nem a sustentabilidade nem a justiça social têm significados fixos e claros, ... o que abre caminho para que um dos termos se legitime em relação ao outro.... Se a sustentabilidade é vista como sustentação de propriedades e de pessoas, então a distribuição de recursos e de direitos entre eles é central para seus objetivos. Se, porém, a sustentabilidade é vista como proteção e conservação do meio ambiente, então a "justiça" consiste primariamente em assegurar que o ecossistema continue a desempenhar suas funções ecológicas vitais. Atualmente, não podemos saber se a justiça é uma condição necessária ou suficiente para a sustentabilidade ambiental. No que concerne aos valores, então, a discussão da sustentabilidade e da justiça social raramente aborda as complexidades que cercam a questão. Analisando nove livros sobre o meio ambiente e o desenvolvimento na América Latina, Silva (1998, p. 26) escreve que: ... esses autores ancoram a interpretação do desenvolvimento sustentável numa concepção partilhada de justiça social. Para esses autores, a consecução do desenvolvimento sustentável está inextrincavelmente ligada à superação ampla da pobreza e da notória desigualdade. Neste contexto o que se revela é um caso sério do que podemos chamar de discurso da disjunção, na medida em que se aceita a afirmação de que as pessoas de todos os lugares partilham a compreensão da justiça social, da mesma ma-
neira como partilham a de sustentabilidade. Talvez este não seja o caso. Em uma análise dos discursos sobre a floresta na África, Fairhead & Leach (2000) comparam a visão iluminada "ortodoxa" do manejo florestal com as visões dos povos do continente africano. Na visão ortodoxa a floresta é retratada como uma cobertura "original" e "natural", que vem sendo destruída progressivamente pelo povoamento da terra e ... pela modernidade, que transforma culturas anteriormente favoráveis às florestas. (op. cit., p. 43) Os autores citados contestam essa visão dominante e sugerem que ...a persistência de tais representações, mesmo a despeito da existência de contra-interpretações e de evidências dessas, sugerem que uma certa "sistematicidade está sendo exercida nos processos científico-políticos (idem). Eles atribuem a dominância da abordagem cientifíco-política a estruturas econômicas e administrativas e aos mecanismos financeiros que operam dentro do planos de desenvolvimento. O "discurso global" em torno do desmatamento é um exemplo do que se afirma como um "modelo de representação", do qual é difícil desembaraçar os argumentos ou as evidências. Em certas circunstâncias políticas esses discursos têm "efeitos materiais" facilmente difundidos, sem que seus pressupostos sejam submetidos a nenhuma análise rigorosa. É essa questão da "materialidade" e da consciência que discutimos a seguir. Dois processos podem ser identificados como transformadores da materialidade do mundo e correspondentemente de nossa consciência. Eles estão produzindo tanto ambientes materialmente diferentes, bem como maiores mudanças na maneira pela qual os ambientes são socialmente construídos e representados. O Sujeito Humano Considerado como ‘Genes’ O primeiro conjunto de mudanças está na Biologia e na Genética. Num determinado sentido, as questões de "segu-
rança" têm se transformado na direção da "natureza", forçando-nos a reconsiderar o que temos significado tanto por "sustentabilidade" quanto por "segurança". Por exemplo, a proteção da natureza é agora usada para legitimar a ação militar e, como temos visto, afirmações a respeito dos objetivos da gestão racional da natureza têm se cristalizado em "leis suaves", promulgadas por governos. A sustentabilidade não é mais primariamente uma questão de manter e aperfeiçoar os atuais recursos ambientais; trata-se agora de criar outros recursos. A publicação dos primeiros resultados do Projeto GENOMA HUMANO marca o divisor de águas no terreno do "tomado como dado" na Biologia, que dá suporte à maioria das políticas ambientais: a responsabilização individual, a cidadania e a governabilidade. A nova genética está alterando o que se conhece como vínculo social e como participação na sociedade civil. A questão que se impõe se refere a como fazer para "governar" um sistema global que não respeita território, um sistema global que é, na verdade, crescentemente extraterritorial! Em seu novo e provocativo livro, Experiencing the New Genetics, Finkler (2000, p. 199-200) escreve: O Homem contemporâneo não é mais o político de Aristóteles, o racional de Descartes ou o animal cultural dos antropólogos: ele é apenas um animal compreendendo específicas seqüências de DNA que o distingue dos outros animais por um muito suave arranjo molecular... a visão científica e biomolecular dos humanos está indo na direção de uma concepção de nosso ser como animais programados, independentes da cultura e da moralidade: a prioridade tem sido dada mais à herança genética do que à cultural... a ideologia da herança genética priva a pessoa da propriedade de agente: a visão genética é a de que os genes pré-determinam as pessoas... uma pequena elite pode ainda transmitir status, poder e riqueza para seus descendentes, mas cada vez mais, na contemporaneidade, predomina a visão de que a família e o pa-
rentesco é mais determinado pela herança de DNA do que por um senso de moralidade que se traduz em solidariedade, responsabilidade, obrigações e afeto. Essa passagem nos alerta para dois processos pelos quais a "nova Biologia" está ganhando autoridade e plausibilidade. O primeiro se refere ao fato de que a genética atingiu um estágio que permite a recombinação dos indivíduos - a partir dos componentes do corpo. Isto está mudando o que conhecemos como ser "humano", por exemplo, pela diminuição das fronteiras entre os outros animais e o homem. Conceitos que vemos como inerentemente humanos, como os de identidade e de consciência, que dão suporte à aceitação dos direitos e das responsabilidades, aparecem, pela primeira vez como infinitamente maleáveis. Os indivíduos humanos estão se tornando seres geneticamente modificáveis. O segundo processo digno de nota, também capturado da prosa de Finkler (op. cit.) é a maneira pela qual o discurso público está sendo modificado pela nova genética. A disseminação do conhecimento genético e o reconhecimento da informação genética, adquirem legitimidade e primazia no discurso político, antes reservada aos direitos e obrigações sociais, no que se refere à teoria social. Num certo sentido a Biologia se torna a teoria social. Os processos tecnológicos implicados na nova genética têm servido para redefinir as relações entre indivíduos e a sociedade, pela mudança no que entendemos como indivíduo, e potencialmente alterando sua relação com a sociedade. No lugar da sociedade civil como terreno da negociação social, da confiança e dos direitos, podemos antecipar a alquimia dos indivíduos, o que seria a protogênese - em termos biológicos - da sociedade mesma. No seu Jamais Fomos Modernos, Bruno Latour destaca os fenômenos que nunca foram nem fatos sociais, no sentido durkheimiano, nem objetos naturais, ... mas emergem na intercessão das práticas sociais e nos processo naturais como formas socialmente construídas de mediação entre a sociedade e a natureza (LATOUR, 1993, p. 11). Latour estava se referindo a fenômenos tais como a doença da "vaca louca",
ou o esquentamento global, que são híbridos, incorporando elementos materiais e socialmente construídos. No futuro, a genética humana, junto com outros processos sistêmicos, pode ser equilibrada para mudar o terreno, mesmo que posteriormente, na direção da mediação entre "natureza" e "sociedade", para o ponto onde o híbrido não será nem mesmo percebido como política pública. O processo de mediação se completará quando isto for menos reconhecível dentro do domínio público, ou do discurso público. Já vivemos numa sociedade global na qual selecionando um co-genitor pelas características genéticas é uma realidade possível, sendo mães de aluguel comumente encontradas. A comunidade de pesquisa tem inserido a clonagem genética de animais na agenda política e os políticos, cautelosos com algo que eles não tinham pensado, têm reagido hesitantemente. Já as propostas de clonar seres humanos a partir do DNA dos pais naturais têm atraído uma controvérsia internacional na Europa. "Patentear" a natureza in vitro tem provocado respostas contraditórias, já que isso parece dar às companhias transnacionais uma carta branca para invadir e remover materiais genéticos de ambientes de "outros povos". Muitas das reações são conseqüências do impasse criado pelos esforços para o "manejo" global pela Convenção da Biodiversidade. Em outros setores, a manipulação genética é defendida pelos pesquisadores médicos que investigam maneiras de corrigir as deficiências físicas, que trabalham, inclusive, sobre uma crescente pressão pública. Cartões inteligentes, contendo impressões genéticas vitais, são previstos como equivalentes biológicos das atuais carteiras de identidade. Como as criaturas imaginadas por Aldous Huxley, habitaremos em breve um admirável mundo novo, sem sequer realmente percebermos. Onde isso tudo deixa o meio ambiente e os discursos políticos que governam seu gerenciamento? Como o sujeito humano mesmo está se transformando, as noções de cidadania, de democracia e de responsabilidade também estariam se modificando? No novo mundo, a materialidade e a consciência apresentam uma crescentemente complexa relação entre
si. Como as fronteiras entre as espécies estão se desfazendo e a escolha genética vem determinando a política, o "meio ambiente" e a "sustentabilidade" seriam mesmo ainda categorias válidas?
O SUJEITO HUMANO INFORMATIZADO A segunda maior transformação na maneira pela qual o meio ambiente global é construído está associada com o desenvolvimento da tecnologia da informação e, em particular, com as mudanças que estão sendo provocadas pela Internet. Essas mudanças têm estendido a circulação da informação para o centro da natureza da materialidade, já que a "realidade virtual" começa a substituir ou a complementar a realidade material. Quando Tim Berners-Lee inventou a Internet, ele imaginou um mundo livre da regulação, no qual a informação circularia livre entre os lugares, como moedas num mercado aberto. Em certa medida isto tem dado origem ao mito que tem seu próprio poder - o de que a Internet é "anárquica", e é livre de forças controladoras. De muitas maneiras, isso é o oposto da realidade, já que as forças que controlam a Internet são as mesmas que controlam as sociedades humanas e o mercado. O tipo de regulação da Internet é diferente dos observados em outras instituições globais. Nela, o controle emergiu mais de "baixo para cima" do que de "cima para baixo". A comparação com instituições globais como as Nações Unidas, ou a Organização Mundial do Mercado, é instrutiva. O que distingue a comunicação global, via NET, é que os processos on-line começaram como processos globais, enquanto a maioria das instituições acabaram globalmente. Como um resultado disso, foi mais fácil costurar acordos para a regulação política na Internet, o que é desconhecido pela maioria dos seus usuários.
O principal responsável pelo policiamento dos padrões de Internet é o Consórcio World Wide Web (W3C). Todavia, há um conjunto de outras instituições com inserções mais limitadas. A Internet Engineering Task Force (ITEF) desenvolve padrões técnicos acordados, tais como os protocolos de comunicação. A Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN) mantém trilhas de nomes e números (os doze dígitos que identificam servidores conectados a endereços da Internet) e supervisiona o sistema do domínio de nomes, (tais como .com e .org). Todas essas empresas foram auto-criadas e são auto-governadas. Elas são “abertas” em termos de membros e amplamente baseadas no consenso no que se refere à tomada de decisões. O precursor da Internet foi a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada do Pentágono, no final da década de 60 do século passado. Essa iniciativa foi administrada de uma maneira muito informal, o que possibilitou uma informalidade e "igualdade" entre participantes. Na direção do processo estavam, efetivamente, estudantes de graduação, o que justificou a afirmação de que eles criaram ... um dos primeiros processos legítimos de tomada de decisões (The Economist, June 10, 2000). Para "pertencer" a um dos grupos planejadores das regras para a Net, era necessário apenas subscrever uma lista de e-mails. As decisões eram tomadas por consenso simples dentro dos Grupos de Trabalho. De modo semelhante, no desenvolvimento de softwares, os grupos eram formados ("Grupos-Fontes Abertos") on-line, recebendo críticas e sugestões via rede. Diferentemente das organizações off-line, as organizações on-line são formadas de indivíduos que pensam da mesma maneira, que dividem uma cultura comum (computacional) e interesses semelhantes. O que eles não partilham, como os grupos off-line, é o mesmo espaço geográfico. Defensores da "abertura" da comunicação on-line argumentam que o critério central do seu sucesso é militar contra o “segredo” e a hierarquia. Eles dizem ainda que isto dificulta a manipulação da tomada de decisões, já que todos podem ter acesso a todas as propostas. No lugar das salas “cheias de
fumaça de cigarro”, a tomada de decisões sobre as comunicações virtuais acontecem no ciberespaço público. A transparência da tomada de decisões sobre a Internet não significa que todos aqueles que a usam estão no nível de "jogar o jogo". Já há evidências de que as questões técnicas podem estar sujeitas a pressões comerciais. Por exemplo, os proprietários de marcas comerciais têm se oposto à criação de domínios comerciais de alto nível, tais como o .com. Também há evidências do prevalecimento de interesses políticos no formato da Internet - por exemplo, a União Européia deseja criar um novo domínio .eu. Finalmente, o W3C, que foi fundado em 1994, tendo agora 400 membros, cada um pagando cinqüenta mil dólares por ano para influenciar seus destinos. Nada disso muda o fato de que, com a Internet, temos um novo tipo de organização global que procura regular a si mesma, ao invés de uma empresa que existe para regular outras organizações. Ela é expressamente, e conscientemente, livre da interferência de governos nacionais. Resta saber quão longe as práticas e as realidades do mundo virtual irão influenciar aquelas do "mundo real". A Internet parece ser guiada pelo consenso, mas suas mensagens (codificadas e nãocodificadas) são sobre o mercado e o sucesso material. Em nenhum sentido isso pode ser politicamente, ou em termos de meio ambiente, completamente neutro. Os zapatistas, em Chiapas, foi um dos primeiros grupos a usar a Internet para uma comunicação global, superando o poder dos políticos e caciques locais. Alguns comentadores têm argumentado que essa possibilidade de comunicação global tem servido para enfraquecer a hegemonia do mercado global. Vejamos um exemplo: ... um novo internacionalismo está em processo de auto construção. Esse novo internacionalismo não é uma adaptação à idéia pré-concebida, a uma ideologia que serve como um fator de recomposição. Pelo contrário, a recomposição da diversidade de sujeitos
sociais parece originar a necessidade prática de diferentes movimentos em suas interações dentro do contexto da economia global e suas lutas... (DE ANGELIS, 2000, p. 10). Essa linha de argumentação foi usada mais persuasivamente em relação aos protestos por ocasião das últimas reuniões da Organização Mundial do Comércio. Enquanto a OMC debatia medidas para fazer avançar a liberalização da economia, os manifestantes articulavam protestos via Internet. Muitos desses protestos foram deliberativos, consensuais e politicamente articulados em comum mais por Organizações Não Governamentais do que por partidos políticos. Remetendo outra vez à argumentação de Esteva (2000), pensamos que esses protestos foram mais indicativos do impulso democrático do que da força da instituições democráticas, partidos, governos e organizações internacionais, com os quais eles estavam em conflito.
CONCLUSÃO Esse capítulo começou afirmando que ao se reconhecer que os discursos de "sustentabilidade" atingiram o centro da política ambiental internacional, é hora de fazer uma pausa e examinar mais detalhadamente a agenda política e intelectual que eles propõem. Desde que o termo "desenvolvimento sustentável" foi popularizado pela Comissão Brundtland, em 1987, o ambiente natural tem estado intimamente ligado com a satisfação das "necessidades" humanas. Subseqüentemente, a mudança na ênfase sobre as "necessidades" para a ênfase nos "direitos", marcou um deslocamento do poderoso paradigma keynesiano de relações econômicas internacionais, no pós-II Guerra Mundial, para o das certezas neo-liberais do final da década de 80 e dos anos 90. A imposição dos mercados econômicos sobre o meio ambiente global tem tanto resultados paradigmáticos quanto práticos. O foco nas "escolhas" de indivíduos e de grupos mais amplos, expressas nas preferências de mercado, levou
ao crescimento das disparidades entre as demandas políticas e sociais, e as alocações do mercado. A economia política internacional, na ortodoxia neo-liberal, significou o "ajustamento" econômico que precisou ser feito nos lugares onde havia poucas provisões sociais. A proteção ambiental, e os valores que as culturas "atualmente existentes" colocam em seus ambientes, foram formalmente expressos em termos de mercado e de preços. Paradoxalmente, a ênfase nos interesses dos indivíduos e grupos tem levado à concentração, principalmente das ONGs, nos "direitos", em sua oposição à globalização. Em seguida, examinamos os discursos através dos quais a sustentabilidade, e os direitos a e da natureza, são expressos. Sugerimos que a sustentabilidade, como um conceito estabelecido, tem freqüentemente disfarçado, em vestimentas mais novas, os conflitos entre agendas do passado. Com Habermas afirma em Teoria e Prática (1971), a maneira pela qual entendemos a "natureza" atualmente é determinada pelo passado. Os "novos" discursos da sustentabilidade têm se revestido de uma nova linguagem – a deliberação, a cidadania, mesmo os direitos das espécies – mas escondem, ou marginalizam as desigualdades e as distinções culturais que têm determinado a agenda ambiental internacional. As questões ambientais se transformaram num objeto de políticas, sendo elaboradas por diferentes atores políticos e coalizões de discursos. Afirmamos ainda que a invenção da necessidade de um manejo global do meio ambiente se fundamenta, em parte, no pressuposto de que ele ajudaria a corrigir as anomalias da economia e da política comercial globais. Duas questões específicas foram identificadas como evidência dos novos discursos em torno da sustentabilidade, e da tentativa de incorporar, nas preocupações ambientais, as questões maiores da justiça social, da governabilidade e da eqüidade. A primeira questão está ligada ao “mantra” da globalização. Muito da preocupação com o estabelecimento de
mecanismos de gerenciamento global do meio ambiente tem tomado como seu leitmotiv o desenvolvimento de "regimes" ambientais. Esses são convenções sociais frouxamente organizadas, incluindo a assinatura de acordos, que envolvem consentimento de gerenciamento ambiental global, de acordo com princípios "universais" previamente consensualizados. Os acordos internacionais que assumem a responsabilidade pelo "meio ambiente", porém, não podem reverter os efeitos da economia e dos processos sociais espacializados sobre os pobres, suas culturas e seus meio ambientes. Embora incapacitando individualmente os países para "administrar por si mesmos seu meio ambiente", os acordos internacionais podem ajudar a conferir maior legitimidade ao sistema, sem que fique claro se isto é mais justo ou melhor. É também questionável se os mecanismos de mercado são apropriados, na medida em que o objetivo seria atacar os efeitos distorsivos do próprio mercado. A segunda questão se refere à maneira pela qual a "ciência" vem sendo utilizada para conferir legitimidade ao nosso conhecimento do que está acontecendo com o meio ambiente. Essa tem sido uma marca central dos novos discursos da sustentabilidade, e tem dado origem a um conjunto de coalizões políticas entre partes interessadas em negociar. Muitos desses grupos, liderados pelas ONGs (sem nem sempre conseguir), têm tentado se distanciar eles mesmo dos efeitos das políticas neoliberais, promovendo visões da sustentabilidade mais inclusivas, capazes de dar mais atenção à eqüidade, justiça social e fortalecimento das comunidades. Em alguns casos essas coalizões têm, elas mesmas, invocado a ciência argumentando que o que é bom em termos ambientais é também mais justo e mais equânime. E elisão desses dois fatores - o "cientificismo" e o discurso da "justiça natural" - tem também criado confusão. Ambos podem ajudar a legitimar políticas ambientais, mas nem "ciência", nem "justiça" representam "verdades" objetivas. Finalmente, argumentamos que a natureza crescentemente discursiva da política ambiental internacional e suas tentativas para procurar, ou reivindicar legitimidade, apresen-
ta outros perigos. Ela esquece o fato de que o debate natureza/cultura está sendo materialmente re-escrito através da genética e da informática. As "escalas de justiça", com as quais as questões ambientais são normalmente preocupadas, precisam reconhecer que o indivíduo humano (como outras espécies) é cada vez mais geneticamente modificável. Os sistemas globais de informação, disponibilizados pela Internet, têm transformado os sistemas de comunicação e a ordem simbólica, anunciando uma política nova e virtual, paralela com aquela do "mundo real". É nesse sentido que os novos discursos em torno da informática e da genética podem ser vistos como discursos da "pós-sustentabilidade". Este capítulo começou com a afirmação de que a "sustentabilidade" tem, até agora, sido uma propriedade de diferentes discursos têm se enfrentado na arena dos interesses internacionais. Par nós, somente a exposição dos pressupostos e das conclusões desses discursos pode nos ajudar a clarear as escolhas e compromissos que envolvem a política ambiental e a abordagem das ciências sociais ambientais. Com as mudanças na materialidade e na consciência, começamos a entrar num mundo no qual a "sustentabilidade" significa novas realidade materiais, bem como novas posições epistemológicas. O desafio das ciências sociais é, portanto, identificar as maneiras pelas quais as mudanças materiais – no meio ambiente físico, nas tecnologias de informação e no corpo humano – requerem que refaçamos a idéia de sustentabilidade. São essas mudanças que futuras pesquisas devem focalizar.
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QUEM SUSTENTA O DESENVOLVIMENTO DE QUEM? O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A REINVENÇÃO DA NATUREZA Subhabrata Bobby Banerjee19 Nos primeiros tempos da colonização, a tarefa dos homens brancos consistiu na necessidade de “civilizar” os povos não-brancos do mundo – isto significou acima de tudo, privá-los de seus recursos e de seus direitos. Nas fases posteriores da colonização, a missão dos homens brancos consistiu na necessidade de “desenvolver” o Terceiro Mundo, e isso envolveu mais uma vez privar as comunidades locais de seus recursos e direitos. Agora estamos no limiar da terceira fase da colonização, na qual a missão do homem branco é proteger o meio ambiente – e isto também envolve a tomada do controle dos direitos e recursos... A salvação para o meio ambiente não pode ser encontrada através da velha ordem colonial, 19
Tradução de Lemuel Dourado Guerra e Claudio Ruy Postela de Vasconcelos.
baseada nas “missões” dos homens brancos. Essas duas coisas são ética, econômica e epistemologicamente incongruentes. (MIES & SHIVA, 1993)
Introdução Depois de mais de duzentos anos de industrialização no mundo ocidental e mais de 50 anos do “desenvolvimentismo” no Terceiro Mundo, os benefícios alcançados pelos formidáveis planos para o progresso e pelos processos de modernização são, no mínimo, questionáveis. A despeito do avanço fenomenal da ciência, da tecnologia, da medicina e da produção agrícola, a promessa de que o “desenvolvimento” erradicaria do mundo a pobreza permanece irrealizada em muitas partes do globo, especialmente no Terceiro Mundo. O “progresso” chegou a um alto preço: o esquentamento global, o buraco na camada de ozônio, a perda da biodiversidade, a erosão dos solos, a poluição do ar e das águas são problemas com amplos impactos sobre as populações humanas, significativamente mais prejudiciais para os pobres do campo nos países do Terceiro Mundo, e para os povos que retiram da terra seu sustento, em geral. O conceito de Desenvolvimento Sustentável (DS) emergiu recentemente num esforço para abordar os problemas ambientais causados pelo crescimento econômico. Há muitas interpretações diferentes do DS, mas seu objetivo principal é descrever um processo de crescimento econômico que não cause destruição ambiental. Exatamente o que está sendo sustentado (o crescimento econômico, o ecossistema global ou ambos) constitui-se num ponto atualmente muito debatido, embora muitos pesquisadores afirmem que a aparente reconciliação entre o crescimento econômico e o meio ambiente é simplesmente um lance de mágica que falha no que se refere ao equacionamento dos genuínos problemas ambientais (ESCOBAR, 1995; REDCLIFT, 1987).
Neste trabalho examino, criticamente, o conceito de DS. Faço uma abordagem dos pressupostos econômicos e desenvolvimentistas que informam a noção de DS e discuto as conseqüências dos mesmos. Defendo também que o DS, ao invés de representar a quebra de um paradigma teórico, é subsumido sob o paradigma economicista dominante. Ele se baseia também num sistema único de conhecimento e, a despeito de afirmar que aceita a pluralidade, há um perigo de marginalização ou de cooptação dos conhecimentos tradicionais à revelia das comunidades que dependem da terra para sua sobrevivência. Discuto as implicações deste regime de verdade sobre os discursos contemporâneos sobre a biodiversidade, a biotecnologia e os direitos à propriedade intelectual. Concluo discutindo formulações alternativas de DS e as implicações para a teoria e a prática do gerenciamento dos recursos naturais.
A invenção do Desenvolvimento criação do Subdesenvolvimento
e
a
Um ponto de partida útil talvez seja localizar os discursos atuais sobre o DS dentro do discurso mais geral a respeito do desenvolvimento, para destacar as suas continuidades e descontinuidades. Enquanto o termo “desenvolvimento” tem tido um uso comum por quase duzentos anos, a maioria dos estudiosos concorda que a noção contemporânea de desenvolvimento foi avalizada pelo presidente Harry Truman, em seu discurso de posse, em 20 de janeiro de 1949, no qual esboçou um programa global de desenvolvimento: “Precisamos embarcar num corajoso novo programa para tirar benefícios de nosso avanços científicos e do progresso industrial disponível para a melhoria e crescimento das áreas subdesenvolvidas... O velho imperialismo – a exploração para o lucro dos estrangeiros – não tem lugar em nossos planos”. Claro que isto estabeleceu o palco para o novo imperialismo – a criação do subdesenvolvimento e a emergência
de uma nova percepção do ocidente e do resto do mundo. O Terceiro Mundo nasceu naquele momento – naquele dia, mais de dois bilhões de pessoas tornaram-se subdesenvolvidas porque, como Esteva (1992, p. 7) argumenta, eles foram transportados para dentro de um espelho invertido da realidade dos outros: “um espelho que os apequenava e os enviava para o fim da linha, um espelho que definia sua identidade, que é realmente aquela de um maioria heterogênea e diversa, simplesmente em termo de uma minoria homogênea e limitada”. Muitos dos países do Terceiro Mundo ainda hoje pagam um desastroso preço por terem entrado nesse plano de desenvolvimento. Como muitos estudiosos apontam, as conseqüências têm sido particularmente severas para as populações rurais (ADAMS, 1990; ESCOBAR, 1995; ESTEVA, 1987, 1992; MIES E SHIVA, 1993; SHIVA, 1989). A estratégia de desenvolvimento no Terceiro Mundo produziu o efeito oposto: subdesenvolvimento, endividamento e exploração. Fazendeiros e camponeses no Terceiro Mundo bem como as populações indígenas de diferentes partes do mundo sofreram o impacto do desenvolvimento. Elas foram classificadas como vivendo de economias de “subsistência”, necessitando se “desenvolver” para atingir padrões de vida “aceitáveis”. Isso teve uma enorme influência econômica e sociocultural sobre os povos indígenas e sobre agricultores ao redor do mundo: por exemplo, todos os recursos foram direcionados para produzir produtos para o mercado e não mais os tradicionais. Os efeitos não desejados dessa forma de desenvolvimento realmente enfraqueceram as condições de sobrevivência e levaram ao subdesenvolvimento (SHIVA, 1989; HYND-MAN, 1987; MIES & SHIVA, 1993). Numa notável análise do discurso do desenvolvimento, Escobar (1995) demonstrou como primeiro foi criada a noção de pobreza (baseada em indicadores da modernidade capitalista, tais como a renda per capita em dólar, posse de bens materiais, extração de recursos, ciência e tecnologia, economia de mercado) para depois “modernizar” os pobres, transformando-os em “assistidos”, e a partir daí foram estabe-
lecidos novos modos de relações e de mecanismos de controle, sob o chamado das trombetas do “desenvolvimento”. O desenvolvimento se estabeleceu pela construção de problemas, pela aplicação de soluções e pela criação de “anormalidades”, tais como os “analfabetos”, os “subdesenvolvidos”, os “camponeses sem terra”, que deveriam, posteriormente ser “tratados” e reformados (ESCOBAR, 1995, p. 56). Esse foi um processo científico e tecnológico que subsumiu as diferenças culturais, construindo povos como variáveis num grande modelo de “progresso” e validando os imperativos assimilativos do desenvolvimento pelo toque das trombetas dos interesses nacionais, que foi freqüentemente o caso das novas nações do Terceiro Mundo. Colocado nesse contexto, o desenvolvimento torna-se simplesmente um novo nome para o crescimento econômico. A lógica era a de que o crescimento econômico deveria ser maximizado, o que traria o aliviamento da pobreza pela criação da riqueza, a qual poderia ser usada para resolver problemas “sociais”. Essa separação entre a economia e o social é característica do moderno pensamento econômico ocidental, já que em muitos lugares do oriente não existiu nenhuma separação clara entre essas duas esferas. Durante o final da década de 60 e início da década de 70 do século passado, estava ficando claro para os planejadores do desenvolvimento que o crescimento econômico não necessariamente significava eqüidade e que o mesmo, quando desenfreado tinha sérias e adversas conseqüências sociais. A distância entre ricos e pobres continuava a crescer: com base na renda per capita, a proporção de ricos para pobres era de 2:1, em 1800; de 20:1, em 1945 e de 40:1, em 1975. Os 20% mais ricos abocanham 82.7% da renda mundial, enquanto os 20% mais pobres do mundo ganham 1.6 % da renda global (WATERS, 1995). Em países recentemente industrializados, o crescimento econômico foi acompanhado inevitavelmente de um crescimento na disparidade em termos de renda. Os aspectos “sociais” que acompanham o desenvolvimento, tais como o crescimento das desigualdades e o desemprego, eram vistos como “obstáculos sociais” que deveriam ser superados para que o desenvolvimento prosseguisse sua marcha. Não houve o reconhe-
cimento de que os programas de desenvolvimento levaram realmente à pobreza e aos “problemas sociais” (BANERJEE, 2000). Crescentemente o reino da economia começou a definir muitos aspectos sociais e culturais de populações do Terceiro mundo. Esse regime de desenvolvimento dependeu somente do sistema de conhecimentos da modernidade ocidental, rejeitando e marginalizando formas não ocidentais de conhecimento. O desenvolvimento se tornou numa “metáfora que atribuía uma hegemonia global a uma genealogia histórica puramente ocidental, roubando de povos de diferentes culturas a oportunidade de definir as formas de sua vida social” (ESTEVA, 1992, p. 9). O que tem sido produzido no contexto sociocultural e político dos países industrializados do ocidente, foi, agora, generalizado para o restante. Em termos foucaultianos, o desenvolvimento derivou seu poder do “conhecimento subjugado ...., de todo um conjunto de conhecimentos que tem sido desqualificado como inadequado para sua tarefa ou insuficientemente elaborado; ingênuo, localizado na base da hierarquia, abaixo do nível de cognição ou de cientificidade exigidos” (FOUCAULT, 1978, p. 82). Se a história do desenvolvimento deve ser vista como uma história do imperialismo e colonialismo, é a ligação entre o poder e o conhecimento que pode ilustrar como o desenvolvimento chegou a ser visto como uma versão da realidade e plausibilizado como a única realidade normativa (SPIVAK, 1988). Para citar Harvey (1996, p. 131): “(O genial da economia política do século XVIII) foi que ela mobilizou o imaginário humano da emancipação, do progresso e da auto-realização em formas de discursos que podiam alterar a aplicação do poder político e a construção de instituições de maneira que
elas eram consistentes com a crescente prevalência das práticas materiais das trocas mercadológicas. Além disto, ela o fazia enquanto mascarava as relações de dominação e de trabalho que deveriam ser mantidas enquanto subsumiam a questão cósmica das relações com a natureza num discurso técnico, preocupado com a alocação adequada dos recursos escassos (incluindo aqueles da natureza) para o proveito do bem-estar humano.... A teoria e a prática da economia política capitalista com relação ao meio ambiente tem, assim, tornado-se hegemônica na história recente”.
O real sucesso do desenvolvimento, como Escobar (1995, p. 71) destaca, foi sua capacidade de sintetizar, organizar, gerir e direcionar populações inteiras e países num sistema unitário, resultando na “colonização e dominação das ecologias humana e natural”. Na era pós-colonial, esses mecanismo de controle são ainda mais fortes, se exercidos através de instituições internacionais tais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, ou por políticas governamentais de industrialização e modernização. O agravamento dos problemas ambientais também levou à luta pelos recursos naturais, resultando em inúmeras batalhas entre pequenos produtores, camponeses de populações indígenas, de um lado e os interesses corporativos e governamentais, do outro. A noção de DS foi concebida em meio a essas lutas, quando as ONGs, as organizações ambientalistas, vários grupos de camponeses e de índios, bem como instituições internacionais como a ONU, demandaram um re-exame conceitual e político do desenvolvimento.
DS: o conceito e suas implicações O conceito de DS emergiu na década de 80 do século XX, como uma tentativa de explorar a relação entre o desenvolvimento e o meio ambiente. Embora haja mais de 100 definições de DS (HOLBERG & SANDBROOK, 1992), a mais comumente usada é aquela de Brundtland (WCED, 1987). De acordo com a Comissão Brundtland, o DS é “um processo de mudança no qual a exploração de recursos, o direcionamento de investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional acontecem em concordância com as necessidade presentes e futuras” (WCED, 1987, p. 9). Essa “definição” abrangente está na raiz de muitas controvérsias e há um considerável desacordo entre estudiosos de diferentes disciplinas a respeito de “como” ela pode ser operacionalizada e de que maneira a sustentabilidade pode ser medida. A “definição” de Brundtland não é, a rigor, uma definição. Ela é um slogan e slogans, embora bonitos, não fazem teorias. Como muitos autores têm destacado, a definição de Brundtland não explica as noções de “necessidades e desejos humanos” (KIRKBY et al., 1995; REDCLIFT, 1987) e a preocupação com as gerações futuras é tão problemática quanto sua operacionalização. Dado o cenário de escassez de recursos, esse pressuposto se torna uma contradição, como a de que os consumidores potenciais (gerações futuras) são incapazes de acessar o mercado presente, ou como Martinez-Alier (1987, p. 17) elegantemente coloca, “os indivíduos que ainda não nasceram têm dificuldades ontológicas de fazer sua presença sentida no atual mercado de recursos não-renováveis.” Além de tentar reconciliar o crescimento econômico com a preservação do meio ambiente, a agenda de Brundtland para o DS também enfatiza a justiça social e o desenvolvimento humano dentro do quadro de referência da eqüidade social e da distribuição e utilização eqüitativas dos recursos naturais. A sustentabilidade, como Redclift (1987) destaca, significa coisas diferentes para diferentes povos. Embora as teorias de sustentabilidade enfatizem a primazia da justiça social, a posição é freqüentemente invertida, fican-
do a justiça subordinada à sustentabilidade. Como nem sustentabilidade nem justiça têm significados claros, abre-se o caminho para legitimar um dos termos em referência ao outro (DOBSON, 1998, p. 242). Os termos “sustentabilidade” e “DS” são usados intercambiadamente tanto nos discursos acadêmicos quanto nos populares e o conceito é promovido através da contraposição com a proposta antiga de manutenção de um conjunto de relações sociais pelo caminho de um conjunto particular de projetos ecológicos (HARVEY, 1996, p. 148). Assim, o debate sobre a escassez de recursos, sobre a biodiversidade, os limites demográficos e ecológicos tem sido, ultimamente, mais sobre a preservação de uma ordem social particular do que da natureza per se (HARVEY, 1996, p. 148). Isto explica a popularidade da situação de competição na retórica sobre a sustentabilidade elaborada pelos governos e corporações. Os discursos sobre sustentabilidade estão se tornando crescentemente corporativos. Por exemplo, a Dow Jones recentemente lançou o “Índice do Grupo de Sustentabilidade”, depois de uma pesquisa sobre a fortuna de 500 companhias. Uma corporação sustentável foi definida como sendo aquela que tem como objetivo um crescimento ao longo prazo capaz de integrar oportunidades de crescimento econômico, ambiental e social em suas estratégias corporativas e de negócios (Dow Jones Sustainability Group Index, 2000). É interessante notar como as noções de sustentabilidade são construídas, manipuladas e representadas tanto na imprensa leiga sobre os negócios, quanto na literatura acadêmica. Os discursos corporativos sobre a sustentabilidade produzem uma elisão que desloca o foco da sustentabilidade global planetária para a sustentabilidade das estratégias de crescimentos das corporações. O que acontecerá se os problemas sociais e do meio ambiente não resultarem em “oportunidades de crescimento” permanece obscuro, se é aceito o pressuposto de que a sustentabilidade global somente pode ser alcançada através das trocas de mercado. Essa forma pós-moderna de responsabilidade social corporativa produz um efeito de verdade que não é diferente do conceito de Milton Friedman (1962) a respeito de responsabilidade social das corporações
que envolvia a maximização da rendas dos acionistas, a despeito da retórica referente aos investidores e à cidadania empresarial (BANERJEE, 2001). Apesar do enquadramento do DS como uma “descontinuidade estratégica”, que transformaria os “atuais fundamentos econômicos”, o discurso corporativo sobre o DS, não surpreendentemente, promove a atividade empresarial na mesma linha, com exceção da produção “verde”, não sendo possível observar nenhuma mudança radical nas visões de mundo que a orientam. Como Robert Shapiro afirma, longe de ser uma questão fundamentada na emoção ou na ética, o DS envolve uma lógica fria e uma racionalidade do mundo dos negócios (MAGRETTA, 1997, p. 81). Numa análise do conteúdo de diferentes definições do DS, Gladwin et al. (1995) identificaram muitos temas, incluindo o desenvolvimento humano, a inclusividade (dos sistemas ecológico, tecnológico, político e social), a conectividade (dos objetivos sócio-políticos, econômicos e ambientais), a eqüidade (uma distribuição justa e recursos e de direitos de propriedade), a prudência (evitando a irreversibilidade e reconhecendo a capacidade da Terra), e a segurança (alcançando a segurança, a riqueza e a qualidade de vida). Entretanto, a despeito de seus amplos objetivos, o que está sendo sustentado não parece estar em discussão, porque, como Hart (1997, p. 67) destaca, o desafio é desenvolver uma economia global sustentável: uma economia que o planeta seja capaz de suportar indefinidamente. Assim, o desafio é encontrar novas tecnologias e expandir o papel do mercado na alocação dos recursos ambientais, através da adoção do pressuposto de que colocar preços no ambiente natural é o único caminho para protegê-lo, a menos que degradá-lo seja mais rentável (BEDER, 1994). Ao invés de reformar os mercados e os processos produtivos para que se adeqüem à lógica da natureza, o DS usa a lógica de mercado e da acumulação capitalista para determinar o futuro da natureza (SHIVA, 1991). A linguagem do capital é mais do que aparente nos discursos do DS. Por exemplo, Pearce et al. (1989) enfatizaram a constância do estoque de capital natural como uma condição ne-
cessária para a sustentabilidade, afirmando ainda que as mudanças no estoque de recursos naturais deveriam ser nãonegativas e o capital resultante da atividade humana (produtos e serviços como medidos tradicional mente pela economia e pela contabilidade) não deveria ser criado às expensas do capital natural (incluindo tanto os recursos renováveis quanto os não-renováveis). Assim, o gerenciamento ou a riqueza deveria ser criada sem a depredação dos recursos naturais. Exatamente como isso seria possível permanece um mistério. A maior parte da literatura sobre DS é de natureza ecomodernista (BANDY, 1996) e aborda as maneiras de operacionalizar o conceito de Brundtland. Assim, conceitos tais como os de custo de sustentabilidade, capital natural ou de capital sustentável são desenvolvidos e disseminados como evidência de uma mudança de paradigma (BEBBINGTON & GRAY, 1993). Há uma consciência limitada do fato de que as noções tradicionais de capital, renda e crescimento continuam a informar esse “novo” paradigma. Os discursos de DS também são determinados pela tradição científica dominante. Por exemplo, o artigo 35.3 da Agenda 21, elaborada na Conferência do Rio-92, declara que O conhecimento científico deveria ser aplicado para articular e dar suporte aos objetivos do DS...Este deve ser um crescente resultado das ciências para aprofundar a compreensão e facilitar a interação entre a ciência e a sociedade...(objetivando) o fortalecimento da base científica do gerenciamento sustentável... aprofundando a compreensão científica... construindo a capacidade e a capacitação científica. O relatório continua dizendo que é de importância crucial a necessidade dos cientistas dos países em desenvolvimento participarem ativamente de programas de pesquisa internacionais que tratem dos problemas globais do meio ambiente e do desenvolvimento, de forma a permitir que todos os países participem, em pé de igualdade, das negociações referentes ao ambiente global e às questões de desenvolvimento. De que maneira todos os países podem participar
em pé de igualdade permanece inexplicado, dadas as desigualdades estruturais que existem entre o Norte e o Sul. Há também a afirmação implícita de que cientistas de países em desenvolvimento representam os interesses das populações pobres do meio rural, que dependem do ambiente natural para sua sobrevivência e que valorizam e gerenciam a natureza diferentemente. Por exemplo, em seus relatórios sobre o meio ambiente, o gigante da mineração, a “Rio Tinto”, encontramos a idéia de que a ciência deveria ser a base para a compreensão e o gerenciamento do meio ambiente (Rio Tinto, 1999, p. 15). É essa precisamente a questão: de qual ciência estamos falando aqui? Certamente não da ecologia indígena, uma ciência usada por mais de 7000 anos de “gerenciamento” do meio ambiente. Essa invenção científica e econômica do meio ambiente não reconhece que os objetivos ambientais e sociais das diversas populações são freqüentemente diferentes e, às vezes, incompatíveis (RED-CLIFT, 2000). A nova linguagem do DS – a compreensão científica, a cidadania, os direitos das espécies, a eqüidade intergeracional, obscurecem as desigualdades e distinções culturais que cercam os recursos ambientais. O papel da ciência na validação do conhecimento indígena é também problemático em relação a uma ironia duplamente marcada. A agricultura “científica” leva a modernas práticas da monocultura com o uso intensivo de alta tecnologia de cultivo. Os problemas ambientais que foram criados como um resultado dessa tecnologia também necessitam soluções “científicas”. Um estudo recente descobriu que plantando diferentes variedades de arroz, tem-se colheitas maiores (YOON, 2000) e esse sucesso” da policultura foi apresentado tanto como uma descoberta da ciência moderna quanto como uma validação do conhecimento indígena a respeito da prática da agricultura há séculos. Por que as práticas científicas modernas escaparam deste teste de validação que têm sido aplicados freqüentemente na promoção que se faz das novas práticas agrícolas para a produção da “nova sustentabilidade”. A ciência ocidental está descobrindo a importância do conhecimento ecológico “tradicional” e seus motivos e as conseqüências devem ser cuidadosamente examinadas. Quem
usará e controlará esse conhecimento? Quem se beneficiará dele? Quem perderá com isso? Um passe de mágica similar está sendo usado para justificar a oposição às políticas de proteção ambiental. Um recente relatório (encomendado por um lobby da indústria de aço, nos Estados Unidos) concluiu que milhões de negros, espanhóis e outras minorias poderiam ser jogados na pobreza pelas novas e duras restrições na área de uso de energia, provocadas pelo Tratado de Kyoto (MOKHIBER & WEISSMAN, 2000). O fato de que comunidades de minorias nos Estados Unidos têm sido usadas como lugares para depósito de lixo por décadas, bem como a possibilidade de que estas se prejudiquem com o esquentamento global não entram no debate. A abordagem de Brundtland ao DS, ao objetivar o crescimento econômico, a preservação ambiental e a eqüidade, simultaneamente, pretende conciliar o inconciliável. Embora tais objetivos sejam dignos de louvor, há sérias preocupações a respeito de sua real possibilidade (KIRKBY et al., 1995). As principais propostas da agenda de Brundtland incluem a mudança da “qualidade” do crescimento, assegurando um nível populacional sustentável, conservando e fortalecendo a base dos recursos, pelo gerenciamento da tecnologia dos riscos ambientais, e pela incorporação das variáveis ambientais no processo de tomada de decisões. Há também um pressuposto subjacente de que as forças de mercado podem servir de base para a consecução do DS, emboras as intervenções políticas, os acordos internacionais, e as legislações ambientais nacionais também desempenham um papel importante. Entretanto, como Redclift (1987) destacou, a maioria das iniciativas ambientalistas tomadas por governos e organizações internacionais tentam mais minimizar as “externalidades” do crescimento econômico do que esboçar maneiras pelas quais o desenvolvimento deve acontecer. Eventos como o acordo internacional do Rio-92 e o de Kyoto têm mostrado que as considerações ambientais não ganham prioridade quando elas se chocam contra os interesses políticos, estratégicos ou nacionais. Em outras palavras, quando há um con-
fronto entre interesses econômicos e os ambientais, os primeiros são preferidos. O DS tenta reconciliar esses interesses opostos e objetiva, simultaneamente, maximizar os lucros econômicos e o bem estar ambiental. Exatamente como isto pode ser realizado e quem se beneficia ou sofre com esse processo é assunto de um considerável debate ao redor do mundo.
