Revista Av. Independência #3

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Reportagem: Ana Cláudia Ferreira, Bianca Colvara, Carime Elmor, Evandro Medeiros, Hyrlla Tomé, Laura Sanábio, Lucas Portilho, Luisa Moreira, Matheus Medeiros, Rômulo Rosa, Thiago Menini, Túlio Mattos. Diagramação: Fred Calabrez, Henrique Perissinotto, Pedro Henrique Rezende, Vitor Resende. Edição de Imagem: Vitor Resende. Edição de Texto: Evandro Medeiros. Editora-chefe: Lara Linhalis. Colaboradores: Revisão: Kelly Scoralick e Olívia Maltha. Ilustração: Mário Tarcitano. Fotografia: Bernardo Traad, Larissa Garcia e Paula Duarte. Agradecimentos: Bar da Fábrica, Bernardo Traad, CCBM, Cultural Bar, Daniel Quaranta, Denise Oliveira, Facom-UFJF, Funalfa, Gleice Lisboa, Guilherme Fernandes, João de Deus Francisco Elmor, Kelly Scoralick, Larissa Garcia, Laura Meirelles, Luis Cesário, Luís Gustavo Mandarano, Luiz Eduardo Castelões, Luqui Di Falco, Mamão, Mário Tarcitano, Margareth Moreira, Marise Baesso, Mc Xuxu, Olívia Maltha, Paula Duarte, Paulo Beto, Paulo Motta, Ree Charles Santos, Robert Anthony, Rute Dalloz Fernandes Elmor e Secretaria de Atividades Urbanas (SAU).




Primeiramente: Fora Temer. Agora volta um pouco no tempo. Uma sala de aula. Uns doze alunos. Uma professora. “Avenida Independência”, gostou? Grande demais, difícil de pronunciar. Colou. Três edições depois, a Avenida ganhou abreviações e novas paternidades. Apesar de resistir um reinado matriarcal, pouco a pouco impera o poliamor. Golpe? Nada a Temer por aqui. A gente resiste e se reinventa. Como? Comece a folhear a revista e perceba que arte, música e política - para além da partidária –, quando se entrelaçam alma-alma, criam simbolismos e atuações que de tão vivos geram questionamentos. E inventam novos mundos. Trair a si mesmo é a alma do negócio. Tudo concluso está morto. That’s it! Stayin’ alive. “Alô, Avenida: em inglês mesmo?”. Uhum. Resolvemos trair nossa língua nesta edição, assim como usurpamos o conceito de música de seu lugar comum. Vai ter um montão de termos em inglês, sim! E vai ter tudo quanto é sonoridade solicitando acesso ao status de música. Permissão concedida. Leia sem moderação (e com um dicionário inglês-português do lado). By the way, dizem que a gente está na pior, que o mercado “independente” carece de possibilidades de monetização, que esse lance de fazer revista a trocentas mãos é furada, que atuamos em um campo muito restrito, que as pessoas preferem, hoje, caçar Pokemon a ficar lendo Avenida no Issuu. Quase tudo é verdade. Essa contingência nos empurra o novo: seções foram criadas, inflamos a equipe de reportagem, ampliamos a de criação, e instauramos uma espécie de diretoria de edição. Quase tudo é barulho, ruído e imperfeição. Estamos a dois passos do caos, o avesso da ordem. A Avenida Independência não rima com progresso. Se rimasse, seria Avenida Presidente Alguma Coisa. That’s it! Stayin’ alive, stayin’ alive... Boa leitura! “Um beijo pra quem é do bem, um beijo pras travestis!”, Lara Linhalis - editora-chefe Evandro Medeiros - editor de texto Vitor Resende - editor de imagem


TRACKLIST PERFIL 8 As cores de Karol Vieira

SINESTÉSICO 22 Mulher artista, reista!

OUVIR IDEIAS 14 Que cultura é essa do Ministério? FESTIVAIS 46 Só o rock n roll salva

ESPECIAL 56 Eletro Música: para ouvir os sons da cidade. + CONTEÚDO 36 SIC Jornalismo Cantado • 39 VEM PRA AVENIDA O velho novo discão • 80 NA GARAGEM + LETRA ILUSTRADA com Luizinho Lopes • 82 DAQUI PRO BLOG Pé no chão + Mapa da música de JF


PERFIL

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cordo, caminho pelas ruas: há lambes nos postes da cidade em protesto contra o Estado ilegítimo que se instala no país em maio de 2016. Em um deles vejo a imagem da Mc Xuxú com seus cabelos azuis trançados e presos. A imagem acompanha o trecho de sua música “Eu quero ficar”: “Eu vou, e elas vão ter que aturar o estilo da preta/ Já vou logo avisando, hoje eu acordei perfeita/ Bem me quer, mal me quer / Vai ter que aturar /Seja quem você quiser e se ame em primeiro lugar”. Logo me vem o ritmo na cabeça, um leve sorriso, os passos mais firmes, e a energia é reposta para continuar a caminhar. A mulher trans do funk inspira, se faz existir ali enquanto caminhamos pela rua e transborda quando escolhe o lugar que quer ocupar, seja por meio da música como resistência e luta das mulheres, como representante da periferia que vive, seja com as cores que a pintam. Mc Xuxú nasceu em Juiz de Fora no dia 19 de julho de 1988, e cresceu no bairro Santa Cândida, Zona Leste da cidade. O contato com a música começou aos 17 anos quando sua família ganhou um videokê e todos começaram a cantar em casa. O rap chegou por meio do grupo Posse Zumbi dos Palmares (PZP), grupo de Juiz de Fora que produz rap e ativismo contra o preconceito racial. .“Eu cantei e fui muito bem aceita. É um movimento com militância muito forte”, comenta. O PZP segue a filosofia dos quilombos: união de todos para uma sociedade mais justa e igualitária. Foi nesse ambiente que Karol tomou consciência da sua representatividade e de seu papel como militante - preta e da favela. Ainda com 17 anos, saiu de casa. Mc Xuxú tinha o apoio da mãe em relação a sua orientação sexual, mas tinha a rejeição do padrasto. Por ser a filha mais velha de três irmãos, acreditava que deveria promover o bem-estar da família e, para não criar conflitos, optou por sair de casa. Ela tinha também o desejo de se tornar independente. Karol foi morar com parentes, em seguida, amigos, e depois com seu namorado. Estava apaixonada. Começava aí o conhecimento do próprio corpo, de seus desejos. Começava o trajeto que ela

mesma decidira percorrer, um caminho de cores. “Foi aí que deu início meu processo de transformação, eu comecei a tomar hormônio, e deixei o cabelo crescer”. Quando completou 18 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro. O funk foi uma consequência. Durante os dois anos que viveu por lá, passou por momentos difíceis e decisivos para sua vida. Viveu amores, tornou-se compositora. Conheceu a prostituição. O contato com a mãe era constante: além da condição afetiva, Karol a ajudava financeiramente. O padrasto que a colocou para fora de casa, agora havia abandonado a mãe e os irmãos. O momento de retornar chegou. Em Juiz de Fora, Karol investiu na carreira musical, gravando em estúdio. Em 2009 concorreu ao Vídeo Music Brasil (VMB) na categoria webhit, com a música Pantera Cor de Rosa. Participou também de um programa de calouros na emissora SBT e viralizou na Internet. No mesmo ano a cantora tornou-se Mc Xuxú, com o hit Um beijo. Com o Bonde das Travestis formado, o clipe atingiu mais de 250 mil visualizações em 25 dias - hoje já está perto de dois milhões. “Eu passei um tempo mal por conta de um namorado, depois encontrei outro aqui e fiquei muito bem. Quando a gente está bem com a gente mesma, bem no profissional, é muito mais fácil escrever algo que vai fazer sucesso. Fazemos com amor e carinho. Eu consigo escrever só quando eu estou vibrando amor em paz”. Karol enfrenta muitas dificuldades por ser artista independente, por ser mulher trans, preta e da favela, como ela se define. Possui a consciência das suas responsabilidades e ficar parada significa não conseguir ajudar em casa, manter sua independência e não conseguir manter as condições para realizar suas apresentações que contam com uma equipe de produção, além de ensaio dos bailarinos. Cada show é também espaço para intervenção. A sensação de liberdade é o que inspira a MC a continuar na carreira. As músicas machistas ganham uma releitura. “Tava no fluxo, avistei a novinha no grau, sabe o que ela quer? RESPEITO”, diz uma das letras.