Quem sustenta o desenvolvimento de quem? O discurso do DS focaliza mais os efeitos da destruição ambiental sobre o crescimento econômico do que as conseqüências negativas do mesmo. O paradigma do DS não questiona as noções de progresso e de racionalidade econômica existentes, mas continua a privilegiar o consumismo industrial. Ao invés os indicadores primários do regime de desenvolvimento, o DS simplesmente simplifica o atual modelo de crescimento econômico, adicionando conceitos como os de prevenção da poluição, reciclabilidade, gerência de produtos e de gerenciamento ambiental (BANERJEE, 1998; VISVANATHAN, 1991). A lógica do capital e dos mercados nunca está em questão, e a despeito de suas boas intenções, a noção de DS elaborada por Brundtland objetiva criar e impor uma lógica semelhante a todo o globo. As definições que empregam perspectivas globais são usualmente subsumidas sob a definição monocultural de “global”, elaborada de acordo com a percepção do mundo partilhada pelos que o dominam (ESCOBAR, 1995). A redefinição do relacionamento entre o crescimento econômico e o meio ambiente, bem como a filosofia econcêntrica da “nave espacial Terra” é, simplesmente, uma tentativa de socializar os custos ambientais “globalmente” (McAFEE, 1999), o que pode produzir uma situação em que se propõe uma responsabilização igualitária pela degradação ambiental, ao mesmo tempo em que se obscurecem as significativas diferenças e desigualdades entre os países, no que se refere à utilização dos recursos naturais. A sustentabilidade das culturas locais,
especialmente das camponesas, não é considerada; pelo contrário, a sobrevivência global é problematizada em termos do DS, uma articulação discursiva que privilegia noções ocidentais de ambientalismo e de preservação. O “problema” não reconhece que o ambientalismo ocidental tem efeitos semelhantes aos provocados pelo desenvolvimento: ao invés de fortalecer as populações rurais ao redor do mundo, as políticas ambientalistas de preservação transfere o controle dos direitos e recursos para instituições nacionais e internacionais, que têm explorado essas populações por mais de 50 anos (MIES & SHIVA, 1993). Muito da literatura sobre as estratégias de DS discute maneiras de internalizar externalidades ambientais (JACOBS, 1994; KIRKBY et al., 1995; PEARCE et al., 1989). Esta internalização é aceita e justificada pela acumulação capitalista possibilitada pelo gerenciamento dos recursos e pelos objetivos de sustentação do capital e dos mercados globais, contribuindo diretamente para a ideologia dominante. De acordo com essa ideologia, a crise ambiental somente pode ser gerenciada através dos modos capitalistas de produção e pela dinâmica do mercado, elementos considerados capazes de resolver qualquer contradição entre sustentabilidade e capitalismo (ESCOBAR, 1995). A apropriação da natureza e sua transformação em uma fonte de matérias-primas tem sido sempre parte da agenda ocidental de desenvolvimento. A incorporação da natureza ao discurso da modernidade efetuou uma transição desarticulada para os sistemas modernos de produção nos quais a natureza foi objetivada e reinventada à imagem do capital como um fator de produção (O’CONNER, 1994) ou como um produto nela mesma, para ser embalada, vendida e consumida, como bem pode ser visto na crescente popularidade do “ecoturismo” entre consumidores ricos. Desposado como uma solução para as doenças ambientais que ameaçam o planeta, o ambientalismo “global” permanece firmemente fundamentado na tradição do pensamento econômico ocidental, des-historicizando e marginalizando as tradições ambientalistas de culturas não-ocidentais. Embora os problemas ambientais, como a poluição, não re-
conheçam as fronteiras nacionais ou regionais, as soluções “globais” defendidas pelos países industrializados perpetuam as relações de dependência do colonialismo. As imagens de cidades poluídas do Terceiro Mundo são disseminadas abundantemente nos meios de comunicação sem o reconhecimento da correspondente responsabilidade dos países industrializados, que consomem 80% do alumínio, papel, ferro e aço do mundo, 75% da energia mundial, 75% dos recursos globais em peixes, 70% dos CFCs – destruidores da camada de ozônio e 61% da carne consumida no mundo (RENNER, 1997). As regiões mais pobres do mundo destroem ou exportam seus recursos naturais para satisfazer as necessidades das nações mais ricas ou para pagar as dívidas decorrentes dos programas de “austeridade” impostos pelo Banco Mundial. É absurdamente irônico que os países mais pobres do mundo devam ser “austeros” em seu desenvolvimento, enquanto as nações mais ricas continuam a aproveitar padrões de vida que dependem das medidas de “austeridade” das nações pobres. Nem os perigos da destruição ambiental nem os benefícios das políticas de proteção ambiental são distribuídas igualmente: as medidas protecionistas continuam a ser ditadas pelos países industrializados freqüentemente às expensas das comunidades rurais locais. Essa lógica perversa perpassa as noções de crescimento “sustentável”. As despesas de consumo e a “confiabilidade” são os critérios primários para a sustentabilidade do sistema sócio-econômico, enquanto as políticas de bem-estar social são desmanteladas porque elas são um “ralo pernicioso do crescimento” (HARVEY, 1996). Assim, os “abundantes milhões” do Terceiro Mundo são responsáveis pela destruição da biosfera, enquanto o consumo conspícuo no Primeiro Mundo é uma condição necessária para o “crescimento sustentável”. A exploração das comunidades rurais locais em nome da proteção e conservação ambiental continua, a despeito de 50 anos de “descolonização” no Terceiro Mundo, onde os modos coloniais de conservação ainda são mantidos pelos novos Estados-nações. Por exemplo, na Índia, vastas áreas de terra usadas por comunidades camponesas são designadas como “reservas de tigres”, para o divertimento de turistas
estrangeiros e para as elites locais, enquanto populações cuja sobrevivência depende da terra são deslocadas, como aconteceu com a comunidade Chenchu, no sul da Índia. A comunidade paga pela proteção dos tigres, que eles têm garantido por milhares de anos (GUHA & MARTINEZ-ALIER, 1997). Uma solução alternativa proposta pela tribo Chenchu não foi levada a sério pelos oficiais do governo: a proposta era a de transferir todos os trigres para a capital, a cidade de Hyderabad, depois de evacuar todos os seus residentes, e então designá-la de “Reserva de Tigres”. O DS tenta conciliar esses interesses opostos e objetiva, simultaneamente, maximizar os benefícios econômicos e ambientais. Há, aí, uma contradição de termos, já que a sustentabilidade e o desenvolvimento são baseados em pressupostos muito diferentes e muitas vezes incompatíveis. Sustentar significa dar suporte por baixo, suprir com alimentação, relaciona-se com cuidar e se preocupar com algo, conceitos que estão longe de serem extraídos do desenvolvimento, que é o ato de controlar, de gerenciar e organizar, freqüentemente de forma violenta, exercido por Estados-nações, instituições internacionais e corporações empresariais, operando sob os princípios da ciência ocidental (VISVA-NATHAN, 1991). As preocupações ambientais articuladas no discurso do DS são preocupações na medida em que ameacem a sustentabilidade do sistema econômico. Esse discurso afirma que a única maneira de contemplar essas preocupações é colocando preço nos recursos ambientais. As atuais políticas ambientais estão baseadas nessa lógica e não consideram as conseqüências funestas que têm sobre a vida de milhares de pessoas que dependem da terra para sobreviver, para os quais o ambientalismo não é uma questão de qualidade de vida, mas de sobrevivência (GUHA, 1989). Esses diferentes objetivos ambientais nos países industrializados e naqueles do Terceiro Mundo, colocam uma outra contradição para o DS. As preocupações ambientais nos países industrializados se referem aos espaços do rural, valorizando a estética da natureza, mantendo limpas as praias e provendo oportunidades de adquirir bronzeados sem risco de
câncer. O ambientalismo no Terceiro Mundo, especialmente em áreas rurais, é um problema de sobrevivência, o que significa manter o controle sobre os recursos naturais e sobre a tecnologia que transforma o meio ambiente (REDCLIFT, 1987). Como a taxa de transações internacionais continua a crescer na atual economia de mercado mundial, a degradação ambiental nos países em desenvolvimento continua a crescer firmemente. Como muitos pesquisadores já mostraram, o chamado “esverdeamento” da indústria em países desenvolvidos tem sido atingido às custas do meio ambiente dos países do Terceiro Mundo, através da relocação das indústrias poluentes em países em desenvolvimento (ESCOBAR, 1995; GOLDSMITH, 1997; REDCLIFT, 1987). Críticas ao DS também afirmam que os processos de “esverdeamento” também podem contribuir para colonizar áreas da vida social do Terceiro Mundo que ainda não foram dominadas pela lógica de mercado ou do consumo, tais como as florestas, os direitos das águas e lugares sagrados (ESCOBAR, 1995; VISVANATHAN, 1991). Os pobres do meio rural dependem diretamente do meio ambiente biofísico para a sobrevivência e as noções de conservação e de proteção que são aceitas em países desenvolvidos são contestáveis em países em desenvolvimento. Enquanto a pobreza e a degradação ambiental são freqüentemente ligadas na literatura, o papel do “desenvolvimento” em diminuir o acesso das populações rurais aos recursos naturais é raramente discutido. Pelo contrário, a tendência é acusar as vítimas: agricultores e camponeses que usem na sua atividade fertilizantes e pesticidas são acusados sem que se examine o papel da indústria química ou o mercado das empresas responsáveis pelo estímulo ao uso daqueles. Camponeses que cortam e queimam são acusados de destruição das florestas, enquanto grandes madeireiras, que têm um incomparavelmente maior impacto, recebem subsídios por adotarem práticas de sustentabilidade (BANERJEE, 1998). Os incentivos “verdes” são dados a corporações e medidas políticas adotadas para avaliar e minimizar os impactos das madeireiras. Não há indicadores que possam medir o impacto da devastação sobre as comunidades locais. Mesmo a construção de uma única estrada tem múltiplos efeitos:
reduz os custos de transporte das madeireiras (às custas do Estado) enquanto aumenta o confisco de terras das comunidades locais, transformando uma comunidade até então amigável e solidária num monte de trabalhadores desqualificados (GUPTA, 1997). Este processo “sustentável” é elogiado pelas corporações e governos por criar oportunidades de emprego para as comunidades locais sem reconhecerem o enfraquecimento e a pobreza que ele origina, devido à expropriação de terra e de recursos naturais. No discurso do DS, a pobreza é identificada como um agente da destruição ambiental, legitimando assim as noções anteriores de crescimento e de desenvolvimento. Os regimes de políticas ambientais globais, a despeito da retórica de inclusão, fazem pouco para considerar as preocupações dos povos indígenas. No II Fórum Internacional Indígena sobre as Mudanças Climáticas, em Hague, em novembro, 2002, foi produzida uma lista delas. Uma das preocupações principais foi a exclusão dos povos indígenas do desenvolvimento e da implementação do Protocolo de Kyoto. O Fórum também expressou sua preocupação com o fato de que As medidas para mitigar as mudanças climáticas que estavam sendo negociadas são baseadas numa visão mundial de territórios que reduzem as florestas, as terras, os mares e os lugares sagrados à sua capacidade de absorção de carbono. Essa visão e as práticas dela resultantes violam nossos direitos e liberdades fundamentais, particularmente nosso direito de recuperar, manter, e administrar nossos territórios que são consagrados e estabelecidos como instrumentos das Nações Unidas (IIFC 2000).
A noção de capacidade de “seqüestro de carbono” permite um sistema de emissões negociáveis que creditam a alguns países o direito de não diminuir suas emissões se eles plantarem árvores. Esse sistema pode permitir resultados perversos quando um país consegue um “crédito” ambiental para não reduzir suas emissões, nivelando o crescimento de velhas florestas, replantando árvores e criando novas florestas e assim produzindo um “sugador de carbono”. Essa política é um típico exemplo do reducionismo inerente à ciência moderna, através do qual as florestas são valoradas somente pela sua “capacidade de seqüestro de carbono”. Essa visão monocultural do florestamento “científico” não reconhece que as florestas não são apenas “sugadores de carbono”, ou fontes de madeira para as comunidades locais: elas são sua fonte de alimento, de agricultura, de remédios, em resumo, de seu sustento integral. A despeito do destaque dado às questões da pobreza e da eqüidade, os discursos contemporâneos de DS não consideram ou criticam as condições estruturais que representam o aumento da invasão do capital no domínio da natureza, que permite uma subseqüente capitalização, expropriação, mercadorização e homogeneização da natureza. As relações econômicas que subjazem às estratégias contemporâneas de DS têm evoluído das violentas históricas relações capitalistas coloniais que informaram o desenvolvimento por mais de um século. Se os discursos de DS articulam noções de eqüidade, democracia e inclusão, então uma perspectiva crítica permitenos vê-los também como um produto de uma justificação para a modernização, na qual os povos marginalizados são sujeitados a uma nova dependência e um novo colonialismo (BANDY, 1996, p. 542). O atual debate sobre a biotecnologia, os direitos de propriedade intelectual e sobre a proteção do conhecimento dos povos indígenas ilustram as tendências colonizadoras do discurso do DS, como mostraremos na próxima seção.
Controle sustentável da biodiversidade: o papel da biotecnologia e dos direitos de propriedade intelectual Outra palavra recorrente que complementa o DS é a biodiversidade. Os métodos da agricultura moderna, desenvolvidos e impostos pelos governos, corporações e ensinados como a “Revolução Verde”, têm estado sob ataque por mais de 20 anos. O crescimento da produção por hectare foi atingido sem custos ambientais significativos, incluindo um maior uso de aditivos químicos e a utilização de recursos energéticos não-renováveis. A prática da monocultura, envolvendo a transformação de séculos de velhas tradições de produção rotativa para o auto-sustento em produção para o mercado, tem sérias conseqüências ecológicas, biológicas e econômicas para camponeses agricultores no Terceiro Mundo. Os métodos agrícolas modernos podem ter originado saltos das colheitas, entretanto eles também substituíram a diversidade biológica pela uniformidade, fazendo as plantações mais vulneráveis ao ataque de pestes e levando a uma maior dependência de pesticidas químicos. A ênfase nas tecnologias envolvidas na produção de pesticidas químicas também serviu para marginalizar o já existente conhecimento dos povos indígenas sobre plantas e variedade de sementes. A revolução química dependeu de recursos genéticos que foram cuidados e preservados por milhares de anos por pequenos agricultores, os quais foram obtidos gratuitamente por empresas e instituições científicas para desenvolver variedades altamente rentáveis, dependentes de fertilizantes químicos, capazes de manter seus níveis de renda e subseqüentemente eram vendidos para os agricultores como um pacote, completado com fertilizantes e pesticidas químicos. Assim, essas técnicas de produção determinaram que tipos de culturas poderiam ser cultivadas, de forma a recuperar os investimentos nas modernas técnicas agrícolas. Enquanto o valor econômico era colocado nas culturas de mercado, destinada a comercialização internacional, não havia nenhuma avaliação, econômica ou de outra natureza, sobre as perdas da biodiversidade agrícola e seus efeitos (GUHA & MARTINEZ-ALIER, 1997). Por
exemplo, havia mais de 50000 variedades de arroz sendo produzida na Índia na passagem do século XIX para o século XX. Atualmente, há menos de 50 (SHIVA, 1993). Medir os resultados por hectare é uma tarefa fácil, mas é virtualmente impossível construir indicadores que meçam a erosão genética. Mais significativo ainda é que é impossível prever as conseqüências econômicas e ecológicas de uma perda dessa monta. Entretanto, a ciência mais uma vez chega para salvar, trazendo uma nova revolução: a da biotecnologia. A característica do discurso científico que informa o DS, as soluções propostas para solucionar a perda da diversidade agrícola limitam-se a algumas ditadas pelo conhecimento científico (pós)moderno. Esse conhecimento ignora a diversidade agrícola praticada por milhões de agricultores e camponeses do Terceiro Mundo, os quais são experts nos modos “tradicionais” de agricultura e que empregam pouquíssimos inputs externos. Esse conhecimento falha ao reconhecer que a economia de mercado tem ameaçado a biodiversidade pela valorização de produção agrícola que privilegia as culturas rentáveis e desvaloriza a agricultura de subsistência, a qual tem sua importância negada no sistema econômico. Esse conhecimento falha em reconhecer o aperfeiçoamento contínuo pelo qual têm passado os modos “tradicionais” de cultivo por séculos, classificando-os de “atrasados”; os povos que os utilizam, de “ignorantes”; e apresentando seus próprios avanços na biotecnologia como uma nova revolução. Como veremos, essa nova revolução biotecnológica é simplesmente a continuação lógica da “revolução química” dos anos 50 do século passado, servindo não somente para manter estruturas cooperativistas e científicas de poder, mas também ameaçando colonizar as formas de vida e recolonizar espaços no Terceiro Mundo, região que contém dois terços das espécies vegetais do mundo. Se o sucesso do desenvolvimento baseou-se na transformação da natureza “selvagem” em recursos ambientais mais gerenciáveis, não será uma surpresa que os avanços na ciência e na tecnologia levem finalmente ao controle e apropriação da vida, através da transformação do material genéti-
co de plantas e animais em “conhecimento” e “propriedade intelectual” de empresas. O fato é que esse “conhecimento”, que existiu e tem sido usado pelas comunidades indígenas por milhões de anos é de alguma maneira considerado irrelevante: ele é subsumido como uma questão “filosófica” ou incorporado no discurso do DS como “conhecimento ecológico tradicional”, que precisa ser protegido por causa de seu valor enquanto “herança mundial”. As leis que regulamentam a proteção da propriedade intelectual são dominadas pelas noções etnocêntricas ocidentais, que têm um viés antipopulações indígenas (BLAKENEY, 1997). Sob as leis atuais, as patentes são outorgadas por invenções que devem ser “novas” e os direitos do seu criador são, então, protegidos. A originalidade é avaliada em referência ao uso tecnológico anterior. Há milhões de pessoas no mundo que não cabem nesse modelo, a exemplo dos índios portadores do conhecimento médico e os camponeses que cultivam sementes e outros aos quais é recusada a proteção à propriedade intelectual. As patentes e as leis de propriedade intelectual sobre os recursos genéticos, tais como sementes, protegem e servem aos interesses institucionais e corporativos de países desenvolvidos, enquanto violam os direitos dos camponeses e agricultores do Terceiro Mundo. As plantas medicinais, cuidadas e mantidas pelas culturas indígenas, foram apropriadas por indústrias farmacêuticas sem qualquer pagamento e depois usadas para desenvolver drogas rentáveis que foram protegidas pelas patentes e leis de comércio. O conhecimento das culturas indígenas do uso das propriedades medicinais dessas plantas é classificado de “tradicional” e não “original”, podendo, desse modo, ser adquirido sem pagamento, enquanto o “conhecimento” das empresas farmacêuticas requer proteção. O conhecimento indígena não cabe dentro do atual quadro de referências da propriedade intelectual, não tendo em si mesmo nenhum valor econômico, a menos que seja comercializado de acordo com as propostas do mercado. Somente então ele pode ser classificado como “valor” e então ser passível de proteção, o que explica a atual vivacidade com a qual as corporações químicas e biológicas têm se interessado em pesquisar a engenharia genética e a biotecnologia. Esta
última, apresentada como uma “campeã” do DS, simplesmente mantém um modo mais sofisticado de controle colonial que continua a produzir sua violência sobre as comunidades camponesas. As lutas camponesas para controlar as sementes e as plantas medicinais estão sendo travadas em muitos países e muitos movimentos sociais no México, na América Latina e na Ásia têm levantado essas questões em convenções internacionais do Programa Econômico das Nações Unidas. A Convenção Internacional sobre a Biodiversidade (CIB) foi estabelecida na Rio-92, para chamar a atenção para as implicações da conservação da biodiversidade e do seu uso. Entretanto, como Shiva (1993, p. 151) argumenta, essa Convenção foi, primeiramente, uma iniciativa do Norte para “globalizar” o controle, o gerenciamento e a apropriação da diversidade biológica... assegurando assim um livre acesso aos recursos biológicos necessários como matéria prima para a indústria da biotecnologia. A “crise” da biodiversidade emergiu por causa da industrialização desmedida e do crescimento econômico descontrolado, que resultaram na destruição do habita e na substituição da diversidade pela homogeneidade na agricultura e no florestamento (SHIVA, 1993). Essa crise é quase sempre apresentada como um fenômeno do Terceiro Mundo e a solução desenvolvida e aplicada pelo Norte é a conservação da biodiversidade do Sul. Assim, o DS segue o seu caminho como o “antigo” desenvolvimento fez – os problemas são localizados no Sul, as soluções no Norte – e continua a obnubilar a maneira pela qual a economia política do processo destrói a diversidade biológica (SHIVA, 1991). Apesar de usar as frases certas – “sustentável”, “inclusividade”, “custódia local”, a CIB é um processo imposto de cima para baixo sobre as comunidades locais, similar à maneira pela qual a “Revolução Verde” foi orquestrada. As negociações da CIB tiveram lugar depois de anos de conflito Norte-Sul a respeito dos recursos e da emergência da preocupação governamental. A posição inicial era a de que os recursos genéticos eram uma “herança comum da humanidade” (DOWNES, 1996, p. 171) e que a “informação da biodiversi-
dade não pertencia a ninguém e poderia ser trocada livremente entre os países do mundo”. Os países em desenvolvimento, justificadamente desconfiados do preço que teriam que pagar por essa “livre troca” de informação, deram suporte à visão corrente como expressa no Artigo 15 da CIB, que garantia a soberania nacional sobre os recursos genéticos, “combinados com uma obrigação de facilitar o acesso por outros países” (BUGGE & TVEDT, 2000). Essa obrigação deveria ser operacionalizada através da atribuição de permissões individuais a partes interessadas, levantando uma interessante questão: enquanto a soberania sobre os recursos genéticos está agora claramente estabelecida, não há nenhuma menção na CIB aos proprietários dos recursos, quer sejam os estados, os proprietários privados ou as comunidades indígenas, através dos direitos de propriedade comum. Os interesses conflitantes a respeito dos recursos, existentes entre os Estados-Nações, provavelmente resultaram em uma “ambigüidade construída” em muitos dos artigos da CIB, que terminam por não garantir direitos legais para nenhuma das partes em particular. A CIB é essencialmente um acordo firmado entre os interesses conflituosos do Norte versus os do Sul. Enquanto 172 países ratificaram a CIB, os Estados Unidos, como era de se esperar, recusaram-se a ratificar a convenção sob a alegação de que ela significava uma ameaça à indústria norteamericana de biotecnologia. Embora a CIB tenha sido o primeiro passo para a solução dos problemas de biodiversidade e da preservação, ela fez pouco, na realidade, pelos povos indígenas e pelas comunidades camponesas que estavam denunciando a violação dos seus direitos. Noções tecnocêntricas informaram fortemente as estratégias de conservação da biodiversidade e a CIB concentrou-se pesadamente em questões de financiamento, do acesso de corporações empresariais à diversidade genética, e à transferência de tecnologia em relação aos direitos dos povos indígenas e das comunidades camponesas. As críticas destacaram o fato de que a CIB colocou muita fé na biotecnologia e na contribuição da tecnologia para a prevenção e impedimento da perda da biodiversidade, criando uma confiança na diversidade criada pela tecnolo-
gia, vista como capaz de reavivar o respeito pela diversidade encontrado na natureza (MUNSON, 1995). O artigo 2 da CIB outorga aos Estados o direito de soberania para explorar seus próprios recursos, de acordo com suas próprias políticas ambientais e de desenvolvimento, desde que se responsabilizem de assegurar que as atividades não causam danos ao meio ambiente que se localizam na área de sua jurisdição (HALLMAN, 1995). Embora isto possa parecer uma vitória para os países do Terceiro Mundo sobre os países desenvolvidos, há sérias dúvidas se a garantia à propriedade estatal dos recursos genéticos será benéfica às populações indígenas e camponesas (GUHA & MARTINEZALIER, 1997). A imposição da economia de mercado sobre as transações que estavam fora do mercado, tais como as economias de subsistência das populações camponesas ou os recursos genético usados por elas, confere valores e preços baseados numa economia política externa, preços forçados a serem baixos pelo fato de serem comunidades pobres. Como McAfee (1999) afirma, se a distribuição de benefícios da biodiversidade deve ser determinada pelas forças de mercado, assim as elites econômicas do mundo serão beneficiadas desproporcionalmente. A compensação baseada nos mecanismos de mercado servirá simplesmente para que, futuramente, os pobres do meio rural se enfraqueçam e empobreçam mais ainda. Muitas organizações de produtores agrícolas, de grupos indígenas e ONGs estão travando essa batalha em níveis diferentes e a luta para manter a posse da terra não é somente uma luta econômica, é também uma batalha cultural para manter sua sobrevivência. Embora seus esforços tenham contribuído para construir o reconhecimento de que as populações indígenas têm usado e conservado os recursos genéticos por milhares de anos, a CIB não assegura nem sua propriedade nem o gerenciamento desses recursos. Permitir que esses direitos sejam regulamentados pelos Estados-nações também é problemático, dadas as ligações entre governos, corporações e instituições comerciais internacionais, nenhuma dessas representado os interesses dos índios ou das comunidades camponesas.