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C

om os cabelos trançados de lã azul, ela junta as mechas e amarra: “Eu sempre mudo muito de cabelo. Azul é uma cor que eu acho muito forte, quente, representativa. Eu vi uma negra na internet com o cabelo trançado azul e resolvi fazer também”. Esse é o cabelo e o movimento que, com bom humor, fazem referência ao título do clipe Eu fiz a chuca. Participo da gravação, em Juiz de Fora, como produtora. A proposta é falar de forma divertida sobre um assunto comum entre o público LGBTTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis e intersexuais). Gravar um clipe no bairro em que foi criada e significa valorizar suas raízes. Karol preocupa-se com o lugar de onde veio e principalmente com a representatividade. Ela faz questão de ter mulheres negras, mulher gorda, mulher trans, todos os corpos, tamanhos e cores no clipe. No dia da gravação ela está nervosa com a produção, principalmente por ser no lugar onde nasceu, com a presença das pessoas que convive em seu dia-a-dia. “Quando eu entrei para o movimento aprendi que jamais deveria me esquecer das pessoas que ajudaram no meu começo de carreira. Sempre tive vontade de fazer um vídeo com a linguagem da periferia. Os palcos em que eu aprendi foram nos palcos das festas do dia das mães, do dia dos pais, foi onde eu sempre tive apoio. Queria um vídeo de periferia e da periferia que eu cresci”. O clipe mostra a MC passeando pelo bairro, e sendo reconhecida pelos moradores. Ela está a caminho de uma festa na laje, onde todos os convidados estão com figurino colorido e dançam ao som da música. Com paisagem para as casas do bairro, o clipe é produzido com rigor estético. Alcança mais de 100 mil visualizações em menos de 24 horas. Em pouco tempo já é destaque na Internet e nos jornais. E alvo de ataques preconceituosos em razão da temática. Xuxú responde com a campanha #ninguemvaipassarcheque, compartilhada por fãs e militantes LGBTTI.

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ada cor, uma produção. Xuxú é múltipla e mostra isso na sua música. Acompanho a gravação de mais um clipe, desta vez um acústico. A proposta é trazer o violão para a letra do funk, com um músico convidado: o juiz-forano Marcos Sandália e Meia. Dessa vez a gravação do clipe acontece em estúdio, com uma equipe formada por afeto: amigos que se unem para concretizar um trabalho especial. É uma sexta-feira e o que temos em mente é afinar a apresentação para a gravação na segunda. Marcos e Karol se encontraram pela primeira vez e a música a ser ensaiada era “Eu quero ficar”, mas os planos mudam. Fomos para a casa da Paula Duarte, amiga, fotógrafa e também produtora do clipe. Karol questiona Marcos sobre o processo criativo dele e conta como concebe suas próprias criações. “Eu escrevo e vou riscando o que não funciona quando canto. Escrevo muito e penso em cada significado da minha letra. É com a música que eu consigo passar o que tô sentindo. Eu busco mostrar a minha realidade de uma forma que dialogue com as pessoas que se identificam comigo”. Marcos olha com admiração. O músico, natural de Ipatinga, morou alguns anos em Juiz de Fora, e atualmente vive em Belo Horizonte.

Karol usa o mesmo batom verde que Paula, a fotógrafa. A irmã, a sobrinha, a prima e a tia da Paula também querem usar a maquiagem. Em instantes, somos muitas. Existe quase que um silêncio secreto quando mulheres se juntam e é possível entender como a outra está se sentindo. É uma espécie de encontro mágico em que nos sentimos bem com nós mesmas e respeitamos o desejo da outra sem qualquer julgamento. Em algum momento percebo que estamos elaborando nossas convicções acerca da responsabilidade, o desejo e mulher não ter por definição biológica a obrigação de ter filhos. O verde da boca contrasta com o vermelho, forte, na pintura da parede e na colcha de crochê do quarto de Paula, onde estamos conversando. Xuxú propõe a Marcos que, além da melodia, componha também uma letra. Marcos, tímido, topa, pega seu caderninho e começa a escrever. Ele arrisca uma letra. “Vamos tentar?”, sugere Xuxú. Ele começa a tocar a melodia no violão e os dois sincronizam a letra com a melodia. Na primeira, já tenho a consciência que estou presenciando um momento único do processo de criação desses dois músicos: Mc Xuxú: - Like a beat, my Kiss is sweet[...] Marcos: - Minha menina, você tem esse jeito tão faceiro assim [...]. Um dueto havia se formado naquela tarde. Eu assumo o papel de entusiasta e espectadora. Quando começa a cantar, não é mais a Karol. É a Mc Xuxú, com outra postura e presença.

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M

arcamos um encontro no Mercado Municipal, no Centro de Juiz de Fora. Chego primeiro e vejo que Karol se aproxima. Ela usa um batom cor-de-rosa. Usa um vestido com estampa do mesmo tom. Começamos a conversar despretensiosamente. Já faz algum tempo que não nos vemos. Eu havia preparado um roteiro de perguntas. Surge um certo receio da parte de Karol em explorar alguns aspectos sobre sua vida pessoal, embora o faça sempre que tem vontade. Deixo o caderninho de lado. Em alguns minutos eu já estou envolvida no discurso politizado de uma mulher que intimida com doçura. No local, as pessoas nos olhavam de uma forma curiosa, como quem pensa: “será que é a Mc Xuxú?”. Karol está atenta a tudo que acontece à sua volta de uma forma tão natural e encantadora que percebe cada detalhe no outro, nas gentes. Tudo o que observa é motivo para um comentário com estima. É artista não apenas na letra da música, é na vida. “Aqui as pessoas atendem de uma forma atenciosa, com cuidado, tô me sentindo diva!”. O comentário é seguido de uma grande e sonora risada. Mas a alma poeta é também sofredora. “Hoje eu acordei meio deprimida, essa semana foi complicada para fecharmos show”. Ela acredita que o funk incomoda muito a sociedade e que o preconceito está por trás do pensamento que é também racista e relaciona a favela a um comportamento mal visto pela sociedade.

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O que dificulta o crescimento do gênero. Aqui em Juiz de Fora ela consegue espaço nas casas de show com público LGBTTI. Mas nas casas noturnas com público heterossexual há uma dificuldade, de acordo com ela. “Minhas músicas não tocam nas rádios da cidade. Por que tocam todas as músicas e as minhas não?”, questiona. “O mesmo acontece com o Corredor Cultural, promovido pela Prefeitura Municipal. Eu sou artista da cidade desde 2009. Será porque o funk não é cultura ou porque sou travesti?” De acordo com a Funalfa, responsável pelo Corredor Cultural, há uma “abertura para recebimento de propostas artísticas da MC Xuxú, e de outros artistas de Juiz de Fora, caso deseje participar de atividades promovidas por esta fundação”. A resposta veio em forma de uma nota, na qual a instituição afirma que a maior parte dos eventos da Fundação contam com a participação de artistas contemplados pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura - Murilo Mendes, como contrapartida dos projetos. A crítica de Xuxú vai além do poder público. “Há um descaso com o artista, preparamos tudo com carinho, pensamos no público, mas nem todas as casas de shows e equipes de produção se preocupam em valorizar o artista independente”.

ARTE: PEDRO HENRIQUE REZENDE


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e: ntra a ditadura. Font Mulheres artistas co

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68. Correio da manhĂŁ, 19


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OUVIR IDEIAS I

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travessando a faixa de pedestres, no sentido Parque Halfeld – calçadão, a experiência mais juiz-forana possível começa. De cara, um grupo oferece abraços “de graça”, em um ato coletivo. Abraço. Em frente ao Banco do Brasil, militares reformados recolhem assinaturas para criação de um Partido Militar do Brasil. Não quis saber detalhes. No Filhos da Fruta, começam as mesas com chopes geladíssimos que me lembram: estamos num sábado. Na praça João Pessoa, em frente ao Cine Theatro Central, uma roda de pessoas coloridas, vibrantes, tocam tambores e outros instrumentos percussivos sob orientação do músico Lucas Soares, num ritmo gostoso demais. É o grupo Ingoma, de tambor mineiro; o Coletivo Maria Maria e o Levante Popular da Juventude que criam um som alto e cheio de atitude, em protesto contra o governo interino do vice-presidente Michel Temer. “Deixa o povo plantar, deixa o povo colher, deixa o povo ser feliz!”, era letra seguida pelo grito de “Fora, Temer!”. “Nesse momento, de grandes retrocessos, de um golpe, de fato, alguns direitos que pros mais poderosos não são importantes estão sendo atacados, então é obvio que a gente vai ser atacado. A começar: mulheres, jovens, negros, negras e a cultura, óbvio”, me explica Lorhana Lopes, militante do Levante. Não demora muito e um grupo de capoeira começa a se apresentar. Em seguida, uma caravana de palhaços. Por fim, os músicos, muitos e diversos. E foram elas e eles que capitanearam o ato, chamado de “Arte pela Democracia”, um misto de manifesto e apresentação no “palco” mais movimentado de Juiz de Fora. “A gente está entrando agora num período de retrocesso muito grande. A ideia de fazer esse ato, vários setores estão fazendo a mesma coisa. E a classe artística tem uma importância nesse momento”, explica o músico Roger Resende, que fez os convites e cuidou da programação, a pedido da advogada Joana Gouvêia. Foi ela quem realizou as primeiras reuniões, no seu próprio escritório, faz a “vaquinha” para pagar os cartazes e ainda organizou a confecção de camisas para serem vendidas durante o ato. Estampada no peito, há uma foto da presidenta Dilma Rousseff ainda jovem, com palavras de protesto contra o processo de impeachment. Ela e outros participantes usavam a camiseta. Mas Joana garante que o movimento não é partidário.

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“Somos da velha guarda do PT [Partido dos Trabalhadores] em Juiz de Fora, participamos da luta contra os militares. Aqui tem gente do PT, mas tem também gente que não é do PT. Numa conversa, numa reunião informal, resolvemos organizar um grande show em jotaéfe, convidamos o Roger e ele topou”. O conceito de pluralidade proposto pelo movimento parece estar longe da ideia estapafúrdia de “sem ideologia”, tão propalada nestes tempos. Além de música – foram 13 apresentações, contando o pocket show final da banda Seu Nadir-, tiveram falas, discursos e silêncios que diziam de uma insatisfação aglutinadora. O tratamento recebido pela pasta da Cultura, no governo interino de Temer foi o ponto de partida para a manifestação realizada por artistas de Juiz de Fora. A organização do movimento foi motivada pela decisão do presidente interino, Michel Temer, de fundir o Ministério da Cultura com o Ministério da Educação, logo após a sua posse, no dia 12 de maio, em decorrência do afastamento da presidenta Dilma Rousseff, para investigações, durante o processo de impeachment. A decisão gerou revolta da classe artística. O novo ministro da Educação e Cultura, Mendonça Filho, chegou a ser vaiado, ao se apresentar aos servidores da pasta extinta. Mais de 20 edifícios ligados ao Ministério da Cultura foram ocupados em todo o Brasil. Houve manifestação nas ruas das capitais. Mesmo após as declarações do Ministro, sobre a continuidade de projetos, as críticas continuaram, e a pressão pela volta do Ministério da Cultura não parou. Como medida de emergência, Temer anunciou a criação de uma Secretaria de Cultura, subordinada à pasta da Educação. Marcelo Calero, ex-secretário de cultura do estado Rio de Janeiro, aceito o cargo, mas nem chegou a tomar posse. O Ministério da Cultura foi recriado pelo presidente em exercício no dia 23 de maio, com a revogação da fusão com o Ministério da Educação. O músico Edson Leão, com quem conversei durante o ato, está alinhado com os artistas que protestam contra estas decisões. Para ele, a volta do Ministério não é o suficiente. “O simples fato de terem acabado com o Ministério, em determinado momento, já mostra que não existe ali um projeto pra cultura”, diz ele, categoricamente. “Existe uma questão mais grave em tudo


isso que foi o ataque a uma mentalidade progressista, uma visão que a sociedade tem das políticas progressistas. Eu vejo riscos muito sérios, independente de termos Ministério da Cultura ou não”. Foi a partir da observação e da conversa com músicos e artistas no local que comecei a perceber que a questão envolvendo o Ministério da Cultura é bem mais complexa e envolve polêmicas que vão além do impeachment, principalmente no que diz respeito ao investimento financeiro nos artistas autorais, aqueles que frequentemente estão fora da lógica competitiva do mercado, representados pelos versos contundentes do músico-performer Fred Fonseca, no seu estilo verborrágico. “Nós aqui sofremos com este golpe a dor nas costas que ficamos, nós aqui somos agora ditos como os revolucionários, só que a revolução já se faz há muito tempo, a nacional precisa ser feita, mas antes de fazer a nacional fica aqui uma dica, é preciso fazer a municipal. Quer arrumar a vida, arrume o seu quarto primeiro”.

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II

S

tuart Hall, o jamaicano radicado na Inglaterra, no texto “Que negro é esse da cultura negra?” (no Brasil, publicado na coletânea “Da diáspora”, em 2006, pela editora UFMG), questiona, como mostra o título, qual é a figura deste negro que aparece nos movimentos de igualdade racial, de direitos civis, contra a discriminação, nas décadas de 1960 e 1970, no Reino Unido, lugar onde se desenvolveram os Estudos Culturais, uma abordagem interdisciplinar que mapeia a produção de sentido pelas relações de poder, em uma vertente marxista. A pergunta coloca em xeque a história da diáspora africana contada pela militância. Mas não desqualifica a luta, pelo contrário: é justamente pela desconstrução dos estereótipos que ele propõe a construção de um outro mundo sem maniqueísmos, deixando à mostra o fato de que a comunidade negra, como qualquer outra, é uma comunidade imaginada, ligada por laços de identificação que são construtos, lugares de subjetividade. Utopia? Sim. Justamente por isso mesmo, necessário. Por isso, coloco a pergunta: “que cultura é essa do Ministério?”. A palavra cultura tem sido tomada como um conceito sem problematizações. Mas ela tem uma origem histórica, social, epistemológica. Primeiro, definiu o ato concreto de plantar, confiar, esperar e colher: o fazimento da agricultura que marca a capacidade (supostamente) humana de criar uma segunda natureza. Pronto:

Stuart Hall

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essa já era premissa para considerar cultura qualquer coisa que construa este outro mundo, diferente do selvagem, do bárbaro. Por isso é preciso guardar tudo o que fizemos em museus, como síntese dessa nossa (suposta) capacidade. O conceito, que se aproxima do que tratamos no caso do Ministério, nasceu a partir da experiência etnográfica (e etnocêntrica) dos primeiros relatores que traziam descrições dos mundos além-mar. Os teóricos saíram dos seus gabinetes e começaram a encarar este “exótico” frente-a-frente, a partir do final do século XIX. A antropologia ganhou um A maiúsculo e virou disciplina acadêmica, numa tentativa de recorte de uma realidade complexa e multifacetada. A palavra cultura é tomada como um a priori, um bloco homogêneo, uma essência, uma causa da qual partem consequências. Assim é a cultura do Ministério, que no fim, é a cultura dos aparelhos administrativos do modelo europeu-estadunidense que copiamos (mal, e isso é bom). Mas, se ao invés de uma essência, enxergarmos a cultura como uma rede, constituída por agenciamentos múltiplos, o conceito ganha fluidez e as questões aqui tratadas tornam-se parte do movimento de controvérsias e posterior estabilização das redes sociotécnicas das quais participa e que forma. Tomando de empréstimo o conceito da Teoria Ator-Rede, da qual o francês Bruno Latour parece ainda ser o expoente mais conhecido (a partir do


livro “Jamais fomos modernos”, traduzido para o Brasil em 1994 e publicado pela editora 34), vejo a cultura como uma caixa-preta, um tipo de cristalização, estabilização temporária de uma rede heterogênea, que de tempos em tempos é reaberta, reorganizada e novamente fechada. Para a Teoria Ator-Rede, não há conceitos pré -estabelecidos: qualquer definição é resultado de uma rede de relações em incessante transformação, por isso só é possível falar sobre alguma coisa no momento em que ela está acontecendo. Nesta perspectiva, não existe uma Cultura, com C maiúsculo, essencial, definida a priori. Só é possível existir o que chamamos de cultura (ou o que tem sido chamado de, desde a Europa moderna) no momento em que há interação entre humanos e também não humanos, ou seja, animais, objetos técnicos, tecnologias. É importante entender este conceito para partir para o método de trabalho desta teoria: a cartografia de controvérsias. Por meio deste dispositivo seria possível traçar linhas que nos permitem abrir as caixas-pretas das instituições, dos grupos, dos conceitos, mostrando -os mais como construção sócio-técnica e menos como essências definidas.

Esta reflexão precisa ser feita no momento em que se instala a controvérsia, ou seja, quando há desacordo entre os entes que formam esta rede de relações. Havia um Ministério da Cultura, de direita, de esquerda, acima ou abaixo, mas havia este Ministério desde 1985, sem grandes problematizações. O decreto sobre o fim deste dispositivo abriu a caixa-preta e passamos a ver um Ministério como algo criado, que pode ser destruído. Não nasceu em um tempo mítico e nem vai durar para sempre. Pronto! A caixa-preta se abriu. A classe artística rapidamente se mobilizou em todo o país pedindo a volta do Ministério. Equipamentos públicos foram ocupados. E todos se juntaram em torno deste mote. O problema, de acordo com a Teoria Ator-Rede, é que uma grande controvérsia acaba eclipsando outras, “menores”. Neste caso, unir-se para retomar o que foi perdido deixa de lado a nossa questão: que cultura é essa do Ministério? Nos termos que proponho aqui: quem ganha com o fomento à atividade artística do país?