Por exemplo, muito grupos indígenas e ONGs têm colocado suas preocupações a respeito das aparente incompatibilidade entre a CIB e o Acordo sobre Aspectos Comerciais dos Direitos de Propriedade Intelectual (em inglês, TRIPSA), elaborado pelo Organização Mundial do Comércio (OMC). O artigo 8 da CIB afirma que os Estados deveriam: Sujeitos à sua legislação nacional, respeitar, preservar, e manter o conhecimento, as inovações e práticas dos índios e das comunidades locais, fortalecendo os estilos de vida tradicionais relevantes para a conservação e uso sustentável da diversidade biológica e promover sua aplicação mais ampla com a aprovação e envolvimento dos proprietários desse conhecimento, de inovações e de práticas, encorajando-os uma partilha equânime dos benefícios advindos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas. O Artigo 27.3(b) do TRIPSA estabelece que: …(Os membros podem também excluir da patenteabilidade) plantas, animais ou micro-organismos e processos biológicos essenciais para a produção de plantas e animais, além dos processos não biológicos e microbiológicos. Entretanto, os membros garantirão, para a proteção da variedade de plantas, quer sejam patentes ou um efetivo sistema ‘sui generis’, ou ainda uma combinação desses dois (OMC, 2000). Dawkins (1997, p. 27) dá uma interpretação mais clara da cláusula acima: ...isto significa que nada que pode ser geneticamente manipulado pode ser patenteado ou monopolizado como uma propriedade privada de corporações agrí-
colas ou farmacêuticas transnacionais. Enquanto a CIB apela para que se respeite, preserve e mantenha o conhecimento tradicional das comunidades indígenas, o TRIPSA legitima os direitos de propriedade privada sobre a propriedade intelectual sobre formas de vidas. Esses direitos são para indivíduos, Estados ou Corporações, não para os índios ou para as comunidades locais. Com efeito, os governos são chamados a modificar sua legislação nacional sobre os direitos de propriedade intelectual, para permitir o pantenteamento de microorganismos e de processos não biológicos e microbiológicos. O TRIPSA resultou em protestos de massa por parte de comunidades camponesas e de índios, promovidos por ONGs na Ásia, América do Sul e África, até os dias atuais (DAWKINS, 1997). Há dois problemas interrelacionados que emergem da imposição do regime de direitos à propriedade intelectual sobre o conhecimento indígena. O primeiro, o fato de que o conhecimento tradicional pertence mais à comunidade indígena do que a indivíduos isolados. O segundo, como as comunidades indígenas de todos o mundo têm descoberto, os governos nacionais estão implementando crescentemente agendas neoliberais (alguns de boa vontade, outros por imposição), que têm impactos adversos sobre suas formas de sustento, graças à restrição do acesso das comunidades aos recursos naturais. Uma equânime partilha dos benefícios comerciais através dos contratos de benefícios comuns entre grupos indígenas e corporações transnacionais são impossíveis de ocorrer, dadas as disparidades em recursos e capacidades de monitoramento ou garantia dos termos de qualquer contrato. Vejamos o exemplo do super propagandeado acordo de bioprospecção firmado entre a MERCK e o Instituto Nacional de Biodiversidade de Costa Rica (INbio), apresentado como “modelo” de acordo ocorrido sob a CIB. Sob os termos desse acordo o INBio concordou em fornecer à MERCK extratos químicos de plantas “selvagens”, em troca de uma partilha aberta de royalties de todos os resultados da comercialização de produtos deles resultantes (MOONEY,
2000). O INbio também concordou em alocar 50% de todas as royalties que ele recebesse no Fundo do Parque Nacional de Costa Rica. Embora festejado pelas corporações, governos e muitas organizações ambientais como um “acordomodelo”, os direitos das comunidades indígenas não pareceram ter sido levados em conta em nenhuma parte do processo. A biodiversidade estava sendo “preservada” pelos institutos nacionais de acordo com os interesses das corporações transnacionais a um preço de oferta (não é necessário mencionar o grande impulso em termos de relações públicas para a companhia). Como uma organização nacional como o INbio pode ser vista como interessada em proteger os interesses indígenas é duvidoso, mesmo sendo sua atividade central a geração, organização e disseminação do conhecimento sobre a biodiversidade e o uso racional do mesmo nos níveis nacionais e internacionais (MATEO, 2000, p. 46). Parece haver um curioso silêncio sobre seus papel ou impacto ao nível local, especialmente no que se refere ao reconhecimento de que as comunidades locais têm gerado, disseminado e organizado o conhecimento sobre a biodiversidade de maneiras muito “racionais”, até que o mesmo foi apropriado sem qualquer compensação. Todavia, royalties e compensações foram acertadas, apesar de não ter sido considerada a ausência de controle local do conhecimento e sua transferência para instituições nacionais e internacionais. O reconhecimento da soberania nacional da Costa Rica sobre sua diversidade biológica seria de pouca utilidade para as comunidades indígenas que têm desenvolvido e mantido a biodiversidade por milhares de anos – na verdade isto marca o enfraquecimento de seus direitos sobre sua terra e é um exemplo de como a bioprospecção é na realidade biopirataria, escondida sob a retórica da “cidadania empresarial” e do “DS”, que obscurece a realidade do desenvolvimento colonizado. Em muitos outros casos de bioprospecção na Tailândia, Malásia e África, os resultados para os povos indígenas têm sido os mesmos, com raras compensações ou “transferência de tecnologia”, como especificado na CIB. A forte pressão da OMC, das corporações transnacionais e dos países desenvolvidos para o estabelecimento de um
regime “global” de direitos à propriedade intelectual têm assegurado que pelo menos os direitos das corporações estão protegidos. Os direitos de soberania das comunidades locais, para as quais a sobrevivência cultural não pode ser separada da biodiversidade e do seu meio ambiente não são considerados pela CIB. Os impactos da biotecnologia são sentidos por essas comunidades de maneira irreversível: a biodiversidade se transforma simplesmente em matéria-prima (informações) para a biotecnologia. Entretanto, os produtos da biotecnologia se transformam em substitutos geneticamente uniformes do que foi usado da biodiversidade enquanto matéria prima. As modernas noções científicas da conservação da biodiversidade mais uma vez enquadram equivocadamente o problema: ao invés de considerar a conservação da biodiversidade como a conservação de “meios de produção” elas definem o problema como de conservação de “matéria prima” (SHIVA, 1991). Colocado o problema dessa maneira incorreta, a solução segundo qual a biotecnologia levará à conservação da biodiversidade é também incorreta: ela pode produzir um amplo leque de produtos comercializáveis mas produzirá a uniformização na vida, com efeitos destrutivos sobre as comunidades indígenas em todo o mundo. Como Shiva (1991) argumenta, os discursos globais sobre a biodiversidade falham em reconhecer que a biodiversidade está intimamente ligada com a sobrevivência dos índios e das comunidades locais nas quais agricultores produzem tanto os produtos quanto os meios de produção e não apenas “matéria prima. O plasma dos germes natural é usado pelas corporações para produzir sementes geneticamente modificadas (um produto que pode ser patenteado) e isto leva dos processos ecológicos de reprodução para os processos tecnológicos de produção que implicam tanto no problema da desapropriação dos agricultores e das tribos, quanto no problema da erosão da biodiversidade (SHIVA, 1991, p. 52). Assim, a biotecnologia, longe de ser a salvadora da biodiversidade é uma narrativa inerentemente imperialista que produz a replicação da uniformidade e coloniza espaços e lugares do Terceiro Mundo, os quais agora têm que ser “eficientes”, por causa da capitalização da natureza. A afirmativa de que a eficiência é automática e universalmente desejada, é raramente questionada
nos discursos científico e no dos economistas. Consequentemente, as noções de natureza como mercadoria para o mercado global são produzidas discursivamente como as noções de que as comunidades e estados existem para sustentar a economia e não o contrário. O regime de direitos à propriedade intelectual cria um novo significado de biodiversidade que enfatiza a comercialização dos benefícios da biodiversidade. Para que isso ocorra, a privatização e apropriação são condições necessárias (REDCLIFT, 2000), permitindo então que, mais uma vez, a biodiversidade seja considerada em termos de preferências de mercado, resultando que os pobres (porém ricos em biodiversidade) sustentem os ricos. A avaliação feita em termos de preferências mercadológicas em relação à natureza baseia-se em pressupostos equivocados, como argumenta McAfee (1999, p. 133), dizendo-se “contrário à premissa de que o paradigma econômico pode ser uma medida universal para comparar e trocar os valores reais da natureza entre diferentes grupos de pessoas, de diferentes culturas e com vários diferentes graus de poder político e econômico”. A aplicação dos direitos à propriedade intelectual à conservação da biodiversidade sofre da mesma visão reducionista da vida. A emergência da indústria das “ciências da vida” marca a convergência de um conjunto de indústrias, incluindo as agrícolas, as químicas, as farmacêuticas, as de processamento de alimentos, de cosméticos, de hardwares e de softwares, além da de energia (ENRIQUES & GOLDBERG, 2000). As forças tecnológicas e econômicas que dirigem essas mudanças também estão reinventando concepções da natureza que refletem suas relações com o meio ambiente natural (RIFKIN, 1999). Assim, a natureza nela mesma é definida como “o estoque e a transmissão dentro de um sistema” (WADDINGTON, 1977, p. 145) no qual tudo é visto como informação genética que pode ser manipulada, controlada e organizada, como um processo que é constituído e comentado como parte da evolução “natural” da humanidade mesma, evolução que é no final, o processo pelo qual a criatura modifica sua informação e adquire novas informações
(GRASSÉ, 1977, p. 23). Tudo se transforma numa série de sistemas de informações que incluem instituições, corporações e o mundo natural no qual o sucesso e o progresso são avaliados pela qualidade e rapidez do processamento de informações. De acordo com Robert Shapiro, da Monsanto CEO, a biotecnologia é, na verdade, um subconjunto da tecnologia de informações, porque ele se refere ao DNA – informação codificada (apud MAGRETTA, 1997). Esses novos conceitos de natureza, além de não assumir nenhum dos impactos ecológicos envolvidos, provê legitimidade à ordem e às elites dominantes. Como Harvey (1996, p. 147) destaca, as noções de “escassez” e a dos “limites” dos recursos naturais são também fundamentadas nos sistemas sociais nos quais os recursos naturais se transformam num “conjunto de elementos e processos culturais, técnicos e econômicos, que podem ser usados para realizar os objetivos e finalidades sociais através de práticas materiais específicas”. Por exemplo, os mecanismos de asseguramento de um “livre e justo” fluxo de informações que são desenvolvidos e propostos, tais como os referentes aos direitos à propriedade intelectual sobre organismos vivos modificados, serve para proteger determinados interesses. O controverso Acordo sobre Aspectos Comerciais de Direitos de Propriedade Intelectual (em inglês, Trade Related Aspects of Intellectual Property Agreement – TRAIPA) firmado na reunião do GATT, feita no Uruguai, foi elaborado, em grande medida, pelo Comitê sobre a Propriedade Intelectual (Intellectual Property Committee – IPC), formado por muitas firmas transnacionais, incluindo a Bristol Myers, a Merck, a Monsanto, a Du Pont e a Pfizer. O representante da Monsanto descreveu a estratégia do TRAIPA: ...(Fomos capazes de) destilar das legislações dos países mais avançados os princípios fundamentais da proteção aos direitos à propriedade intelectual... Além de vender nosso conceito “em casa”, fomos para Geneva, onde apresentamos nosso documento pa-
ra o quadro do Secretariado do GATT... O que tenho descrito para você não tem precedente no GATT: uma indústria identificar um problema fundamental para o comércio internacional, elaborar uma proposta de solução e vendê-la para nós próprios e para outros governos... as indústrias e comerciantes do mundo desempenharam simultaneamente o papel de pacientes e de médicos responsáveis pelo diagnóstico e pela prescrição dos remédios (citado em RIFKIN, 1999, p. 52). Assim, a natureza, antes vista como um bem e um recurso comun, é agora reinventada como um vasto pólo de genes, inspirando os biólogos moleculares de “hoje” e os empresários corporativos em sua empreitada de conquistar e colonizar a última fronteira, o patrimônio genético comum, que é o coração do mundo natural (RIFKIN, 1999, p. 70). Alguns defensores da idéia de que o Regime de Propriedade Intelectual ajudará a preservar a biodiversidade, têm reconhecido o “valor essencial da diversidade biológica: seus conteúdos em termos de informação” (SWANSON, 1995, p. 169). A lógica é a de que o “capital humano” não produz toda a informação importante e necessária, mas há uma “dimensão biológica básica que gera informação”. Esta dimensão é o “processo evolucionista” e a tarefa é o desenvolvimento de um sistema justo e equânime que possa apropriar os “valores da evolução”. Swanson (1995, p. 171) continua, afirmando que: ...Em uma grande medida, a extensão dos regimes de ‘propriedade intelectual’ para incluir os recurso das informações geradas simplesmente nivela o campo de ação entre aquelas sociedades que são mais avantajadas em capital humano e aquelas que são mais do-
tadas de formas de capital natural. Esta é uma abordagem muito racional do problema da biodiversidade. O problema dessa tese é a natureza da “abordagem racional” e do equacionamento do “problema da biodiversidade”. Nela a avaliação da biodiversidade é feita com base no seu valor econômico internacional potencial, sendo ignorados ou subestimados os valores inscritos na natureza pelas populações camponesas, que possuem um poder de barganha facilmente negligenciável no supermercado global (McAFEE, 1999). Longe de “nivelar o campo de atuação”, o regime de direitos à propriedade intelectual gera problemas e aplica soluções de forma que reconhece os países “pobres em dinheiro mas ricos em biodiversidade” somente se eles aceitarem a privatização de seus bens comuns, bem como de seu conhecimento. Esse argumento também combina com outras estratégias de preservação ditadas pelos países do Norte, tais como a de criação de parques “nacionais” baseados na visão de uma natureza “virgem, inexplorada e intacta”. É claro que o problema se constitui no fato de que as populações indígenas desses parques também são subsumidas na categoria da natureza e da preservação, sendo negados às mesmas, o direito à determinação de como querem direcionar seu futuro (PERERA & PUGLIESE, 1998). Há uma importante distinção entre o que Dasmann (1988) chama de “povos da biosfera” – aqueles que têm a biosfera inteira ao seu dispor – e os “povos da ecosfera” – os povos indígenas, cujo subsistência está intimamente ligada como os ecossistemas nos quais eles vivem. Como Dasmann (1988, p. 303) destaca, ... O impacto dos povos da biosfera sobre os povos do ecossistema tem sido freqüentemente destrutivo... Os povos da biosfera criaram parques nacionais. Os povos do ecossistema têm sempre vivido no equivalente a parques nacionais. Cientistas, líderes de governos e empresários freqüentemente elogiam a biotecnologia como um avanço que porá um fim à fome mundial. A dificuldade dessa tese, é claro, é a especificação equivocada do problema, segundo a qual essa fome existe por causa da desproporção entre a produção de
alimentos e o tamanho da população. A realidade é que, em 1999, o mundo produziu alimento suficiente para nutrir todas as crianças, homens e mulheres, no entanto mais de 800 milhões de pessoas passam fome. Mais eloqüente é um relatório da FAO, que estima que 78% de crianças subnutridas no mundo em desenvolvimento vivem em países com excedente de produção de alimentos (Food and Agriculture Organization, 2000). O relatório também identifica a pobreza e a falta de acesso aos alimentos e não o tamanho da população como a principal causa da fome no mundo. A solução da fome do mundo via biotecnologia não significa uma mudança de paradigma: ela é, na verdade, a continuação do modelo (pós)industrial de agricultura que provoca os problemas dos pobres e apresenta soluções avançadas (sem consulta), elaboradas por cientistas e especialistas do Norte, sem considerar as desigualdades em renda e em acesso aos recursos naturais. Essa forma “sustentável” de desenvolvimento representa o mundo da fome como uma demanda por alimentos geneticamente modificados, ao invés de apresentá-lo como o resultado das condições impostas pela economia e sociedade globais. Não há dúvida de que a biotecnologia pode triplicar ou quadruplicar a produção de alimentos nos próximos 50 anos, entretanto, provavelmente isso não significará a extinção da fome no mundo. A reinvenção da natureza através da biotecnologia também envolve o interesse das corporações em controlar essa tecnologia. As mesmas corporações químicas e farmacêuticas que mais se beneficiaram da modernização da agricultura (como também da industrialização de armas químicas), agora controlam a maior parte da indústria biotecnológica, depois de terem investido mais de nove bilhões de dólares nos últimos anos, e, através dos discursos do DS, tentam se limpar do passado de envolvimento com atividades “insustentáveis”. A corporação Monsanto, uma das manufatureiras do infame “Agente desfoliante Laranja”, está se vendendo como uma companhia das “ciências da vida”, apresentando um logotipo de um broto de planta, em torno do qual se inscrevem as palavras Alimento – Saúde - Esperança (STRONG, 1999). Essa “descontinuidade” é exemplificada na estratégia execu-
tada pela Monsanto, que consiste em “substituir as coisas pela informação”, uma referência a sua produção geneticamente trabalhada que se encontra atualmente no mercado. O Roundup, o herbicida mundialmente mais vendido, produzido pela Monsanto era um exemplo. Usando a biotecnologia, a Monsanto desenvolveu uma nova linhagem de soja que era geneticamente modificada para resistir ao Roundup e promoveu uma nova técnica de produção de soja que envolve a aplicação do herbicida em todo a plantação, capaz de destruir todas as ervas daninhas, sem prejudicar a soja (MONBIOT, 1997). Fundamentada no sucesso do Roundup, a Monsanto, junto com muitas outras corporações químicas e farmacêuticas transnacionais, embarcaram num ambicioso programa de aquisição de sementes e de companhias de biotecnologia. Essas corporações controlam atualmente mais de 70% do mercado mundial de sementes. O desenvolvimento de “sementes terminais”, geneticamente modificadas para esterilizar sementes produzidas por safras, também assegura aos produtores o direito futuro de cultivar sementes que não existem: o acordo de usar esses produtos era feito junto com a proposta de direito de inspeção das companhias sobre os campos agrícolas, sempre que elas desejassem. Protestos de ONGs e de agricultores de todo o mundo compeliram a Monsanto a retirar a introdução das sementes terminais e marcou uma vitória (pelo menos até o presente) dos pequenos produtores de todo o mundo. Enquanto isso pode ser visto como uma descontinuidade estratégica das corporações químicas, marca também a continuidade do controle colonial dos recursos naturais dos agricultores do Terceiro Mundo e das populações campesinas dos países industrializados. Isto também permite que o futuro da natureza seja tecnologicamente determinado, a despeito do fato de que a biotecnologia, com seus chamados produtos “espertos”, ataquem os sintomas, sem considerar os problemas do acesso aos recursos ou os modos de produção agrícola alternativos. O caso da New Leaf Potato, da Monsanto, é exemplar: ela é geneticamente modificada para destruir sua maior praga, a Colorado Potato Beetle. Esta solução científica foi desenvolvida e aplicada em consonância à maneira pela
qual o problema foi construído: a Colorado Beetle transformou-se num problema que precisava ser resolvido, ao invés de pensar que a causa principal da pouca resistência das batatas era a monocultura (KLOPPENBURG & BURROWS, 1996). Essa é uma forma reducionista de conhecimento: os processo biotecnológicos de síntese química de plantas naturais envolvem o isolamento de um uso particular de moléculas vegetais num complexo labirinto natural e a replicação química dessa fração. Esse sistema de conhecimento contradiz a noção central de diversidade na natureza e é perversamente apresentado como a salvação da biodiversidade. Esse mesmo sistema de conhecimento classifica as técnicas agrícolas camponesas como sendo atrasadas e insustentáveis, e, ao mesmo tempo em que grandes sofrimentos são impostos para proteger os interesses da propriedade intelectual das corporações através das patentes internacionais, a apropriação pelos agricultores nunca é discutida. Não estamos aqui negando os muitos benefícios trazidos pela ciência e tecnologia ocidentais, mas queremos contribuir para a compreensão de como sistemas e povos têm sido marginalizados nesse processo e como o controle dos recursos naturais e biológicos tem mudado das populações camponesas paras a corporações transnacionais. O patenteamento das formas de vida através dos direitos à propriedade intelectual perpetua essa violência. A apropriação do conhecimento ecológico tradicional dos povos indígenas para o avanço da ciência e da medicina ocidentais através do patenteamento e da imposição dos regimes de direitos à propriedade intelectual é simplesmente uma violação dos direitos dos índios. Os esforços da chamada bioprospecção feitos pelas corporações transnacionais deveriam ser vistos como eles são – biopirataria contra as populações camponesas do mundo. A recente batalha pelo patenteamento dos extratos da árvore Neem, conhecida e usada pelas suas propriedades medicinais por milhares de anos, é um exemplo dessa biopirataria. Afirmar os direitos à propriedade intelectual dos extratos da Neem baseia-se num sistema de exclusões múltiplas que nega o conhecimento indígena e as práticas agrícolas tradicionais. O conhecimento a respeito das
utilidades medicinais desses extratos vegetais, que podem ser usados como pesticida e como contraceptivo, existia antes e era primeiramente “de domínio público”, que é o que as leis de patenteamento procuram estabelecer. Se esse conhecimento existiu antes no ocidente, a aplicação das patentes nunca seria considerada. O fato de que esse conhecimento prévio existia nas comunidades rurais pobres permitiu que uma “entidade” não nova seja construída como nova e então patenteada sob a legislação atual dos direitos à propriedade intelectual (SHIVA, 1993). A luta está longe de terminar: as mudanças legais na União Européia recentemente permitiram que as patentes cubram as formas de vida (DOWNES, 1997). O número de requerimentos de concessão de patentes recebido nos Estado Unidos subiu de 4.000, em 1991 para 500.000, em 1996 (ENRIQUEZ & GOLDBERG, 2000). A OMC também está sob pressão dos USA para acabar com a exceção atual sobre as formas de vida e para aceitar e estimular o patenteamento das mesmas. Os ativistas e as ONGs do Terceiro Mundo levantaram esses argumentos em alguns fóruns nacionais e internacionais e a resposta das corporações é similar à afirmação do representante da Monsanto discutida acima: esses dilemas éticos e filosóficos não têm lugar na “lógica fria e racional dos negócios”. Há também outro argumento segundo o qual o Terceiro Mundo é pobre demais para estar se preocupando com a bioética. Como Shiva (1993) destacou, a dicotomia entre ética e conhecimento é uma construção ocidental que possibilita a colonização e o controle de culturas nas quais tal separação não existe. É esta ilusão da neutralidade desse conhecimento a-ético que permite a negação de outros sistemas de conhecimento alternativos. É esse conhecimento que transforma mais da metade da população mundial em “atrasada” e “ignorante” sem perceber que a ignorância, como o conhecimento, é socialmente construída. Há lutas acontecendo tanto no mundo industrializado quanto no Terceiro Mundo contra a biotecnologia, e as batalhas estão sendo travadas em cortes internacionais, bem como nas comunidades rurais locais, como no recente levante de
agricultores na Índia, que resultou na demolição de uma fábrica de sementes da Cargill, uma corporação transnacional de produção de sementes. Entretanto, é importante perceber que esses contextos diferem substancialmente: nos países industrializados há uma preocupação sanitária com o consumo de alimentos transgênicos e muitas organizações ambientais têm reivindicado uma classificação apropriada dos produtos (o que os governos dos Estados Unidos vêem como uma barreira factual ao comércio) (which is lobbying the World Trade Organization to take a similar stance). No Terceiro Mundo, a luta é para controlar os recursos e a terra, que está sob ataque pelas práticas implicadas no prevalecimento da produção agrícola moderna, introduzida pelas corporações transnacionais. As políticas de ajuste estrutural e no nível macro do Banco Mundial bem como as políticas de comercialização agrícola da OMC resultam na retirada do controle da terra das mãos dos pequenos produtores para as mãos dos grandes produtores (MIES & SHIVA, 1993). A biotecnologia não é “sustentável” para essas populações e não resultará em Alimento, Saúde e Esperança, a trindade do DS da Monsanto. Pelo contrário, ela sustentará um sistema econômico que tem fracassado no que concerne a milhões de pessoas no mundo e que transforma cultivadores de sementes em consumidores de sementes, trazendo um desenvolvimento insustentável. Visões alternativas e implicações para a Prática e Teoria das Organizações Os movimentos contra a agricultura corporativa transnacional e contra a biotecnologia têm emergido em diferentes partes do mundo. As alianças globais entre diversos grupos têm tido alguns sucessos, notadamente o fracasso da Conferência de Cúpula da OMC, realizada em Seattle, em 1999. Como Shiva (2000) afirma, a solidariedade entre diferentes grupos, cientistas, planejadores, ambientalistas, produtores e consumidores é necessária para evitar que a resistência seja marginalizada (ou polarizada entre “cidadãos desinformados” contra “cientistas informados”) e para que o debate continue na esfera pública. Recuperar a biodiversidade e o
bem estar comum envolve uma recusa ao reconhecimento das formas de vidas como invenções das corporações, como propriedades e ao processo de sua privatização. As lutas ambientais das populações camponesas não é apenas referida à terra e aos recursos naturais: é uma luta para defender a diversidade cultural. Se as visões do DS têm um caráter emancipatório, necessita-se de uma reconceitualização das atuais noções de progresso e de desenvolvimento. Esses conceitos não só limitam como também representam o fracasso da imaginação: a abordagem do tecnocentrismo ocidental somente serve para fortalecer os interesses econômicos nacionais e das empresas, impedindo as comunidades de preservarem seus direitos ao controle dos recursos. Um desvendamento da noção de desenvolvimento é necessária e os conceitos de DS devem ir além da busca de um compromisso entre a proteção ambiental e o crescimento econômico (REDCLIFT, 1987). Isto requer não a busca de alternativas desenvolvimentistas, mas de alternativas de modelos de desenvolvimento (ESCOBAR, 1995). A ênfase atual no capital e no mercado como maneira de atingir o DS é restritiva e impeditiva de outras alternativas de pensar e entender a questão. Precisamos aplicar compreensões de outras formas de conhecimento, não importa quão “tradicionais” elas sejam definidas, e interpretar esses conhecimentos em termos de economia, política, cultura e do social, de forma a desafiar as visões de mundo e da natureza existentes. O DS não se refere apenas à eficiência gerencial (embora isto tenha importância), mas também ao repensar das relações homens-natureza, reexaminando as atuais doutrinas de progresso e de modernidade, privilegiando visões alternativas do mundo. Isto requer uma reconstituição dos passos que levaram à junção na qual a “natureza” se transforma em “meio ambiente”, distanciando o mundo natural e posicionando-o como um recurso a ser controlado da mesma maneira pela qual os sentimentos e expressões humanas são controlados através da “cultura”. As noções contemporâneas de DS estão dominadas pelo discurso desenvolvimentista que requer a morte da natureza e a emergência do meio ambiente. Visões
alternativas só podem ser imaginadas se resgatarem o desenvolvimento dessa dicotomia. Que implicações então a crítica do DS tem para a prática e teoria das organizações? É pouco provável que qualquer revisão do DS emerja das organizações, dado o fato de que esse discurso tem sido construído nos altos níveis da economia política. Para que qualquer repensar do tipo mencionado aconteça, uma abordagem mais crítica da teoria das organizações é requerida e novas questões precisam ser levantadas não apenas sobre a sustentabilidade ecológica e social das corporações empresariais, mas da própria economia política. As práticas de gerenciamento ambiental adotadas pelas corporações têm sido informadas pelo amplo debate sobre o DS, e, conseqüentemente, revisões radicais neste nível somente podem ocorrer se houver uma mudança na forma de pensar num nível macro. O gerenciamento ambiental, a administração de produtos, a prevenção da poluição, a otimização da utilização de recursos e da conservação da energia são algumas maneiras pelas quais algumas empresas estão começando a enfrentar as questões ambientais. Essas práticas precisam ser submetidas à apreciação crítica, usando parâmetros que vão além dos indicadores de eficiência e de produtividade. Precisa haver um crescimento no nível de responsabilização e transparência das corporações, acompanhado por uma maior representação dos grupos de investidores marginalizados, se quisermos embarcar no caminho da sustentabilidade ecológica e social genuína. Os discursos de “esverdeamento” empresarial, ao invés de basear-se na “ecologia profunda”, ou no “gerenciamento ecocêntrico ou sustentocêntrico” precisam ser questionados e seus construtos e conceitos examinados com as lentes da crítica. A despeito do apelo à “revisão fundamental dos conceitos e teorias dos estudos organizacionais" (SHRIVASTAVA, 1994), não há explicações a respeito de como isso ocorrerá. Não fica claro como conceitualizações alternativas de um meio ambiente organizacional (SHRIVASTAVA, 1994) ou uma “completa transformação moral dentro da corporação” (CRANE, 2000, p. 73) levará naturalmente para a
justiça social ou a uma distribuição de recursos mais equânime. Mudanças fundamentais nas organizações não podem ocorrer a menos que haja correspondentes mudanças na economia política e nas questões fundamentais relativas ao papel da corporação e na abordagem referente à sua licença para atuar na sociedade. Todas as exortações dos teóricos do “esverdeamento organizacional” não começam com a avaliação dos tremendos impedimentos envolvidos na reestruturação da economia política e no abandono das noções convencionais de competição e consumo (NEWTON & HARTE, 1997). Se a análise organizacional envolve a compreensão dos processos pelos quais as organizações são produzidas, em especial os contextos sociais (LEFLAIVE, 1996) e como as “pressões externas do meio ambiente são traduzidas em imperativos organizacionais (KNIGHTS & MORGAN, 1993, p. 212), então uma crítica das noções contemporâneas de DS deveria permitir-nos o exame da emergência das organizações de base envolvidas em movimentos de resistência, bem como o destaque das estratégias empresariais de cooptação e “gerenciamento” do meio ambiente. Isto também nos habilita a examinar as estruturas e processos que produzem discursivamente “as pressões ambientais externas” e como as relações socioculturais são transformadas pelas organizações. A crítica deveria nos permitir um amplo debate, incluindo a economia política e as abordagens alternativas dos problemas ambientais, assuntos que o atual discurso do “gerenciamento ambiental” falha em abordar (LEVY, 1997). Ela também nos permitirá ver como os Estados-nações, corporações nacionais e transnacionais dão suporte às necessidades do capital internacional (PITELIS, 1993), pela colocação da crítica do capital e do capitalismo firmemente no centro do debate, ao invés da desconfortável posição que ela ocorre atualmente na maioria das teorias organizacionais. Enquanto a vasta literatura sobre a responsabilidade social das empresas, sobre a integração entre investidores e a ética dos negócios se baseia no pressuposto de que estes são influenciados pelas preocupações societais, o prevalecimento dos interesses societais na modelagem radical das práticas empresariais aparece apenas em algumas poucas questões
(MUELLER, 1994). O domínio da responsabilidade social das empresas não pode ser avaliado primariamente pelo critério econômico e nem pode uma ética ambiental ser desenvolvida através de uma moralidade “gerencial eticamente pragmática”, que, primariamente serve aos interesses organizacionais (FINEMAN, 1998; SNELL, 2000). Embora os teóricos críticos da organização retratem as organizações como estruturas de dominação, de legitimação e de “sistemas sociais reflexivos” (COURPASSON, 2000; LEFLAIVE, 1996), recentes debates sobre a teoria das organizações, entre os modernistas e pós-modernistas, são curiosamente omissos sobre as dimensões coloniais que enquadram a relação organizaçãomeio ambiente. Nos últimos anos, tem havido uma pequena explosão de artigos tratando do "esverdeamento empresarial” na literatura sobre gerenciamento. Muito dessa literatura tenta incorporar as noções correntes de DS às estratégias empresariais (ver, por exemplo, o número especial de 1995 da Academy of Managent Review, sobre “organizações ecologicamente sustentáveis ou o número especial da Long Range Planning, de 1992, sobre “gerenciamento estratégico do meio ambiente”. Não há dúvida de que as empresas desempenham um importante papel no caminho para a sustentabilidade. A questão é: as atuais práticas ambientais são realmente compatíveis com a noção de sustentabilidade? Ou elas são meros exercícios de “limpeza verde”, planejados para assegurar as empresas de que manterão uma boa imagem pública? Alguns pesquisadores advertem que o “esverdeamento” da indústria não deve ser confundido com a noção de DS (PEARCE et al., 1989; SCHOT et al., 1997). Embora tenha havido significativos avanços no controle da poluição e uma redução da emissão de gás carbônico, isto não significa que os atuais modos de desenvolvimento são sustentáveis para o planeta como um todo (HART, 1997). Afirmações de que práticas “ecologicamente sustentáveis” de alto perfil “socialmente responsável” de companhias como a The Body Shop e Ben and Jerry foram desmascaradas na imprensa especializada em negócios como fraudulentas (ENTINE, 1995; ROSEN, 1995). A maioria das companhias enfatiza as questões operacionais quando adotam
variáveis “verdes” e falta-lhes uma “visão da sustentabilidade” (HART, 1997). Os argumentos críticos que questionam a sustentabilidade dos atuais sistemas econômicos são raramente encontrados e muito da teorização sobre o mercado “verde” é o que Newton & Hart (1997) chamam de “tecnicismo kitsch”, associado com doses liberais de retórica evangélica. Tão longe quanto as concepções de DS continuem dirigidas somente pelas noções de racionalização como vantagem competitiva, nenhuma mudança de paradigma no que se refere às visões de mundo a respeito da natureza e da sustentabilidade podem ter lugar. O desenvolvimento colonial capitalista tem agravado as desigualdades sociais e, a despeito de sua reivindicação de conhecimento, tem resultado numa perda do conhecimento ecológico. Qualquer esforço para visualizar ecologias alternativas deve envolver visões de alternativas de sociedades e de política também (GUHA, 1989). No seu apelo para uma abordagem mais crítica dos estudos de gerenciamento, Grice & Humphries (1997) defendem uma posição não-gerencial cuja proposta seja “não a performatividade, mas a emancipação”. Muitos dos atuais trabalhos críticos na área do gerenciamento enfatizam as mesmas questões e tentam produzir melhores respostas. Para mudar a teorização sobre as organizações é necessário adotar uma nova maneira de pensar e de construir perguntas, ao invés de procurar melhores repostas para as mesmas questões. É preciso construir questões a partir de perspectivas diferentes, freqüentemente opostas, adotando uma atitude de suspeita constante em relação a todas as respostas. É preciso questionar por que algumas perguntas são feitas e outras não, “por que algumas abordagens são escolhidas em detrimento de outras e por que alguns interesses são contemplados e outros são excluídos do processo (GRICE & HUMPHRIES, 1997, p. 423). Uma impressionante proporção de pesquisas em gerenciamento enfatiza as tradicionais empresas orientadas pelo lucro. O conjunto de pesquisas sobre empresas sem fins lucrativos é também enquadrado em objetivos empresariais similares: como podemos arrecadar dinheiro para a benefi-
cência, como podemos atrair mais gente para os museus, bibliotecas ou zoológicos? Há pouca pesquisa sobre estratégias para grupos e organizações ativistas, e sobre a teórica e prática de resistir às ações das empresas (FROOMAN, 1999). Os discursos contemporâneos das organizações e de seus acionistas são, inevitavelmente pressionados pelas razões práticas tais como o comportamento empresarial de buscar o lucro (TREVIÑO & WEAVER, 1999). Uma perspectiva crítica nos capacitará a reconhecer que as atuais normas do DS têm emergido dentro de um contexto histórico particular, marcado pela noção capitalista moderna de empresa que opera dentro de um quadro dominado pela ética judaico-cristã. Ao tornar esse pressuposto explícito e examinar criticamente suas conseqüências, poderemos procurar maneiras alternativas de construir conhecimento e elaborar normas. As atuais teorias de gerenciamento raramente questionam a respeito de quem origina as normas a serem usadas, tendendo a normalizar os critérios conflitantes em nome do progresso e do desenvolvimento. Como Rifkin (1999) destaca, ao invés de enfatizar os “bons” e os “maus” aspectos das novas tecnologias, precisamos enfrentar questões mais difíceis. Quais as conseqüências de colocar o controle do patenteamento da propriedade intelectual dos genes mundiais nas mãos de um reduzido grupo de empresas transnacionais para a economia global e para a sociedade? Quais as estruturas e processos de poder inerentes a essas novas tecnologias? Quais seus impactos sobre a diversidade biológica do planeta? Quem controla essa tecnologia? Quais são seus impactos culturais e sociais? Embora os países em desenvolvimento continuem a reivindicar o acesso a essas novas tecnologias em vários fóruns internacionais, deve-se ser cauteloso a respeito do monitoramento dos impactos dessas novas tecnologias, para não repetir os erros da Revolução Verde, que ao mesmo tempo em que aumentava a produção em poucas regiões, também acentuava as desigualdades em termos de renda (SHIVA, 1991). As dimensões populares das organizações, que invocam as noções de difusão, democracia, mercado, fortalecimento, flexibilidade, confiança e coletividade, também preci-
sam ser criticamente examinadas e avaliadas pela investigação da maneira pela qual esses objetivos empresariais em relação aos quais noções de “valores” e de “ética” crescentemente dominam todas as agendas “sociais”, dando origem a um novo colonialismo empresarial (GOLDSMITH, 1997; GRICE & HUMPHRIES, 1997). A resistência ao conhecimento absoluto é um item imprescindível da agenda dos estudos críticos do gerenciamento, a partir dos quais uma compreensão de “como o conhecimento a respeito do gerenciamento é um resultado de e contribui para um particular regime disciplinar” (KNIGHTS, 1992, p. 519). Desenvolver práticas de pensamento e de visão críticas da teoria da organização requer uma investigação das formas de dominação em outros lugares além do escritório ou da fábrica, o que será, quem sabe, mais eficiente se se quer iniciar mudanças revolucionárias (POSTER, 1989). Revisões radicais podem emergir quando os estudos da organização entrarem nos lugares nos quais “os precipitados ousam entrar – o lugar onde a filosofia e as ciências sociais se encontram (BURRELL, 1994, p. 9). Uma abordagem crítica ao “conhecimento tecnicista” (BURRELL, 1994) também revelará como o poder institucional e econômico se combinam para produzir discursivamente conceitos tais como os de “eco-eficiência” e o de “gerenciamento ambiental para a qualidade total”, nos “novos capitalismos emergentes” (CALAS, 1999; STERNBERG, 1993), ou como “capitalismo natural”, que é sempre apresentado como a “próxima revolução industrial” (HAWKEN et al., 1999). A diversidade dos movimentos sociais em diferentes partes do mundo pode produzir um guia alternativo de leitura, capas de transformar as noções hegemônicas de desenvolvimento e modernidade (ESCOBAR, 1992). O estudo do “conhecimento ecológico tradicional” está se tornando crescentemente em voga para os cientistas e empresas farmacêuticas ocidentais. É crucial o exame dessa prática com lentes críticas, para compreender o que está em jogo: quem está fazendo os estudos e com que propósitos? Por exemplo, um atual projeto de desenvolvimento das Nações Unidas, chamado de “Oportunidades para o DS Global – 2B2M: 2 bilhões
para o mercado até 2020”: o próprio título do projeto já dá pistas do que está errado com as atuais noções de DS, indicando na aparente descontinuidade alegada a continuidade das antigas noções de crescimento econômico e de desenvolvimento. O fato de que uma significante proporção da equipe do projeto é composta de representantes de empresas transnacionais, cuja atuação tem, comprovadamente, efeitos negativos sobre as populações indígenas e rurais, simplesmente fortalece a noção de que essas organizações internacionais não podem servir aos interesses das comunidades mencionadas. Nem um dos muitos projetos das Nações Unidas tem sequer desafiado o globalismo econômico das soluções orientadas pela idéia de crescimento, a despeito de sua retórica de “fortalecimento” das comunidades rurais. Na atual economia política, é simplesmente impossível fortalecer simultaneamente as comunidades rurais e as corporações transnacionais, havendo uma forte tendência à vantagem do segundo grupo. Se temos que pesquisar alternativas de desenvolvimento, além de fazer uma crítica das noções contemporâneas de desenvolvimento, precisamos situar nossas teorias nos movimentos sociais apropriados: por exemplo, o conhecimento ecológico tradicional não deveria aparecer separado das lutas políticas, culturais e econômicas dos povos indígenas e das populações camponesas (CARRUTHERS, 1996).
Conclusão A era do desenvolvimento consolidou a hegemonia do capital monopolista expansionista no Terceiro Mundo, através de programas e políticas de exportação de larga escala, que suplantou as necessidades de sobrevivência das culturas locais. A era do DS também ameaça com o “mapeamento dos povos em certas coordenadas de controle” (ESCOBAR, 1995). Qualquer atividade fora da economia de mercado é proibida, criando sérias desvantagens para qualquer “atividade de subsistência” dos camponeses e comunidades indígenas em todo o mundo. A violência que a chamada “Revolução Verde” perpetuou sobre as populações camponesas está bem documentada (MIES & SHIVA, 1993; SHIVA, 1989; 1991).
As mesmas agências e empresas que saudaram o desenvolvimento de herbicidas como uma tecnologia da Revolução Verde (agora chamada de “insustentável”) estão louvando as virtudes da biotecnologia. Agricultores e comunidades indígenas continuam a resistir ativamente a essa nova imposição que mais uma vez ameaça sua sobrevivência, em nome do DS. O DS, a despeito de sua promessa de autonomia local, não é igualitário, porque a destruição ambiental também não é: ela é mais devastadora para os povos com menos recursos para evitar a devastação dos seus espaços naturais (BULLARD, 1993). Essas populações são mais freqüentemente compostas de pobres, negros, mulheres e crianças do Terceiro Mundo (BANDY, 1995). A literatura sobre DS não tem virtualmente nenhuma discussão sobre o fortalecimento das comunidades locais. Enquanto faz uma crítica ao modelo de desenvolvimento baseado no crescimento econômico, suas posições marginalizaram as comunidades locais tanto como vítimas como beneficiárias do desenvolvimento. Na era do DS, aparentemente essas comunidades continuarão a serem inscritas como objetos passivos da história ocidental e continuarão a sofrer, o que Mies & Shiva (1993) ironicamente chamam de “missão do homem branco”, uma missão que significa futuras perdas dos direitos da comunidade e dos seus recursos naturais. As novas biotecnologias do DS têm o potencial para transformar agricultores em trabalhadores industriais de escala global (DAWKINS, 1997). O DS é para ser gerenciado da mesma maneira pela qual foi gerenciado o desenvolvimento: através das noções etnocêntricas e capitalistas de eficiência gerencial, que simplesmente reproduz as articulações anteriores do capitalismo descentralizado, agora denominado de “capitalismo sustentável”. Os critérios macroeconômicos da DS têm se tornado empresariais: algo é sustentável se for rentável, é sustentável se puder ser comercializado no mercado. Essa noção de DS, que é empacotada e vendida pelas agências internacionais, governos e empresas transnacionais precisa ser desmascarada e desconstruída, o que tentamos fazer neste trabalho. Como
Redclift (2000) tem destacado, há um perigo de que os atuais discursos de sustentabilidade, com sua ênfase no que é sustentável e como isto pode ser medido, percam suas margens políticas e de radicalidade. Talvez o DS seguirá o destino do movimento ambientalista moderno, que está se tornando cada vez menos politizado, graças ao prevalecimento de políticas ambientais que traduzem as escolhas relativas ao meio ambiente dentro do quadro das preferências de mercado. Como Gould (2000, p. 12) destaca, se os discursos do DS quiserem manter seus traços políticos e de radicalidade, eles “devem estar fundamentados em última instância na relação entre populações humanas específicas com específicos ecossistemas localizados em específicos lugares”. As instituições transnacionais e internacionais, operando sob regimes econômicos neoliberais dão pouca atenção às especificidades dos lugares e das comunidades que os habitam, não podendo, portanto, gerar economias locais sustentáveis. Os atuais padrões de desenvolvimento (apresentados como “sustentáveis”) quebram as relações entre os sistemas sociais e os ecossistemas, ao invés de assegurar que o uso dos recursos naturais pelas comunidades locais satisfaçam suas necessidades em um nível de conforto avaliado como satisfatório para essas comunidades. Enquanto continuar a violência epistêmica do desenvolvimentismo colonialista, o DS simultaneamente reificará o capitalismo global como a força de liberação e de proteção que pode assegurar a sobrevivência da raça humana. O Terceiro Mundo, ainda precisando de desenvolvimento, agora precisa aprender como desenvolver-se de modo sustentável. O consumo é ainda o rei: a natureza não é muito entendida enquanto consumida e o poder da dinâmica dessa nova era da globalização e do pós-desenvolvimento permanece inalterado (BANERJEE & LINSTEAD, 2001). Como Bandy (1995) afirma, o discurso do DS é uma nova retórica de legitimação: legitimação do mercado, do capital transnacional, da ciência, da tecnologia, das noções ocidentais de progresso e de (pós)modernidade. O desafio do DS é, em última instância, um desafio à legitimação, aos fundamentos epistemológicos
do conhecimento e ao poder desse conhecimento em definir a realidade. Talvez revisitando outros conhecimentos poderemos nos tornar capazes de definir uma outra realidade que não privilegie a separação entre a natureza e cultura, que tem provado ser tão negativa para milhões de pessoas do planeta. Mas essa é outra história.
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DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: Antinomias de um conceito Marcionila Fernandes20
Uma das principais tarefas requeridas dos sociólogos em relação à discussão da crise ambiental e do modelo de Desenvolvimento Sustentável é, inclusive, a produção de uma análise capaz de demonstrar como a construção de categorias e instrumentais de pesquisa relacionados ao debate sobre a crise ambiental funcionam com o objetivo de dar sentido às estruturas de poder e aos interesses econômicos e políticos envolvidos na formulação das políticas ambientais globais. A construção de categorias abstratas, como as de humanidade, de gerações futuras, de qualidade de vida e outras tão presentes nos textos sobre os problemas ambientais, dificulta a análise em termos de diferenças entre grupos sociais e entre nações, protegendo a proposta do Desenvolvimento Sustentável do enfrentamento de eventuais contradições no campo das relações sociais.21 A disseminação do uso dessas categorias citadas com um sentido a-histórico, ou como que “esvaziadas” de conteúdo social mais preciso, contribui justamente para consolidar as perspectivas analíticas e postulados políticos que abordam os problemas e as possíveis respostas, desconsiderando as referidas diferenças, as quais caracterizam tão bem as sociedades contemporâneas.
20
Professora do Mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal de Alagoas – UFAL. 21
O conceito de Desenvolvimento Sustentável foi apresentado, no ano de 1987, pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento através do Relatório denominado Nosso Futuro Comum, sendo definido como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidades das gerações futuras de atenderem às suas próprias necessidades”. Ainda, segundo o referido relatório, o Desenvolvimento Sustentável deve contribuir para retomar o crescimento como condição necessária para: erradicar a pobreza; mudar a qualidade do crescimento para torná-lo mais justo, eqüitativo e menos intensivo no uso de matérias-primas e de energia; atender às necessidades humanas essenciais de emprego, alimentação, energia, água, e saneamento; manter um nível populacional sustentável; conservar e melhorar a base de recursos; reorientar a tecnologia e administrar os riscos; e incluir o meio ambiente e a economia no processo decisório
No conceito de Desenvolvimento Sustentável a idéia de eqüidade se enquadra nesse conjunto de categorias “limpas ou neutras”, podendo ser considerada como um conceito vazio. Isto é, destinado a ser enunciado de uma tal forma que não implica nenhum desdobramento conseqüente, não havendo nele substância como proposição possível. Como se pode ver na maioria das experiências de implementação do modelo de Desenvolvimento Sustentável, não há indícios da produção da eqüidade em termos concretos. Vale citar como exemplo as próprias experiências catalogadas pelo Ministério do Meio Ambiente. Segundo o Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (1997), o princípio da eqüidade entre gerações não pode ser entendido sem, ao mesmo tempo, serem propostas formas institucionais para sua realização. Uma das propostas apresentada no referido relatório, parte da idéia de que a melhor maneira de proteger os interesses das gerações futuras consiste em nomear um representante, na forma de uma agência institucionalizada como, por exemplo, um escritório no âmbito das Nações Unidas e do direito internacional (CUÉLLAR, 1997, p. 62). A questão da eqüidade é, como se vê nesse documento, freqüentemente reduzida a um problema burocrático, cujo enfrentamento se daria no âmbito institucional e formal. A justiça social, neste caso, é tratada como se fosse algo exógeno à dinâmica econômica, social e política das sociedades contemporâneas. Ainda em referência à forma como é apresentada a concepção da eqüidade no modelo de Desenvolvimento Sustentável, é possível identificar alguns outros problemas. No Nosso Futuro Comum, por exemplo, é enunciada a idéia de que a pobreza contribui para o aumento da degradação ambiental. Esta forma de ver poderia conduzir a uma muito provável articulação entre justiça social e preservação ambiental, já que atacar os fatores que causam a pobreza teria, como efeito necessário, a atenuação ou superação da própria pobreza associada senão à solução definitiva da crise ambiental planetária. Ao menos alcançaríamos níveis menores de agressão ao meio ambiente.