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III

N

o dia 30 de maio, a força-tarefa da Operação Lava Jato, conduzida pela Polícia Federal do Paraná, pediu ao Ministério da Transparência (criado pelo presidente interino, Michel Temer, depois de ter extinguido a Controladoria Geral da União) uma lista com os nomes dos 100 maiores arrecadadores/recebedores da Lei Rouanet, nos últimos 10 anos, com a discriminação do tipo de incentivo recebido, quais foram os pareceristas que aprovaram os projetos e ainda se houve prestação de contas de cada um deles. Houve uma reação do que chamamos de direita (nunca direita e esquerda foram definições tão convencionais no Brasil), na esteira da pauliceia desvairada em que se transformou o FlaFlu político. “O Brasil precisa passar a limpo essa relação promíscua entre estado, partido e artistas engajados. Trata-se de uma simbiose nefasta, típica de regimes ditatoriais e totalitários. Comunistas e nazistas sempre usaram os artistas vendidos como máquina de propaganda. Não foi diferente no Brasil petista, já que o PT é um ‘partido’ inspirado em tais métodos”, publicou o ex-colunista e blogueiro Rodrigo Constantino, em seu site, na esteira de uma série de outros comentários e opiniões. Para além do jogo político-judiciário envolvido nesta divulgação, este índice (ou index, para usar de alguma ironia) revelou informações que trazem uma boa ideia do que vem sendo incentivado como Cultura, aquela mesma, com um C maiúsculo. Não cabe aqui discutir o que é ou não Cultura, o que é ou não arte, como me lembrou o músico Edson Leão. Mas é preciso notar que somente entre os 20 primeiros arrecadadores, a maioria é de nomes de grandes institutos no eixo Rio-São Paulo-Belo Horizonte (um deles ligado a um banco), de produtoras de eventos e shows de artistas de grande expressão midiática, além da Fundação Roberto Marinho, o “braço” (a ironia não acaba) das Organizações Globo. Não há nomes de artistas, como pessoa física, que figurem nestes 20 primeiros lugares. Ou seja, a previsão de que uma “horda” de artistas ditos de esquerda seriam desmascarados não se confirmou. O que se mostrou foi, mais uma vez, a força das corporações e dos conglomerados econômicos definindo os rumos da cultura. Nada que os músicos autorais de Juiz de Fora não conheçam. Roger Rezende, que já ocupou a cadeira de música no Conselho Municipal de Cultura de Juiz de Fora, acha pouco provável que um artista sem projeção midiática consiga verba para um

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projeto aprovado na Lei Rouanet. “Tem que haver algum mecanismo que consiga viabilizar para quem realmente precisa da Lei. É o caso da Lei Rouanet. Eu não conheço ninguém aqui que tenha sido contemplado pela Lei e conseguido a verba. A própria Funalfa [Fundação Alfredo Ferreira Lage, gestora da cultura no município de Juiz de Fora] tem projeto aprovado pela Lei Rouanet e não consegue captar a verba”. Neste ponto, é preciso chamar a atenção para a diferença entre a aprovação e captação de verba. A Lei Rouanet, criada em 1991, trabalha com a lógica da renúncia fiscal. É preciso que um proponente, pessoa física ou jurídica, apresente um projeto para uma comissão permanente de avaliação. Caso seja aprovado, este proponente recebe então a autorização para captar a verba solicitada

Os 20 maiores arrecadadores/recebedo Fonte: Ministério no projeto. É preciso, a partir daí, encontrar uma empresa ou pessoa física que queira investir um valor no projeto, que será posteriormente abatido de seu Imposto de Renda. Ou seja: é o apoiador que define qual projeto quer apoiar. Há contrapartidas por parte da empresa, mas há muitos ganhos, principalmente para as Relações Públicas, que pode explorar midiaticamente o investimen-


to. Quem preenche requisitos mercadológicos acaba “saindo na frente”, tanto pela Lei Rouanet, quanto pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura, de Minas Gerais, como explica Edson Leão. “Nos grandes centros, os profissionais capacitados a correr atrás destes recursos se formaram antes da gente. Não sei se isso é solucionável num curto prazo. A maior parte das verbas de BH vai pra BH e áreas próximas. Tem toda uma galera contemplada lá conceitualmente, relacionalmente, para chegar aos canais das empresas”. Roger Rezende completa. “A própria Lei Estadual também está começando a contemplar os artistas que já estão lá em cima, quando deveria até haver cotas para o interior, porque Minas Gerais não é só Belo Horizonte e ponto final. E boa parte das empresas que incentivam focam em BH”. A edição de 2016 da

ores da Lei Rouanet, nos últimos 10 anos. da Transparência Lei Estadual, lançada no dia 23 de maio, trouxe algumas alterações neste sentido. “As novidades do edital possibilitam a inédita distribuição regional dos recursos captados, uma ampliação das possibilidades de acesso ao benefício, além do mais rígido padrão de qualidade para análise das propostas, desde a sua criação”, informa o press release, disponível no site da Secretaria de Estado da Cul-

tura de Minas Gerais. Será de fato uma mudança significativa? A deputada federal Margarida Salomão, do PT de Juiz de Fora, concedeu entrevista para a Avenida Independência, via streaming, durante o ato “Arte pela Democracia”. Perguntada sobre o funcionamento da Lei Rouanet, ela afirmou que é preciso repensar este mecanismo de investimento. “Eu tenho clareza de que esse projeto de fomento, de financiamento da cultura com a Lei Rouanet, também cumpriu seu papel. Temos que buscar outras formas de se permitir que de fato as vozes do Brasil, que são tantas, tão diversas, tão ricas, tenham, de fato, garantido o direito da cultura”. Mas, avaliação minha, tudo dentro de uma legalidade que inclui o retorno da presidenta Dilma Rousseff ao cargo e o reestabelecimento do Ministério da Cultura de antes. “Não haverá uma luta sem a cultura tome protagonismo desta luta. Nós temos que ter um projeto de sociedade em que os sujeitos historicamente desempoderados tenham vez, tenham voz. A mudança é grande e parte de uma mudança pela via da cultura”. Mas uma mudança por essa via, no ponto de vista que adoto aqui, inclui uma mudança de lugar, de perspectiva, que vai além do reestabelecimento do que havia antes. Não basta problematizar o funcionamento da Lei de Incentivo e de outros aparelhos que o Ministério da Cultura possa ter. Edson Leão me lembrou que o ex-ministro Gilberto Gil começou a questionar o conceito fechado de Cultura, essa com C maiúsculo, quando propôs, durante o primeiro governo Lula, projetos como, por exemplo, o Cultura Viva, que por meio dos Pontos de Cultura, tinha o objetivo de descentralizar e diversificar o investimento da verba da pasta. Mas a proposta parece ter perdido fôlego. “Eu não vou me arriscar a ter nenhum pensamento definitivo sobre isso, porque o momento está muito caótico em todos os aspectos. Acho que a gente tem um momento de paralisia em relação a avanços. Justamente porque precisamos lutar pelas conquistas que já estavam aí”. É arriscado de todos os lados porque é preciso manter o pouco que se tem. Mas enquanto lutamos pela manutenção, a caixa-preta do Ministério fecha-se novamente. E reforçamos, mais uma vez, um olhar essencialista sobre um fenômeno diverso e multifacetado, correndo o risco de contribuir para o investimento em uma Cultura, com C maiúsculo, que diz muito pouco da pluralidade das vida fora da Esplanada dos Ministérios.

ARTE: FRED CALABREZ avenidaindependencia.com | Ago 2016 | 21


SINESTÉSICO

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O

olhar de uma mulher, fotógrafa, sobre uma manifestação cultural pode desvelar, tirar o véu que recobre (ou encobre) a participação da mulher-artista no processo de construção do mundo. Os tempos indecisos, sombrios, que se anunciam trazem junto a preocupação com o retorno de um recalque que ainda dói, e mal curado que é, nos lembra a todo tempo o débito social com a mulheres que constroem arte, este portal para outros universos possíveis. Há tentativas de escape que sabotam saídas reais, quando redundam em clichês sobre o feminino. Mas aqui, no ensaio da fotógrafa Gleice Lisboa, as cores e os movimentos apontam para uma liberdade que ultrapassa as páginas, fazem vazar a bolha do lugar comum da mulher no processo da arte. A proposta foi registrar a manifestação do movimento “Arte pela democracia”, no centro de Juiz de Fora, a partir do tema “Mulher artista, resista!”. O resultado é o que temos aqui, em cores, formas, militância e resistência.

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Expediente Fotos: Gleice Lisboa Texto: Evandro Medeiros Diagramação: Vitor Resende

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[SIC.] ARTE: VITOR RESENDE

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VEM PRA AVENIDA

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Foto: Divulgação

Foto: Alexandre Eça (musicaestatica.wordpress.com)

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FESTIVAIS

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só o rock n roll salva POR: MATHEUS MEDEIROS E CARIME ELMOR FOTO: PEDRO HENRIQUE REZENDE E RÔMULO ROSA • ARTE: LAURA MEIRELLES

Como o JF Rock City impulsiona bandas autorais e contribui para a luta contra o câncer avenidaindependencia.com | Ago 2016 | 47


um câncer, em 2003, é que inspirou os dois a conferirem um tom filantrópico ao JF Rock City. “Ela foi muito bem tratada pela Ascomcer [Associação Feminina de Prevenção e Combate ao Câncer] nesse final de vida. E foi aí que nós tivemos a certeza de que essa seria uma causa que valeria totalmente a pena lutar. O evento é realizado sempre no fim de março ou começo de abril para dar tempo da entrega dos alimentos ser no Dia Mundial de Combate ao Câncer, em 8 de abril”, explica.

É de alguma forma atraente ouvir aquelas e aqueles que de forma abstrata, subjetiva ou direta, usam de sua arte para cuspir frustrações sociais, e quem sabe, ajudar na formação de Desde 2012, a cada edição, quem ideias. O JF Rock City reúne bandas de rock independentes dentro dos compra o ingresso para o festival, mais diversos gêneros e subgêneros. A 11ª edição do evento foi realizada em março deste ano e priorizou bandas com trabalhos autorais lançados, em fase de produção ou criação. Luqui de Falco é um dos idealizadores do festival. A motivação foi simples. “Não tínhamos onde tocar, vamos criar nosso espaço”. Luqui é guitarrista da banda Glitter Magic e divide o palco com outro idealizador do festival: Rhee Charles, o lead vox do grupo. O fato de a avó do vocalista falecer por conta de

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doa 1kg de alimento não perecível. Ao final, sempre algumas toneladas são recolhidas e entregues para a instituição. Segundo a presidente da Ascomcer, Alessandra Sampaio, são atendidos quse dois mil pacientes e familiares de pessoas que estão em tratamento contra o câncer em Juiz de Fora. A ajuda do JF Rock City é fundamental para o trabalho da Ascomcer: “Fornecemos por volta de 400 refeições por dia, em um total de mais de 13 mil mensais, e a ação deles é essencial porque abre espaço para que nós possamos organizar outros eventos, como a feijoada e a corrida solidária”.

Na primeira entrega de alimentos, ela ficou surpresa com o número de arrecadações. “As outras doações que recebíamos, geralmente, eram muito pequenas. Claro que tudo é bem-vindo, mas quando os alimentos recolhidos pelo JF Rock City chegaram eram três toneladas. Nós nem sabíamos onde colocar tamanha quantidade de mantimentos. Ainda assim, depois de alguns anos e com mais planejamento, nós ainda temos dificuldades em comportar as entregas. No mês de abril nós nem fazemos a nossa arrecadação mensal porque o JF Rock City, sozinho, supre todas as nossas necessidades”. Ela ressaltou que eventos que estão atentos à luta contra o câncer contribuem para dar um alerta ao público a sempre se cuidar.

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O PASSADO Com a ideia de proporcionar opção aos diversos gêneros do rock da cidade, Luqui e Rhee Charles contam que na época em que montaram a banda Glitter Magic, a cena era dominada por vertentes extremas do rock, como o black Metal e o death, e que existia muito preconceito por parte dos músicos em dividir o palco com grupos de outros estilos. “Quando montamos a banda, queríamos tocar, mas não existia muito espaço para nós. Nossa banda se chama Glitter Magic, e só pelo nome a galera já tinha preconceito”, relembra Rhee Charles. 50 ||Ago Ago2016 2016||avenidaindependencia.com avenidaindependencia.com

A princípio, as atrações do Rock City eram escolhidas a partir de uma linha musical semelhante à dos criadores. Com o passar das edições, outros subgêneros do rock entraram para a line up, de acordo com Luqui. “No primeiro evento procuramos centralizar as bandas de acordo com o nosso nicho. Na edição seguinte, o Rhee disse para mantermos a ideia, mas achei que deveríamos expandir, isso poderia pegar mal ou ser foda. E foi foda! Nesta edição foram quatro dias de shows e mais três de workshops. A entrada era apenas 1 kg de alimento não perecível, o que resultou em um grande público e uma enorme troca de experiências. E foi aí que a parada começou a andar”.

recolh City três to sabía taman m

Para os organizadores, o ano novo só começa mesmo depois do JF Rock City. Os preparativos começam meses antes e os desafios se estendem ao longo do caminho. “Chamamos as bandas e muitas acabam desistindo. Algumas até se propõem a voltar só pra tocar no festival, mas não permitimos que seja assim. Queremos bandas ativas”. Essa foi a premissa para a realização do XXI


JF Rock City, que ocorreu nos dias 18 e 26 de março deste ano. O festival é um evento beneficente e não gera lucro financeiro para seus organizadores.

(...) quando os alimentos hidos pelo JF Rock y chegaram, eram toneladas! Nós nem amos onde colocar nha quantidade de mantimentos (...)

O FUTURO

Após as quatro últimas edições realizadas com o auxílio da Lei de Incentivo à Cultura de Juiz de Fora - Lei Murilo Mendes, o festival chegou a 2016 buscando autonomia. Com um orçamento avaliado em 60 mil reais, o evento movimentou dezenas de pessoas em sua produção, que consistiu em uma equipe de 27 profissionais técnicos e 55 funcionários contratados pelo local onde foi realizado, o Cultural Bar. Neste ano duas grandes atrações chamaram a atenção do público - Raimundos e Matanza-, além da participação de 19 bandas locais: Ellyot 5, Obey, Visco, Smouke, Algar, Traste, La Macchina, Kymera, Outubro Ou Nada, Insannica, Lotloryen (Poços de Caldas-MG), Glitter Magic, Martiataka, Vivenci, Radiocafé, Usversus, Basement Tracks, Soul High e Metheora. Por mais que a edição tenha sido um sucesso, Luqui explica que ela gerou alguns impactos indesejados. “Este avenidaindependencia.com | Ago 2016 | 51


ano não tivemos uma arrecadação tão grande pelo fato de serem apenas dois dias de festival. Outro fator negativo foi que as pessoas perderam o foco nas bandas autorais da cidade por conta das duas grandes bandas que trouxemos. E isso foi péssimo. A mídia, inevitavelmente, acabou se centralizando nas atrações maiores, fazendo com que um público mais geral fosse atraído. Mas serviu de aprendizado para as próximas edições”. Eventos como o JF Rock City estimulam a população a apoiar seus artistas e a valorizar os produtos culturais criados pelos mesmos. Por mais que a música daqui já tenha décadas de existência, é só o começo. “Se voltarmos seis anos atrás, praticamente não existia uma cena ativa, só muitos embriões e pouco espaço. A gente vive um momento de muita qualidade na nossa música, com bandas lançando coisas a todo tempo e realizando shows em todos os fins de semana. Até as bandas antigas estão voltando a produzir. Isso é um grande avanço”, acredita Luqui. Confira a cobertura completa do 11º JF Rock City no blog da Avenida!