Esse novo modelo de desenvolvimento distancia-se, em essência, de uma perspectiva crítica em relação às formas de apropriação da natureza inauguradas pelo Capitalismo, na direção da construção de um novo modelo societário. Não há, nesse ecologismo supostamente inaugurador de novos tempos, uma negação da ética da competição e do lucro imediato e crescente, determinante dos modos e do ritmo de disponibilização dos recursos naturais praticados desde o surgimento da Indústria. Os aspectos teóricos do conceito de Desenvolvimento Sustentável se distanciam de questionamentos dessa natureza, e o fazem não por “erro” metodológico, ou por “fraqueza” epistemológica. Poderíamos, realmente, esperar que as instituições que dão forma ao movimento ecológico internacional, como a ONU, o Banco Mundial, o G-7, apresentassem uma nova proposta de organização social destinada a promover efetivamente a eqüidade social, a eficiência econômica e a preservação ambiental? Isso seria possível, sem questionar, na sua base, o ordenamento sócio-político-econômico? Para dar respostas afirmativas a essas questões, teríamos de imaginar que essas instituições estariam abandonando seus próprios papéis de mantenedoras da ordem econômica e social vigente. A realidade social de um número significativo de nações, se pensarmos em termos de desenvolvimento das economias nacionais e de amplos setores da população mundial, demonstrada, inclusive, pelos dados do próprio Banco Mundial, é marcada pela preponderância de baixas rendas, por níveis inaceitáveis de acesso à saúde, por altos graus de subnutrição e de altas taxas de mortalidade infantil, por baixos níveis de escolaridade e por baixas quantidades de consumo diário de proteínas. Um agravante desse processo é que todos os encaminhamentos políticos e econômicos, no plano mundial, incluindo-se aqui os previstos nas políticas de Desenvolvimento Sustentável, se constróem na perspectiva de manter e/ou agravar essas disparidades. Com o declínio do Welfare State, por exemplo, enfraquece progressivamente a responsabilidade política do Estado frente ao quadro social esboçado. A
impossibilidade de participar dos mercados, neste caso, repercute e passa a ser compreendida como processo exógeno ao próprio sistema social.22 O fim do Estado de bem-estar, a progressiva diminuição do emprego, e o crescimento da fome, associada à mortalidade infantil, por um lado e, por outro, o domínio das leis de mercado, de uma cultura de consumo que transforma o mais supérfluo em necessidade indispensável, o que requer a queima crescente dos recursos energéticos naturais nos ciclos produtivos, processos que vêm se intensificando nessas duas últimas décadas, denotam que não se encontram em curso projetos sociais que visem corrigir as grandes diferenças, no que se refere aos padrões de vida entre indivíduos e entre as nações23. Supor que a pobreza é responsável pela degradação ambiental, como está posto no conceito de Desenvolvimento Sustentável e que, para superar esses problemas de ordem ambiental, seria necessário combatê-la, não garante a construção de um novo projeto societário. Na verdade, isso pode ser visto muito mais como uma enunciação formal do discurso oficial do que como um questionamento real das lógicas geradoras da exploração e miséria nos países subdesenvolvidos. De maneira semelhante, a idéia de solidariedade intergeracional, também muito forte e destacada no modelo de Desenvolvimento Sustentável, não se traduz, necessariamente, 22
As sociedades contemporâneas, ao abordarem a violência entre indivíduos, como resultante de processos individuais apenas, onde se evidencia somente o agressor e o agredido, na verdade estão reforçando a idéia de que o que existe, efetivamente, são somente diferenças individuais inconciliáveis, desconsiderando, portanto, todos os arranjos sociais responsáveis pela manutenção do processo de diferenciação social entre os homens. Na história humana, é comum a desvalorização daqueles indivíduos que o próprio sistema não absorvera por meio da produção e repartição dos produtos do trabalho. Sempre são estes os responsáveis pela violência, como se marginalizar o outro não fosse o maior ato de violência. Müller (1996) no seu diálogo com Vittorio Hösle (1996) diz que “A grande incógnita da nova ordem capitalista mundial, face à possibilidade de o modelo de produção capitalista se firmar como endogenamente sustentável, é saber se as suas transformações vão no sentido do fortalecimento a curto prazo, através da consolidação temporária da exclusão do acesso da maioria da humanidade aos direitos humanos elementares, com a ampliação do padrão de consumo ocidental para apenas alguns países integrados e para as respectivas classes dominantes na assim chamada globalização, intensificando a violência estrutural e o estado de guerra civil endêmica, ou se as transformações vão no sentido de alguma transmutação, que permita superar os seus componentes selvagens e destrutivos, que mantêm o vínculo fatal entre crise ecológica e exclusão, revertendo a barbárie que se anuncia. (MÜLLER, 1996, p. 45). 23
no enfrentamento conseqüente e eventual adoção de estratégias para a solução dos problemas atravessados pela geração atual. Se nem o reconhecimento dos riscos representados pela pobreza ao ecossistema, nem a idéia de solidariedade intergeracional são indicativos de um novo projeto societário, outros aspectos contidos no conceito de Desenvolvimento Sustentável não podem ser considerados como capazes de efetivar um novo projeto de normatividade social. A idéia de sustentabilidade do modelo de Desenvolvimento Sustentável é tirada do campo das ciências biológicas, onde é compreendida como a busca do prolongamento da durabilidade dos ecossistemas no tempo. Sua utilização nas análises dos cientistas sociais é freqüentemente carregada dos sentidos em que é empregada na Biologia, tratando sua aplicabilidade em termos da definição biológica de espécie humana, que não permite a consideração dos aspectos contraditórios envolvidos, quando se leva em conta o mundo social.24 Assim sendo, o próprio marco teórico da sustentabilidade não relaciona os problemas ambientais com as relações sociais e não leva em conta as questões das desigualdades, o que compromete a efetividade da proposta de eqüidade feita no âmbito do modelo de Desenvolvimento Sustentável. Neste caso, a idéia de eqüidade tem apenas sentido como discurso (FOLADORI, 1999, p. 29). Tanto a idéia de eqüidade quanto o próprio conceito de sustentabilidade são exemplos dos aspectos contraditórios contidos nas principais formulações das políticas ambientais globais e que devem ser visualizadas nas análises sociológicas que abordam a questão ambiental. A busca do que realmente é “novo” nessa proposta de desenvolvimento implica conduzir o debate levando em conta as matizes teóricas, e as variáveis políticas e ideológicas nelas envolvidas. Ao nosso ver, a subsunção dos principais problemas sociais da humanidade pela evidência das catástrofes ecológicas não somente assegura aos países ricos a manuten24
Ver, neste sentido, Norgaard (1997) e Spangenberg (1999).
ção dos seus privilégios, como dificulta a possibilidade de formulação de críticas ao modelo capitalista, agora global. Nesse sentido, em vez de considerar a possibilidade de questionamento do modelo de expropriação da natureza implícito no Capitalismo, o que os defensores do modelo do Desenvolvimento Sustentável freqüentemente fazem é, aludindo às idéias de unidade planetária, que implicam a secundarização das diferenças existentes no mundo real, propor “alianças entre todos os grupos e estratos sociais”25, como se os problemas ambientais afetassem a todos por igual. Os problemas ecológicos, que resultam de disfunções estruturais do sistema de produção econômica, que geram também uma série de problemas sociais, tomaram maiores dimensões à medida que é decrescente, na história da ciência, o espaço para as teses que abordam os problemas estruturais da sociedade moderna. Não podemos desconsiderar o pessimismo dos cientistas sociais que viveram o alvorecer do século XX, marcado pelo prevalecimento da racionalidade instrumental, como também não se pode esquecer o desencanto dos filósofos franceses engajados, um fenômeno que se expressa depois da II Guerra Mundial. É no vácuo de um projeto societário-humanista, que emergiu a crise ecológica em nível global. “A terra está esquentando”, “tem aumentado o buraco na sua camada de ozônio”, “enfrentamos chuvas ácidas como conseqüência da poluição atmosférica”, “enfrentamos uma crescente escassez de recursos energéticos”, “aumenta a poluição dos mares, do ar e das águas doces”; tudo isso pode ser verdade, mas não é menos verdadeira a gravidade dos problemas sociais e da decadência de princípios éticos humanistas. Nesse sentido, nossa perspectiva considera necessária uma abordagem que contemple os dois movimentos, considerando o ecológico e o social como processos interligados a partir da modernidade, e que, ao mesmo tempo, resulte numa análise crítica da temática do meio ambiente não comprome-
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Conforme Guimarães (1997), que, longe de representar uma voz isolada, é emblemático de uma vasta produção da linha “otimista” do Desenvolvimento Sustentável.
tida com a reprodução da desigualdade entre homens.26 Nossa proposta se aproxima da visão da prática sociológica defendida por autores como Lloyd e Bourdieu. Para o primeiro deles, As tentativas de representação do real, através das ciências, dependendo dos princípios filosóficos e metodológicos, às vezes se distanciam da própria realidade empírica para concebê-la como uma interpretação de acordo com um ponto de vista, e assim estabelecem um discurso sobre possíveis entidades, episódios ou cenários que às vezes se supõe iluminar a verdadeira realidade, a qual jamais é definida ou estudada (LLOYD, 1995, p. 45). No caso da proposta de Desenvolvimento Sustentável, é possível identificar uma articulação de símbolos, significados e conceitos capazes de mobilizar uma aceitação mundial, um consenso altamente significativo, sem que haja um esforço intelectual profundo para o enfrentamento das questões concretas envolvidas na discussão. Pierre Bourdieu, numa mesma linha crítica da atividade científica auto-referente, fornece elementos para uma crítica da tendência de análise sociológica acrítica: ...abraçar a verdadeira ciência significa fazer a opção, deveras ascética, de devotar mais tempo e esforço ao exercício das descobertas teóricas, aplicandoas a novos projetos de pesquisas, em vez de preparálas, de certas formas, para a venda, recobrindo-as de metadiscurso, destinado menos a verificar o pensamento do que a divulgar a sua importância e valor ou evidenciar imediatamente suas vantagens, fazendo-as circular nos incontáveis eventos que a era dos jatos e das conferências oferece ao pesquisador narcisista... (BOURDIEU, 1985, p. 11-12). 26
Nossa proposta de análise sociológica das contradições existentes no modelo/conceito de Desenvolvimento Sustentável se distancia daquela apresentada por Cernea (1993, p. 13), assessor Senior do Banco Mundial, na área de Políticas Sociais, do Depto. de Meio Ambiente. Para ele, uma das contribuições que os sociólogos dão ao Desenvolvimento Sustentável é o fornecimento de um conjunto de técnicas sociais capazes de conduzir à ação social coordenada, inibir atitudes nocivas, promover a associação, forjar acordos sociais e ajudar a desenvolver o capital social.
Visto que muito dos dados científicos apresentados para fundamentar a idéia de crise ambiental aguda e, além do mais, para dar plausibilidade e aceitabilidade às propostas de construção da sustentabilidade, são controversos, estando longe a chegada a um ponto de vista pacífico sobre eles (HERMITTE, 1992), somente é possível entender a legitimidade conseguida pelo modelo do Desenvolvimento Sustentável, considerando valores externos a ele. Um dos fatores a ser considerados é sugerido por Petras (1991). O autor afirma que há vinte anos, na América Latina, era virtualmente impossível encontrar um intelectual de esquerda propenso a aceitar financiamento de fundações do exterior. Atualmente, segundo ele, é raro encontrar um pesquisador conectado com qualquer instituição estabelecida que não seja financiado por uma menor ou maior fundação americana ou européia. E a maioria dos que não são financiados, não o são por terem objeção aos financiamentos internacionais – e aos eventuais constrangimentos de sua atividade e discursos produzidos –, mas porque não estabelecerem os contatos ou conexões apropriadas (PETRAS, 1991, p. 161). Ao nosso ver, o consenso obtido pela proposta de Desenvolvimento Sustentável é um dos temas importantes a ser enfrentados pela análise sociológica do atual estado do debate a respeito do Meio Ambiente. Outra tarefa dos cientistas sociais preocupados em analisar de maneira conseqüente a temática já referida é a de discutir e avaliar os aspectos ontológicos do conceito de Desenvolvimento Sustentável, inclusive avaliando a propriedade de considerá-lo como novo modelo de desenvolvimento. DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UMA POLÍTICA DE GESTÃO DOS RECURSOS NATURAIS NOS PRINCIPAIS NICHOS ECOLÓGICOS DO PLANETA A argumentação acima apresentada fundamenta nossa interpretação particular a respeito do modelo de Desenvolvimento Sustentável. Ao nosso ver, o que se anuncia como um modelo de desenvolvimento, que sucederia às alternativas ocidentais praticadas há cerca de duzentos anos, se constitui,
na verdade, numa proposta de gestão, monitoramento e controle internacional dos recursos naturais – elaborada e implementada a partir dos países do Norte. A discussão da articulação de uma Divisão Ecológica Internacional, que favorece a abertura das fronteiras e a ingerência internacional nas áreas de nichos ecológicos, bem como as contradições conceituais apontadas no projeto do Desenvolvimento Sustentável – por exemplo, o oxímoro representado pela proposta de união do par irreconciliável: crescimento econômico e a sustentabilidade dos ecossistemas; e a fragilidade da idéia de contemplar as necessidades das gerações futuras, sem enfrentar os problemas sociais das gerações atuais, e, inclusive, aqueles decorrentes das desigualdades entre nações, e, dentro delas, entre pobres e ricos nos permitem apresentar elementos que evidenciam as dificuldades teóricas do Desenvolvimento Sustentável a partir dos seus três princípios – o da eficiência econômica; o da eqüidade e o da eficiência ecológica. O questionamento do modelo de Desenvolvimento Sustentável como alternativa efetiva àqueles historicamente praticados inclui, pelo menos, os seguintes pontos: (1) a argumentação referente à construção de um novo projeto societário a partir da atenção dada a sustentabilidade dos ecossistemas, que substituiria não apenas no discurso, mas, no mundo real, os estilos de desenvolvimento anteriormente praticados, perde sua plausibilidade, ao serem examinadas as experiências anunciadas como de produção de Desenvolvimento Sustentável, em referência aos indicadores da eficiência econômica e da eqüidade; (2) a fragilidade do modelo de Desenvolvimento Sustentável como uma alternativa aos modelos anteriores de desenvolvimento, demonstrada pelo fato de que o modelo de desenvolvimento dominante, diametralmente oposto à idéia de sustentabilidade dos ecossistemas, continua sendo praticado nas áreas das quais se origina a proposta de mudança. Assim, se a proposta de Desenvolvimento Sustentável não implica um modelo efetivo de desenvolvimento, é preciso pensá-la em termos realistas. Com isso, queremos dizer que, ao nosso ver, essa proposta é, na verdade, a de uma polí-
tica ambiental global – elaborada e implementada por instituições tradicionalmente responsáveis por assegurar os processos de expansão do capital – de controle, gestão e monitoramento de recursos naturais, somente apresentada como uma alternativa aos estilos de desenvolvimento anteriormente praticados, com referência às estratégias de construção de sua plausibilidade. Sobre esse aspecto da proposta de Desenvolvimento Sustentável, vale citar Almeida (1998), que apresenta duas modalidades de políticas ambientais: uma se baseia na política de comando e controle e a outra na política do livre mercado. No nosso entendimento, essas se intercruzam na busca da otimização da política ambiental, a partir dos seus objetivos econômicos e das relações de poder que se estabelecem nesse campo, ocultadas pela cultura do management (CHÂTELET, 1997). A política de comando e controle, apresentada sob a denominação de modelo de Desenvolvimento Sustentável, se associa à de gerência dos recursos naturais do planeta, que tem à frente uma tecnoburocracia27, ou a diplomacia ambientalista (ALMINO, 1993), possuidora de competência técnica para formular e coordenar os principais processos de formulação da política ambiental global, sendo apresentados como gestores, que trabalhariam de forma neutra, num espaço aparentemente destituído de qualquer vestígio de interesses políticos. Entendemos que na formulação do conceito de Desenvolvimento Sustentável, como posta no Relatório Brundtand, se opera a lógica do pragmatismo, como nos processos gerenciais quaisquer. Assim sendo, o conceito se configura como uma proposta de um conjunto de políticas capazes de proporcionar um processo de racionalização e de gerencia27
É possível fazer um paralelo entre a atuação dessa tecnoburocracia e aquela descrita por Châtelet (1997) como característica da prática do Estado-Cientista: “Nesta, a política é reduzida a uma função. Encontra-se avalizada a idéia de que o caráter obrigatório dos comportamentos impostos aos cidadãos resulta de um cálculo efetuado por um organismo habilitado para essa função uma regulamentação legítima e necessária substitui assim a noção de poder. A classe política é doravante desideologizada e despersonalizada; ou pelo menos, esse é o destino de sua modernidade. Reduz-se à sua função, que é de simples gestão” (CHÂTELET, 1997 : 347).
mento dos ecossistemas, visando ao aumento de sua capacidade de rendimento em relação ao modelo industrial de produção. O próprio discurso da solidariedade intergeracional presente naquele conceito de desenvolvimento pode ser entendido como o resultado da preocupação com o tempo necessário para racionalizar/gerir os ecossistemas, de forma a contribuir com a formação de estoques de recursos naturais (estoques de capital natural). Estes recursos suprirão as demandas do sistema de produção vigente, elastecendo sua capacidade de reprodução, assegurando um adiamento da exaustão dos recursos naturais não renováveis. Ora, se, no presente, os recursos da natureza não são disponibilizados para todos, a preocupação em assegurar esses mesmos recursos para as gerações futuras não garante que as estruturas de acesso no futuro não tenderão a reproduzir as condições de acesso do presente. Como não há, naquela proposta, nenhuma indicação de socialização de riquezas, a solidariedade intergeracional significa assegurar no futuro, também, as riquezas naturais para os herdeiros dos setores e grupos sociais beneficiários no presente. Outras dificuldades de efetivação da solidariedade intergeracional ainda podem ser observadas, se pensarmos em termos da relação entre Norte e Sul. Embora parte dos problemas sociais do Sul possam apresentar-se nos países Norte, o que se verifica é que, em grande parte, os grandes problemas ambientais dos países desenvolvidos estão, em geral, vinculados à abundância e aos desperdícios, aliados aos altos níveis de consumo neles observados. Nos países do Sul, esses problemas se derivam basicamente da escassez e da má distribuição da riqueza, que se refletem na falta de condições mínimas de infra-estruturas sócio-ambientais básicas, tanto nas grandes cidades, quanto nos meios rurais. Grande parte das populações vive em habitações inadequadas à vida humana, sem saneamento, sem água potável, sem equipamentos, maltratadas pelas doenças e pela falta de perspectiva social. O modelo de Desenvolvimento Sustentável foi considerado como a principal resposta à crise ambiental planetária,
a partir dos mecanismos de construção do consenso internacional, o que possibilitou aos governos dos países desenvolvidos e suas instituições expandir suas políticas ecológicas para o Sul, envolvendo os governos em todos os níveis e as ONGs ambientalistas, que passavam a pensar em políticas ambientais a partir deste conceito de desenvolvimento. O que temos, efetivamente, embora se anuncie um novo estilo ou modelo de desenvolvimento, é uma nova inflexão no que diz respeito à orientação política, econômica e ecológica para as áreas ricas em recursos naturais, como as florestas tropicais, detentoras de significativos patrimônios genéticos da flora e da fauna, que as constituem em filões de biodiversidade. É possível observar também dentro dessa proposta a revalorização de grupos sociais tradicionais, como camponeses, indígenas, pescadores, coletores e outros dessa natureza, presentes naqueles ecossistemas. Estes grupos têm sua condição valorizada a partir das suas formas de interação com o meio ambiente, que se destacam pelo seu caráter preservacionista. Essas áreas e essas populações, vale lembrar, em sua maioria, estão situadas nos países do Sul. Uma vez que o desenvolvimento econômico não sofre inflexão no seu curso, nem no que diz respeito à produção nem ao consumo, é possível concluir que a acumulação e a reprodução do sistema capitalista em nada têm sido alteradas, a partir da proposição e implementação do modelo de Desenvolvimento Sustentável como necessidade de superar a crise ecológica, e que as intervenções no sentido de responder à crise ambiental se desenvolvem por meio de ações localizadas de políticas ambientais, em áreas ecológicas, como já citamos acima, muitas delas incidindo na esfera dos conteúdos morais e comportamentais. Essa característica é marcante nos discursos dos ecologistas, nos conteúdos dos programas de educação ambiental, nos de reciclagem de lixo, todos normalmente associados à crítica ao crescimento populacional, de inspiração Malthusiana, e na teoria da capacidade de suporte. Como temos visto, a preocupação central da política ambiental global, sob a égide do conceito de Desenvolvimento Sustentável, tem sido a de assegurar a gestão internacional
dos principais ecossistemas, com o objetivo de garantir a durabilidade e disponibilidade de importantes estoques de recursos naturais funcionais ao desenvolvimento econômico, atendendo à continuidade da lógica do próprio capital. Assim, uma das principais metas dos que propõem o modelo do Desenvolvimento Sustentável, seria, diante da escassez de recursos e dos altos níveis de poluição atualmente existentes, assegurar àqueles povos ou grupos de indivíduos já beneficiados pelos seus estágios de desenvolvimento social, em termos de acesso aos recursos naturais abundantes, a manutenção dos seus níveis de crescimento econômico e de consumo, em detrimento daqueles grupos e países do terceiro mundo, que embora vivam em regiões e/ou ecossistemas ricos em recursos naturais não têm assegurados o direito de usufruto dessas riquezas. O discurso do Desenvolvimento Sustentável tem a vantagem de possibilitar, de certa maneira, suavemente, uma das formas mais severas e sutis de dominação de povos e grupos sociais, por meio da apropriação e usufruto de recursos naturais renováveis e não renováveis das grandes reservas mundiais. Em nome da humanidade, dos interesses de “todos”, suplantam-se os direitos mais elementares das nações, como o de gerência autônoma dos recursos naturais, agora a partir de pactos científicos e sócio-políticos, que se estabelecem nesse tempo de “globalização” e de “crise ecológica”. É com base nas leis econômicas e na importância dos recursos naturais como capital natural e como força de produção econômica que as políticas ambientais são formuladas e aplicadas. O projeto do Desenvolvimento Sustentável não é uma exceção. A própria valorização e preservação da natureza se inscreve no contexto das forças de mercado, sendo, na verdade, a outra face da mesma moeda. É preciso que muitos valorizem e preservem as riquezas naturais para que estas possam estar à disposição das redes econômicas e sociais que as demandam e delas se apropriam. Bauman (1999) dá suporte a essa nossa compreensão. Para este, o crescimento econômico representa a fome insaciável da indústria por novas e maiores taxas de lucros que, por sua vez, serão consumidas na queima de novas fontes de energia, no ciclo seguinte. O
que é pressuposto nessa fala é justamente um modelo de produção marcado pela idéia de expansão contínua, sempre feita à custa de consumo crescente de energia, de recursos da natureza. A análise da “crise ambiental”, e, em particular, do modelo de Desenvolvimento Sustentável, até aqui apresentada, indica que, na prática, esse modelo de desenvolvimento está longe de se concretizar. O discurso visando uma associação mundial em prol do Desenvolvimento Sustentável, conforme o apelo com que a Agenda 21 Global se inicia, serve, como se referiu Myrdal (1968), apud Rist (1997), para estabelecer a diplomacia pela terminologia. O Desenvolvimento Sustentável, nos termos em que vem sendo posto – quer como discurso oficial, quer a partir de suas várias interpretações – e implementado, por meio de intervenções e de projetos de ajuda preservacionista, como o PPG7, por exemplo, em áreas ecológicas 28, visa diretamente a manter o domínio e o controle sobre os recursos naturais, ao mesmo tempo em que minimiza a crítica ao próprio modelo de desenvolvimento econômico, à medida que reconhece e propõe a superação da crise ambiental por meio de um novo estilo de desenvolvimento. Pelo emprego do conceito de sustentabilidade, o meio ambiente, neste caso, é compreendido como sendo capaz de se auto-equilibrar em vista a contrabalançar os problemas decorrentes do desenvolvimento econômico (RIST, 1997, p. 194). Nossa perspectiva de análise é reforçada pelo pensamento de Rist (1997), segundo o qual o Relatório Brundtland 28
As áreas ecológicas são construídas a partir da Divisão Ecológica Internacional, como nos referimos àquelas regiões que passaram a ser evidenciadas no contexto internacional, a partir da hipótese de que estas desempenham significativo papel no equilíbrio planetário, como as áreas de florestas, por exemplo. São as mesmas áreas que, há trinta anos, foram anunciadas pelos mesmos atores como áreas prioritárias para a implementação do desenvolvimento econômico. A Amazônia é a maior demonstração desse processo. Esta, como em outros momentos da história econômica, se constituiu, dado o seu potencial, a partir do discurso externo, naquilo que interessava à lógica do sistema capitalista. Se havia interesse da região como exportadora de produtos extrativos, como produtora de produtos agropecuários, produtora de energia e minério, era assim que ela passava a ser pensada externamente. O que é importante ser observado é que em nenhum momento as forças sociais dominantes estão em desacordo com a representação que dela se fazia e se faz internacionalmente. Tanto no plano econômico, quanto no plano político, inclusive no campo da política científica, se assumia, internamente, o discurso e o papel que era atribuído à região no plano internacional. E assim continua. A região como grande celeiro ecológico do mundo é a nova face que lhe deram.
e a Conferência do Rio de Janeiro, e, por conseguinte, o modelo de Desenvolvimento Sustentável, não visam, como é corrente no pensamento ambientalista, “negar fenômenos antagônicos dentro de uma síntese hegeliana, mas fazer o desenvolvimento econômico aparecer como necessário, por meio da sua combinação com o supremo valor reconhecido do meio ambiente”. Desse ângulo o desenvolvimento sustentável aparece como uma operação de encobrimento: ele acalma os medos provocados pelos efeitos indesejáveis do desenvolvimento econômico. Segundo a idéia de sustentabilidade produzida nos dois eventos acima citados, “o que deve ser sustentado é o desenvolvimento, e não a capacidade (de tolerância) dos ecossistemas das sociedades humanas” (RIST, 1997, p. 194) Assim, a formulação da crise ambiental nos termos em que foi apresentada mundialmente e as formas de combatê-la devem ser explicadas dentro dos mecanismos de ajustes e demandas do sistema capitalista mundial, sendo que o modelo do Desenvolvimento Sustentável não é um outro estilo de desenvolvimento, mas um mecanismo proposto e adotado pelo centro de poder do referido sistema, para conduzir e legitimar as políticas ambientais globais em consonância com seu ritmo e lógica. A transformação dos problemas ambientais locais com suas diversidades e complexidades em problemas globais homogeneizados foi elevada, no plano do discurso, ao status de uma nova proposta de sociedade global, a partir da valorização do meio ambiente global, como expresso no conceito de Desenvolvimento Sustentável. Isso não significa dizer que o referido conceito, tal como fora proposto pelas Organizações das Nações Unidas, em suas várias instâncias, representasse, efetivamente, um modelo social novo. As deficiências teórico-metodológicas e das experiências práticas não deixam dúvidas quanto às dificuldades desse modelo de desenvolvimento, que tem de se constituir numa nova perspectiva societária do ponto de vista da reorganização social. Entretanto, não podemos deixar de compreender a construção do Desenvolvimento Sustentável como um mecanismo eficaz no processo de construção de uma ordem ecológica dentro da
ordem econômica mundial. Os dois objetivos centrais desse projeto são, portanto: a) a legitimação da ordem ecológica mundial, que implica uma divisão internacional ecológica e b) o estabelecimento de políticas de gestão e controle dos recursos naturais planetários por parte do centro do Capitalismo mundial. Os embaraços teóricos e metodológicos que o conceito de Desenvolvimento Sustentável vem enfrentado, as variações conceituais, talvez se expliquem não porque se trate de um conceito em construção como vem sendo dito, mas, particularmente, pela impossibilidade de inexistência concreta desse novo modelo de desenvolvimento global. Se este não pode efetivamente existir, existe, enquanto tal, se o que existe é apenas um discurso que dá suporte ao desenvolvimento econômico, no que se refere aos recursos naturais renováveis, e não renováveis é evidente que não há como encontrar coerência teórica nem metodológica numa proposta que se afirma apenas enquanto uma política de gestão de recursos naturais. Vários cientistas, de diversas áreas do conhecimento, buscaram entender e explicar, do ponto de vista teórico, o que viria a ser o Desenvolvimento Sustentável. É possível dispor as concepções desses autores em dois segmentos. No primeiro deles incluem-se os que têm por base o conceito oficial, apresentado pelo Relatório Brundtland, e tentam, de várias maneiras, dar-lhes plausibilidade teórica, quer seja redefinido ou ampliando os seus significados. Noutro segmento, vão ser encontrados àqueles que edificam suas análises sob a base de uma concepção crítica do conceito. Na verdade, este grupo não considera o modelo de Desenvolvimento Sustentável como um novo modelo de desenvolvimento, como se faz crer. Suas análises se preocupam, principalmente, em entender os arranjos ideológicos e políticos e as relações de poder que orientam o discurso do Desenvolvimento Sustentável no contexto da nova ordem econômica mundial. O quadro abaixo exemplifica as duas principais concepções que orientam o debate acadêmico sobre o conceito de Desenvolvimento Sustentável.
QUADRO 1 EXEMPLO DE VARIAÇÕES EM TORNO DO CONCEITO ORIGINAL DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E ALGUMAS PERSPECTIVAS CRÍTICAS
DESDOBRAMENTO 1 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DEVE SER DEFINIDO LEVANDO EM CONTA AS SEGUINTES METAS E OBJETIVOS BÁSICOS: A TAXA DE CONSUMO DE RECURSOS RENOVÁVEIS NÃO DEVE ULTRAPASSAR A CAPACIDADE DE RENOVAÇÃO DOS MESMOS; A QUANTIDADE DE REJEITOS PRODUZIDOS NÃO DEVE ULTRAPASSAR A CAPACIDADE DE ABSORÇÃO DOS ECOSSISTEMAS; RECURSOS NÃO RENOVÁVEIS DEVEM SER UTILIZADOS SOMENTE SE PUDEREM SER SUBSTITUÍDOS POR UM RECURSO EQUIVALENTE RENOVÁVEL (FENZL, 1998); PERSPECTIVA 1 NÃO HÁ LITERALMENTE NENHUMA EXPERIÊNCIA DE ECONOMIA INDUSTRIAL AMBIENTALMENTE SUSTENTÁVEL, EM QUALQUER LUGAR NO MUNDO, ONDE TAL SUSTENTABILIDADE SE ATRIBUA A UM ESTOQUE DE CAPITAL AMBIENTAL INEXAURÍVEL. É, PORTANTO, EVIDENTE, DE MODO IMEDIATO QUE, COM BASE NA EXPERIÊNCIA PASSADA APENAS, O TERMO “DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL” NÃO PASSA DE ALGO MAIS QUE UM OXÍMORO (EKINS; MAX-NEEF, 1992, p. 412);
DESDOBRAMENTO 2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL É AQUI DEFINIDO COMO UM PADRÃO DE TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS ESTRUTURAIS E SOCIAIS (I.E., DESENVOLVIMENTO) QUE OTIMIZAM OS BENEFÍCIOS SOCIETAIS E ECONÔMICOS DISPONÍVEIS NO PRESENTE, SEM DESTRUIR O POTENCIAL DE BENEFÍCIOS SIMILARES NO FUTURO (GOODLAND E LEDOC, 1987, p. 38); PERSPECTIVA 2 A INTERPRETAÇÃO DOMINANTE (....) VÊ O “DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL” COMO UM CONVITE A MANTER O “DESENVOLVIMENTO” – ISTO É, O CRESCIMENTO ECONÔMICO. O “DESENVOLVIMENTO”, JÁ UNIVERSAL E INEXORÁVEL, DEVE SE TORNAR ETERNO. (....) O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, ENTÃO, SIGNIFICA QUE O “DESENVOLVIMENTO” DEVE AVANÇAR NUM RITMO O MAIS “SUSTENTÁVEL” POSSÍVEL ATÉ QUE ELE SE TORNE IRREVERSÍVEL. (....) O “DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL” APARECE COMO UMA OPERAÇÃO DE ENCOBRIMENTO: ELE ACALMA OS MEDOS PROVOCADOS PELOS EFEITOS DO CRESCIMENTO ECONÔMICO, DE MODO QUE QUALQUER MUDANÇA RADICAL PODE SER EVITADA. (...) O QUE DEVE SER REALMENTE SUSTENTADO É O “DESENVOLVIMENTO”, NÃO A CAPACIDADE DE TOLERÂNCIA DO ECOSSISTEMA DAS SOCIEDADES HUMANAS. (....) UM ÚLTIMO PONTO RESTA AINDA A CONSIDERAR. SE O “DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL É SOMENTE UM CAMINHO PARA DAR ACEITABILIDADE A ALGUMAS PRÁTICAS ATÉ MAIS QUESTIONÁVEIS, TUDO MUDARIA COMO UM RESULTADO DO ATENDIMENTO DE LIMITAÇÕES AMBIENTAIS? A RESPOSTA NÃO É TÃO FÁCIL, PORQUE É IMPOSSÍVEL ELIMINAR AS QUESTÕES RELATIVAS AO PODER QUE DETERMINAM AS PRÁTICAS DO MUNDO REAL (RIST,
1997 : 193-194);
DESDOBRAMENTO 3 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL SIGNIFICA ALCANÇAR SATISFAÇÃO CONSTANTE DAS NECESSIDADES HUMANAS E A MELHORIA DA QUALIDADE DA VIDA HUMANA (ALLEN, R., 1980); PERSPECTIVA 3 O PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL É BASEADO NUMA RACIONALIDADE ECONÔMICA E NÃO ECOLÓGICA. AS PRINCIPAIS SUPOSIÇÕES DO PARADIGMA ECONÔMICO NEOCLÁSSICO PERMANECEM INTOCADAS E O CRESCIMENTO ECONÔMICO PERMANECE INQUESTIONÁVEL, SENDO CONSIDERADO UM CRESCIMENTO SUSTENTADO. PRIORIDADES AMBIENTAIS DIFEREM EM DIFERENTES REGIÕES. AS COMUNIDADES RURAIS POBRES DEPENDEM DIRETAMENTE DO MEIO AMBIENTE BIOFÍSICO PARA SOBREVIVER E AS NOÇÕES DE CONSERVAÇÃO E PROTEÇÃO QUE SÃO COMUNS EM PAÍSES DESENVOLVIDOS SÃO CONTESTÁVEIS EM PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO. ENQUANTO A POBREZA É CITADA COMO CAUSA DA DEGRADAÇÃO AMBIENTAL, O PAPEL DO DESENVOLVIMENTO EM RESTRINGIR O ACESSO AOS RECURSOS NATURAIS PARA AS POPULAÇÕES RURAIS NÃO É DISCUTIDO. O ESVERDEAMENTO DA INDÚSTRIA EM PAÍSES DESENVOLVIDOS TEM SIDO ALCANÇADO ÀS CUSTAS DO MEIO AMBIENTE DO TERCEIRO MUNDO, ATRAVÉS DA REALOCAÇÃO DE INDÚSTRIAS POLUENTES NOS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO (BANERJEE, 2000); DESDOBRAMENTO 4 O DESENVOLVIMENTO AUTÊNTICO É SUSTENTÁVEL? O ÚNICO TIPO DE DESENVOLVIMENTO QUE É
SUSTENTÁVEL É O DESENVOLVIMENTO AUTÊNTICO. CONTUDO, O DESENVOLVIMENTO AUTÊNTICO É MONUMENTALMENTE DIFÍCIL: É DIFÍCIL DE DESEJAR, DE IMPLEMENTAR E DE MANTER. O ENSAÍSTA INGLÊS G. K. CHESTERTON, COM PERVERSIDADE, OBSERVOU CERTA VEZ QUE “O IDEAL CRISTÃO NÃO FOI TENTADO, TENDO APRESENTADO DEFEITO. ELE TEM SIDO CONSIDERADO DIFÍCIL; E ABANDONADO SEM SE EXPERIMENTAR”. O DESENVOLVIMENTO AUTÊNTICO SUSTENTÁVEL PODE IGUALMENTE PERMANECER SEM EXPERIMENTARSE, POR SER CONSIDERADO MUITO DIFÍCIL.