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A

audição é o primeiro sentido que desenvolvemos na fase fetal e aquele que nos acompanha para toda a vida. É mais fácil fechar os olhos e parar de ver do que calar os ouvidos aos estímulos externos. Nesta era da superinformação, músicas, sons e ruídos nos afetam o tempo todo. Por vezes, nem percebemos. Assim, consideramos que algumas horas de nossas vidas são gastas na apreciação de sons esteticamente organizados – música. Mas, se igualássemos a noção de som a de música? Criamos a sensação de que a trilha sonora de nossas vidas é escrita enquanto respiramos. Silêncio é angústia, a música nos deixa menos sozinhos. Certa vez, o compositor alemão Karlheinz Stockhausen falou sobre a magia de encontrar algo familiar em um ambiente estranho: “Ao passear na Lua, será mais interessante encontrar uma maçã do que uma pedra lunar”. Queremos propor a você conhecer os sons. Ou melhor, reconhecer! O prefixo “re” suaviza, dá aquela sensação quase maluca de déjà vu, de que já tínhamos tido contato com aquilo antes e agora estamos rememorando. A música eletroacústica é a maçã na Lua e nos mostra esse caminho, de que talvez não exista tal ação chamada conhecimento, mas sim o reconhecimento das coisas. Ao fim, captamos que de alguma forma aquele algo já estava presente, só não percebíamos. Os sons sempre estiveram aí,

será que percebíamos? A ideia aqui é essa, aguçar a percepção e abrir os ouvidos para os sons. Conhecer música é incrível, mas entender a proposta da música eletroacústica, em seus fundamentos históricos e no desenvolvimento das tecnologias, trata-se do reconhecimento de todo cenário do nosso vai e vem cotidiano. Talvez essa tenha sido a realidade de um dos nossos entrevistados. Para saber ao certo teríamos que sentar em uma nova conversa de três horas. Quem sabe, depois da reportagem pronta, o próprio personagem a leia e conte para a gente. Ou ainda, vocês o encontrem pela rua e busquem uma conversa com ele, sem medo: ele é um cara aberto a um bom papo. Paulo Motta - juiz-forano que é compositor, artista plástico, filósofo e construtor de instrumentos - nos relatou o curioso fato de como conheceu o lindo e caótico universo eletroacústico. De fato, ele o reconheceu, porque se em algum momento questionamos se há ou não um destino, este às vezes tenta se mostrar ou nos enganar de sua existência. Em 1980, enquanto folheava as páginas de um livro de Psicologia, faculdade que cursava na época, Paulo pausou a mão em uma página com o escrito “Música Eletrônica”. Ele ficou curioso com o que aquilo poderia representar, nunca tinha ouvido. O termo já era velho naquele momento, mas diferentemente de hoje, em que o processo pelo qual as informações se disseminam é rápido, antes o acesso era restrito ou quase inexistente.

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Ele nos contou que seu primeiro contato foi com partituras encomendadas ou obtidas de outras pessoas. Como artista gráfico, os grafemas pouco convencionais da escrita musical devem ter encantado os olhos e a mente daquele indivíduo curioso. Como o material vinha de fora do país, às vezes ficava uma lacuna de um mês ou dois entre uma descoberta e outra. Depois foram os livros, geralmente em inglês, pois a literatura sobre o assunto era quase inexistente em língua portuguesa à época. Obra do destino ou não, ele reconheceu esse caminho em um lugar onde as duas palavras supostamente não deviam estar. A partir de então a busca por novos sons se tornou insaciável. Mesmo porque percebeu que são as próprias sonoridades que o ensinam a compor, mais do que uma técnica aprendida ou o suporte envolvido. “É a busca do som pelo som”.

Uma história próxima Ao longo das últimas décadas este vem sendo um dos motes da questão: a discussão em torno do uso da tecnologia. Você já deve ter escutado que o som do vinil tem uma qualidade de detalhes superior a do CD. Ou que o processo analógico é mais real do que o digital; alguns falam até mesmo de ser um processo mais “orgânico”. Perceba que os questionamentos vão ainda além, indagando, por exemplo, se o que se faz hoje ainda é música - aquele velho saudosismo do passado. As críticas à tecnologia da vez sempre existiram. Como no barroco, quando o piano forte foi apresentado a Bach, que depois de algumas poucas notas disse ainda preferir o velho cravo. Hoje, ninguém questiona a música de Mozart ou Haydn,

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escritas em grande parte para o instrumento rejeitado por Bach. O mesmo parece ocorrer com o eletroacústico que em suas buscas experimentalistas e inovações técnicas, vive à margem da sociedade, mas presente de forma sigilosa no cotidiano. Sigilo escutado, porém não reconhecido em sua plenitude. A mudança de direção dos rumos daquilo que comumente conhecemos como música, tem sua raiz nas vanguardas europeias. Neste sentido, sugere-se o retorno a esfera dita “erudita”. A história da música eletroacústica é intimamente ligada ao fim da Segunda Guerra Mundial. Em grande parte, porque houve um “boom” tecnológico durante esses anos. O que era utilizado para intensificar a destruição, ganhou lugar na estética dos artistas europeus que sobreviveram ao horror. Mas, o principal era o sentimento vanguardista de reescrita do passado. Nas três décadas anteriores a música havia sido preenchida com as ideias de um som industrial e mecânico. O passo seguinte foi dado pela escola francesa, que já na década de 1940 redescobriu os sons registrando a concretude do mundo em rolos de fita. O primeiro passo na direção que queremos apontar foi dado com a música concreta. Pierre Schaeffer (1910 – 1995) é um dos principais responsáveis por nos mostrar como éramos surdos na percepção dos sons ao nosso redor. Também não era para menos, a humanidade foi educada por mais de mil anos a um padrão de escuta reducionista. Isto é, uma música feita para uma cultura de instrumentos e uma cultura de sons e escalas. Olha que deu para fazer muita coisa, até hoje dá muito trabalho para estudar e absorver tudo isso! A vida industrial nos amputou a sensibilidade, mas por incrível que pareça foi a tecnologia que


nos trouxe ela de volta. É muito fácil, hoje, assimilarmos a ideia de estar na rua e escutar um som e tomar a iniciativa de gravá-lo. Ou de assistir a um filme e notar que houve uma falha, pois passou um carro e seu som não foi escutado. Os franceses, em especial Schaeffer, foram os primeiros a observar essa concretude do mundo transcrevendo-a sua integridade em música. Este tipo de cultura em grande parte surge desta vanguarda que transformou e ressignificou o uso dos recursos dos meios de comunicação em uma poética. De posse de gravadores portáteis os artistas iam em busca dos sons. Posteriormente, eram trazidos para os estúdios das rádios francesas com os equipamentos herdados da guerra, para compor, montar e manipular os sons do mundo. Daí o nome música concreta, pois ela buscava mostrar a solidez dos sons a partir de um suporte físico, no caso, uma fita de rolo. Shaeffer inaugurava uma tradição na música que tinha um processo semelhante à montagem cinematográfica. A música antes das gravações podia existir somente com presença de músicos. Quando as gravações começam a surgir, passamos a falar de uma escuta acusmática. É a escuta onde ouve-se o som, mas não se vê aquilo que o origina. Tratase de uma inversão dos valores e dos pesos da balança. Hoje, a maioria do que é ouvido parte de gravações, a música ao vivo é dedicada a momentos particulares. Por ser muito mais fácil produzir e ter tudo disponível por streaming ou download, ouve-se muito mais música hoje em dia. Grande parte do trabalho da escola francesa consistia em redescobrir e trazer os sons à escuta: o som em sua essência, sem ligação com sua origem. Claro que quando escutamos o som de um instrumento conhecido, logo construímos uma imagem mental

e visualizamos o possível lugar de origem do som. A música concreta em parte brincava com essa desambiguação. Quando escutamos uma composição nos seus moldes, percebemos tudo, menos os sons dos instrumentos usuais em nossa cultura ou os sons que estamos acostumados a encontrar. Existe uma cultura de sons por trás da Cultura. Há uma clara intenção em, digamos, confundir o ouvinte. O que se ouve, pode ser o que realmente é, ou pode ser outra coisa - o que é mais provável. Na contramão deste movimento, posteriormente, no início da década de 1950, surge a música eletrônica, com a escola alemã. O caminho era inverso, porque enquanto uma captava, a outra criava sons antes nunca escutados pela humanidade. A eletricidade que antes era utilizada como energia motora das tecnologias de gravação, passa a ser o próprio som. A música é eletrônica porque os sons utilizados são de origem eletromagnética. Neste sentido, o artista assumiu uma postura de engenheiro, ao lidar com geradores de pulso e na matemática das ondas que compõem o som. O músico cria os sons que usará em sua composição. A escola alemã dedicou-se quase exclusivamente a este processo de genealogia do som, até que, entre 1955 e 1956, Karlheinz Stockhausen trouxe à tona a obra que redefiniu a oposição entre alemães e franceses.

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GESANG DER JÜNGLINGE (assim mesmo em maiúscula, como o nome de todas as obras do artista) foi a primeira composição que se tem notícia até hoje que uniu sons eletrônicos a acústicos: no caso, a voz humana. Pode-se dizer que este foi o instante na história em que a premissa da música eletroacústica surgiu. Mas a obra é parte de uma história que começou bem antes.

“Qualquer coisa se mova, em nos“Qualquer coisa que se que mova, em nosso so mundo, mundo, vibra ovibra ar. o ar. Caso ela se modo mais a oscilar Caso ela se mova demova modode a oscilar que vezes dezesseis vezes poresse segundo, que mais dezesseis por segundo, esse movimento ouvido como som. movimento é ouvido écomo som. O mundo, estáde cheio sons. Ouça. O mundo, está cheio sons.deOuça. Sente-se em silêncio um momenSente-se em silêncio por um por momento e to e receba os sons”. receba os sons”. (Murray Shafer) (Murray Shafer)

Falar em escolas sugere certa restrição. E é mesmo, porque diante das infinitas possibilidades de sons existentes na música atual, devotar a atenção a um aspecto somente é o mesmo que fechar os olhos para a realidade. O conceito de música que podemos formular atualmente passa por essa observação de Schafer. O grande inspirador de tais palavras sem dúvidas foi John Cage, o Marcel Duchamp da música. Enquanto franceses e alemães digladiavam-se quanto a origem do material sonoro de suas composições, Cage, em 1952, fez uma obra sem sons! Ele não foi o pioneiro em pensar o silêncio na música, mas sem sombra de dúvidas foi o personagem mais marcante dentro dela. Ao fim da década de 1940, Cage fez uma experiência: ele

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adentrou a câmara anecóica, um espaço a prova de sons, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Intrigado, ao sair, ele perguntou ao engenheiro responsável o que eram os dois sons que ele havia escutado, um deles era agudo e o outro grave. A resposta foi surpreendente e decretou um instante de angústia e frustação ao homem que buscava a experiência do silêncio mais profundo. O som agudo era o seu próprio sistema nervoso em funcionamento, já o grave era o som de seu sangue circulando. A angústia é algo interessante. Nas pessoas geniais é uma força motora poderosa. Já ouviu falar no 4’33”? É a música sem sons, composta por John Cage. Imagine uma partitura dividida em três movimentos, nos moldes da tradição ocidental. Um teatro e um belo piano no palco à espera do intérprete. Uma plateia na expectativa de um magnífico momento de sensações e descobertas estéticas. O espetáculo todo montado e os atores em seus lugares. Eis que o pianista sobe ao palco, senta-se, abre a tampa do piano e permanece em “silêncio” por quatro minutos e trinta e três segundos. Houve silêncio? Não! Mas o vocabulário da música foi modificado naquele instante. “Quando John Cage abre a porta da sala de concerto e encoraja os ruídos da rua a atravessar suas composições, ele ventila a arte da música com conceitos novos e aparentemente sem forma”, explicou, mais tarde, o músico e pesquisador canadense, Murray Schafer.

As cabeças da Hidra De um lado a frente francesa, do outro a alemã. Correndo por fora estava um homem ignorando toda essa questão. Stockhausen unificava o


acústico ao eletrônico. Mas, enfim, o que é música eletroacústica? Ela é música de fato, já que difere tanto do que foi convencionado ao longo dos séculos a ser MÚSICA? Essa talvez seja a grande questão. O histórico mostra os desdobramentos de possibilidades que surgiram, sobretudo por causa da tecnologia. Mas, de acordo com o compositor Daniel Quaranta, essa não é mais uma questão importante. “Hoje, ninguém mais fala nisso. Podemos falar em termos de pesquisa e de história para ver as diferenças. Cada uma dessas áreas trouxe algo de interessante, mas hoje não faz mais sentido. Trabalhamos atualmente com tudo: gravação, produção sonora, eu em especial com sintetizadores analógicos. Não há mais barreiras”. Ou seja, toda essa obrigação em categorizar as coisas para se reconhecer como algo, de fato parece ser o contrário do que as vanguardas vieram trazer. Seja música francesa ou alemã. Todo e qualquer som é válido. Segundo John Cage, se essa palavra música é sagrada e reservada para os instrumentos dos séculos XVIII e XIX, nós podemos substituí-la por outro termo: organização do som. É nesse sentido que a música eletroacústica caminhou e caminha. Trata-se de um termo amplo e válido para uma imensidão de composições. Entanto, uma definição tão larga e pouco rigorosa tem lá suas deficiências. É o que relata o compositor Luiz Eduardo Castelões. “Teria dificuldade em definir toda a produção eletroacústica como um só gênero. Tenho visto classificarem como eletroacústica qualquer obra que se concentre no uso de sons difundidos por meios eletroeletrônicos na performance. Mas isso talvez não seja suficiente para definir um gênero musical - assim como música acústica não é um gênero. Por outro lado, essa definição é atual

e larga o bastante para incluir escolas que surgiram separadas historicamente, como a música eletrônica alemã e a música concreta francesa”. Ao mesmo tempo em que temos um universo amplo, as obras classificadas e tidas como eletroacústicas, isto é, a essência da coisa, restringe-se a um círculo restrito. Mas, vale lembrar que toda a revolução trazida pelas vanguardas está mais presente na atualidade do que possamos imaginar. Trata-se, portanto, de uma música com uma importância dupla. Primeiro, no sentido histórico, porque houve uma revolução sonora e no modo de fazer música em geral. Segundo, porque tratase de um gênero que continuou as pesquisas estéticas de modo a pensar a cultura. “Trata-se de uma música de estrutura de concerto tradicional que usa a tecnologia para criar, produzir e editar todo tipo de sonoridade que possa vir a fazer sentido dentro do que é o discurso musical”, aponta Quaranta. Ele ainda complementa que os estudos caminharam e outras perspectivas foram abertas, mas que é um gênero que a todo instante dialoga dentro de uma concepção musical. “Tem muita gente fazendo arte sonora. E assim, claro, eles querem se distanciar da música. Mas, eu particularmente não quero me distanciar, não mesmo, porque sou músico, sou compositor, essa é minha área. Neste sentido, a palavra música é completamente compatível com o que nós fazemos. No meu caso particular, eu trabalho com as duas coisas, trabalho com música eletroacústica, instrumental e mista”. É a perspectiva que Castelões tenta abrir. “Por exemplo, a música eletrônica de pista é eletroacústica? Ou ainda: obras com uso de eletrônica em tempo real [não fixadas em suporte]

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pertenceriam à mesma categoria que as fixadas em suporte [acusmáticas]?”. Podemos, assim, pensar grande parte da música atual como eletroacústica. Isto se levarmos em consideração o lado técnico. O gênero eletroacústico é como a perspectiva no cubismo que, apesar de fragmentada, nos sugere algo. Resta a ele a exploração dos sons em sua totalidade com um objetivo estético específico que fica a escolha do articulador dos sons. No entanto, a estética eletroacústica foi transferida a outros estilos, seja no modo como o som passou a ser trabalhado, ou pelo próprio processo de produção técnica da música. Como fica isso então? Toda música que vier a utilizar instrumentos eletrônicos é eletroacústica? É o caso da música eletrônica, por exemplo? Daniel Quaranta responde: “Trata-se de diferenciação genérica, que não tem relação com a música eletrônica alemã. É algo que faz parte deste gênero que se apropriou desse nome, com todo o direito, porque qualquer um pode se apropriar do que quer. Quando se fala nela pode se associar ao punt, punt, punt. Mas, é claro, é música eletrônica, porque é feita com aparelhos eletrônicos. É um gênero totalmente válido”. Quaranta faz uma interessante comparação que permite essa diferenciação. “Quando falamos em música clássica, nos referimos genericamente à música de concerto. Mas, teoricamente não estaria correto, porque falaríamos que Brahms é música clássica, quando não é. Em termos históricos, ele é romântico. Entretanto, se falarmos que ele é um compositor de música erudita e de concerto, então ele é”. A analogia parte deste ponto: a música alemã é uma questão que surgiu naquele momento, naqueles anos, que teve uma disputa com Pierre Schaefer, mas que é muito diferente do que fazem os DJs atualmente. São gêneros diferentes, objetivos diferentes. Só que é uma via de mão dupla. Pode ser que o “erudito” tenha povoado a então nascida cultura de massa com suas ideias. Mas, a atual lógica das redes e de como o conhecimento se constrói mostra que não há mais essa diferença. Para os compositores há na verdade uma postura de indiferença quanto à origem dos materiais de composição. É o

que nos traz, por exemplo, Castelões, com sua visão atual do lugar da música eletroacústica. “Não me interessaria aderir a nenhuma ortodoxia. Minhas peças eletroacústicas são influenciadas tanto pelas músicas experimentais ou de vanguarda contemporâneas quanto pelos DJs e pela música popular dançante em geral. Acho que o que caracteriza nossa época é a coexistência, a simultaneidade de diversas tendências”. O que mais chama a atenção é como a música eletroacústica se movimenta e se reinventa. Essa falta de definição fechada presente em outros gêneros lhe dá vigor e frescor. A pulsão que teve início nos anos 1940 assemelha-se a Hidra de Lerna, que a cada cabeça cortada faz surgir novas questões e problemas. Desdobramentos resultam muitas vezes na criação de novas tecnologias, suprindo as demandas dos compositores. “Dizem lá os budistas que uma das únicas certezas é a impermanência. Supondo que tudo está mesmo em constante mudança e a música faz parte desse todo, então não haveria como ela ser “a mesma do passado. Ela também está sempre em movimento, sempre outra”, diz Castelões. A questão da tecnologia é de suma importância e apresenta-se de forma diferenciada para cada artista. Em alguns, a relação no uso e na dependência dos equipamentos é visível. Em outros, a abordagem é diferente e há mais espaço para divagações estéticas. Uma coisa é fato: as tecnologias digitais facilitaram e agilizaram os processos. Peças de Stockhausen que levavam seis meses ou mais para serem concebidas num rolo de fita, seriam produzidas mais rapidamente neste ambiente digital atual. “Mas, isso também pode se tornar uma armadilha, pois assim como você se apoia numa determinada ferramenta digital prática e rápida, outros podem fazer o mesmo, seguir um caminho ‘formatado’, tornando o ambiente sonoro, musical, mais homogêneo, previsível, repetitivo”, afirma Castelões. Stockhausen teria produzido mais rapidamente, mas talvez sem a qualidade que lhe garante o status de estar sendo lembrado, como fizemos ao longo de diversas partes deste texto.