PERSPECTIVA 4 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, APESAR DE RELATIVAMENTE RECENTE, NUM ÁTIMO TORNOUSE PANACÉIA E SLOGAN INEVITÁVEL DA “SABEDORIA CONVENCIONAL”. DESBANCOU, NAS DISCUSSÕES ACADÊMICAS E DOS FORMULADORES DA POLÍTICA DESENVOLVIMENTISTA, O CHARME QUE A CONTROVÉRSIA CRESCIMENTO ECONÔMICO EQUILIBRADO VERSUS DESEQUILIBRADO EXERCIA. HÁ QUEM O CONSIDERE O “SÍMBOLO DE UM CONSENSO IDEAL”. OU, AO ARREPIO DAS IDÉIAS SEMINAIS DE KUHN, O “NOVO PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO”. (....) HÁ PLANOS DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL E PROGRAMAS DE GOVERNO ESTADUAIS QUE O MENCIONAM VAGA, CONTRADITÓRIA E ALEATORIAMENTE. OUTROS, DE FORMA CONFLITUOSA COM VÁRIAS DAS DIRETRIZES E DOS OBJETIVOS PRIORITÁRIOS CONJUNTAMENTE COLIMADOS, PRÓDIGOS EM ELEGÊ-LO PARÂMETRO DE INTENÇÕES, MAIS SOMÍTICOS QUANTO ÀS FORMAS EFETIVAS DE OPERACIONALIZÁ-LO MACRORREGIONALMENTE. POR CONSTITUIR CHAVÃO OBRIGATÓRIO DO EM VOGA “POLITICAMENTE CORRETO”, TEM SIDO, NO QUE TANGE À AMAZÔNIA BRASILEIRA, USADO À LARGA (COSTA, 1997, p. 81-82);
DESDOBRAMENTO 5 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ENVOLVE UMA RECONSTRUÇÃO DA PRESENTE PARTE INDUSTRIAL DA SOCIEDADE GLOBAL, E UMA INDUSTRIALIZAÇÃO (COM UMA NOVA RACIONALIDADE) DA PARTE NÃO-INDUSTRIALIZADA DO MUNDO. ESTA RECONSTRUÇÃO É DIFÍCIL E EXIGE O MELHOR DO SABER. ELA DEVE BASEAR-SE NA CIÊNCIA, E TAL CIÊNCIA DEVE SER BOA CIÊNCIA (ERIKSSON, 1997, p. 100-101); PERSPECTIVA 5 MESMO QUE A IDÉIA DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL PASSE A PREDOMINAR SOBRE A DE DESENVOLVIMENTO, NO DISCURSO INTERNACIONAL, É POUCO PROVÁVEL QUE ELA SIRVA A UM OBJETO DE APROXIMAÇÃO DE POSIÇÕES ENTRE O MUNDO DESENVOLVIDO E O MUNDO EM DESENVOLVIMENTO. AO CONTRÁRIO, A PRÓPRIA PERSPECTIVA DA SUSTENTABILIDADE DO DESENVOLVIMENTO, EM TERMOS GLOBAIS, PROVAVELMENTE VARIARÁ ENTRE PAÍSES DESENVOLVIDOS E EM DESENVOLVIMENTO. OS PAÍSES DESENVOLVIDOS, DE UMA FORMA GERAL, TENDEM A VER O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO ALGO NECESSÁRIO SOBRETUDO EM PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO, PREOCUPADOS QUE ESTÃO COM SEU POTENCIAL DE CRESCIMENTO E A CONSEQÜENTE PRESSÃO SOBRE OS RECURSOS DO PLANETA. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NÃO EXIGIRIA A SUPERAÇÃO DO SUBDESENVOLVIMENTO, MAS APENAS A ADOÇÃO DE COMPROMISSOS ADICIONAIS PELOS PAÍSES DO TERCEIRO MUNDO QUANTO A SUAS FORMAS DE DESENVOLVIMENTO. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NÃO IMPLICARIA QUE OS PAÍSES POBRES DEIXASSEM DE SER POBRES, MAS APENAS QUE PASSASSEM A UTILIZAR
SEUS RECURSOS DE MANEIRA MAIS RESPONSÁVEL. O PONTO DE PARTIDA PARA SUA CRÍTICA NÃO SERIA, PORTANTO, O SUBDESENVOLVIMENTO, MAS O MAU DESENVOLVIMENTO. OS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO, AO CONTRÁRIO, PARTEM DA CONSTATAÇÃO DE QUE, NO PLANO INTERNACIONAL, ENTRE OUTROS ASPECTOS, NÃO PODE SER SUSTENTÁVEL UM DESENVOLVIMENTO QUE IMPLIQUE A MANUTENÇÃO DE GRANDE DESIGUALDADE NA DISTRIBUIÇÃO DOS RECURSOS DO PLANETA. ALÉM DISSO, CRÊEM NÃO SER SUSTENTÁVEL HOJE SOBRETUDO O DESENVOLVIMENTO DOS PAÍSES DESENVOLVIDOS, QUE SÃO OS QUE CONSOMEM A MAIOR PARTE DOS RECURSOS GLOBAIS. NÃO SERIA, ADEMAIS, POSSÍVEL FALAR EM DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ONDE HÁ AUSÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO E A REALIDADE DOMINANTE É A DO SUBDESENVOLVIMENTO, QUE IMPLICA MISÉRIA, FOME, PROBLEMAS BÁSICOS DE NUTRIÇÃO E DE SAÚDE, DE SANEAMENTO, DE EDUCAÇÃO, DE MORADIA, DE MARGINALIDADE URBANA, DE EXCLUSÃO DE GRANDE NÚMERO DE CRIANÇAS E JOVENS DOS PROCESSOS SOCIAIS, CUJO IMPACTO NEGATIVO SOBRE O FUTURO É INEGÁVEL. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, EM PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO, TERIA QUE PRESSUPOR, PORTANTO, A SUPERAÇÃO DO SUBDESENVOLVIMENTO (ALMINO, 1993, p. 89);
DESDOBRAMENTO 6 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NÃO É APENAS UMA PREOCUPAÇÃO DA IMPLEMENTAÇÃO DE MEDIDAS DE POLÍTICA AMBIENTAL ADEQUADAS. SEU PRÉ-REQUISITO É UM SISTEMA POLÍTICO E ECONÔMICO ESTÁVEL QUE PERMITA A PARTICIPAÇÃO DE TODA A SOCIEDADE (PROOPS ET AL., 1997, p. 111);
PERSPECTIVA 6 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL RECOMPILA A HISTÓRIA, TÃO SECTORIZADA, INDEPENDENTE E MAL CONTADA, PARA INTEGRÁ-LA NUMA SÓ; NA HISTÓRIA DO CONHECIMENTO HUMANO DESENVOLVIDA NOS CAMPOS DA POLÍTICA, DA ECONOMIA, DO SOCIOCULTURAL, E DAS RELAÇÕES HUMANAS COM A NATUREZA (NEGRET, 1994, p. 15);
DESDOBRAMENTO 7 PARA QUALQUER FORMA DE DESENVOLVIMENTO SER SUSTENTÁVEL, O CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO NA ÁREA ENVOLVIDA, TANTO PELA REPRODUÇÃO COMO PELA MIGRAÇÃO, DEVE PERMANECER DENTRO DOS LIMITES DA CAPACIDADE DE SUPORTE, A QUAL, CONQUANTO NÃO FIXA, TAMBÉM NÃO É LIVRE PARA AUMENTAR AO BEL-PRAZER DE NINGUÉM. NÃO EXISTE “DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL” PARA UM NÚMERO INFINITO DE PESSOAS (FEARNSIDE, 1997, p. 314); PERSPECTIVA 7 É IMPORTANTE EVITAR QUE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL FAVOREÇA O CONGELAMENTO NÃO APENAS DAS ATUAIS DISPARIDADES DE DESENVOLVIMENTO, MAS TAMBÉM DA ATUAL DISTRIBUIÇÃO MUNDIAL DE POLUIÇÃO. AO IMPEDIR-SE O ACRÉSCIMO DO NÍVEL GLOBAL DE POLUIÇÃO POR PARTE DE PAÍSES QUE DESEMPENHAM UM PAPEL SECUNDÁRIO NOS EFEITOS GLOBAIS, SEM QUE, AO MESMO TEMPO, OS PRINCIPAIS POLUIDORES GLOBAIS, APESAR DAS MEDIDAS ECOLÓGICAS QUE ADOTAM, REDUZAM DRASTICAMENTE SUA PRÓPRIA CONTRIBUIÇÃO, ESTAR-SE-IA PARTINDO IMPLICITAMENTE DO PRESSUPOSTO DE QUE OS POLUIDORES GLOBAIS TÊM DIREITO A MANTER SUAS ATUAIS “QUOTAS” DE POLUIÇÃO DA TERRA (ALMI-
NO, 1993, p. 83); DESDOBRAMENTO 8 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL QUER DIZER UM DESENVOLVIMENTO COM EFICIÊNCIA ECONÔMICA, PRUDÊNCIA ECOLÓGICA E JUSTIÇA SOCIAL. (....) ATRÁS DO TRIPÉ DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL APARECEM AS TRÊS DIMENSÕES QUE NENHUM PROJETO DE UM DESENVOLVIMENTO EQUILIBRADO DA SOCIEDADE GLOBAL PODE NEGAR. TRATA-SE: A) DA DIMENSÃO DO CÁLCULO ECONÔMICO; B) DA DIMENSÃO BIOFÍSICA; C) DA DIMENSÃO SÓCIO-POLÍTICA (BRÜSEKE, 1996, p. 115); PERSPECTIVA 8 O CONCEITO DE “DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL” PODE SE TORNAR OPERACIONAL NÃO APENAS POR UMA MELHOR ECONOMIA, BOAS TECNOLOGIAS OU A INCLUSÃO DE PREOCUPAÇÕES AMBIENTAIS NOS PROJETOS DE INVESTIMENTO; SEU VERDADEIRO SIGNIFICADO SERÁ DERIVADO SOMENTE DOS ESFORÇOS SISTEMÁTICOS PARA CONSTRUIR UMA SOCIEDADE MAIS ESTÁVEL, RACIONAL E HARMÔNICA, BASEADA EM PRINCÍPIOS DE IGUALDADE E JUSTIÇA NOS RELACIONAMENTOS ENTRE OS HOMENS, EM CADA SOCIEDADE EM NÍVEL GLOBAL (RATTNER, 1999 : 105);
DESDOBRAMENTO 9 O DESENVOLVIMENTO BASEADO NO USO PRODUTIVO DE RECURSOS NATURAIS PARA O CRESCIMENTO ECONÔMICO E FORTALECIMENTO DOS MEIOS DE VIDA, QUE CONSERVA SIMULTANEAMENTE A DIVERSIDADE BIOLÓGICA E SOCIAL QUE CONSTITUEM PARTE INTEGRANTE DESTE PROCESSO (HALL, 1997 : 273);
DESDOBRAMENTO 10 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL CONSTITUI A FACE TERRITORIAL DA NOVA FORMA DE PRODUZIR, A VERSÃO CONTEMPORÂNEA DA TEORIA E DOS MODELOS DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL (BECKER, 1994);
DESDOBRAMENTO 11 ALCANÇAR UM DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NÃO É APENAS UMA PREOCUPAÇÃO DA IMPLEMENTAÇÃO DE MEDIDAS DE POLÍTICA AMBIENTAL ADEQUADAS. SEU PRÉ-REQUISITO É UM SISTEMA POLÍTICO E ECONÔMICO ESTÁVEL QUE PERMITA A PARTICIPAÇÃO DE TODA A SOCIEDADE. UMA POLÍTICA QUE “MUDA AS REGRAS DO JOGO” COM MUITA FREQÜÊNCIA É UM ENTRAVE AO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E ECONÔMICO (PROOPS, 1997, p. 111);
DESDOBRAMENTO 12 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, COMO FOI APONTADO NA AGENDA 21, REQUER TANTO UM EQUILÍBRIO SOCIAL QUANTO AMBIENTAL. O ESPAÇO AMBIENTAL PER CAPITA, PORTANTO, DEVE SER IGUAL PARA QUALQUER PESSOA. A DISTRIBUIÇÃO EQÜITATIVA DA QUANTIDADE FÍSICA DE RECURSOS DO PLANETA DETERMINA O LIMITE SUPERIOR OU O TETO DO ESPAÇO AMBIENTAL, QUE É MEDIDO COM BASE NO CONSUMO DE RECURSOS PER CAPITA. O LIMITE INFERIOR, OU O PISO, É DEFINIDO COMO A QUANTIDADE MÍNIMA DE USO DE RECURSOS PER CAPITA QUE SÃO NECESSÁRIOS PARA UMA VIDA DIGNA. O PRINCÍPIO DE EQÜIDADE DEFINE, DESTA FORMA, UMA ESPÉCIE DE DIREITO HUMANO AO USO DOS RECURSOS GLOBAIS QUE SÃO PATRI-
MÔNIO COMUM DA HUMANIDADE, SENDO PARTE CONSTITUTIVA DA DEFINIÇÃO DE ESPAÇO AMBIENTAL (ACSELRAD; LEROY, 1999, p. 18);
DESDOBRAMENTO 13 “...DESDE LOGO, O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ASSUME IMPORTÂNCIA NO PRÓPRIO MOMENTO EM QUE OS CENTROS DE PODER MUNDIAL DECLARAM A FALÊNCIA DO ESTADO COMO FORÇA MOTRIZ DO DESENVOLVIMENTO E PROPÕEM SUA SUBSTITUIÇÃO PELO MERCADO, ENQUANTO DECLARAM TAMBÉM A FALÊNCIA DO PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL. AO REVISAR-SE ATENTAMENTE OS COMPONENTES BÁSICOS DA SUSTENTABILIDADE DO DESENVOLVIMENTO – ISTO É, A MANUTENÇÃO DO ESTOQUE DOS RECURSOS E DA QUALIDADE AMBIENTAL PARA SATISFAZER AS NECESSIDADES BÁSICAS DAS ATUAIS E FUTURAS GERAÇÕES – CONSTATA-SE, TAMBÉM, QUE ESSA SUSTENTABILIDADE REQUER PRECISAMENTE UM MERCADO REGULADO E UM HORIZONTE A LONGO PRAZO PARA AS DECISÕES PÚBLICAS. ENTRE OUTROS MOTIVOS, PORQUE ATORES E VARIÁVEIS COMO “GERAÇÕES FUTURAS” OU “LONGO PRAZO” SÃO ESTRANHAS AO MERCADO, CUJOS SINAIS CORRESPONDEM À ÓTIMA ATRIBUIÇÃO DE RECURSOS EM CURTO PRAZO. O MESMO SE APLICA, COM MAIOR RAZÃO, AO TIPO ESPECÍFICO DE ESCASSEZ ATUAL. SE A ESCASSEZ DE RECURSOS NATURAIS PODE, AINDA QUE DE MODO IMPERFEITO, SER IDENTIFICADA NO MERCADO, ELEMENTOS COMO O EQUILÍBRIO CLIMÁTICO, A CAMADA DE OZÔNIO, A BIODIVERSIDADE OU A CAPACIDADE DE RECUPERAÇÃO DO ECOSSISTEMA, TRANSCENDEM À AÇÃO DO MERCADO...” (GUIMARÃES, 1997, p. 58).
É preciso entender que as abordagens sobre meio ambiente não são moldadas pelas visões ecocêntricas, como pretendem alguns cientistas e correntes ambientalistas. Nos arranjos que orientam a sociedade moderna, não há evidência de que se adote uma preocupação legítima com a natureza como princípio para organizar a sociedade, como o próprio conceito de Desenvolvimento Sustentável tende a induzir. É por meio da racionalidade econômica, que inclui o controle do crescimento populacional e a poupança dos recursos naturais, por parte de alguns grupos sociais, que são sistematizadas e direcionadas as políticas e as ações ambientais, sempre do ponto de vista do valor utilitário da natureza. Neste sentido, Banerjee (2000) afirma: O paradigma do desenvolvimento sustentável é baseado numa racionalidade econômica e não ecológica. As principais suposições do paradigma econômico neoclássico permanecem intocadas e o crescimento econômico permanece inquestionável, sendo considerado um crescimento sustentado. Prioridades ambientais diferem em diferentes regiões. As comunidades rurais pobres dependem diretamente do meio ambiente biofísico para sobreviver e as noções de conservação e proteção que são comuns em países desenvolvidos são contestáveis em países em desenvolvimento. Enquanto a pobreza é citada como causa da degradação ambiental, o papel do desenvolvimento em restringir o acesso aos recursos naturais para as populações rurais não é discutido. O Esverdeamento da indústria em países desenvolvidos tem sido alcançado às custas do meio ambiente do terceiro mundo, através da realocação de indústrias poluentes nos países em desenvolvimento (BANERJEE, 2000). Ainda em referência aos sentidos em que o conceito de Desenvolvimento Sustentável é usado, notamos que este, como o elemento chave de um discurso que articula símbolos e significados diversos, tem sido aplicado de forma a substituir conceitos e visões anteriores, que tinham como preocupação principal a reflexão sobre o crescimento econômico,
sendo, por isso mesmo, muito mais atacáveis do que um modelo que anuncia a preocupação com a “salvação do planeta, do ecossistema mundial.29 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO GESTÃO DE RECURSOS NATURAIS O modelo de Desenvolvimento Sustentável, na prática, sempre se expressou como um projeto internacional de gestão de recursos naturais das áreas ecológicas mais importantes do planeta. Isto tem sido possível pelo estabelecimento, por meio de mecanismos diversos, de um discurso consensual, que tem como conseqüência a construção da plausibilidade da idéia segundo a qual haveria interesses comuns entre países propositores e receptores das políticas ambientais globais, salvo nas áreas ricas em petróleo que são comandadas pelos mecanismos de poder e pressão internacional, incluindo a guerra. É através da aceitação e implementação de uma Divisão Ecológica Internacional – DEI, efetivada, inclusive, pela construção da idéia de risco iminente que pairaria sobre o ecossistema planetário e pela proposta do modelo de Desenvolvimento Sustentável, que se torna possível a gestão internacionalizada e a apropriação dos recursos ambientais das áreas definidas como de “interesse planetário”. É neste sentido que, embora sejam grandes as cobranças de modelos de
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Costa (1997) comenta a maneira pela qual o conceito de Desenvolvimento Sustentável se constitui numa abordagem mais “politicamente correta” do que as anteriores: “O Desenvolvimento Sustentável, apesar de relativamente recente, num átimo tornou-se panacéia e slogan inevitável da “sabedoria convencional”. Desbancou, nas discussões acadêmicas e dos formuladores da política desenvolvimentista, o charme que a controvérsia crescimento econômico equilibrado versus desequilibrado exercia. Há quem considere o símbolo de um consenso ideal. Ou ao arrepio das idéias seminais de Kuhn, o “novo paradigma do desenvolvimento”. (....) Há planos de desenvolvimento regional e programas de governo estaduais que o mencionam vaga, contraditória e aleatoriamente. Outros, de forma conflituosa, com várias das diretrizes e dos objetivos prioritários conjuntamente colimados, pródigos em elegê-lo parâmetro de intenções, mais somíticos quanto às formas efetivas de operacionalizá-lo macrorregionalmente. Por constituir chavão obrigatório em voga, “politicamente correto”, tem sido, no que tange à Amazônia brasileira, usado à larga” (COSTA, 1997, p. 81-82).
Desenvolvimento Sustentável para espaços urbanos, a produção nessa área não tem prosperado.30 Graças ao conjunto de metáforas da “unidade da espécie” e da inclusão de todos, articuladas no conceito de Desenvolvimento Sustentável, são superadas as fronteiras nacionais e as possíveis barreiras legais que porventura possam existir para implementar os projetos ambientais que se abrigam no referido modelo de desenvolvimento e no mais significativo plano de ação ecológica global, a Agenda Global 21.31 No nosso entender, construído pela análise das evidências empíricas, vigora, em áreas ecológicas, uma nova dinâmica que tem como base o controle e gestão dos recursos naturais dos grandes nichos ecológicos. Essa dinâmica de gestão, monitoramento e controle dos referidos recursos é reconhecida como ação capaz de produzir um Desenvolvimento Sustentável, o que facilita sua implementação sem qualquer questionamento sobre seus objetivos e finalidades como políticas ambientais globais. Esse movimento, que do ponto de vista teórico aparece como se se opusesse ao modelo de desenvolvimento eco30
Uma iniciativa da ONU, que visa implementar o Desenvolvimento Sustentável em 13 cidades do mundo, termina se voltando para o controle e gestão de recursos naturais em áreas não urbanas. No Brasil, a cidade contemplada foi Santos, no Estado de São Paulo. A denominada Agenda 21 local que foi implementada naquela cidade entre 1994-1996 teve seus projetos voltados, em particular, para áreas de reservas florestais e manguesais. Isto demonstra que esse modelo de desenvolvimento, nos países do Sul, mesmo quando procura responder aos desafios urbanos, sempre se aproxima de processo de gestão de recursos naturais. 31
Segundo Viola (1997), a produção da Agenda 21 resultou de um grande esforço de negociação internacional para a geração de um consenso normativo e um programa de certa operacionalidade para a humanidade com relação ao desenvolvimento sustentável. Segundo Barbieri (2000), a Agenda 21, transformada em Programa 21 pela ONU, é um plano de ação para alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável. Ela é uma espécie de consolidação de diversos relatórios, tratados, protocolos e outros documentos elaborados durante décadas na esfera da ONU (Assembléia Geral, FAO, PNUMA, UNESCO). Princípios, conceitos e recomendações expressos no relatório da Comissão Brundtand, nas estratégias de conservação da UICN, WWF, PNUMA de 1980, nas estratégias do Caring for the Earth, nos documentos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, por exemplo, podem ser reconhecidos no texto da Agenda. A Agenda 21 inclui os temas tratados na Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, nas convenções sobre Biodiversidade e sobre Mudanças do Clima, bem como a Declaração de Princípios sobre Florestas. As recomendações nas áreas da ciência contidas na Agenda 21 são resultado da conferência internacional realizada em Viena, denominada de Agenda da Ciência para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento do século 21 (Agenda Global 21 e BARBIERI, 2000, p. 58).
nômico dominante, no nosso entender, funciona como um processo subsidiário ao projeto de desenvolvimento econômico global. Não há, portanto, um desenvolvimento dando lugar ao outro. O que existe, efetivamente, são atividades de complementaridade entre o desenvolvimento econômico e o que é chamado de modelo de Desenvolvimento Sustentável, sendo as experiências de aplicação deste funcionais àquele. No caso do Brasil, o Ministério do Meio Ambiente funciona como a maior expressão institucional receptora dessas políticas. É claro que ele tem a anuência política do governo brasileiro e do Congresso Nacional, fórum privilegiado para aprovação dos acordos e convênios entre governos e instituições internacionais. Os Institutos de Pesquisas e Instituições Universitárias também desempenham funções importantes no aval aos projetos ambientais globais implementados no Brasil. Diante do problema da escassez dos recursos e da necessidade de manter a ordem econômica em vigência, é necessário que se construa, tal como está previsto na Agenda 21, uma rede científica e política para fomentar o debate sobre a necessidade de estabelecer normas, valores e práticas sociais com o fito de evitar, segundo aquele documento, as previsíveis catástrofes ecológicas previstas. No plano político, depois da própria mobilização dos governos de todas as nações modernas, incluindo aí as pobres e as ricas, e as principais organizações internacionais, quem vai desempenhar papel fundamental neste contexto são as ONGs32, na medida em que não apenas se envolvem no geAs Organizações não Governamentais – ONGs são instituições híbridas que se formam, em geral, a partir de interesses de grupos e o de indivíduos que estão ou tiveram vinculados a uma instituição de pesquisa ou de assessoria, principalmente as Universidades. No caso das entidades que tratam dos problemas ambientais, aquele antigo pesquisador vinculado a uma Universidade, que desenvolvia suas pesquisas num dado espaço e, por conseguinte, com uma dada comunidade, funda ou assessora a criação de uma ONG e transforma-se em seu coordenador ou assessor. Aquela área transforma-se em área de reservas e, por conseguinte, a comunidade passa a ser assistida pela nova entidade, o que vai assegurar a essa ONG seu poder de interlocução. Inclusive são elas que falam e orientam os projetos a partir das políticas ambientais globais, em nome das comunidades e das entidades tradicionais, como sindicatos de trabalhadores, associações de produtores, caixas agrícolas, as quais funcionam também como espaços de ressonância da primeira. Do ponto de vista dos aspectos legais, essas entidades estão submetidas a poucas exigências. Embora sejam exigidos delas estatutos e cadastramento, como elas não se vinculam ou não representam um grupo 32
renciamento direto dos recursos, como também são reprodutoras do projeto ecológico em curso, tanto no meio dos movimentos sociais, quanto entre as comunidades locais, estabelecendo uma fala “competente” em defesa dos problemas ambientais. Às vezes, a defesa do meio ambiente surge em contraposição às relações de trabalhos desenvolvidas pelas referidas comunidades. Nas áreas de proteção ambiental, conflitos nesse nível são recorrentes. Em alguns casos, em que os gerentes dos projetos têm pouca sensibilidade social, chegase a situações extremadas, nas quais os conflitos terminam nos tribunais. As ONGs, são fundamentais na implementação das políticas ambientais, desempenhando os papéis de mediadoras, fazendo parte da estrutura gerencial das referidas políticas e veiculando o conjunto das idéias ecológicas, no sentido de disseminar um discurso que, geralmente, é construído em espaços exógenos aos contextos nos quais os projetos de Desenvolvimento Sustentável são implementados. O esverdeamento da Amazônia vem se dando, principalmente, a partir da colaboração de organizações não governamentais, que, articuladas com um conjunto de instituições regionais, nacionais e internacionais, contribuíram para tecer o discurso ecológico ora hegemônico, visando à Gestão dos Recursos Naturais, sob a guarda do conceito de Desenvolvimento Sustentável. A construção do discurso ambientalista sobre Amazônia talvez seja, neste momento, o projeto mais importante no âmbito das políticas ambientais globais. Por meio da receptividade e da integração de falas das instituições internacionais e nacionais, pode-se “transformar” a região em área ecológica de “interesse global” (confirmando um dos pontos da proposta da Divisão Ecológica Internacional). Essa fala, que estabelece uma reconfiguração da região, se reproduz, com efeito multiplicador, sobre a prática social dos vários segmentos sociais da Amazônia, dando as condições para uma nova Agenda (ecológica) Amazônica.
social homogêneo, não há controle da entidade por parte das comunidades assistidas. As referidas ONGs têm obrigação, geralmente, com os órgãos financiadores dos seus projetos.
A forma privilegiada para a hegemonização do discurso a respeito da internacionalização da Amazônia é a constituição de uma rede de relações institucionais para a execução de projetos de aplicação do modelo de Desenvolvimento Sustentável, incluindo desde instituições internacionais, como o BIRD, a ONU, a Comunidade Européia, o Grupo dos 7, passando por associações, sindicatos de pequenos produtores rurais e entidades indígenas, cooperativas e associações de pescadores, associações de coletores e extratores, reservas extrativistas, federações, associações de classes, Universidades e outros tipos de ONGs. As entidades envolvidas no projeto de Apoio ao Manejo Florestal Integrado e Sustentável de Florestas Naturais na Amazônia, vinculado ao PPG7 por meio do Subprograma denominado de Unidades de Conservação e Gestão de Recursos Naturais, dão a dimensão das interações que se formam em torno das políticas de Gestão Ambiental na Amazônia, como podemos observar no quadro abaixo.
FIGURA 1 – Interações Institucionais na Amazônia Estas entidades se entrelaçam, formando uma rede a GRUPO DOS SETE Gov. Brasileiro Órgãos Federais1
Órgãos dos Estados da Amazônia2
Órgãos dos Municípios da Amazônia3
PPG7
Entidades de Assessoria/Pesquisa e ONGs Ambientalistas 4
Entidades Comunitárias, Cooperativas e Outras 5
1
INPA, INCRA, MPMG, SUDAM, EMBRAPA, CEPLAC, CEPLAC, BB, FUNAI, Universidades, Fundações e Institutos Federais, IBAMA, SIVAM, IBGE, DNPM. 2 Secretaria do Meio Ambiente, Secretaria de Planejamento, Secretaria de Agricultura, Secretaria da Saúde, Secretaria Indústria e Comércio, Institutos de Terras, EMATERs. 3 Secretarias Municipais de Agricultura, Secretarias Municipais de Educação, Núcleos e/ou Secretarias M. do Meio Ambiente, Conselhos Municipais. 4 FASE, CPT, CNPT, Sociedade Civil Mamirauá, SOPREN, CTA, IMAZON, GTA, ARNI, POEMA, GDA, FETAGRI, UNIPOP, CNA, UNAMAZ, CAT, CI, NUMA, IBASE, IPAM, NAEA... 5 Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, Associações Comunitárias, Caixas Agrícolas, Associações agroextrativistas, Grupos de Mulheres, Organizações Indígenas, Organizações dos Quilombolas
FONTE: DOCUMENTOS DO PPG7
partir de fóruns privilegiados, que envolvem as instituições internacionais e governos dos países do Norte, os governos dos países receptores do projeto ou programas, e a represen-
tação das organizações não governamentais. As instituições internacionais e os governos dos países do Norte participam da implementação da política ambiental global, que visa ao desenvolvimento sustentável, na condição de propositores das referidas políticas e na condição de doadores. Eles destinam, de acordo com o seu PIB, um valor financeiro, na forma de ajuda para atender os países do Sul, no que diz respeito às políticas direcionadas à promoção do Desenvolvimento Sustentável. Na política de investimentos anunciados para a preservação do meio ambiente, foi bastante significativa a criação do GEF – Global Environment Facility –, uma das maneiras encontradas para que os países ricos pudessem contribuir com os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, visando implementar projetos ambientais globais. Este Fundo foi criado em 1991, como resultado de acordo entre países doadores envolvidos com a formulação das políticas ambientais globais para a Terra. O GEF é um mecanismo de financiamento que destina recursos na forma de doações para que os países do Sul, chamados de receptores, executem projetos e ações voltados para a preservação do meio ambiente global nas áreas definidas como fundamentais na determinação das mudanças climáticas, biodiversidade, e possuidoras de estoques significativos de águas potáveis. Seu gerenciamento é feito pelo PNUD e PNUMA e o Banco Mundial.33 Dentre as várias atuações, no Brasil, na área ambiental, o Banco Mundial também gerencia um outro fundo criado O GEF – Global Environment Facility (Fundo para o Meio Ambiente Mundial) foi estabelecido em meados de 1991, em caráter experimental, como produto de um acordo entre países doadores voltado para a organização e coordenação dos esforços destinados à proteção do ambiente global, seguindo a filosofia estabelecida durante a reunião de Londres acima mencionada. O Fundo foi concebido como um mecanismo de financiamento que outorga doações e concebe ajuda em condições concessionais para os países receptores de renda média e baixa para que executem projetos e atividades voltados para a proteção do ambiente global nas áreas de mudança climática, biodiversidade e águas internacionais. A responsabilidade pelo funcionamento do Fundo é compartilhada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e Banco Mundial. Do início efetivo das suas operações em 1991 até 1994, considerada a sua fase piloto, o Fundo financiou mais de 100 projetos em diversos países em desenvolvimento, totalizando cerca de US$ 750.00 milhões. Ao final dessa fase experimental, o Fundo passou por um processo de reestruturação, conforme havia sido recomendado na Conferência das Nações Unidas (CNUMAD), e deu início a sua fase operacional (GEFI), onde pretende aportar US$ 2,0 bilhões até 1997, conforme comprometimento dos países doadores de recursos (GEF, 1986). 33
em 1992, para dar suporte financeiro ao Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais – PPG7, intitulado Rain Forest Trust Found. O objetivo do Fundo é dar suporte financeiro para viabilizar a gestão do Programa, cujo objetivo enunciado é de conservar a biodiversidade, reduzir as emissões de carbono para a atmosfera e promover maior conhecimento das atividades sustentáveis na Amazônia. Ao compreender o modelo de Desenvolvimento Sustentável permeado por relações de poder e envolvido pelas condições políticas de dominação, podemos desconsiderar a existência do bom e do mau desenvolvimento, como foi posto, ainda na década de 70, no calor inicial do debate sobre a crise do meio ambiente. A partir desse esquema de inspiração moralista, os países do Sul não deveriam seguir o padrão de desenvolvimento econômico e de consumo dos países do Norte. A conclusão era a de que, se todas as nações se orientassem por esse mesmo padrão de desenvolvimento, o equilíbrio planetário estaria comprometido. A tese resultante foi a de que os países do Sul deveriam implementar um estilo diferente daqueles historicamente adotados no Norte, despontando como um modelo de “bom” desenvolvimento o de Desenvolvimento Sustentável. A implementação do modelo “bom” do Desenvolvimento teria como conseqüência necessária a aceitação da limitação do estilo de consumo e do ritmo de produção do Sul e, por tabela, a concordância com a manutenção dos padrões de consumo e de produção do Norte. Almino (1993) desenvolve com rara argúcia esse ponto de vista, ao demonstrar que:
A Globalização da estrutura produtiva e a interdependência econômica tornarão inviável a revisão das formas de desenvolvimento estabelecidas e dos padrões gerais de produção e consumo pelos países em desenvolvimento se tal revisão não ocorrer ao mesmo tempo no próprio centro do sistema econômico mundial. Enquanto ela não ocorrer, para que os padrões atuais de produção e consumo sejam minimamente sustentáveis nos países desenvolvidos, é necessário que outros países desistam de alcançar o mesmo patamar de produção e consumo, ou seja, é preciso que renunciem ao crescimento econômico e à expansão do uso dos recursos naturais e que contenham seu crescimento populacional. É já lugar comum, no pensamento ecológico, sobretudo em países desenvolvidos, a idéia de que a capacidade do Planeta não permitiria que os países em desenvolvimento atingissem os padrões de produção e consumo dos países desenvolvidos. O desenvolvimento Sustentável do Sul seria, portanto, fundamental para a sobrevivência da Humanidade e para a preservação dos padrões de produção e consumo do Norte (ALMINO, 1993, p. 83). As experiências classificadas como de Desenvolvimento Sustentável, neste caso, podem estar sendo realizadas à margem dos processos econômicos principais. A Vale do Rio Doce, por exemplo, atua na Amazônia como uma das maiores extratoras e beneficiadoras de recursos naturais do mundo, funcionando a partir da dinâmica econômica mundial e dos fluxos de mercado, sem qualquer referência à sustentabilidade do desenvolvimento. Ou seja, o vínculo de complementaridade entre as dinâmicas econômicas e as ações de Desenvolvimento Sustentável não é automático, nem direto. As interações existentes entre os processos econômicos e a preservação de recursos naturais fazem parte da lógica do sistema como um todo. A complementariedade entre Desenvolvimento Sustentável (gestão e controle dos recursos) e a dinâmica do capitalismo
internacionalizado no nosso entender, é regulada pela Divisão Internacional Ecológica. Neste sentido, cria-se uma aparência de ampla mobilização internacional e nacional traduzida na proliferação de ações e iniciativas do Desenvolvimento Sustentável. Uma análise mais profunda do que é apresentado mostra que, do ponto de vista das ações práticas que visariam ao Desenvolvimento Sustentável, qualquer procedimento ligado ao imaginário do ecologismo pode ser caracterizado como ações de construção da sustentabilidade do desenvolvimento. Para demonstrar esse princípio do “vale tudo” basta tomar como exemplo e observar as ações catalogadas pelo Ministério do Meio Ambiente como as cem “Principais Experiências de Desenvolvimento Sustentável implementadas no Brasil”, as quais foram disponibilizadas para conhecimento público por meio da página eletrônica daquele Ministério. Como podemos observar, é como se estivéssemos considerando práticas do Desenvolvimento Sustentável, ações, projetos, experiências que não deixam clara a sintonia com seus pressupostos epistemológicos e metodológicos, como, por exemplo, aos referentes a uma real possibilidade de relação entre desenvolvimento econômico e Meio Ambiente. Em muito do que é apresentado como experiências de Desenvolvimento Sustentável, os três pressupostos do modelo de Desenvolvimento Sustentável, a eqüidade, a eficiência econômica e a preservação dos recursos naturais a longo prazo, não são atendidos, sendo privilegiadas, sem sombra de dúvida, as ações preservacionistas, enquanto os dois outros eixos são quase completamente desprezados. Dentre os autores que discutem os problemas da aplicabilidade do conceito de Desenvolvimento Sustentável, Redclift (1996) considera que não é possível gerenciar com sucesso o meio ambiente, no nível global, sem alcançar o progresso em direção à sustentabilidade ao nível local. O autor advoga dois papéis para o Desenvolvimento Sustentável. Um primeiro papel a ser desempenhado seria como meta normativa para as sociedades. O segundo estaria vinculado ao mo-
delo como forma de entendimento dos ecossistemas (REDCLIFT, 1996, p. 3). A sustentabilidade, segundo o referido autor, não será atingida pela invenção de técnicas de gerenciamento para combater as contradições do desenvolvimento. Para Redclift, ela seria possível, se recuperássemos nosso controle sobre o consumo, em lugar de trabalhar na direção de novas instituições que gerenciam suas conseqüências. De acordo com a perspectiva desse autor, dois pontos, a saber, a efetividade do desenvolvimento local e a questão do consumo precisam ser atacados para que seja possível a implementação do Desenvolvimento Sustentável, analisando algumas pretensas experiências de Desenvolvimento Sustentável, na Amazônia, em particular, no Estado do Pará. O local, neste caso funciona apenas como a ambiência concreta do gerenciamento dos recursos naturais objetivando a preservação ambiental visando atender as demandas presentes e futuras da dinâmica do crescimento econômico, principalmente dos países hegemônicos. Nesse sentido, assistimos, dentro da proposição do Desenvolvimento Sustentável, à valorização de processos sociais tradicionais e locais. Estabelecida a nova Divisão Ecológica Internacional, várias práticas sociais de diversos grupos são valorizadas, relações de trabalho e modos de vida até então vistos como processos sociais residuais na modernidade tornam-se fundamentais no contexto ambiental. Os gestores das políticas internacionais, principalmente, procuram mobilizar todos os povos que de uma maneira ou de outra vivem em regiões cujos ambientes são pouco artificializados, do ponto de vista da expansão capitalista tradicional. Desse modo, passou-se a mobilizar pequenos agricultores, coletores, pescadores artesanais, populações indígenas que se vinculam diretamente à preservação de recursos naturais florestais pela capacidade que têm de poupar recursos em áreas de escassez e de poupar e preservar em áreas onde há recursos abundantes34. As práticas concretas apresentadas 34
Em toda a história da América Latina, os povos indígenas e tradicionais (caboclos, camponeses, seringueiros, peões, colonos, caiçaras etc.) têm sido tratado – na melhor das hipóteses – com desdém pela elite dominante. Só no século XVII, por exemplo, os “índios” foram considerados seres humanos com alma; e os cientistas ocidentais, de forma muito abrangente, ainda acreditam que o conhecimento tradicional é apenas folclore e que, de uma forma
como experiência de Desenvolvimento Sustentável, contrapõem-se à abordagem feita por Redclift, no que se refere à perspectiva do consumo. Para ele, deveria haver uma mudança nos comportamentos da população mundial, com relação ao consumo. Contudo, as próprias ações que visam à sustentabilidade ambiental, com base naquele modelo de desenvolvimento, em áreas ecológicas, correspondem às demandas dos mercados, no que tange ao uso de capitais naturais, visando em última instância atender aos padrões de consumo dos países desenvolvidos, ou, se quisermos ser mais precisos, de setores da população local/global com níveis de renda que os tornam hábeis para consumir. As políticas ambientais, neste sentido, efetivamente, não respondem aos problemas ecológicos reais, mas, buscam manter a hegemonia do modelo de organização social capitalista, a partir do controle do meio ambiente. Aquelas são muito mais determinadas pelas relações de poder e de um certo ordenamento pragmático do meio ambiente, do que pelos problemas reais que as sociedades podem enfrentar com os limites e a escassez de recursos naturais. O que parece estar no centro do debate sobre os problemas ambientais e sobre as eventuais estratégias de seu enfrentamento é, antes, a disputa pelo controle dos recursos naturais renováveis e não renováveis do planeta.
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Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável: considerações sobre um discurso de inferiorização dos povos da floresta Manuel Sena Dutra35 Introdução Não é fácil decifrar os sentidos dos dois primeiros termos-chaves do título deste artigo, ambos utilizados no intenso jogo discursivo que hoje se produz tendo o meio ambiente como objeto. Esse jogo exige ao pesquisador uma atenção acurada no trato desse tipo de terminologia, sem o que o trabalho científico terminará, ele também, sob o risco de utilizar-se de termos dúbios ou mesmo vazios de significado, comprometendo o próprio discurso da ciência. Este artigo quer oferecer uma breve contribuição ao debate que se avoluma em torno desses termos, componentes daquilo que se poderia aqui denominar de um discurso da ecologia ou um discurso do ecologismo, ou, mais comumente, discursos ambientais, conforme as preferências teóricas. Por exemplo, do ponto de vista de Mires (1990, p. 356), a ecologia não é um discurso tal como ocorre em referências irrefletidas sobre um discurso ecológico. Segundo esse autor, “ou o ecológico é um objeto articulado em unidades que se auto-reproduzem em seu próprio processo de expan35
Jornalista, Doutor em Ciências: Desenvolvimento Sócio-Ambiental. Pesquisa: mídia/meio ambiente. Professor de Jornalismo na Universidade Federal do Pará.
são, ou é um discurso independente. Em todo caso, não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo”. A partir deste princípio, afirma Mires (idem) que somente nos é possível falar de um discurso ecológico quando, dentro de um estilo de pensamento, a ecologia tenha rompido as suas relações articulativas e se deslocado para um lugar dominante, reduzindo todos os objetos co-participativos ao puramente ecológico, ou seja, quando a ecologia se transformou em ecologismo. Nesse sentido, o ecologismo não se diferencia do economicismo, ou do historicismo ou qualquer outro tipo de saber reducionista. Tratar de ecologia é embrenhar-se numa questão complexa, seja do ponto de vista original da biologia, assim como da cultura e da política (ESCOBAR, 1998, p. 53). Este autor acredita que, embora a biodiversidade tenha referentes biofísicos concretos, ela deve ser encarada como “uma invenção discursiva de recente origem”. E essa “invenção” recente, a nosso ver, constitui uma repetição/transformação de noções longamente cristalizadas, reeditadas na mídia sob formas, estas sim, efetivamente recentes. Do nosso ponto de vista, talvez se possa recorrer a um conceito próximo a um discurso sobre a ecologia ou, se se queira, um discurso sobre o ecologismo, ou seja, a discursos de cientistas e de outros atores sociais sobre a ecologia, os ecologistas e/ou o meio ambiente. Ou ainda, como é o caso de nossa pesquisa em andamento, podemos produzir o nosso próprio discurso sobre discursos que explícita ou implicitamente se auto-classificam como ecológicos, tal como o corpus empírico que analisamos. Nosso trabalho se desenvolve dentro do campo da comunicação. É a partir desse lugar que nos interessam os demais campos disciplinares fronteiriços, privilegiando conceitos como ecologia, biodiversidade, desenvolvimento sustentável, numa busca por encontrar seus sentidos produzidos não propriamente no ambiente científico ou no senso comum disseminado no imaginário coletivo, mas os sentidos que a mídia, no processo de captura de sentidos, tanto no ambiente
científico como no imaginário, os utiliza na fabricação de seu próprio produto. É, portanto, no produto da mídia que se concentra o nosso esforço. O corpus que analisamos se compõe de cinco programas de televisão tipificados como documentários, educativos, videoclips, nos quais as questões ambientais são pautadas e roteirizadas de modo destacado. Talvez não exista outro lugar, como a mídia, em que a profusão semântica daqueles termos se revele mais intensa, pois é da multiplicidade dos sentidos postos em circulação que os dispositivos emissores, como a TV, retiram os fragmentos com os quais empacotam os seus produtos, tendo o cuidado de não lhes oferecer definições explícitas, o que seria particularizar um discurso que se pretende universal, interpretável pelos mais distintos tipos de consumidores. É dentro destes limites teóricos que realizamos a nossa reflexão. A impressionante evolução de um conceito guarda-chuva Algumas das noções contidas nesses termos centrais do debate ambiental contemporâneo não são recentes, pois podemos identificar a sua gênese a partir do momento em que nasceu o conceito de ecologia, que aqui consideramos como uma espécie de guarda-chuva, debaixo do qual se aninha a multiplicidade de noções transportadas hoje pelos termos biodiversidade/desenvolvimento sustentável, povos da floresta. Como suporte de um conceito científico, o termo ecologia tem uma história relativamente longa. Foi empregado pela primeira vez em 1866, em língua alemã, pelo zoólogo Ernst Haeckel, sob a forma ökologie, havendo registros de que nos anos 1870 foi traduzido para o inglês como ecology. No início, tratava-se de um conceito vinculado às noções de habitat, indicando o estudo das relações de plantas e animais entre si e entre seu habitat. No processo social de evolução/transformação de sentido, ecologia passou a vincular-se ao ambiente (environment) e, nos anos seguintes, ao termo
environmentalism como o estudo da influência do meio físico sobre o desenvolvimento econômico. Assim, ambientalismo torna-se de uso comum a partir dos anos 1950 relacionado a conservação e preservação. A partir dos anos 1960 passa ao uso comum, associando conceitos como ecocrises, ecocatástrofe (WILLIAMS, 1976, p. 110-11) e, a partir dos anos 1970, à noção de ecocídio. Como se vê, no nascimento do termo, ecologia transportava uma proposta delimitada pelas ciências naturais. No começo do século XX, a expansão de seu uso social levou o termo para o ambiente acadêmico, como parte de argumentação interna de várias disciplinas, inclusive as sociais e humanas. Segundo Pádua (1997, p. 42-3), a mais surpreendente evolução da palavra ocorreu a partir dos anos 1960 “quando a ecologia rompeu os muros da discussão científica para transformar-se em um dos ícones centrais do imaginário contemporâneo”, sendo presença marcante nas relações internacionais, nas práticas educativas, nas políticas públicas e em ações coletivas das chamadas organizações nãogovernamentais (ONGs). Acrescenta Pádua (idem, ibidem): “Mais ainda, ela [a palavra ecologia] penetrou significativamente nos meios de comunicação de massa, na publicidade e nos diversos aspectos da arte e da cultura”. Williams (1976, p. 22) lembrando a variação de sentido de época para época, afirma que as palavras são elementos integrantes do processo social da linguagem, variando segundo a época, sendo a linguagem não apenas um reflexo do processo histórico e social, porém, importantes processos sociais e históricos ocorrem dentro mesmo da linguagem, por meandros que indicam “how integral the problems of meanings and relationships really are”. Dessa forma, as variações de sentido de ecologia são determinadas pelas variações dos processos sociais, recebendo destes interferência e, ao mesmo tempo, neles interferindo. A profusão semântica de biodiversidade
Juntamente com desenvolvimento sustentável, biodiversidade torna-se um enunciado-chave para a compreensão do jogo produtor de sentidos sobre a Amazônia contemporânea, onde sobrevivem aqueles grupos que, com freqüência, a mídia categoriza como povos da floresta. Na verdade, nesse embate discursivo, biodiversidade e desenvolvimento sustentável são termos que inexistem separados, mas se complementam, são intimamente interdependentes. Essa interdependência parte da conexão entre a biodiversidade, isto é, os recursos naturais vivos, e o desenvolvimento econômico, ou seja, a “ideologia do crescimento” (MIRES, 1990, p. 98). A “ideologia do crescimento” prevê que o meio ambiente não seja deteriorado em benefício da produção. É assim que vemos, numa definição elementar, o conceito de desenvolvimento sustentável associado umbilicalmente ao de biodiversidade, como referindo-se ao “uso da terra e da água para sustentar a produção indefinidamente, sem deterioração ambiental e, de modo ideal, sem perda de biodiversidade nativa” (WILSON, 1994, p. 416). Os dois termos chegam a confundir-se como sinônimos: A conservação da biodiversidade e o desenvolvimento sustentável são, nas mentes de muitas pessoas, quase sinônimos, e hoje quase todos os projetos de desenvolvimento com uma orientação ambiental precisam se justificar em termos de seu papel na conservação da biodiversidade (McGRATH, 1997, p. 33). As definições do conceito são obviamente múltiplas, porém em todas elas estão presentes noções centrais, como aquela que dá a biodiversidade como “abrangência de todas as espécies de plantas, animais e microrganismos, e dos ecossistemas e processos ecológicos dos quais são parte. Grau de variedade da natureza, incluindo número e freqüência de ecossistemas, espécies ou gens numa dada assembléia” (GLOSSÁRIO, 1997, p. 23). Mais próxima da biologia, esta definição reflete a dificuldade de inclusão do conceito de biodiversidade na variedade de discursos sociais que dele se ocupam.
Christian Lévêque, autor de obras como “Les écosystèmes aquatiques” (1996), “Environnement et diversité du vivant” (1994) e “Biologie et ecologie des poissons d’eau douce africains” (1988), em seu livro intitulado “A biodiversidade”, afirma, obviamente a partir de seu lugar de fala, que para alguns o termo biodiversidade “é um cesto vazio” no qual cada um coloca o que quer. “No entanto, mais além de um debate semântico” pelo qual o autor diz pouco se interessar, “convém precisar aquilo que entendemos por biodiversidade” (LÉVÊQUE, 1999, p. 13). Mais adiante (p. 24-5), Lévêque retoma a questão do “debate semântico” para afirmar que a biodiversidade é “um conceito federativo” por fazer “a mediação entre os sistemas ecológicos e sociais a fim de abordar a valorização e a gestão dos ambientes e dos recursos”. Para o autor (idem), os taxonomistas, os geneticistas, os economistas ou os sociólogos, “para não citar mais do que esses”, têm uma visão setorial da biodiversidade, isso em razão de suas preocupações disciplinares. E resume: “Os cientistas privilegiam os inventários e a dimensão ecológica, ao passo que os políticos preocupam-se mais com a dimensão econômica e as organizações de conservação da natureza, com a dimensão ética”. A partir de seu campo próprio, ou seja, de suas “preocupações disciplinares”, Lévêque, a despeito da crítica que faz, não escapa da disputa semântica que envolve o termo, e dá a sua definição, em consonância com o estabelecido na Convenção da Biodiversidade, firmada na conferência Rio92: “A biodiversidade está constituída pelo conjunto dos seres vivos, pelo seu material genético e pelos complexos ecológicos dos quais eles fazem parte” (idem, p. 14). E aponta as razões do interesse pela biodiversidade no mundo contemporâneo, das quais destacamos: a) a biodiversidade contribui para o fornecimento de numerosos produtos alimentares; b) está na base de toda produção agrícola; c) oferece importantes perspectivas de valorização no domínio das biotecnologias; e d) suscita uma atividade econômica ligada ao turismo (idem, p. 14-15). O autor ressalta que a biodiversi-
dade representa “o conjunto de recursos biológicos essenciais para a vida das sociedades humanas” (idem, p. 83). A profusão semântica de um termo tão em voga extrapola o âmbito estrito da biodiversidade e do desenvolvimento sustentável para atingir áreas afins, como a chamada educação ambiental. Pedrini (1997, p. 89) tem um capítulo cujo título é justamente “a confusão conceitual”. E acrescenta (idem, p. 89): “Há confusão conceitual no meio dos educadores ambientais oficiais ou não, nos pesquisadores ambientais formadores de opinião. Há também uma dificuldade de compreensão no meio empresarial”. E indaga: “E no seio das ONGs? E da sociedade civil organizada?” A estas questões, acrescentamos: e nos discursos da mídia? Fatalmente, tais indefinições e vaguezas dos conceitos centrais da temática ambiental ou ecológica permeiam os textos midiáticos e, de um certo modo, até acentuam essas características, haja vista ser próprio dos media a pretensão a uma linguagem universal, ou ao menos consumível pelo maior número possível de espectadores/ouvintes/leitores. Buscar uma definição própria seria, para a mídia, a sua inserção setorializada no debate semântico, o que cabe a outros atores sociais. Os sentidos que são produzidos, no nosso caso em estudo, são de outra ordem: a partir de sentidos pré-existentes no imaginário social, a mídia os reelabora com as marcas de suas condições próprias de produção, acrescentando-lhes os caracteres da sedução que busca o consenso, por meio da espetacularização que permeia e compromete o teor informativo. Além disso, os produtos da mídia, como no caso da televisão de circuito aberto que analisamos, são produtos de uma indústria de informação e entretenimento, logo, não objetivam uma causa, porém destinam-se ao mercado de bens simbólicos. E deste mercado partem coerções determinantes de suas condições de produção e circulação. A Amazônia como produto mercadológico
Na mídia impressa, sintomático do que afirmamos acima é o discurso estampado na capa da revista Isto É (2002), que tem como título geral, no rodapé, o enunciado “Meio ambiente, o capital verde”. Pouco acima, a discriminação semântica, a explicação: Preservar dá dinheiro. Na Amazônia, o lucro já começa a vir da extração dos recursos naturais, com avanço social, desenvolvimento econômico e preservação ambiental. Hoje, em plena crise, das poucas ofertas de emprego, a maioria está ligada à ecologia. Um pouco mais acima, a imagem da copa de uma árvore cujas folhas são cédulas verdes de 100 reais, misturadas a cédulas de dólar. Trata-se de um conjunto gráfico que caracteriza a capacidade de a mídia incluir os mais diversos tipos de discursos sociais e transformá-los numa espécie de pacote, dandolhe um novo significado pela fusão de conceitos os mais diversificados e sobre os quais não existe consenso entre os diferentes atores que deles se ocupam, seja no âmbito da ciência, da política, dos movimentos sociais ou no âmbito empresarial. Uma observação acurada da capa dessa revista daria, por si, uma tese inteira, a começar da recorrência histórica e contemporânea da representação da Amazônia como objeto discursivo estreitamente associado a interesses externos, como se torna explícito nas folhas da árvore que sintetiza os enunciados verbais. A vinculação contemporânea da Amazônia a uma espécie de discurso planetário está explícita, verbalmente, no início na reportagem de Isto É (p. 90): No concorrido universo da globalização, três palavras valem por milhões. CocaCola, Microsoft e Amazônia são as marcas mais frescas na memória dos consumidores. Está dito aí que a Amazônia é um produto de consumo. Logo, sua produção midiática vincula-se ao mercado. “Amazônia” é uma marca mercadologicamente produzida. Com efeito, para o empresariado, “desenvolvimento e sustentabilidade são as pedras angulares de
um sistema de mercados abertos e competitivos, no qual os preços devem refletir os custos dos recursos ambientais e outros” (UNGARETTI, 1998, p. 23). Citando Schmidheiny (1992, p. 25)36, Ungaretti (idem, p. 29) mostra trecho de um estudo de dois senadores norte-americanos sobre políticas públicas, realizado em 1991, em que ganha clareza cristalina a associação meio ambiente-mercado. Dizem os senadores: ... Nos últimos dois anos, temos testemunhado mudanças drásticas no panorama político das medidas ambientais. Legisladores, burocratas, ambientalistas, comerciantes e cidadãos de todos os tipos passaram a reconhecer que os instrumentos baseados no mercado fazem parte de nossa carteira de políticas relacionadas com o meio ambiente e os recursos naturais. No Brasil, existe desde 1991 uma Fundação para o Desenvolvimento Sustentável, entidade ligada ao empresariado internacional que se aglutina em torno da Business Council for Sustainable Development. A parte brasileira reúne, entre outras, a Vale do Rio Doce, Gazeta Mercantil, Varig, Mannesmann e Aracruz. Além disso, “os setores empresariais com melhor desempenho ambiental são aqueles que estão submetidos, por razões de mercado, às exigências do processo de internacionalização da economia” (UNGARETTI, idem, p. 34). Não se trata de espontaneísmo, porém isso é fruto da ação de movimentos sociais os mais diversos, quase sempre categorizados como ONGs que, em nome dos consumidores pressionam importadores de empresas brasileiras, fato que se verifica de modo crescente nas relações chamadas de Norte-Sul. Certezas e repetições no programa educativo Um dos programas que analisamos tem justamente o título de “Biodiversidade” e faz parte de uma série de dez 36
SCHMIDHEINY, Stephan. Mudando de rumo. Rio de Janeiro: FGV, 1992.
inserções sobre a Amazônia no programa de educação a distância denominado Telecurso 2000, emissão da Rede Globo e outras emissoras, produto de um conglomerado empresarial que tem à frente a Fundação Roberto Marinho e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Esta programação educativa visa à formação de mão-de-obra tecnológica, esforço do empresariado no sentido de aumentar a escolaridade dos trabalhadores brasileiros, e assim reduzir as desvantagens na competitividade internacional. Logo na entrada do programa, o locutor enuncia, professoralmente, em off: Biodiversidade é o tema do programa de hoje. O que ela significa? Por que a nossa sobrevivência depende dela? Qual a relação entre a Amazônia e a biodiversidade no Planeta? Nestes breves enunciados podemos detectar: a) o enunciado central, introdutório, solene. A biodiversidade merece um programa inteiro, dessa forma equiparando-se às demais disciplinas que compõem os dez programas da série; b) indagações que valem por afirmações. Não há dúvida sobre a existência de um significado, e este significado torna-se importante pelo enunciado precedente, solene e professoralmente introduzido. Se assim foi dito anteriormente, logo trata-se de um significado importante; c) na segunda interrogativa, mais explicita se evidencia uma afirmação: a nossa sobrevivência depende dela. Isto é dado por certeza. A questão se reduz em saber o porquê dessa dependência; d) igualmente ocorre no terceiro enunciado interrogativo: existe uma relação entre os enunciados Amazônia, biodiversidade e Planeta. A questão, então, é saber que relação é essa. Desse modo, o discurso televisivo/educativo interroga para confirmar enunciados pré-existentes, dados como certezas, constituindo essa formulação, na verdade, afirmações sob forma interrogativa. Sob a aparência de novidade, o programa repete e reafirma questões centrais que estão nas pautas de múltiplos atores sociais em disputa pela produção de sentidos sobre biodiversidade, Amazônia e Planeta. Ao não suscitar dúvidas, mas emitindo certezas, o Telecurso e
sua proposta explicitamente pedagógica tornam-se, dessa forma, não-pedagógicos. Aos alunos do Telecurso são emitidas noções de um senso comum que, embora recente, integra variados tipos de discursos sociais. Não educa, reforça prénoções disseminadas socialmente. No mesmo programa, o repórter de nome ficcional Danilo, passeando na floresta amazônica em companhia de um homem do lugar, fala: ... a biodiversidade é tamanha, são tantas espécies vegetais, tantos os equilíbrios, tantos os emaranhados de raízes, folhas, cipós, fungos, pequenos animais, os insetos ... e até os seres microscópicos. Toda essa riqueza que a ciência está pesquisando, e que os povos da floresta conhecem e utilizam. Riqueza que os livros estão começando a descrever, e que um caboclo como Sidomar, um ribeirinho que viveu sempre nas margens do Solimões, conhece por conhecer... Assim caracterizando, o repórter vai definindo o que, para o programa, significa a biodiversidade, detalhando os enunciados introdutórios em forma interrogativa. Os povos da floresta são incluídos na definição realizada verbal e imageticamente, porém o representante desses povos aparece no texto como espécie de acidente. Eles “conhecem e utilizam” a biodiversidade, no entanto Sidomar, representando discursivamente aqueles povos, somente “conhece por conhecer”. O conhecimento está sendo elaborado pela instituição científica e somente agora “os livros estão começando a descrever”. Para o programa, é esta a definição: Biodiversidade ou diversidade biológica, de uma forma ampla, significa a variedade de vida que existe na terra, incluindo todas as espécies. São os animais, plantas e até microrganismos e genes que a gente não consegue enxergar a olho nu. A biodiversidade envolve também as relações entre as espécies que são essenciais à vida na terra.
Se, por hipótese, o “caboclo” Sidomar fosse, no texto, tratado como sujeito de seu discurso, e não como ator de um discurso tributário, permitido – o que significa o silenciamento de Sidomar –, é provável que ele dissesse realmente desconhecer o que seja biodiversidade, porém diria (o que, aliás, demonstra conhecer, pelas imagens e oralizações) que conhece cipós, raízes, insetos, animais e tudo mais que torna a floresta familiar para ele. O programa fetichiza o conceito de biodiversidade, e este termo é realmente estranho a Sidomar. Fica quase explícita a noção de que os povos da floresta não conhecem a floresta, e que o saber sobre raízes, folhas, fungos, insetos e animais, etc. é atributo da instituição científica. Aliás, esse processo de construção identitária permeia todos os programas da série. O programa constrói o Outro construindo a fronteira que dele o separa. Uma fronteira que “começa por ser, antes do mais, a linha imaginária sobre a qual se projeta a noção de diferença e a partir da qual se torna possível a afirmação da identidade” (RIBEIRO, 2002, p. 481). No programa, a partir da posição enunciativa do repórter Danilo, em confronto com a posição que é concedida a Sidomar, fica estabelecido que nós, ou seja, o sistema produtor da série televisiva, temos o conhecimento sobre eles, os povos da floresta, que desconhecem, ou mais ou menos conhecem o mundo em que vivem. No discurso se estabelecem posições que se encaminham estrategicamente para desdobramentos extradiscursivos que nos permitem a seguinte reflexão: se eles desconhecem a biodiversidade, verbalizada no programa como uma “riqueza”, logo são ineptos para dar racionalidade econômica a essa riqueza, e portanto, eles estão na floresta como povos apenas incidentalmente. Têm menos significado, no discurso, do que a “riqueza” que apenas “conhecem por conhecer”. Desse modo, aos alunos e demais espectadores do Telecurso é dito, pedagogicamente, que somente a nós, os que conhecemos a biodiversidade, cabe o direito de explorá-la e colocá-la a serviço do (ou de um determinado) Planeta.
Morán (1990, p. 39) aponta a influência de determinadas tradições intelectuais na cristalização de contradições determinantes de atitudes relativas ao meio ambiente amazônico: “De um lado, há tendência de considerar a Amazônia um ‘Inferno Verde’, uma região na qual só populações com técnicas de subsistência simples podem sobreviver devido às limitações do ambiente quente e úmido, de solos pobres e de chuvas torrenciais”, contrastando com as visões paradisíacas, de abundância de recursos capazes de redimir o Brasil e beneficiar o mundo. Outro aspecto levantado por Morán (idem, p. 24), quando ele afirma o óbvio, de que “não é fácil definir a Amazônia”, refere-se à recorrente enumeração de suas riquezas e potencialidades, de seu gigantismo físico-geográfico, da maior diversidade biológica do Planeta, etc., presentes em inumeráveis tipos de discursos contemporâneos sobre a Amazônia, como se verifica nos textos do Telecurso 2000. Desse modo, “esquece-se da presença de sociedades nativas da região que têm direitos e profundo conhecimento de tais áreas”. O programa, em seguida, reafirma, como em cantochão, que a Amazônia é importante para o Planeta, tanto quanto cronistas do passado histórico não cansaram de reprisar que as “drogas do sertão” estavam a serviço do “gênero humano”, categoria na qual obviamente não cabiam os índios, num primeiro momento, nem os povos da floresta, mais tarde. Os muitos sentidos de desenvolvimento sustentável Com estas observações, nos detemos sobre a noção de desenvolvimento sustentável, conceito vulgarizado e de presença obrigatória nos discursos que têm o meio ambiente como objeto. Costa (1997, p. 82-3), referindo-se ao campo científico, afirma que “a indiscriminável proliferação de conceituações tornou trivial a coexistência e o intercambiamento de versões contraditórias, defasadas ou excludentes” do conceito de desenvolvimento sustentável. Segundo Costa
(idem), “vários autores deram-se à pachorra de arrolar as definições disponíveis”. Entre eles, um dos mais conhecidos teóricos desse campo, Redclift (1987), inventariou mais de 100 significados para este termo. O título do livro do autor citado já se apresenta como um sintoma da multiplicidade de sentidos de desenvolvimento sustentável: Sustainable development: exploring the contradictions37. Outros autores que se dedicaram a estudar a multiplicidade de sentidos desse termo foram Pearce, Markandya e Barbier (1989)38. Baroni (1992)39 anotou, segundo Costa (idem), para confronto crítico, 11 definições “de distintas procedências teóricas, sugerindo melhorias à noção de desenvolvimento sustentável, no intuito de dar-lhe maior precisão, aprofundamento e objetividade”. Na opinião de Costa, as noções de desenvolvimento sustentável, apesar de recentes, tornaram-se uma “panacéia” e um “slogan” inevitável da “sabedoria convencional”, desfocando, entre os economistas, nas discussões acadêmicas sobre política desenvolvimentista, “o charme que a controvérsia crescimento equilibrado versus desequilíbrio exercia”. Horácio Martins de Carvalho, consultor técnico do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), fala de uma “diversidade de percepções do desenvolvimento sustentável”, gerando “divergências de interpretação dentro de um mesmo eixo paradigmático”, segundo o qual existe uma “crise de humanidade” nos aspectos econômicos, sociais, políticos, culturais e ambientais “em ritmo e proporções distintas nas diversas regiões do mundo” (CARVALHO, 1994, p. 361-365). Esse paradigma verte do Relatório da Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD, 1998). Entre as diversas interpretações encontra-se aquela que privilegia a “gestão dos recur37
REDCLIFT, M. Sustainable development: exploring the contradictions. Nova York: Methuen, 1987. 38
PEARCE, D. W.; MARKANDYA, A.; BARBIER, E. B. Blueprint for a green economy. Londres: Earthscan Publications, 1989. 39
BARONI, M. Ambigüidades e deficiências do conceito de desenvolvimento sustentável. Revista de Administração de Empresas, v. 32, n. 2, 1992.
sos”, que tem origem no “paradigma neoliberal”, como explica Carvalho (idem, p. 363). A intensa disputa semântica em torno do conceito introduz termos correlatos, como ecodesenvolvimento. Coelho (1994, p. 381-382) afirma que “o ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável surge da exigência de compatibilizar desenvolvimento com a não-agressão ao meio ambiente, no final da década de 1960”. Para a autora, busca-se, com essa abordagem, “acrescentar à condição de sustentabilidade, entendida como auto-manutenção, estabilidade (equilíbrio) e durabilidade do desenvolvimento, pelo menos três dimensões consideradas fundamentais, quais sejam, a social, a ecológica e a econômica”. Nem mesmo há consenso sobre o momento de nascimento da terminologia: “Parece [grifo nosso] que a expressão desenvolvimento sustentável surge pela primeira vez em 1980 no documento denominado World Conservation Strategy, produzido pela IUCN [International Union for Conservation of Nature] e World Wildlife Fund (hoje World Wide Fund for Nature – WWF) por solicitação do PNUMA [Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente]” (BARBIERI, 1998, p. 23). De acordo com o já citado Glossário de Ecologia (GLOSSÁRIO, 1997, p. 73), o conceito de desenvolvimento sustentável originou-se em 1968 na Biosphere Conference, em Paris. Trata-se, segundo a mesma fonte, de um “modelo de desenvolvimento que leva em consideração, além dos fatores econômicos, aqueles de caráter social e ecológico, assim como as disponibilidades de recursos vivos e inanimados, e as vantagens e inconvenientes, a curto e a longo prazos, de outros tipos de ação”. Diz ainda o Glossário (idem) que este é um “conceito difícil de implementar, dadas as complexidades econômicas e ecológicas das situações atuais”, implicando fatores sociais, legais, religiosos e demográficos. Como se percebe nesta tentativa de definição, as dificuldades embutidas no conceito estão presentes na própria definição.
Uma das definições recorrentes e que, de certo modo, baliza muitas outras, está inscrita no relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1987, publicado sob o título “Nosso futuro comum”. Ali está dito que “o desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades” (CMMAD, 1988, p. 46). Em seguida, o próprio relatório destaca dois conceitos-chaves: a) “o conceito de necessidades, sobretudo as necessidades dos pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade”, e a noção de limitações “que o estágio da tecnologia e organização social impõem ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e futuras”. Determinar seu significado em si é impossível, como de resto nenhuma palavra carrega sentido imanente. O sentido da palavra está no seu contexto e é este que determina o discurso dentro do qual se produzem os sentidos. É, pois, no discurso, que se deve procurar o sentido de desenvolvimento sustentável, biodiversidade, povos da floresta. A palavra se movimenta e esta movimentação relaciona-se aos efeitos e às causas do dinamismo social. Bakhtin (1971, p. 195)40 é claro a esse respeito: A palavra não é um objeto tangível, mas um meio de comunicação social sempre em movimento, sempre em mutação. Ela nunca fica presa a uma consciência, a uma voz. O seu dinamismo consiste no movimento entre um falante e outro, entre um contexto e outro, entre uma geração e outra. ... A palavra entra no seu contexto a partir de outro contexto, permeada das intenções de outros falantes. A intenção do falante encontra a palavra já ocupada (ap. RIBEIRO, 2002, p. 487).
40
BAKHTIN, M. M. (1971) Discourse typology in prose. In: MATEJKA, L.; POMORSKA, K. (Orgs.). Readings in Russian Poetics (Formalist and Structuralist Views). Cambridge, MA.: MIT Press, 176-196. Cit. por RIBEIRO (2002). Ver bibliografia.
Isso significa que a ampliação horizontal do uso do conceito inclui novas realidades, espraia-se no senso comum. E mantém a noção de gestão e de desenvolvimento. É, pois, sintomático o depoimento dado num dos programas televisivos da série “Amazônia”, do Telecurso 2000, da Rede Globo, cuja temática é “Minérios”, por Arnoldo Lima, engenheiro da mineradora Pitinga, no Estado do Amazonas: A nossa responsabilidade é muito grande, mas nós temos, através de técnicas adequadas de beneficiamento e lavra do minério, através de técnicas desenvolvidas na recuperação do meio ambiente, conseguido fazer com que a mineração traga o mínimo de impacto ambiental, e, com isso, consiga fazer também por esta região tão carente de emprego e riqueza, pra fazer o que nós chamamos desenvolvimento sustentado, fazer uma conciliação do desenvolvimento, trazer emprego pra região sem agredir, ou agredir ao mínimo o meio ambiente. Nós temos que conviver com a floresta virgem, floresta natural, com os igarapés e os rios que são inúmeros, temos que conviver com uma reserva indígena à nossa montante, vamos chamar assim, e temos que conviver com uma reserva biológica do Atumã, que é administrada pelo Ibama41. Aí estão, nas palavras de um gestor, todas ou quase todas as noções de desenvolvimento sustentável, cujo eixo central parece ser a noção de equilíbrio, isto é, o capital mantém-se intocado, porém cercado de cuidados para não agredir a natureza. Um discurso que deriva diretamente das recomendações contidas em cartas e documentos saídos de conferências que se anunciam justamente voltar-se para o meio ambiente e o desenvolvimento. No entanto, a multiplicidade de sentidos dessas palavras inclui discordâncias cabais com discursos como o do engenheiro da mineradora e, por conseguinte, com documen41
IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, órgão do Governo Federal.
tos definidores como o saído da Rio-92. Altvater, (1995, p. 307-8), por exemplo, é de opinião que, o que ele chama de comunicação ecológica “não pode confiar nos códigos econômicos”, entre outras razões porque “o desenvolvimento é expansivo do ponto de vista quantitativo, mas os recursos naturais de onde as estratégias de desenvolvimento se nutrem são limitados”, e que “não podemos nos subtrair com a tese do crescimento com preservação ambiental ou da desvinculação entre crescimento econômico e consumo de recursos naturais” (p. 311). Altvater denuncia a hipocrisia de chefes de estado e de representantes de nações em relação ao que declaram em documentos oficiais, como os bons propósitos inseridos na declaração da Rio-92. Diz ele: A reunião de cúpula da economia mundial entre os principais Estados industrializados, que ocorreu em Munique decorridas apenas quatro semanas da ‘cúpula’ do Rio de Janeiro, revelou um quadro de esquecimento e obstrução. Os mesmos governos que se haviam manifestado, ao menos em discursos, a favor do desenvolvimento e do meio ambiente, silenciaram-se em Munique a respeito do assunto, concentrando-se nos [assuntos] ‘existentes’ da economia mundial no Ocidente e na transição no Leste. Tratou-se apenas do crescimento, e não do relativo ao sustentável (1995, p. 316). Se o discurso daqueles dotados de autoridade para subscrever documentos oficiais padece de tais variações, qual, então, o sentido de termos como desenvolvimento sustentável, biodiversidade, povos da floresta nos discursos de gestores como o engenheiro da mineradora Pitinga? Vejamos o que diz o repórter Danilo a respeito da mineradora amazonense: A primeira visão da mineradora espanta, é a tradução em imagem da palavra devastação, mesmo sabendo que aqui os técnicos e operários procuram
trabalhar dentro do desenvolvimento sustentado. Hoje as políticas de exploração da floresta apostam em técnicas novas para retirar as riquezas sem destruir e esgotar o meio ambiente... O repórter denuncia a devastação que “espanta”, traduzida em imagens, no entanto, o programa, que não pode fugir do próprio discurso da mídia capitalista sobre poluição de rios e queimadas de florestas, traz as marcas de seu sistema produtor, formidável indústria de bens simbólicos, produto e produtora da dinâmica mercadológica: minimiza a ação dos técnicos e operários que “procuram trabalhar dentro do desenvolvimento sustentado”. Produz-se aí um jogo-síntese das incompatibilidades existentes entre o documento da Rio-92 e a temática dos representantes de nações ricas reunidos em Munique quatro semanas após a reunião do Rio de Janeiro, como demonstrado por Altvater. Quem são os povos da floresta? Reiteradas vezes a televisão emprega a terminologia “povos da floresta”, cujos significados somente podem ser buscados na superfície mesma dos discursos. Não há definições verbais explícitas, no entanto, por meio de alguns enunciados podemos inferir alguns sentidos. Estes se tornam mais explícitos nos enunciados imagéticos, ou seja, mostrando as imagens daqueles a quem a opacidade dos discursos categoriza como “povos da floresta” vai-se realizando uma forma de definição, percebe-se que é do imaginário que a mídia recupera e recria esse tipo de terminologia. O que se mostra, nesses textos, é que a classificação de “povos da floresta” refere-se à situação de grupos que ocupam espaços considerados distantes da cultura urbana, territórios radicalmente distintos em relação ao universo da cultura civilizada, por isso mesmo invisibilizados, esses “povos”, no processo de sua midiatização. Em todos os programas que analisamos, em alguns mais, em outros menos, o espaço natural midiatizado parece ser inteiramente estranho ao espaço cultural, sendo o espaço natural construído, nesses
textos, sempre como um espaço distante, uma espécie de “alhures” (SEMPRINI, 1996, p. 194). Dessa forma, esse “distanciamento geográfico e temporal” induz um efeito de deslocamento conceitual e cultural, já que o objeto natureza é percebido como radicalmente estranho, que não nos diz respeito nem nos interpela como usufrutuários ou habitantes em potencial desses espaços, mas somente como espectadores, observadores descompromissados e distantes do cenário natural, sugerindo, assim, uma espécie de ficcionalidade do espaço natural (idem). Realiza-se, dessa forma, um tipo de confrontação entre uma temporalidade cultural e uma temporalidade natural, cuja estruturação tem conseqüências diretas sobre a construção do imaginário midiático da natureza (idem, p. 192). É nesses territórios que habitam aqueles a quem a mídia chama de “povos da floresta”, terminologia que passou a integrar o imaginário coletivo a partir da década de 1980, quando movimentos sociais como o dos seringueiros da Amazônia, de grupos atingidos por barragens de hidrelétricas, os quilombolas, etc., foram obtendo espaços na mídia, em decorrência de suas ações reivindicatórias, como componentes de “sociedades não-urbanas contemporâneas da Amazônia”, social e politicamente invisíveis, tal como se refere Barreto Filho (2001, p. 2) à categoria “populações tradicionais”. Embora tal invisibilidade seja perceptível nos textos da mídia que analisamos, seria metodologicamente imprudente incluir os “povos da floresta” na categoria “populações tradicionais” visto que aqueles, tal como suas falas e imagens são mostradas, são midiatizados como grupos que podem ser tanto não-urbanos como urbanos, pois suas falas e imagens ocorrem também em ambientes como feiras típicas da vida nas cidades, são entrevistados diante do Teatro Amazonas, de Manaus, tanto são coletores de açaí, como são enunciados como sendo “índios, somos nós, os brasileiros”, produzindo este enunciado um efeito de proximidade que, na verdade, realça a distância entre os “povos da floresta” e “nós”. O não-urbano, nesses textos, perpassa o urbano, pois
“eles podem estar por toda parte”, como enuncia o repórter Danilo. Embora não se confundam com a categoria “populações tradicionais”, com ela os “povos da floresta” guardam particular proximidade, ressalvando-se, aqui, a questão da territorialidade que, nos textos midiáticos, se apresenta como fluida, ou seja, uma característica não essencial aos “povos da floresta”. Os “tradicionais”, segundo conceitua Diegues et al. (2001, p. 31-2), são aqueles grupos possuidores de um conhecimento que é definido como “o conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, transmitido oralmente de geração em geração”. Segundo essa visão, a categoria extrapola os grupos indígenas para incluir outros grupos, entre os quais “há uma interligação orgânica entre o mundo natural, o sobrenatural e a organização social”, não existindo, entre eles, uma classificação dualista ou uma linha divisória rígida entre natural e social, mas sim um continuum entre ambos. E quem seriam, então, os “povos da floresta”? Seriam eles classificados por sua origem étnica, como indígenas, nativos, povos tradicionais, portadores de estilos de vida tradicionais, comunidades autóctones, agricultores de subsistência ou populações locais? Nesse caso, sua categorização não se vincula necessariamente ao território, uma vez que são midiatizados em distintos lugares, ora pescando, ora coletando, ora referindo roçados, ora presentes em ambientes urbanos. Em certo sentido, esses “povos” aproximam-se conceitualmente, mas apenas de modo parcial, das “populações tradicionais”, na forma como Barreto Filho (idem, p. 9) afirma deste conceito: “Trata-se de construto ideológico cuja força reside exatamente na generalidade do seu significado e na flutuação do seu emprego, não sendo possível o exercício do rigor científico nessa matéria”. No trabalho de Barreto Filho (idem) as noções de “tradicional” associam-se às noções de “áreas protegidas”, ou seja, de conservação e proteção dos recursos naturais. Por isso,
a diversidade de situações referidas reflete-se na variedade de termos empregados. Se alguns apontam para a ab-originalidade e outros para a etnicidade, outros sinalizam apenas para a escala espacial – a proximidade de áreas ecologicamente críticas e frágeis ou áreas protegidas. Talvez pudéssemos também recorrer à noção de “povos sem história” apontados por Wolf (1994, p. 464), para quem, a partir do século XV, a dispersão dos europeus, através dos oceanos, conjuntou as “redes regionais préexistentes” em uma orquestração global e as submeteu a um ritmo de alcance mundial. Dessa forma, povos com origens e modos de ser diversos “foram arrastados por essas forças para atividades convergentes, ... levados a participar na construção de um mundo comum”, pelo encontro de marinheiros mercantes europeus e soldados de várias nacionalidades, mas também “povos naturais” da América, África e Ásia: Nesse processo, as sociedades e culturas de todos esses povos experimentaram transformações profundas, transformações que afetaram tanto os povos considerados como portadores de história ‘real’ como também as populações que os antropólogos chamaram de ‘primitivas’ e que, em geral, foram estudadas como sobreviventes prístinos de um passado intemporal (idem, p. 465). Para Wolf, a história desses povos “primitivos” também está constituída pelos processos mundiais que a expansão européia pôs em marcha, não sendo, pois “antecessores contemporâneos”, nem “povos sem história, nem povos cujas histórias, usando a expressão de Lévy-Strauss, permanecem congeladas” (idem, p. 465). No processo de expansão européia, diz Wolf (idem, p. 469), o controle da comunicação permite aos administradores estabelecer as categorias por meio das quais se vai perceber a realidade. E, de modo inverso, esse mesmo processo carrega em si a faculdade de negar a existência de categorias outras, de remetê-las ao reino da
desordem e do caos, de torná-las social e simbolicamente invisíveis. Além disso, esse processo de conjuntar povos portadores de história “real” e aqueles “sem história” esforça-se por manter em seu lugar os significados assim gerados, isto é, de que os “primitivos” não têm mesmo história “real”. Esses significados, assim produzidos, constituem “proposições básicas sobre a natureza da realidade inventada” (p. 469). No corpus que analisamos, o emprego da terminologia “povos da floresta” traz, na verdade, uma desfocagem dos grupos que aí são midiatizados. Postos debaixo de um conceito tão amplo, os textos não os definem explicitamente. A despeito da diversidade de seus modos de vida, contato com a natureza e com o urbano, o discurso da mídia constrói a homogeneização de grupos diferenciados entre si e, no discurso, todos esses “povos” como distintos daqueles outros que não são “da floresta”, portanto urbanos, civilizados, com modos de vida modernos. Essa é a distinção produzida nesse tipo de discurso, com a mídia sentindo-se à vontade para incluir unidades de sentido tais como “garimpeiro de copaíba”, misturando noções associadas à mineração artesanal e à coleta de essências florestais. Afinal, em relação a “povos sem história”, aos quais sempre foi negado o poder-fazer o discurso, torna-se fácil e cômodo recolocá-los na posição de invisibilidade por meio de realidades inventadas, dadas estas, no discurso, como verdades sem adjetivo. A terminologia povos da floresta poderia ser tomada como espécie de eufemismo referente ao pejorativo termo caboclo, também empregado na mídia quando se refere a grupos do interior da Amazônia. Uma forma de compreensão da inclusão desse antigo enunciado encontra-se na afirmação de Lima (1999, p. 7): “Na região amazônica, o termo caboclo é também empregado como categoria relacional. Nessa utilização, o termo identifica uma categoria de pessoas que se encontra numa posição [grifo nosso] social inferior em relação àquela com que o locutor ou locutora se identifica”. Transpondo essa observação do campo da antropologia para o campo na análise do discurso da mídia, percebe-se com clareza o jogo das posições enunciativas que instigam a pro-
dução daquilo que aqui chamamos de um discurso tributário, por parte de sujeitos inferiorizados em cena, um discurso de convalidação dos enunciados de quem se acha na posição estratégica de, ao ceder a palavra, por esta mesma cessão silenciar o interlocutor. Ainda segundo Lima (idem, p. 7), a utilização coloquial do termo caboclo transporta as noções de “nãocivilizado”, ou seja, analfabeto, rústico, em contraste com noções indicativas de qualidades urbana, branca, civilizada. “O termo pode ser aplicado a qualquer grupo social ou pessoa considerada mais rural, indígena ou rústica em relação ao locutor ou locutora”. Nesse sentido – indaga Lima – “a utilização do termo é também um meio de o locutor ou locutora afirmar sua identidade? Não cabocla ou branca [?].” Assim como há “muitas Amazônias” e existem muitas versões para o termo “caboclo”, os sentidos focais desses termos são objeto de disputas, porém o que há de menos contencioso nessas disputas é o fato de que a “sociedade cabocla” tendeu a ser historicamente tratada como grupo postergado, uma presença não ignorada mas de pouca importância (Nugent, 1993, p. xviii)42. Falando do discurso racista que esteve em relevo na segunda metade do século XIX, quando se proclamavam teorias como a do chamado “branqueamento” da população do Brasil, “degenerada pela miscigenação”, Nugent (idem, p. 46) relembra como chama particular atenção o contraste construído entre o discurso de realce “da beleza e a luxúria da natureza tropical” e a “feiúra envergonhada” que se estampa no rosto de seus habitantes. As matrizes desse tipo de racismo provinham de diversos autores estrangeiros, sobre o que existem textos bastante conhecidos. Joseph-Arthur, o conde de Gobineau, por exemplo, desembarcou no Brasil por ocasião do carnaval de 1869, tendo, então, o seu senso estético ofendido diante do espetáculo de “uma população totalmente mulata, viciada no sanThere are many “Amazonias” and many versions of ‘caboclo’, and the focal meanings of these terms are matters of dispute, but what is less contentious is the fact that caboclo society historically has tended to be treated as an afterthought, an unignorable presence, but a matter of no great import. 42
gue e no espírito, e assustadoramente feia”, em virtude da mestiçagem (ap. SKIDMORE, 1989, p. 46). O que hoje chega a impressionar é que essas formas repelentes de racismo foram assimiladas por não poucos autores brasileiros; se, na atualidade, os discursos de depreciação de grupos subalternos já não se fazem daquela maneira por assim dizer nua-ecrua, os elementos que os constituem não estão de todo ausentes, ao contrário, acham-se, como na mídia televisiva, sedutoramente presentes. Conclusão Como afirmamos na introdução, percebe-se como é problemática a análise de textos fabricados pelos sistemas produtores de sentidos postos em circulação pelos dispositivos da mídia. Ao não oferecerem definições explícitas, no entanto, os programas de televisão nos oferecem definições de outra ordem, ou seja, através do jogo de palavras e, sobretudo, pela manipulação de imagens digitalizadas, ali estão, na telinha, produtos sedutores, re-construindo as mais velhas e arraigadas reiterações de enunciados que percorrem o imaginário social há séculos. Em trabalho no qual analisa o que chama de uma “sociedade cabocla da Amazônia”, Nugent (1993, p. 36) fala da existência de um “discurso da floresta tropical” (rainforest discourse), que é apresentado com dois diferentes objetivos, quais sejam, “manter as florestas e manter a visibilidade econômica da floresta amazônica”, de interesse de um business environment. Ao mesmo tempo, a assim chamada sociedade cabocla é discursivamente desenhada por seus aspectos caricaturais, com a captura, pela mídia, de elementos ideológicos do velho discurso colonial postos em circulação no imaginário por meio de variadas formas de mediação. Por esse imaginário, o caboclo é desenhado como um ser passivo, mero objeto, nas discussões contemporâneas sobre populações, habitantes (idem, p. 47.). Assim, índios e seus descendentes, caboclos, pescadores, extratores, pequenos agricultores das zonas ribeirinhas, en-
fim, aqueles aos quais a antropologia categoriza como da floresta, tradicionais, ou como caboclos, são discursivamente mostrados como tendo sido no passado, e sendo no presente, incapazes de dar racionalidade aos recursos em meio aos quais vivem. A mídia busca estrategicamente reproduzi-los como exemplos de uma certa imanência de sua inaptidão, como ineptos foram seus predecessores desenhados pela crônica colonial. Em boa parte dos programas que analisamos, aqueles grupos são incluídos numa espécie de categoria-ônibus, expressa pelos termos povos da floresta. Individualmente seus nomes quase nunca são enunciados nos programas de TV e, quando o são, raramente têm sobrenomes. Na cena televisiva aparecem como figurantes, sem nomes, despersonalizados, todos iguais, lembrando a conhecida frase “seen one Indian, seen ‘em all”, derivada de críticas aos filmes hollywoodianos nos quais a presença do índio revela povos histórica e culturalmente homogêneos, são apenas índios (CHURCHILL, 1998, p. 174). No jogo das palavras em inglês, quando oralizadas, a duplicidade do enunciado carrega o sentido da tendência homogeneizante do cinema, tendência que se transporta para a televisão. Em cena, os entrevistados cedem, no discurso da mídia, a condição de sujeitos à condição de objetos. Têm a sua historicidade apagada, ou desfocada, sua história é sempre, no correr dos textos televisivos, derivada da história real dos brancos. Apagada a historicidade, pouco ou nada permanece do sujeito facilmente encarado, e midiatizado, como objeto. Com o recurso da sedução da tecnologia midiática produz-se um indisfarçável discurso de inferiorização daqueles grupos. Estabelece-se um confronto discursivo entre o moderno e o tradicional, com a mídia realçando dicotomias historicamente construídas, estrategicamente apelando para imagens em ambiente cromaticamente propício (grandezas e belezas naturais emoldurando a realidade inventada), confronto que realça também as diferenças entre as tecnologias da mídia televisiva, presentes nas locações, e aquelas tecnologias de sobrevivência dos tradicionais.
Colocados, esses grupos, em posição de silenciamento, pois o que vale é o discurso do sistema produtor de sentidos, então indagamos: a Amazônia, tal como construída na mídia, não estaria deixando de ser um mero repositório de recursos disponíveis para o bem do Planeta, para tornar-se um repositório indispensável de biodiversidade, com o mesmo objetivo? Em outras palavras, a região não estaria passando, discursivamente, da condição de ser apenas estoque de “drogas do sertão” disponíveis para o benefício do “gênero humano”, para tornar-se, hoje, por sua biodiversidade, indispensável para sobrevivência do Planeta, com todas as possíveis conseqüências extradiscursivas produzidas por discursos socialmente estabelecidos, cujos enunciados essencialmente constitutivos são transportados para a mídia: plenitude de recursos e vazio humano? E uma questão final: a Amazônia, assim discursivizada, com o realce de seus recursos e os co-ocorrentes silenciamento/desfocagem de seus povos, faria, ela também, parte desse tão necessitado e, com muita freqüência, dissimulado Planeta? Nos discursos que analisamos, a Amazônia real e sua gente, sobrevivente e resistente, parecem girar em outra órbita...
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DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E SEUS LIMITES TEÓRICOSMETODOLÓGICOS David Ferreira Carvalho Introdução O esgotamento mundial do padrão de acumulação fordista, que teve início nos anos 60, com a perda da produtividade industrial dos EUA frente aos seus principais rivais, o Japão, a Alemanha e os NIC’s asiáticos, revelou-se numa crise de múltiplas dimensões. Dentre estas, merece destaque a crise ambiental percebida pelos consideráveis impactos provocados pelo padrão de produção industrial e de consumo de massa, no ambiente urbano e rural, dos países desenvolvidos e em desenvolvimento.43 Em face do reconhecimento da complexidade e gravidade dos desafios econômicos, sociais e ambientais, com que Nos anos 60, a crise ambiental era mais percebida pelos danos que a “indústria de chaminés” causava no meio urbano poluindo o ar, com a liberação de dióxido de carbono e outros gases, poluindo a água, com resíduos sólidos e produtos químicos, e poluindo a superfície da terra com resíduos tóxicos. 43
a humanidade se depara ainda hoje, o Relatório da Comissão Brundland, sobre meio ambiente e desenvolvimento, passou uma mensagem otimista sobre a necessidade e a possibilidade de se planejar e implementar estratégias ambientalmente adequadas a um estilo de desenvolvimento econômico – envolvendo crescimento econômico, eqüidade social e conservação ambiental – que foi batizado de desenvolvimento sustentável. 44
Neste sentido, nos propomos, aqui, somente discutir o significado de desenvolvimento sustentável e seus limites, numa perspectiva teórica e metodológica, para daí derivar algum tipo de compreensão e possível aplicação desse conceito para o desenvolvimento da Amazônia. Para isso, o texto foi organizado em duas seções, além desta introdução: na primeira seção, busca-se resgatar os efeitos provocados pelo chamado Relatório do Clube de Roma sobre as comunidades das ciências sociais e das ciências da natureza, bem como as reações advindas que acabaram levando a Organização das Nações Unidas (ONU) a preparar uma agenda ambiental – para discutir os efeitos do padrão de produção e consumo da sociedade moderna sobre o meio ambiente – que vai originar o ideário do desenvolvimento sustentável; na segunda seção, composta de duas subseções, discutimos os limites teóricos e metodológicos em torno da possibilidade de construção de uma teoria geral do desenvolvimento sustentável. A Gênese do Conceito de Desenvolvimento Sustentável Os impactos provocados pela grande indústria e pela agricultura sobre os recursos naturais e o meio ambiente ameaçam modificar o clima e a vida das espécies, variedades 44
São muitas as variedades das definições do termo desenvolvimento sustentável. Ver Baroni (1992). Entretanto, numa “nota final”, Sachs (1986, p. 177, nota 8) reconhece que a idéia de ecodesenvolvimento foi lançada por Maurice F. Strong, Diretor Executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, no decorrer da 1 a Reunião do Conselho Administrativo desse Programa realizada em Genebra, em 1973. Sachs (1986, p. 15) também afirma que o conceito de ecodesenvolvimento teve como inspiração inicial a definição de um novo estilo de desenvolvimento particularmente voltado para o meio rural do Terceiro Mundo, embora reconhecesse que ele pudesse ser estendido também para o meio urbano.
e raças dos reinos vegetais e animais, inclusive do homem, no planeta terra.45 Se os atuais esforços de governos e da iniciativa privada, para manter o ritmo do progresso socioeconômico, já não basta para atender as crescentes e, às vezes, extravagantes necessidades humanas das gerações presentes, – tanto nas nações desenvolvidas quanto nas nações em desenvolvimento – o que legar às gerações futuras já que o capital ambiental tomado emprestado pelas gerações presentes não tem nenhuma garantia de ser devolvido no futuro? A tomada de consciência desse problema intergeracional ganhou expressão mundial nos anos 70. Nesse período, o debate em torno dos danos causados pelo crescimento econômico sobre o meio ambiente biofísico acabou relegando, para um segundo plano, os problemas socioeconômicos dos países em desenvolvimento da periferia. De fato, a discussão sobre meio ambiente gravitou em torno de dois problemas básicos: (1) o problema da escassez dos recursos naturais e energéticos e o (2) problema da explosão demográfica (HARDIN, 1968; EHRLICH, 1968; MEADOWS, 1972, 1992).46 Neste contexto, os defensores da “teoria do crescimento zero” procuravam demonstrar a interdependência da economia global e a insustentabilidade da “teoria do crescimento sem limites” em face do risco de um possível esgotamento dos recursos naturais e energéticos, das dificuldades da produção de alimentos em escala suficiente para abastecer os centros urbanos e dos impactos irreversíveis da indústria e da agricultura moderna sobre o meio ambiente.47
45
A cada ano, 6 milhões de hectares de terras produtivas são transformadas em desertos; são queimadas mais de 11 milhões de florestas; as chuvas ácidas destroem florestas e lagos e danificam o patrimônio histórico de muitas nações; a queima de combustíveis fosseis libera dióxido de carbono (0²C) que vem provocando o “efeito estufa” que pode elevar as temperaturas médias da terra com efeitos perversos sobre a agricultura (o abandono de áreas tradicionais de produção agrícola) e o nível da água dos oceanos(inundação das cidades costeiras). A liberação de certos gases pela indústria pode também comprometer a camada protetora de ozônio (0³) que envolve o planeta terra e assim aumentar a incidência de vários tipos de câncer para os seres humanos e animais e por em risco a cadeia alimentar da vida nos oceanos. Os “Limites do Crescimento” de Meadows et al. (1972) ficou conhecido como o Relatório do Clube de Roma. 47 Ver The Ecologist (1972). 46
Uma longa trajetória histórica foi percorrida para a tomada de consciência em escala mundial sobre os grandes problemas do meio ambiente. O famoso Relatório de Founex, resultante da reunião convocada pela ONU como parte da preparação para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente de 1972, foi muito importante para a constituição de uma agenda sobre meio ambiente e desenvolvimento na medida que a polarização entre meio ambiente (representado pelo ecologismo intransigente) e desenvolvimento econômico (representado pelo economicismo neoclássico de visão estreita) foi rejeitada.48 A polarização das questões sobre meio ambiente e desenvolvimento, entre os países centrais e periféricos, levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a realizar, em 1972, uma conferência sobre o tema “Meio Ambiente e Desenvolvimento” na cidade de Estocolmo (Suécia).49 Apesar das divergências entre os participantes do evento, o Relatório da Conferência de Estocolmo conseguiu estabelecer as bases metodológicas para se pensar os grandes problemas ambientais do mundo numa perspectiva global.50 Além disso, o Relatório de Estocolmo enfatizou a idéia da possibilidade da harmonização entre desenvolvimento e meio ambiente. Mesmo assim, apesar do reconhecimento de que vivemos numa Aldeia Global, prevaleceu a política do “salve-se quem puder” na medida em que os países desenvolvidos adotaram uma postura individualista, segundo a qual cada nação deveria levar adiante a sua própria política nacional para resolver os seus problemas internos. Com as crises do petróleo, em 1973/74 e 1979/80, tem-se uma alta generalizada dos preços das commodities 48
Ver Sachs (1994, p. 29).
49
Antes disso, foi realizada uma reunião sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1971, que contou com a presença de especialistas convidados pela ONU para discutir o tema. 50
O relatório final identificou os seguintes grandes problemas da sociedade global: (1) a falta de uma política de proteção do meio ambiente era o principal responsável que afetava a eficiência do desenvolvimento econômico e o bem-estar-social das populações; (2) o crescimento das populações aumento dificulta a preservação do meio ambiente; e (3) que os problemas ambientais dos países desenvolvidos eram causados principalmente pela poluição industrial e os dos países em desenvolvimento pelo mau uso e esgotamento dos recursos naturais. Ver Development Digest (1972).
minerais e agrícolas e dos produtos derivados do petróleo que vai alterar a postura individualista dos países desenvolvidos na medida em que estes passaram a levar a sério as previsões neomalthusianas do Relatório do Clube de Roma relativas à disponibilidade, acesso e controle dos recursos naturais básicos tão necessários à dinâmica de crescimento das economias dos países do “Primeiro Mundo”. Neste aspecto, pode-se dizer que a discussão sobre os problemas ambientais deste período estava polarizada: de um lado, os países desenvolvidos, não aceitando o diagnóstico e as propostas do Relatório do Clube de Roma de transitar para um “Estado Estacionário”, através da redução das taxas anuais de crescimento econômico dos países desenvolvidos para zero ou próximo deste; de outro, os países em desenvolvimento também discordando das propostas do Relatório do Clube de Roma, pois elas iam contra as suas aspirações de desenvolvimento econômico e feriam a soberania nacional desses países quanto ao destino dos seus recursos naturais. 51 No Simpósio de Cocoyoc no México em 1974, sobre Modelos de Utilização de Recursos, Meio Ambiente e Estratégias de Desenvolvimento, nota-se uma mudança de postura em torno da discussão das questões ambientais.52 De fato, a partir daí passa-se a reconhecer explicitamente que os grandes problemas ambientais urbanos e de destruição dos recursos naturais rurais são causados principalmente pelos países industrializados do centro. No início da década de 80, num ambiente da segunda grande alta dos preços do petróleo, de uma recessão da economia mundial, do agravamento das dívidas dos países do terceiro mundo e do recrudescimento da O “Estado Estacionário” é um suposto estado da economia capitalista que os clássicos, sobretudo Adam Smith e David Ricardo, tinham receio que a economia de uma nação pudesse chegar antes de terem atingido um nível relativamente elevado de desenvolvimento econômico. O “Estado Estacionário” de uma economia é alcançado quando a taxa de crescimento do produto é zero, devido: a) a acumulação de capital que se anula porque a taxa de lucro do mercado iguala-se à taxa de lucro mínima; b) os salários de mercado igualam-se aos salários de subsistência e a taxa de crescimento da população anula-se a partir do momento em que a economia atinge o máximo do seu bem-estar-social. Ver Souza (1999). 51
52
A Declaração de Cocoyoc é o resultado da reunião da UNCTAD (Conferências das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e da UNEP (Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas), em 1974. Em 1975, O Relatório de Dag – Hammarskjold aprofunda as posições contidas na Declaração de Cocoyoc.
guerra fria, tem-se a retomada da discussão da questão ambiental numa perspectiva global.53 Neste particular, os Relatórios da Brandt Comission (1980) e o The Global 2000 to President (1980) merecem destaque por já enfocarem a questão ambiental numa perspectiva global na qual são reveladas as grandes apreensões com o futuro da humanidade. Contudo, diferentemente do Relatório do Clube de Roma, as preocupações identificadas, quanto à explosão demográfica, esgotamento dos recursos naturais e destruição do meio ambiente, passaram a ser vistas nesses documentos oficiais como possíveis de serem enfrentadas pelo avanço do progresso da ciência e da tecnologia. Cabe observar, também, que os documentos oficiais referidos enfatizavam que os problemas da explosão demográfica e da destruição dos recursos naturais nos países em desenvolvimento poderiam trazer graves conseqüências para a segurança mundial. Com isso, as propostas de política ambiental ganharam um contorno internacional na medida em que os países desenvolvidos passaram a aceitar o fato de que os problemas ambientais tinham de ser atacados através de ações conjuntas envolvendo todos os países da comunidade mundial. De fato, dentre as propostas, para os países em desenvolvimento, preconizava-se o combate à pobreza social, o aumento do fluxo do comércio exterior, a renegociação da dívida externa e a transferência de tecnologia. Porém, essas ações não tomaram o curso desejado pelos países em desenvolvimento e essas propostas transformaram-se em “letras mortas”. Na realidade, aos países desenvolvidos interessava apenas retirar suas economias da recessão e buscar uma saída para a continuação do pagamento das dívidas externas. Na segunda metade dos anos 80, a questão ambiental volta a ter um tratamento especial com a publicação do Relatório Final da Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), encomendado pela ONU a um grupo de especialistas. Este documento da “Comissão Brundland”, que ficou conhecido como Relatório Brundland ou o 53
Ver Turner, R. K. (1987).
Nosso Futuro Comum, qualificou melhor as características da hodierna crise ambiental e conferiu uma visão global dos problemas do meio ambiente.54 O novo tratamento político dado à questão ambiental recolocou como tema central a insustentabilidade do padrão de desenvolvimento econômico capitalista – em face da depredação dos recursos naturais e da destruição e contaminação do meio ambiente por produtos tóxicos – na medida em que esse modelo de desenvolvimento econômico de produção e troca impunha limites às próprias possibilidades do desenvolvimento socioeconômico no futuro. Com essa lógica, a Comissão Brundland demonstrava que os problemas socioeconômicos, de agravamento da pobreza, de superpopulação absoluta e relativa e do retardo do desenvolvimento dos países da periferia, mantinham estreitas ligações entre si e com os problemas ambientais. O Relatório Brundtland ressalta ainda que as “crises globais” do planeta terra não eram crises isoladas, vale dizer, a crise ambiental, a crise econômica, a crise financeira, a crise social e a crise energética são apenas manifestações de uma crise geral, com amplitude global do modo capitalista de produção e de consumo. Não obstante, no Relatório Brundtland, o sentido da lógica dos argumentos foi invertido: se, no passado, a preocupação era com os impactos do crescimento econômico sobre o meio ambiente, no presente, a preocupação passou a ser dos impactos da destruição do próprio meio ambiente sobre o crescimento econômico. Assim, além da interdependência econômica entre as nações, teríamos de nos acostumar com a interdependência ecológica. A ecologia e a economia estariam assim cada vez mais entrelaçadas – em âmbito local, regional, nacional e internacional – numa ampla rede iterativa e O cognome de “Relatório Brundtland” é uma justa homenagem à presidenta da “Comissão” na pessoa da norueguesa Gro Harlem Brundtland. A “Comissão”, composta por 22 pessoas, entre especialistas e lideranças políticas de vários países, dentre os quais figura a do brasileiro, professor Paulo Nogueira Neto, foi criada pela Resolução n 0 38/161, adotada na 38a sessão da Assembléia Geral da ONU em outubro de 1983, e o “Relatório da Comissão” foi submetido à apreciação da Assembléia da ONU, em sua 42a sessão, em outubro de 1987. A “Comissão” também contou com os membros do “Secretariado”, com um grupo de “Consultores Especializados” em diversas áreas de conhecimento e com um grupo de países patrocinadores dos recursos financeiros. Ver CMMAD (1987, Anexo 2, p. 393-430). 54
interativa de causas e efeitos que estaria engendrando vínculos globais entre a economia e a ecologia .55 No Relatório Brundtland, chega-se admitir que governos, ONG’s e instituições internacionais estivessem tornando – se cada vez mais conscientes da impossibilidade de se tratar as questões do desenvolvimento econômico separadas das questões relativas ao meio ambiente. De fato, há que se reconhecer que muitos estilos de desenvolvimento econômico podem ser predadores de recursos ambientais, os quais deveriam servir de base à promoção do crescimento, à medida que a deterioração gradual do meio ambiente pode retardar o próprio desenvolvimento econômico. Sendo a pobreza, em escala mundial, uma das principais causas e efeitos dos problemas ambientais da economia global, os problemas do meio ambiente não podem ser tratados somente na esfera das ciências da natureza sem que sejam referenciados também os problemas que estão na órbita das ciências sociais. Neste aspecto, o Relatório Brundtland afirma que o inadequado uso e manejo dos recursos naturais e do meio ambiente no mundo têm uma forte relação com as desigualdades sociais no que tange à distribuição dos benefícios do desenvolvimento. Mais ainda, analisando o meio ambiente a um nível elevado de abstração, e não o reduzindo apenas ao meio biofísico, o Relatório Brundtland consegue incorporar os meios econômico e social e popularizar o termo desenvolvimento sustentável como um conceito múltiplo dimensional, envolvendo um processo interativo das relações homemhomem, homem-natureza e homem-sociedade, porém com dificuldades operacionais para que seja formulado teórica e empiricamente.56
55 56
CMMAD (Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1987, p. 5).
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUE) reporta-se ao termo meio ambiente no sentido do habitat total do homem. Esta definição ecológica do ambiente humano é bastante abrangente. Se aceita, hoje, que o meio ambiente compreende três subconjuntos: o meio biótico (a flora e a fauna, ou seja, o reino dos seres vivos não humanos); o meio abiótico (o reino dos seres brutos ou não vivos, o clima, o relevo e os mares, rios, lagos e lagos); e o meio antrópico (onde estão o meio econômico e suas tecnoestruturas e o meio social com suas relações humanas).
Daí em diante, as discussões e propostas oriundas de Congressos e Seminários, sobre estilos alternativos de desenvolvimento, seguiram as linhas mestras da agenda do Relatório Brundtland que acabou levando à convocação, pela ONU, da Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD) ou simplesmente Eco-92, como ficou mais conhecida mundialmente essa Conferência realizada no Rio de Janeiro em 1992.57 No entanto, apesar do interesse da ONU pelo Nosso Futuro Comum, a Declaração da Eco-92 acabou não atendendo as expectativas de muitos países. De fato, muitos problemas surgiram como conseqüência, por exemplo, dos EUA não concordarem com as metas e o cronograma à limitação da emissão de CO² relativo ao efeito estufa. Um outro problema foi a não assinatura, por parte da representação dos EUA, do documento que fixava os princípios da convenção sobre proteção da biodiversidade. De qualquer maneira, o aumento da conscientização dos danos causados do atual padrão de desenvolvimento econômico sobre o meio ambiente foi o que de significativo ficou da Eco-92, pois a associação entre desenvolvimento e meio ambiente passou a entrar na agenda governamental das políticas nacionais da mai-oria dos países. Além disso, as agências internacionais de apoio ao desenvolvimento econômico, a exemplo do Banco Mundial e da UNESCO, também passaram a incorporar, nas suas agendas de política de suporte aos países periféricos, a noção de desenvolvimento sustentável como um novo paradigma capaz do mix crescimento econômico (eficiência econômica) com distribuição de renda (eqüidade) e a preservação ambiental (prudência ecológica). Mas, se já era difícil às teorias de desenvolvimento econômico dar conta do crescimento com distribuição de renda, a incorporação normativa da variável “preservação ambiental” tornou mais complexo ainda o tratamento teórico e operacional do conceito de desenvolvimento sustentável.
57
Em junho de 1992, reuniu-se mais 35 mil pessoas e 106 chefes de governo do mundo para participar da Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED) sob a coordenação da ONU.
O Conceito de Desenvolvimento Sustentável e seus Limites Apesar do reconhecimento da complexidade e da gravidade dos desafios econômicos, sociais e ambientais, com que a humanidade se depara nos dias atuais, os documentos oficiais sobre meio ambiente e desenvolvimento – desde o Relatório Founex, passando pela Declaração de Estocolmo, pela Declaração de Cocoyoc, pelo Relatório Brundtland, pela Declaração da Eco-92, até a Agenda 21 – passaram uma mensagem bastante otimista, ao contrário do Relatório do Clube de Roma, sobre a necessidade e a possibilidade de se planejar e implementar estratégias ambientalmente adequadas a um novo padrão ou estilo de desenvolvimento econômico, com justiça social e prudência ecológica, inicialmente denominado de ecodesenvolvimento por Sachs (1986) e que mais tarde foi batizado com a expressão desenvolvimento sustentável. 58 Segundo o CMMAD (1987, p. 46), o “Desenvolvimento Sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades”. Este genérico conceito de “Desenvolvimento Sustentável” contém dois pressupostos básicos:
“o conceito de ‘necessidades’, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, os quais devem receber a máxima prioridade; e
“a noção de ‘limitações’ que o estágio da tecnologia e da organização social impõem ao meio ambiente, impedindo-o de atender as necessidades presentes e futuras”.59
Numa “nota final”, Sachs (1986, p. 177, nota 8) reconhece que a idéia de ecodesenvolvimento foi lançada por Maurice F. Strong, Diretor Executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, no decorrer da 1 a Reunião do Conselho Administrativo desse Programa realizada em Genebra em 1973. Sachs (1986, p. 15) também afirma que o conceito de ecodesenvolvimento teve como aspiração inicial a definição de um novo estilo de desenvolvimento particularmente voltado para o meio rural do Terceiro Mundo, embora reconhecesse que ele pudesse ser estendido também para o meio urbano. 58
59
Ver CMMAD (1988, p. 46).
Neste sentido amplo, o conceito de desenvolvimento sustentável não se resume apenas à dimensão biofísica, mas incorpora as dimensões políticas, econômicas, tecnológicas, sociais e culturais.60 Não pode haver desenvolvimento sustentável, nos países desenvolvidos e/ou nos países em desenvolvimento, enquanto as populações carentes não tiverem suas necessidades sociais básicas – sobretudo alimento, vestuário, habitação, emprego e lazer – atendidas. Além disso, as pessoas aspiram por uma melhor qualidade de vida. Talvez por isso mesmo é que nos países em desenvolvimento, onde predominam a miséria, a pobreza e a injustiça social, existe sempre a possibilidade de crises ecológicas, políticas, econômicas e sociais. Por certo, é importante que ocorram mudanças nas ações das instituições governamentais e não governamentais, bem como nas agências internacionais promotoras do desenvolvimento sócio-econômico. Para tal, a democracia é uma peça fundamental, para qualquer nação, na medida que permite que o desenvolvimento sócio-econômico, sobretudo dos países em desenvolvimento, possa ocorrer tanto pelo aumento da produção e do consumo de bens e serviços, capazes de assegurar novas oportunidades de emprego e renda para todos, quanto pela inserção de inovações tecnológicas capaz de harmonizar aumento de produtividade com preservação ambiental. O desenvolvimento sustentável, portanto, pressupõe um processo de mudança radical no qual espera-se que a exploração dos recursos naturais, a direção dos investimentos, a orientação tecnológica e as mudanças institucionais articulem-se de forma a atender às necessidades sociais e aspirações humanas das gerações presentes e futuras. Mas, para levar adiante tal intenção, não se deve olvidar que as nações ricas estão bem mais equipadas, com recursos financeiros e tecnológicos, do que as nações 60
O termo desenvolvimento sustentável foi empregado pela primeira vez por Robert Allen, no artigo “How to Save the World”, 1980. Ver Pearce et al. (1989) e Pezzey (1989).
em desenvolvimento. Por isso mesmo, os países em desenvolvimento são os que mais sofrem com a deterioração dos seus ecossistemas, com a extinção das suas espécies vegetais e animais e também com o esgotamento precoce dos seus recursos minerais, já que, na hipótese do esgotamento ou destruição antecipada destes, o processo de industrialização desses países torna-se mais difícil e oneroso. É evidente que há uma grande distância entre a “intenção e o gesto” para que o conceito de desenvolvimento sustentável, aceito como uma nova estratégia de desenvolvimento, venha realmente se constituir num novo paradigma do desenvolvimento e tenha embasamento teórico suficiente para sua aplicabilidade. O próprio Relatório Brundtland reconhece que “é preciso que o mundo crie logo estratégias que permitam às nações substituir seus atuais processos de crescimento, freqüentemente destrutivos, pelo desenvolvimento sustentável” (CMMAD, p. 52). Entretanto, são ainda muitos os problemas e os desafios para se chegar a harmonizar uma política de desenvolvimento sustentável que combine desenvolvimento econômico com preservação do meio ambiente.61 Por outro lado, o conceito de desenvolvimento sustentável carece de uma teoria de base e de um método operacional que lhe proporcionem sustentação empírica. Desenvolvimento Sustentável: um Conceito sem Teo-ria? A “Comissão Brundtland”, que formulou o conceito de Desenvolvimento Sustentável, supõe que a “humanidade seja capaz de tornar o desenvolvimento sustentável” pela ação (re)educadora do Estado junto a Sociedade.62 No entanto, esta possibilidade é admitida de forma a-histórica e sem uma análise crítica de como viabilizá-la num mundo real dividido e dominado pelo hegemônico modo de produção capitalista contemporâneo. 61 62
Ver CMMAD (1987, p. 81-98). Ver CMMAD (1987, p. 9-12).
De qualquer maneira, o conceito de desenvolvimento sustentável (DS) tem estado no cume de quase todas as agendas das políticas nacionais e internacionais de desenvolvimento econômico. Não obstante, enquanto a noção de sustentabilidade é amplamente aceita, o restante da definição de desenvolvimento sustentável é assaz evasiva. A idéia básica de sustentar Gaia (o planeta com vida ou a espaçonave que carrega todos) é apenas uma metáfora importante para desperta a conscientização pública e evidenciar a necessidade de um melhor gerenciamento quanto ao uso dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente (LUTZEMBERGER, 1990); BANCO MUNDIAL¸1992, p. 9). Nesta perspectiva, o desenvolvimento sustentável realça a importância das responsabilidades intergeracionais dos habitantes da terra, o que significa introduzir os riscos e as incertezas do tempo econômico e o significado ético de preservação do meio ambiente por parte das gerações presentes em relação às gerações futuras. Por outro lado, o conceito de necessidade é um dos mais complexos e subjetivos da economia, o que torna a definição genérica de sustentabilidade de difícil tratamento teórico, dentro de uma já complexa e ampla definição de DS, no campo da economia positiva. No âmbito da economia normativa, quando se define os principais objetivos de uma política de desenvolvimento socioeconômico, é preciso se levar em conta a sustentabilidade em todos os países, desenvolvidos e em desenvolvimento, qualquer que seja o seu regime econômico: economia de mercado, economia planificada ou economia mista.63 O desenvolvimento econômico sustentável, portanto, supõe uma transformação histórica do modo de produção e de consumo da economia e do modo de vida da sociedade na busca da equidade social e da conservação ambiental intragerações e intergerações presentes e futuras.64 Neste sentido, o planeja63 64
Ver Laskorin (1983, p. 70-80).
Do ponto de vista da gestão ambiental, o conceito conservação é aplicado às atividades que utilizam racionalmente os recursos naturais renováveis em bases sustentáveis. Quanto à noção de preservação tem sentido mais de ação de proteger contra qualquer forma de des-
mento do desenvolvimento sustentável, para se tornar rigorosamente operacional, deve considerar a sustentabilidade ambiental, em suas múltiplas dimensões, sujeita as seguintes limitações:65 1. A sustentabilidade biofísica, pressupondo que as novas políticas de desenvolvimento econômico incorporem, além da justiça social, a possibilidade de mudanças tanto no acesso e uso dos recursos naturais, quanto na distribuição social dos custos e benefícios dos danos causados pela atividade econômica sobre a natureza. 2. A sustentabilidade política, pressupondo uma democracia moderna, que se caracterize pela ampla participação de todos os membros da sociedade nos diversos problemas que os afligem, em que o Estado e sociedade promovem e viabilizam um arco de alianças e pactos sócio-políticos para assegurar as condições necessárias de governabilidade e de uma boa governança em prol de desenvolvimento auto-sustentado, com estabilidade e oportunidades de emprego e renda para todos os cidadãos; 3. A sustentabilidade econômica, pressupondo uma melhoria na eficiência alocativa e na gerência dos estoques de recursos e dos fluxos de investimentos públicos e privados, oportunizadores de mais emprego e renda, de forma a promover o crescimento auto-sustentado; 4. A sustentabilidade social, pressupondo uma melhor eqüidade, quanto à distribuição da renda e da riqueza, de modo a reduzir as assimetrias dos padrões sociais entre pobres e ricos e proporcionar uma melhor qualidade de vida das pessoas; 5. A Sustentabilidade ecológica, pressupondo inovações tecnológicas capazes tanto de evitar os danos sobre os recursos naturais não renováveis e sobre o meio ambiente, como de reduzir o volume dos resíduos e da poluição
truição ou dano o meio ambiente e seus recursos naturais. Ver Bellia (1996, p. 18) e Scott (1995, p. 83-86). 65
Ver Sachs (1994, p. 37-38); Sachs (1986, p. 11-45); e Sachs (1986, p. 94-104).
através da conservação da energia e dos recursos naturais e da indústria da reciclagem; 6. A Sustentabilidade cultural, pressupondo a inclusão social dos vários saberes populares naquilo que possam contribuir para o encaminhamento de soluções específicas para certos locais; e 7. A Sustentabilidade espacial, pressupondo a construção de uma configuração rural-urbana mais equilibrada e também um ordenamento territorial mais harmonioso dos assentamentos humanos e das atividades econômicas. A economia política do desenvolvimento sustentável, portanto, busca conciliar crescimento econômico, política econômica e meio ambiente. Por isso, é de bom alvitre não se confundir desenvolvimento econômico sustentado com desenvolvimento econômico sustentável, já que este último não se reduz apenas a crescimento, e sustentabilidade não quer dizer somente manutenção do crescimento, mas a interação e iteração entre o uso racional dos recursos naturais renováveis do meio ambiente e a necessidade do crescimento econômico auto-sustentado, talvez a principal questão econômica dos dias atuais. Neste sentido, apesar da crítica heterodoxa ao mainstream da economia – de que a teoria da ortodoxia é incompatível com o desenvolvimento sustentável – os economistas neoclássicos vêm desenvolvendo uma análise formal da sustentabilidade dentro da microeconomia. Convém observar, entretanto, que esta análise se resume à avaliação econômicofinanceira do tipo custo–benefício e só algumas vezes se estende às externalidades ambientais. No entanto, o mesmo não se pode dizer da macroeconomia que ainda não incorporou os problemas da sustentabilidade. 66 Autores tais como Dasgupta & Heal (1979) e Pearce & Turner (1990) procuraram demonstrar a importância das políticas macroeconômicas em relação com o desenvolvimento sustentável. Na verdade, os efeitos das políticas macroeconômicas sobre a produção e consumo têm sido explo66
Ver Goldin & Winters (1995, p. 1-4).
rados mais com respeito à agricultura. Goldin & Winters (1992), por exemplo, mostraram que as políticas macroeconômicas – políticas fiscais, cambiais, monetárias e de renda – podem ser mais importantes à sustentabilidade ambiental do que as políticas públicas setoriais. Anderson & Blackhurst (1992) e Low (1992), por outro lado, mostraram que o protecionismo ambiental dos países desenvolvidos não só prejudica o saldo da balança comercial dos países em desenvolvimento, como pode até aumentar a degradação ambiental, principalmente se não for encontrada uma solução para a dívida externa desses países.67 Os discursos panfletários de alguns ambientalistas alarmistas, referentes aos impactos do crescimento econômico sobre o meio ambiente, somente agora estão sendo contestados à luz das evidências. Há trinta anos atrás, o Relatório do Clube de Roma concluía que o crescimento continuado da economia mundial iria trazer prejuízos irreparáveis para o meio ambiente do planeta terra e uma redução da qualidade vidas das gerações presentes e futuras. Este receio repousava sobre duas noções intuitivas: a primeira, partindo da tese de que mais produto requer mais insumos e assim as fontes de recursos naturais fornecedoras de matérias-primas para os países industriais iriam ser exauridas devido à expansão continuada do crescimento da produção e do consumo em escala global; a segunda, oriunda da tese segundo a qual mais produto agregado significa mais emissões e resíduos poluentes e assim a terra, como depósito natural, ficaria inevitavelmente sobrecarregada pela continuidade do crescimento econômico. Neste cenário, os ambientalistas mais alarmistas vislumbravam a possibilidade de que a expansão da atividade econômica mundial, eventualmente, exceda no curto prazo a “carrying capacity” da biosfera, com graves conseqüências para saúde das espécies humana, animal e vegetal. Para evitar tal “tragédia global”, a sugestão dos ambientalistas alarmistas é de restringir imediatamente o ritmo de expansão da economia global e de realizar a transição da sociedade para o “Es-
67
Ver Banco Mundial (1992).
tado Estacionário” da economia.68 Outros, a exemplo do Banco Mundial (1992), notaram que o atual nível da atividade econômica mundial também seria um fator determinante para o aumento tanto da taxa de exaustão dos recursos naturais, quanto da taxa de poluição do meio ambiente com resíduos sólidos e gasosos. Além dos impactos provocados pelo nível e pela taxa de expansão da atividade econômica mundial sobre o meio ambiente, resta ainda considerar os efeitos provocados pela composição do produto interno bruto e pelas técnicas usadas à produção dos bens e serviços sobre o meio ambiente. Não obstante, algumas evidências recentes demonstram que o crescimento econômico não necessariamente contribui para a degradação dos recursos e do meio ambiente. Por outro lado, as “ligações” e as “mudanças” econômicas operadas na composição do produto, através de métodos de produção mais amistosos com o meio ambiente, podem mais do que compensar o aumento do nível da atividade econômica.69 Grossman (1994), por exemplo, identificou que os países nos seus estágios iniciais de desenvolvimento, tendem a apresentar uma deterioração da qualidade do meio ambiente, mas que a medida que a renda per capita deles aumenta, torna-se evidente o melhoramento na qualidade do meio ambiente. Baldwin (1994) é outro pesquisador que admite que o crescimento econômico é necessário para reduzir a pobreza e minimizar os impactos da poluição sobre o meio ambiente, sobretudo nos países em desenvolvimento que têm altas taxas de crescimento da população. Assim, para reduzir a pobreza e o aumento da pressão do incremento da população sobre o meio ambiente, é preciso que o crescimento econômico se faça com distribuição de renda e mais políticas públicas de investimentos voltadas para educação, saúde, habitação e alimentação.
68
Ver Daly (1994, 1997).
69
Ver Goldin & Winters (1994, p. 4).
Apesar dos avanços no campo da macroeconomia do desenvolvimento, sobretudo com as pesquisas dos modelos ótimos de desenvolvimento sustentável e das várias tentativas de medição do desempenho sócio-ambiental, através do conceito de Produto Interno Líquido Ambientalmente Ajustado (PIA), ainda falta muito para se integrar a contabilidade ecológica à econômica de forma a se dispor uma “contabilidade verde” do desenvolvimento sustentável (COSTANZA, 1994; BARTELMUS, 1994; DASGUPTA, 1995; SERAFY, 1997). Mesmo assim, o desenvolvimento sustentável tornou-se, de repente, a panacéia do novo estilo de planejamento do desenvolvimento e a nova palavra de ordem do neo-liberalismo para a partilha dos problemas ambientais do mundo globalizado. Por certo que o debate em torno da falsa dicotomia entre desenvolvimento e meio ambiente deixou de ser relevante. Reconhece-se, hoje, que sem proteção ambiental o desenvolvimento econômico fica comprometido e sem desenvolvimento econômico não há proteção ambiental (Banco Mundial, 1992, p. 27). Mas, apesar da aceitação de que se pode compatibilizar desenvolvimento econômico com redução da pobreza e dos danos sobre o meio ambiente, sobretudo a partir de ações governamentais e não governamentais, as opções reais para tais práticas, só serão possíveis se os países desenvolvidos transferirem aos países em desenvolvimento os recursos e as técnicas de que dispõem. Não bastasse, ao contrário da peremptória afirmação do sociólogo Brüseke (1994, p. 2) de que a teoria do desenvolvimento sustentável já dispõe de uma teoria positiva, por propor uma “visão tri-dimensional do desenvolvimento na qual a eficiência econômica casa com prudência ecológica e a idéia de sociedade solidária e justa”, é preciso admitir que essa possibilidade ainda está longe de se concretizar no plano teórico-metodológico. No plano das intenções, esta proposta de Brüseke para a construção de uma nova teoria do desenvolvimento sustentável da sociedade global, apesar de considerar caducas as “velhas teorias gerais”, não apresenta nada de consistente do ponto de vista de um novo arcabouço ana-
lítico logicamente estruturado, capaz de, com coerência e inteligibilidade, passar pelo teste da falseabilidade popperiana ou se constituir num novo paradigma kuhniano.70 No âmbito das ciências sociais, uma teoria econômica pode ter seu poder de explicação limitado frente a uma outra com maior poder retórico de convencimento, pode ter sua capacidade de persuasão reduzida devido às mutações da realidade ou ainda uma combinação das duas situações anteriores.71 Nem por isso, o esforço científico, na busca da compreensão teórica da realidade social em que vivemos – uma formação social real dominada por um modo de produção capitalista – deve ser reduzido na sua intensidade. Tampouco, deve-se abandonar as chamadas “velhas teorias” porque elas não puderam evitar as “infinitas frustrações”. Pelo menos, se realmente estiverem “caducas”, as “velhas teorias” devem passar para o panteão da história do pensamento econômico, refúgio das revisões e atualizações. No entanto, como já ocorreu várias vezes com a teoria marxiana, de repente pode-se descobrir que “velha teoria” é bem mais atual do que as “novas teorias” que perderam o sentido da história da civilização burguesa. De qualquer modo, o conceito de desenvolvimento sustentável carece de uma base teórica e de medição de desempenho para instrumentalizar decisões de políticas econômicas concernentes ao desenvolvimento sustentável.72 Entretanto, isso não descaracteriza o conceito de DS para fins da ação governamental em termos de formulação, implementação, controle e avaliação de planos, programas e projetos.73 Mas, do ponto vista analítico formal, o discurso do desenvolvimento sustentável deixa muito a desejar. Mesmo assim, as agências internacionais de desenvolvimento, a exemplo do 70
Ver Costa (1995, p. 10).
71
Ver Mccloskey (1983).
72
O desenvolvimento sustentável não deve ser confundido com o desenvolvimento sustentado (ou desenvolvimento auto-sustentado) que quer dizer desenvolvimento econômico endógeno acompanhado pelo aumento continuado do produto e de mudanças estruturais de natureza sócio-econômicas realimentadoras do desenvolvimento por um longo período de tempo. 73
Ver Costa, 1995, p. 10-12.
Banco Mundial e da UNESCO, adotaram o conceito de desenvolvimento sustentável para marcar a nova ideologia desenvolvimentista que busca harmonizar, numa sociedade capitalista dividida em classes, o crescimento econômico (eficiência produtiva), com equidade (justiça social) e conservação do meio ambiente (prudência ecológica). Chega-se mesmo a sugerir que o “conceito de desenvolvimento sustentável sinaliza uma alternativa às teorias e aos modelos tradicionais de desenvolvimento desgastados numa série infinita de frustrações” (Brüseke, 1994, p. 35). Ou seja, vislumbra-se aí a possibilidade da formulação holística de uma teoria global do desenvolvimento sustentável.74 Não obstante, é preciso frisar que as “teorias de desenvolvimento” dos anos 60, que discutiram a questão do subdesenvolvimento numa perspectiva histórico-analítica, tinham coerência lógica e consistência metodológica. Neste sentido, não é minha intenção aqui procurar rever as frustradas tentativas de formulação de uma teoria holística do desenvolvimento sustentável. Mas posso observar, seguindo Costa (1995, p. 12-22), que no modo de produção capitalista a economia política do desenvolvimento nem pode ser um subproduto da ecologia ou da biologia e nem a lógica da acumulação ampliada conduz a um “Estado Estacionário”, pelo menos enquanto no modo de produção capitalista o avanço do progresso técnico se fizer adiante do crescimento da população.75
Desenvolvimento Sustentável: um Conceito sem Método? O conceito de desenvolvimento sustentável, como formulado pela “Comissão Brundtland”, já nasceu órfão de um método científico convincente e não congregou suficientemente a comunidade científica capaz de orientar a construção teórica de um novo paradigma científico, no sentido amplo de Kuhn (1982, p. 13). Nas ciências sociais, ao contrário 74
Brüseke, 1995, p. 112-119.
75
Ver Mill (1983).
das ciências exatas, os pesquisadores não podem realizar experimentos controlados como fazem os físicos e biólogos. Além do mais, as ações e reações comportamentais são imanentes nos agentes econômicos e atores sociais. Talvez por isso mesmo, Kuhn (1982, p. 12-13), um físico teórico que depois se interessou por história das ciências, ficou impressionado com o número e a extensão dos desacordos entre os cientistas das comunidades das ciências sociais, quanto à natureza dos métodos e problemas, em relação às dos cientistas das comunidades das ciências exatas e naturais. Na sociedade capitalista o desenvolvimento das forças produtivas, inclusive a própria ciência e a tecnologia, ocorre com o aprofundamento da divisão técnica e social do trabalho em todos os campos da atividade humana. Neste sentido, além do avanço das ciências sociais ocorrer numa sociedade de classes, o que leva a desacordos e confrontos teóricos, a divisão social do trabalho científico ao criar o trabalhador parcial – cuja possibilidade de ter uma visão e uma compreensão do todo no plano científico e tecnológico fica limitada – abre a oportunidade de que a perspectiva do todo possa ser apropriada pelo trabalhador universal. Portanto, quanto à retórica da visão holística, como a única capaz de integrar as ciências sociais às ciências da natureza, há que se refletir melhor sobre os discursos e significados do pensamento totalizante (BRÜSEKE, 1994). Neste sentido, apesar da significativa produção de trabalhos girando em torno do tema desenvolvimento sustentável, é preciso atentar para o fato de que a maioria dos autores produz como se já houvesse uma teoria geral e holística de uma ciência sócio-ambiental, incorrendo em sério equívoco. Há que se reconhecer que os problemas sócio-ambientais são problemas complexos nos quais intervêm processos de diferentes racionalidades, ordens de materialidade e escalas espaço-tempo-rais. A problemática ambiental, que se constitui num campo onde se situam as interrelações sociedade- natureza, cujo conhecimento é visto como demandando uma certa aproximação holística e um método interdisciplinar capaz de permitir a integração das ciências da natureza e da sociedade
em seus aspectos biológicos, físicos, sociais, econômicos e culturais, tem seu centro fulcral na economia política. A concepção de complexidade ambiental tem predominado a visão dos ecologistas sobre as relações sociedadenatureza (MORIN, 1980, 1986). Neste caso, as preocupações têm se concentrado nos problemas de conservação dos recursos naturais renováveis e de preservação da biodiversidade natural. Mais recentemente, entretanto, tem-se passado paulatinamente da noção restrita de meio ambiente – que considera essencialmente só os aspectos físicos e biológicos da base natural do ambiente humano – para uma noção mais ampla de meio ambiente na qual, além dos essenciais elementos do ambiente natural, são também incorporadas as dimensões socioeconômicas, sócio-políticas e sócio-culturais da base social do ambiente humano, nas quais são definidas as orientações e os instrumentos conceituais e técnicos que permitem ao homem compreender e utilizar melhor os recursos da biosfera para satisfação de suas necessidades (UNESCO, 1980, 1985). Assim, admite-se que se tenha avançado da concepção fechada de uma educação ambiental baseada na busca de uma articulação interdisciplinar entre as ciências naturais e sociais, a uma visão da complexidade ambiental, aberta a diversas interpretações do ambiente e a um diálogo de saberes, donde confluem as vias epistemológica e hermenêutica à construção de uma racionalidade ambiental (LEFF, 1996; ACEVEDO MARIN & CASTRO, 1997). Como conseqüência disso, pode se identificar, hoje, vários programas interdisciplinares de ensino e pesquisa sobre a problemática ambiental. Todavia, nesses programas desdobram-se estratégias acadêmicas e experiências dissimuladas que apenas confirmam que o processo de construção de uma ciência ambiental avança de maneira “prática”, isto é, sem ainda haver se consolidado uma reflexão teórica que fundamente as ditas “práticas”. Entretanto, apesar dos avanços práticos, pode-se dizer que são raros os “programas universitários” de ensino e pesquisa sobre meio ambiente que trabalham realmente as problemáticas epistemológica e metodológica da interdisciplinaridade (FOLLARI, 1982; LEFF, 1994; VIEIRA, 1993). É
verdade que a interdisciplinaridade tem aberto alguns espaços marginais nas universidades, porém ainda tem sido um tema pouco tratado a nível formal para fundamentar teoricamente os diversos programas de pesquisa e ensino. Na realidade, na maioria das vezes, a interdisciplinaridade é incorporada nos “programas universitários” apenas como um princípio básico que se satisfaz com a multiplicidade de temas introduzidos nos currículos. Neste particular, é preciso enfatizar que a interdisciplinaridade tem transcendido os campos do ensino e da pesquisa restritos as disciplinas científicas, a sua configuração paradigmática e suas possíveis articulações (LEFF, 1998). É verdade que a crise ambiental criou condições para que emergisse o conceito de desenvolvimento sustentável. Porém, a construção de uma teoria geral do desenvolvimento sustentável capaz de incorporar a estrutura das ciências da natureza e da sociedade, em suas relações homem-natureza, homem-sociedade e sociedade-natureza, ainda está para acontecer. Sachs (1986, p. 26), por exemplo, reconhece que “o conceito de desenvolvimento sustentável tem que ser operacional”, mas que “sua aplicação requer, todavia, um esforço de pesquisa contínuo e ações de demonstração, submetidas a uma reflexão crítica, a fim de estabelecer retroações permanentes entre a prática e a ciência voltada para a ação”. Para viabilizar tal proposta, Sachs (1986, p. 27) sugere a criação de uma rede internacional de intercâmbio profissional entre pesquisadores dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, bem como o recolhimento das experiências de desenvolvimento sustentável, a partir de estudos de casos pontuais, com vistas a definir pontos de interesse em torno dos quais se daria a colaboração entre biólogos, tecnológos e planejadores – profissões que ainda têm pouco diálogo. Fica evidente que a proposta de Sachs (1986, p. 18-26) para a formulação de políticas nacionais e/ou regionais de desenvolvimento sustentável, tem um caráter mais de ação normativa multidisciplinar, através do intercâmbio multiprofissional entre as várias áreas do conhecimento humano, voltada à definição de prioridades da pesquisa em matéria de ecotécnicas e de formas de organização do desenvolvimento sustentável.
Igualmente, percebe-se que a própria agenda ambiental da “Comissão Brundtland”, ao conceituar desenvolvimento sustentável, está voltada muito mais para a formulação de estratégias de planejamento do desenvolvimento, capazes de incorporar explicitamente os recursos naturais e o meio ambiente, do que para a formulação de uma teoria geral do desenvolvimento sustentável. Neste caso, talvez, o conceito de desenvolvimento sustentável devesse se circunscrever às esferas normativas do planejamento e da gestão ambiental. Sendo assim, o esforço de construção da praticabilidade talvez ficasse melhor nas mãos dos técnicos responsáveis pela formulação, implementação, controle a avaliação das políticas públicas ambientais. Em geral, o meio ambiente, enquanto objeto científico, é visto às vezes como tendo dois componentes: um, ligado às ciências da natureza, que toma a natureza não-humana no âmbito dos ecossistemas e na perspectiva da ecologia, que estuda as relações entre os seres vivos, animais e vegetais, e destes com o ambiente natural; e, outro, ligado às ciências sociais que toma a natureza humana no âmbito da sociedade e na perspectiva da economia social, que estuda as relações entre classes sociais e destas com o ambiente social. Não obstante, na sociedade capitalista, as relações sociais de produção e de troca, enquanto relações de propriedade privada, estabelecem relações homem-sociedade e homem-natu-reza. Neste sentido, o meio ambiente como objeto científico tem uma dupla natureza. Como meio ambiente social, deveria ser objeto das ciências sociais; como meio ambiente natural, das ciências da natureza. Esta dupla natureza das questões ambientais, envolvendo as ciências sociais e as ciências da natureza, causa uma primeira dificuldade à definição do objeto meio ambiente e, portanto, à própria constituição de uma ciência ambiental. Por tratar-se de uma definição relativa e sujeita a mudanças no tempo – dependendo do centro de interesse particular do trabalho científico – o objeto meio ambiente acaba se diferenciando mais em função do campo disciplinar. Uma segunda dificuldade à definição do objeto meio ambiente é dada tanto pela sua complexidade lógica (simpli-
cidade na descrição do objeto) quanto pela complexidade metodológica (o método interdisciplinar). Por fim, uma terceira dificuldade à definição do objeto meio ambiente decorre de uma certa ambigüidade para a diferenciação e avaliação precisa – em face das tênues relações de causa e efeito – dos fenômenos bióticos e/ou abióticos daqueles antrópicos induzidos pela ação do homem sobre a natureza. Talvez, por isso mesmo, a discussão em torno da questão da interdisciplinaridade tenha sido, pelo menos até o momento, pouco precisa no que tange ao seu conteúdo e objeto (MAIMON, 1993). Com efeito, se pode identificar diversas formas de intervenção interdisciplinar para cada situação em que é enfocada a questão ambiental (SINACEUR, 1991; MAIMON, 1993; LEFF, 2000). A crítica corrente ao método interdisciplinar está vinculada tanto ao problema da identificação e delimitação do objeto interdisciplinar, no que tange a sua totalidade e complexidade, quanto ao problema do sujeito interdisciplinar, entendido este como o sujeito coletivo que emerge de uma dada equipe de trabalho. Nesse ambiente, o método interdisciplinar é considerado idealista, pois estaria baseado no pressuposto do primado explicativo das idéias, e de sua autonomia frente ao real, dando suficiência absoluta ao sujeito pensante do objeto. Neste particular, a posição crítica ao significado de interdisciplinaridade também diz respeito à idéia de “paninterdisciplinaridade”, ou seja, o fato da interdisciplinaridade ser vista como uma resposta para tudo, um remédio a todos os males da fragmentação do saber. A filosofia da práxis não aceita esta idéia da potencialidade multidimensional de uma interdisciplinaridade que, fundada na apologia da construção dos consensos e harmonias, desconhece as determinações históricas do modo de produção capitalista, as contradições em processo do capital e as lutas das classes sociais no interior da sociedade moderna (FAZENDA, 1994, 1998; (JANTSCH & BIANCHETTI, 1995). Ademais, há ainda a crítica ao sentido a-histórico da interdisciplinaridade, sobretudo quando esta não reconhece que as ciências disciplinares são frutos de racionalidade da história da emancipação do ho-
mem, portanto não sendo fragmentos de uma unidade perdida do saber. De qualquer maneira, a interdisciplinaridade pretende se afirmar, enquanto método holístico e universal, como crítica à especialização disciplinar da ciência normal departamentalizada. De fato, o termo interdisciplinaridade vem sendo usado como sinônimo e metáfora de toda e qualquer interconexão entre campos diversos do conhecimento, do saber e de práticas que envolvem tanto as diversas disciplinas, quanto as diferentes instituições e setores sociais. É comum hoje que diversos centros e organismos, governamentais e nãogoverna-mentais, dedicados ao ensino, à pesquisa, à assessoria, à consultoria e/ou à promoção de projetos comunitários, se autodenominem como centros interdisciplinares de estudos. Neste contexto, como observa Leff (2000, p. 3), “la interdisciplinariedad no solamente se aplica como la composición multidisciplinaria de sus colaboradores, sino como un dialogo de saberes que funciona en sus prácticas, y que no aduce directamente a la articulación de conocimientos disciplinarios; donde lo disciplinario puede aplicarse a la conjugación de diversas visiones, habilidades, conocimientos y saberes dentro de prácticas de educación, análisis y gestión ambiental, que de algún modo, implican a diversas “disciplinas” – formas, modalidades, tipos de trabajo –, pero que no se agota en una relación entre disciplinas científicas, campo no cual originalmente se plantea a interdisciplinariedad para enfrentar el fraccionamiento y superespecialización del conocimiento”. De qualquer maneira, há ainda quem utilize indistintamente os termos interdisciplinar (ou interdisciplinaridade) e multidisciplinar (ou multidisciplinaridade) como se fossem sinônimos. Neste ponto, cabe diferenciar o que é muldisciplinar do que é interdisciplinar. Apesar desses termos serem
comumente usados como sinônimos, há diferenças semânticas e metodológicas marcantes.76 Para Aragón (1994, p. 10), por exemplo, o trabalho interdisciplinar é a integração do conhecimento fragmentado possuído por especialistas de diferentes campos do saber humano, aplicado somente para problemas específicos. Não obstante, a simples agregação do “conhecimento fragmentado” não necessariamente é trabalho interdisciplinar. Além do mais, tratar de problemas específicos pela justaposição disciplinar estar mais para trabalho muldisciplinar (que abrange muitas disciplinas com objetos diferentes) do que para trabalho interdisciplinar (que tem um objeto comum a duas ou mais disciplinas), sobretudo se tomarmos o significado desses termos numa perspectiva metodológica. Embora reconhecendo que o saber especializado é uma condição necessária, mas não suficiente à prática do trabalho interdisciplinar (ou multidisciplinar?), Aragón (1994, p. 10-12), seguindo o que já tinha sido dito por Sachs (1986), apenas acrescenta que a multidisciplinaridade pressupõe determinadas mudanças de atitudes por parte dos especialistas e o trabalho cooperativo através da networking. No plano da ação normativa, é possível, sim, o diálogo entre profissionais de distintos ramos do conhecimento humano: biólogos, ecólogos, geógrafos, economistas, antropólogos, sociólogos e cientistas políticos. Neste caso, o método de organização do trabalho multidisciplinar é um elemento necessário para a pesquisa aplicada que se baseia nas experiências alternativas de sustentabilidade, quanto ao uso dos vários recursos naturais, através das práticas de manejo, sobretudo nas atividades agroextrativas. Mesmo assim, o método multidisciplinar supõe trabalho cooperativo e uma mudança de atitude dos pesquisadores especialistas. Mas, ainda que o diálogo multiprofissional seja possível, cada especialista continuará tendo, numa visão sistêmica, o seu próprio objeto de investigação, ou seja, a muldisciplinaridade não transforma um economista num físico e nem um físico num eco76
No Dicionário do Aurélio, o termo Interdisciplinar significa aquilo que é comum a duas ou mais disciplinas ou ramos de conhecimento; enquanto o termo multidisciplinar diz respeito àquilo que abrange muitas disciplinas.
nomista. Por outro lado, a proposta de uma metalinguagem codificada, para a integração multiprofissional, pode trazer mais confusão à construção da “torre de babel”. A necessidade de construção de uma teoria do desenvolvimento sustentável – enquanto uma teoria geral alternativa às teorias gerais existentes – pressupõe, para além do trabalho cooperativo multidisciplinar, a formulação um novo método interdisciplinar, ou seja, de uma metodologia capaz de integrar os objetos das ciências humanas e das ciências da natureza num objeto único de uma ciência ambiental capaz de permitir a construção de uma teoria do desenvolvimento sustentável. No campo da economia positiva, por exemplo, devido à ampla diversidade metodológica das várias correntes de pensamento econômico, tem-se algumas fronteiras dentro e entre a economia política e teoria econômica dominante. Mesmo assim, quando os economistas conseguem superar os seus obstáculos epistemológicos e ideológicos, é possível erguer certas pontes entre as herméticas fronteiras como o fizeram Keynes (tradição neoclássica) e Kalecki (tradição marxista), em torno da construção da teoria da demanda efetiva. Neste caso, o elemento comum, para que fosse estendida uma ponte entre as duas correntes de pensamento, foi o problema da insuficiência da demanda efetiva que, embora tenha sido percebido por Marx e Malthus, só foi se constituir em uma teoria geral da demanda efetiva com Keynes e Kalecki. Mas, se não é fácil conciliar determinadas teorias pertencente ao campo de conhecimento das ciências sociais, e mesmo dentro do campo das ciências da natureza, o que dizer das propostas que reivindicam uma interdisciplinaridade ampla – ciências da sociedade com ciências da natureza – em torno do ideário do desenvolvimento sustentável (COSTA, 1996). Muitas das vezes, o propósito de unificação dos discursos científicos, visando a busca da homogeneização de estruturas conceituais, tem se configurado numa “prática interdisciplinar” concebida a partir da teoria geral de sistemas. Neste particular, o objetivo unificador e reducionista, compartilhado pelo positivismo lógico, tem reaparecido nas
explicações de físicos e biólogos sobre processos históricos, surgidos do desejo de encontrar um único principio organizador da matéria, “como si se experimentara uma singular repugnancia a pensar a diferencia, a descrever las separaciones y sus disperciones, a disociar la forma reafirmante de lo idéntico” (FOULCAULT, 1969, p. 21). O desenvolvimento das idéias “verdes” dos movimentos ambientalistas nasceu da revolta ou da insatisfação da ciência normal contra si mesmo (BRAMWELL, 1989; LEIS & D’AMATO, 1995). Não obstante, o ambientalismo é um movimento sócio-político que pretende se assumir com base na própria ciência. De fato, embora “critiquem a dominação da vida pela ciência, os ecologistas valem-se da ciência para fazer frente a esta em nome da vida. O princípio defendido não é a negação do conhecimento, mas sim o conhecimento superior: a sabedoria de uma visão holística, capaz de ir além das abordagens e estratégias de visão restritas, direcionadas à mera satisfação de necessidades básicas. Neste sentido, o ‘ambientalismo’ tem por objetivo reassumir o controle social sobre os produtos da mente humana antes que a ciência e a tecnologia adquiram vida própria, com as máquinas finalmente impondo sua vontade sobre nós e sobre a natureza: um temor ancestral da humanidade” (CASTELLS, 1999, p. 155). Neste ambiente polêmico, marcado por profunda discordância, se insere a necessidade de uma estratégia epistemológica para abordar a interdisciplinaridade ambiental que se põe de forma crítica às ideologias teóricas de uma ecologia generalizada e de um pragmatismo funcionalista que não só desconhecem o processo histórico de diferenciação, constituição e especificidade das ciências e dos saberes, como também as estratégias de poder das ciências (conhecimento) que se plasmam no campo da ciência ambiental (LEFF, 1981, 1986, 1994). Neste sentido, Foucault (1969) se refere à “surpreendente eficácia do criticismo, descontínuo, particular e local frente ao efeito inibidor das teorias totalitárias e dos paradigmas globalizadores”. A atual redescoberta da impor-
tância do “saber popular”, por exemplo, é um testemunho da “insurreição dos saberes subjugados e dos conteúdos históricos que têm sido enterrados e ocultados em uma lógica funcionalista ou numa sistematização formal” (FOUCAULT, 1980). Com efeito, esta estratégia teórica para o desenvolvimento de uma interdisciplinaridade ambiental, em torno da constituição de um novo saber ambiental, combate criticamente os efeitos ideológicos do reducionismo ecologista e do funcionalismo sistêmico. Por exemplo, pensar o homem, como indivíduo deslocado do seu contexto histórico, e as formações sócio-econômicas, como populações biológicas inseridas no processo evolutivo da natureza, podem induzir à tentativa de explicar a conduta humana e a práxis social por meio de suas determinações genéticas e/ou de sua adaptação funcional ao ambiente (WILSON, 1975). Por certo, estas “teorias sóciobiológicas” desconhecem a especificidade histórica das relações sociais de produção, das regras da organização cultural e das formas do exercício do poder político e ideológico nas quais se inserem as formas de conhecimento, as mudanças sociais e as formas de uso dos recursos naturais (LEFF, 2000). Por outro lado, não é correto “metodologizar” a ecologia, como a disciplina por excelência das interrelações entre seres vivos, para convertê-la numa “teoria geral de sistemas”, ou seja, numa “ciência das ciências” capaz de integrar, sem mediação teórica crítica, os distintos níveis do real e os diferentes processos materiais e simbólicos, como subsistemas de um ecossistema global. De fato, não há como admitir, sem crítica, a ecologia generalizada de Morin (1980) que promete a reconstrução da realidade como um todo, por meio da integração dos diversos ramos do saber, com um tipo de interdisciplinaridade que acaba obstacularizando a reconstrução do real histórico a partir da especificidade e da articulação dos complexos processos da ordem natural e social. De forma similar, Brookchin (1990) busca estabelecer uma certa filosofia da ecologia social baseada num “naturalismo dialético” que se propõe explicar a evolução da socie-
dade no sentido da emergência de uma consciência ecológica ordenadora de uma sociedade eco-comunitária (LEFF, 1999). Também é arriscado uniformizar os níveis ontológicos do real por meio de uma teoria geral de sistemas a la Bertalanffy (1968), que estabelece os isomorfismos e as analogias estruturais, através da análise formal de processos de distintas ordens de materialidade, porém deixando de fora o valor das diferenças e o potencial do heterogêneo (LEFF, 2000). Estas formações ideológicas, que encobrem os métodos da interdisciplinaridade ambiental, tendem a naturalizar os processos políticos de dominação e a ocultar os processos de reapropriação mundial da natureza contidas nas estratégias dominantes da globalização econômica. Neste sentido, a luta pela construção de um saber ambiental abre uma perspectiva de análises da produção e da aplicação de conhecimentos como um processo que compreende tanto as condições epistemológicas às possíveis articulações entre as ciências, quanto os processos de internalização do saber ambiental emergente nos núcleos duros da racionalidade científica e da hibridação das ciências com o campo dos saberes populares e locais (LEFF, 1998). Mas a interdisciplinaridade teórica, entendida como a construção de um objeto científico a partir da colaboração de diversas disciplinas, e não só como tratamento comum de uma temática, é um processo que tem se consumado em poucos casos da história das ciências. Além disso, estes casos não são generalizados o suficiente para gerar daí uma metodologia aplicável para produzir efeitos similares em outros campos do conhecimento e da investigação científica. Por isso mesmo, diante da insuficiência da interdisciplinaridade ambiental, há quem pretenda uma metodologia transdisciplinar para o desenvolvimento cognitivo sobre a complexidade ambiental (LEFF, 1986; SILVA, 1999). Mais recentemente, alguns amazonólogos elaboraram “teorias” que pretendem explicar a dinâmica social do subdesenvolvimento da Amazônia a partir dos conceitos de economia produtiva e economia extrativa (BUNKER, 1985) ou dos conceitos de entropia e sintropia (ALTVA-
TER, 1993). Ambas teorias gerais sobre a Amazônia têm em comum o determinismo das leis físicas da termodinâmica que prevê o irreversível esgotamento das fontes de energia e de matéria prima, em decorrência do aumento da entropia e da redução da sintropia, a continuar o avanço da economia capitalista nas regiões ricas em recursos naturais.77
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Essas ditas “teorias gerais”, apesar da consistência lógica, ainda problematizam a Amazônia de forma extremamente parcial, como bem observa Costa (1996, p. 8). 77
Foi Georgescu-Roegen (1971) que introduziu a lei da entropia na produção econômica ao destacar a importância do substrato material e energético dos valores de uso, já observado pelos fisiocratas e, portanto, dos valores de troca. Neste sentido, a alta dispersão de calor de determinados processos produtivos passou a ser considerada importante para a gestão ecológica do planeta. No entanto, apesar da importância da lei da entropia para a ecologia, a preocupação com o esgotamento dos recursos naturais no longo prazo não deve ser exagerada, como o faz Georgescu-Roegen, a ponto de conceber uma entropia crescente para todo o sistema solar que, ao cabo de alguns bilhões de anos, daria fim à vida no planeta terra. Esta lei da física vem servindo de pano de fundo à formulação de algumas “teorias gerais” que se propõem a explicar o desenvolvimento do subdesenvolvimento da Amazônia. Não obstante, apesar dessas observações, o desenvolvimento deste assunto ficará para outra oportunidade.
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O PADRÃO INSUSTENTÁVEL DA DEMANDA MATERIAL DA E C O N O M I A D O B R A S I L 78
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Texto produzido sob os auspícios do Projeto Amazônia 21, financiado pela União Européia e apresentado, em versão preliminar, na Conferência Internacional Desenvolvimento Regional Sustentável na Amazônia: estratégias e instrumento, período de 24 a 27.10.2001, em Manaus-AM.
José Alberto da Costa Machado Introdução O debate sobre a sustentabilidade da relação entre a Sociedade e o Ambiente, após sua fase inicial de denúncia e diagnóstico, parece ter obtido maturidade com a legitimação de uma matriz metodológica conhecida como Material Flow Analsyis (MFA). Essa abordagem, testada ao longo dos anos noventa por diversas instituições de pesquisas79 está agora formalmente legitimada como referência pela União Europeía (EUROSTAT, 2001) Os resultados aportados pelo uso do MFA possibilitam a análise do sistema econômico através de seus fluxos materiais e não somente dos fluxos monetários, como ocorre com os instrumentos clássicos. Isso permite medir a intensidade material da economia, a racionalidade da utilização dos recursos naturais e o tamanho das mochilas ecológicas80. Informações dessa natureza permitem conhecer o peso ambiental dos processos econômicos e viabilizam a construção de indica-dores de sustentabilidade, com base empírica consistente. Neste trabalho são apresentados os fluxos materiais e os indicadores deles resultantes para a economia do Brasil, referentes ao período de 1975-95. Teoria, métodos e materiais O MFA é um método que filia-se à Teoria de Sistemas81. Por esta os sistemas naturais82 podem ser classificaIFF – Institute of Interdisciplinary Research – Áustria, Centre of Environmental Science – Holanda, Wuppertal Institute for Climate, Environment and Energy – Alemanha, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, Brasil e outros. 79
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Trata-se da quantidade de matéria que é mobilizada pela economia, mas que não se integra aos produtos gerados. 81 Essa teoria tem sido tratada como forma de pensar a realidade que só ganha concretude quando associada a um particular campo do conhecimento e que, nessas circunstâncias, assumiria o rigor e as características do campo de conhecimento hospedeiro. Entretanto, modernamente, a Teoria de Sistemas é um campo autônomo de conhecimento, com referenciais próprios e que, em relação às demais áreas, comparece como uma meta-teoria portadora de uma particular cosmovisão. 82
Embora existam sistemas feitos pelo homem, como as máquinas e os softwares, os conceitos a serem utilizados referir-se-ão aos sistemas naturais, isto é, aqueles que fazem parte do funcionamento do ambiente material e do ambiente social.
dos83, conforme sugerem Prigogine & Stengers, 1984, em função do tipo de relação desenvolvida com seu ambiente relevante, a saber: sistemas isolados, que nada trocam com o ambiente84, sistemas fechados – que trocam apenas energia com o ambiente85 e sistemas abertos – que trocam energia e matéria com seu ambiente. Estes últimos emergem, crescem, assumem um estado estacionário, evoluem, assumem novos estados estacionários e quando não conseguem sustentar esse estado e nem auto-impor-se evolução, morrem. Pode-se sintetizar esse ciclo da seguinte forma: (i) para garantir a reprodução do seu metabolismo energético-material o sistema importa matéria e energia do seu ambiente relevante, o campo de interação; (ii) para que essa importação possa ocorrer, o sistema atua sobre seu ambiente relevante a fim de configurá-lo às suas necessidades; (iii) ao atuar para configurar esse ambiente e para importar matéria e energia, o sistema “importa” sinais de mudanças no ambiente, o que o obriga a reagir através de ajustes em seus parâmetros de funcionamento ou de mudanças estruturais; (iv) a energia necessária para esta permanente readaptação comportamental e estrutural é a entropia do sistema, que, se excessiva, inviabiliza sua existência. Assim, a sustentabilidade de um sistema aberto, do ponto de vista de sua atuação86, depende da natureza do seu metabo-lismo energético-material, isto é, se seu modo de reprodução é ou não sustentável. A qualidade desse metabolismo energético-material se revela por efeitos observáveis, no ambiente relevante, na coerência estrutural e nos elementos internos do sistema. Esses efeitos precisam ser percebidos pelo sistema, para que ele possa ajustar seu metabolismo. O MFA é um método que permite acessar a relação Sociedade-Ambiente através da mensuração de duas dinâmicas principais: a primeira, o metabolismo sócio-econômico, 83
Quando não citados, os conceitos a serem apresentados baseiam-se em Fenzl, 1995, 1997; e Machado, 1998. 84
Tais sistemas existem em função da energia que, por alguma razão, já esteja circulando em seu interior. Na prática, com exceção do próprio universo, não existem sistemas isolados. 85
Um exemplo é a Terra. Ela recebe energia solar e exporta para o espaço a energia não utilizada ou escapada dos seus processos internos 86 Há mutações ambientais que surgem autonomamente no ambiente e que também afetam a sustentabilidade do sistema.
traz a noção de que sociedade, através do sistema econômico, retira recursos do Ambiente, processa-os na intimidade de suas engrenagens e deposita-os de volta no Ambiente na forma de produtos e resíduos; a segunda, colonização, traz a noção de que a sociedade, também mediada pelo sistema econômico e visando adequar o Ambiente aos seus interesses, intervêm nele, transfor-mando-o para o atendimento de suas necessidades exclusivas, em prejuízo de outras espécies. Aprofundamentos sobre esse método podem ser encontrados em Bringezu, 2000; Bringezu & Schütz, 2001; FischerKowalski, 1998, 1999a, 1999b. Pelo estudo do metabolismo sócioeconômico pode-se caracterizar os principais fluxos materiais decorrentes da relação entre Sociedade e Ambiente. Tais fluxos revelam a intensidade material da economia e, por consequência, seu padrão de sustentabilidade. Para este trabalho as principais categorias de conceitos utilizados estão enumeradas a seguir. Os agregados materiais associados à esses conceitos foram calculados e, com eles, construídos indicadores e examinadas suas tendências ao longo do período estudado. Esses agregados são:
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População: trata-se da população do país;
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Produto Interno Bruto (GDP87.): trata-se do produto da economia retirado das contas nacionais;
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Extração Doméstica (DE): trata-se do material, utilizado pela economia, que foi retirado do ambiente do próprio país;
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Matéria Diretamente Utilizada (DMI): trata-se do total de matéria utilizada pelo sistema econômico. É obtida pela soma da extração doméstica (DE) e pela matéria importada de outros países.
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Matéria Domesticamente Consumida (DMC): trata-se do total de matéria utilizada pelo sistema
A sigla de cada conceito está sendo apresentada conforme aparece nos padrões internacionais. Normalmente essas siglas são formadas pelas iniciais dos conceitos em suas versões em inglês.
econômico e destinada à economia do próprio pais. É obtida pela subtração entre DMI e a matéria exportada. -
Matéria Total Utilizada (TMI): trata-se do total de matéria mobilizada pelo sistema econômico em suas atividades. É obtida pela soma da DMI com a matéria extraída domesticamente e não usada, isto é, aquela matéria que não integra as mercadorias negociadas pelo sistema econômico.
Detalhes sobre os dados e seu processo de obtenção podem ser encontrados em Machado, 1999. Resultados Os principais resultados e indicadores podem ser conferidos na Tabela 1: Demanda material da economia do Brasil nos anos 1975-95. Por essa tabela pode-se contatar que: a) a Extração Doméstica (EC) era, em 1975, 1.081.358 mil toneladas e passou para 2.383.073, em 1995, o que representa um aumento de 120,37%; b) a Matéria Diretamente Utilizada (DMI) era, em 1975, 1.136.020 mil toneladas e passou para 2.476.867, em 1995, o que representa um aumento de 118,03%; c) a Matéria Domesticamente Consumida (DMC) era, em 1975, 1.040.907 mil toneladas e passou para 2.269.240, em 1995, o que representa um aumento de 118,00%; d) a Matéria Total Utilizada (TMI) era, em 1975, 1.706.777 mil toneladas e passou para 3.530.142, em 1995, o que representa um aumento de 106,83%; Observa-se, assim, que todos os agregados materiais tiveram aumento que são superiores, em ampla escala, os aumentos da população (47,72%) e do PIB (67,54%). Isso significa que a economia do Brasil tem uma intensa e crescente demanda por matéria sem que isso seja decorrente dos principais fatores capazes de justificar tal aumento (aumento populacional e crescimento do produto econômico).
Em relação aos indicadores pode-se observar o que segue: a) a DE per capita era 9,9 toneladas e passou para 14,6; a DMI per capita era 10,4 toneladas e passou para 15,2; a DMC per capita era 9,6 toneladas e passou para 13,9; e a TMI per capita era 15,7 toneladas e passou para 21,6; b) a DE por milhão de GDP era 2.856 toneladas e passou para 3.756; a DMI por milhão de GDP era 3.000 toneladas e passou para 3.904; a DMC por milhão de GDP era 2.749 toneladas e passou para 3.577; a TMI por milhão de GDP era 4.507 toneladas e passou para 5.564. Quando se considera o consumo per capita observa-se que o crescimento absoluto da demanda por matéria foi em torno de 46% em relação à DE, DMI e DMC e de 37% em relação à TMI. Quando se considera o consumo por cada milhão do GDP observa-se que o crescimento absoluto foi em torno de 31% em relação à DE, DMI e DMC e de 24% em relação à TMI. Os resultados expressados por esses indicadores mostram que, em 1995, a economia do Brasil ficou muito mais voraz por matéria do que era em 1975. As tendências desses agregados e indicadoras podem ser conferidas no Gráfico 1: Tendência demanda material da economia do Brasil nos anos 1975-95. Por ele observa-se que há uma tendência consistente no sentido de crescimento de todos os indicadores. Além disso, constata-se uma tendência para desencaixar o crescimento da consumo de matéria do crescimento do GDP e população. Isso sugere que o consumo de matéria do Brasil, embora influenciado pelo aumento populacional e pelo crescimento da economia, possui uma dinâmica própria que o torna cada vez mais intenso e, por isso, de padrão insustentável. Conclusões O uso de dados quantitativos e de indicadores de fácil entendimento permitiram demonstrar que a economia do
Brasil segue a mesma lógica daquela dos países industrializados, isto é, caminha para padrões cada vez mais insustentáveis (MACHADO & FENZL, 1999). Sem medidas políticas e sem realizações de pesquisas, como esta, que realcem a intensidade material das economias nacionais, a lógica sistêmica desses modelos continuará sendo a grande fonte de impactos ambientais. É nessa perspectiva que os resultados deste trabalho se tornam importante para a Amazônia, fonte de fornecimento de vários dos materiais que registraram grandes demandas nos resultados da pesquisa, como por exemplo, o ferro, a bauxita, a madeira, etc. Aplicando a metodologia para Amazônia vai ser possível conhecer a carga ambiental que ela suporta para beneficiar outras regiões do país e do mundo. Talvez assim seja possível comprovar que a Amazônia não tem sido um problema para o Brasil e para o mundo, e sim o mundo e o Brasil que têm sido problema para a Amazônia. Até agora, com exceção de esforços missionários localizados, o debate sobre a sustentabilidade da relação Sociedade-Ambiente tem registrado um grande desfile de generosas intenções e uma grande movimentação política de militâncias organizadas e agências internacionais de desenvol-vimento. Embora o comprometimento de todos com o ideário do desenvolvimento sustentável, pouco foi operacionalizado, face à ausência de alternativas consistentes para tal. O trabalho mostrou que há alternativa consistente para a superação desse obstáculo. E mostrou, também, que nesses vinte anos de debate sobre a sustentabilidade, de programas de pesquisa, de conferências políticas, de militância organizada, etc., o que se vê é que o Sistema Econômico seguiu seu curso. Não diminuiu o seu ímpeto consumidor em relação ao Ambiente e, ao contrário disso, o aumentou ainda mais. Portanto, é necessário buscar uma outra forma de medir a eficiência dos processos econômicos. É preciso internalizar no sistema a “consciência” dos fluxos físicos movimentados pelos fluxos monetários da economia. Para fazer isso é preciso medir e, nesse particular, a metodologia utilizada
revelou-se potente em trazer à tona as particularidades e características das demandas materiais do Sistema Econômico. BIBLIOGRAFIA BRINGEZU, S. (2000). Material flow analysis: an overview. In: Proceedings of SCOPE Workshop of the Project Material Flow Analisys for Sustainable Resource Management (MFAStoRM), 23-24 November, 2000. Wuppertal: Wuppertal Institute. BRINGEZU, S.; SCHÜTZ, H. Material use indicators for European Union, 1980-1997. Euroestat Working Papers 2/2001/B/2. Bruxelas: European Comission, 2001 EUROSTAT (Statistical Office of the European Communities) (2001). Economy-wide Material Flow Accounts and Balances with derived Resouce Use Indicators: a methodological guide. Bruxelas: EUROSTAT, 2001. FENZL, N. (1995). Conceitos gerais em Teoria de Sistemas. Belém: Núcleo de Altos Estudos Amazônicos / Universidade Federal do Pará. (Notas de aulas proferidas no Curso de Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido). FENZL, N. (1997). Estudo de parâmetros capazes de dimensionar a sustentabilidade de um processo de desenvolvimento. In: XIMENES, T. (Org.). Perspectiva do desenvolvimento sustentável: uma contribuição para a Amazônia 21. Belém : Universidade Federal do Pará / Núcleo de Altos Estudos Amazônicos / Associação de Universidades Amazônicas. 657p., p. 1-31. FISCHER-KOWALSKI, M. (1998). Society’s metabolismo: the intelectual history of material flow analysis. Part I: 18601970. Journal of Industrial Ecology, v. 2, n. 1. p. 61-78. (1999a). Society’s metabolismo: the intelectual history of material flow analysis. Part II: 1970-1998. Journal of Industrial Ecology, v. 2, n. 4, p. 107-136. __________
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