ARTE: PEDRO HENRIQUE REZENDE

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eguimos os rastros da história da música eletroacústica e eletrônica para construir uma ponte entre a experimentação dos pioneiros e a produção local. O que se segue é uma tentativa de resumo, um caleidoscópio de artistas e projetos que estão em busca da “maça na lua” de Stockhausen.

4zero4 Um estúdio vazio de ideias pré-montadas, quatro artistas e quaisquer ferramentas capazes de emitir ruído, além de instrumentos convencionais.Talvez cada um dos músicos do 4zero4 apenas se olhe e execute a sonoridade, à sua maneira, naquele pequeno espaço de gravação, que fica em um sobrado, em Juiz de Fora. Vai virando conversa aquele entrelaçado: é uma verdadeira miscelânea cheia de vontades de produzir sons. Não que tudo faça sentido, há inclusive uma repulsa quanto à exatidão do que fazem. Após horas de gravação direta, passam pela experiência de, então, pela primeira vez se ouvirem, em uma audição pós-execução. Recortam, através de softwares, como se fosse uma fita de rolo, e montam as faixas ainda com a audaciosa tarefa de aplicar texto às músicas. A música do 4zero4 é uma bricolagem do que têm em mãos e pode incluir elementos eletrônicos e acústicos. “No momento em que nós estamos tocando, temos ideia apenas do que nós mesmos estamos fazendo, mas não sabemos como está o som, no todo”, explica o músico Robert Anthony. Jams na casa dele e dos outros integrantes - Stanley Palmeira e Fred Fonseca - com músicas sendo tocadas livremente, no improviso, até esgotarem a vontade de tocar: este foi o processo que, naturalmente, fez o 4zero4 aparecer. Robert é bacharel em violão. Fred é quem dá um toque de música popular brasileira, do pop, do blues e do rock. Stanley, além de percussionista, tem a característica da música eletrônica de pista, a dance music. Iago Franco juntou-se a eles depois, com uma pegada rock’n’roll, combinada à flauta erudita. Robert, buscando em sua memória, explica que, dos contatos que tiveram com a música, o EIMAS (Encontro Internacional de Música e Arte Sonora, realizado pela UFJF) foi o momento que direcionou ele e Iago para o eletrônico. Foi onde

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manuseou pela primeira vez alguns programas, fundindo à vontade experimental do Soundpainting, uma linguagem de composição instantânea na qual o som vai sendo construído por meio da interpretação de sinais corporais de quem o executa. Os dois músicos também participaram, em 2011, de um evento idealizado pelo professor Bruno Faria, do Instituto de Artes e Design, da UFJF, com a presença do maestro Walter Thompson, de Nova Iorque. Mas como Robert explica, esse tipo de criação parte de uma liberdade controlada, já no 4zero4 as ideias surgem de maneira randômica. A intermediação com outras linguagens artísticas começou logo no início do projeto, quando foram convidados para criar a trilha sonora para o espetáculo teatral Casa dos Espelhos. “Compusemos a trilha desse monólogo, em que o palco era uma arena e o público ficava todo em torno. Optamos por uma emissão sonora quadrifônica, e para se ter a impressão de ser algo acusmático, tampamos as caixas de som, para as pessoas perderem o referencial de onde o som estava vindo, a fim de o espectador ficar desorientado”, lembra Robert. A trilha foi feita ao vivo, como uma experiência da técnica soundpainting. Em cada peça, o som aparecia diferente, não tinha roteiro, e não havia combinação sobre quem iria fazer o barulho – podia ser só um músico, ou às vezes acontecia de serem todos de uma vez. Para conferir o trabalho do grupo, uma pedida é o álbum Contínuo, lançado pela Plataforma Records (RS) em 2014, exatamente em 4 de abril (4/04), fazendo uma brincadeira com o nome da banda.


White’n’Cold O projeto nasceu sem querer, já tinha uma relação mínima com a música eletrônica. A partir de um som de piano, o músico Luís Gustavo Mandarano foi explorando, testando, deixando a imaginação fluir. Elementos de sua memória musical foram aparecendo. O princípio de seus trabalhos são as gravações que faz espontaneamente, com aparelhos profissionais ou até mesmo pelo celular, em qualquer lugar, quando um som desperta o seu interesse. A partir dessas gravações, ele vai construindo a sua música, sem nenhuma fórmula ou clara intenção. No eletroacústico, na experimentação, há uma confluência das artes plásticas, gráficas e sonoras, tudo misturado numa coisa só, impossível de ser dissociada. Algumas faixas de White’n’Cold são uma colagem de sons que Luís foi manuseando, modificando em programas de computador. A cada hora um elemento novo entra na mixagem, porém sempre com o mesmo desenho inicial. Vamos escutando aquela mesma estrutura, até entrar um piano, totalmente fora do tom. É quase como se estivéssemos ouvindo duas músicas diferentes ao mesmo tempo, uma confundindo-se à outra, o que gera uma estranheza, um incômodo proposital. A música dele é intuitiva e sensorial. Há uso de muita apropriação, como o sampler de um discurso do Martin Luther King, junto a uma batida eletrônica de pista. Em outras faixas, aparecem sons que lembram explosões espaciais. “Além da exploração dos recursos eletrônicos, além da exploração dos instrumentos, existe mais ainda a exploração dos sons”, explica Luís. Ele quis ouvir o silêncio, mas como o silêncio não existe, ouviu os sons de objetos e passos, e qualquer ruído que ecoasse à sua volta. Quando se percebe o som que passa imperceptível na rotina, ele passa a ser muito mais alto e expressivo. O primeiro disco do projeto, em

construção, vai se chamar On The Run, uma referência ao Pink Floyd. Cada faixa parece mesmo uma trilha e por isso, por trás de tudo há uma narrativa cronológica, com um pequeno texto, leituras livres sobre as faixas, mas que insere certo sentido histórico ao álbum. Luís explora muito o minimalismo, em loops insistentes que nos afogam até o limite, e de repente param. Radiohead também sempre esteve ali, como algo que escutou e despertava essa vontade de descobrir o que a tecnologia permite na música. “Mesmo que não seja uma quebra absoluta, é explorar possibilidades da música que a maioria das pessoas não estão explorando, estão preocupadas em procurar demais essa receita de bolo. E aqui não tem nada disso”. Sintagma Sintagma é um projeto que foge da ideia de se ter apenas uma experiência auditiva como música. Paulo Motta, o compositor das mais de dezenas de peças, todas disponíveis online, diz que prefere considerar essas obras como algo mais amplo: “Explorações sônicas com recursos eletrônicos”. O Sintagma é o seu trabalho mais atual, que vem desenvolvendo solitariamente no quesito da composição e execução, embora existam sempre parcerias com instituições e amigos para que suas criações sejam levadas a mais ouvintes. Depois de décadas de contato com a música, manuseando os sons e testando diferentes maneiras de execução e criação, com alguns álbuns lançados, Paulo se encontrou em um novo e velho modo de compor. Percebeu por um caminho muito pessoal, que hoje não é mais a partitura, a técnica, que o ensina e instiga a querer descobrir o inusitado, e, sim, o próprio som, aquele que sempre esteve com ele. “Eu quero que o som me ensine”, reforça. Antes dessa percepção, Paulo Motta sempre escreveu o som em partituras muito peculiares e feitas à mão, obras de artes plásticas que poderiam ser expostas em uma galeria. A leitura de suas partituras não é como a de uma partitura tradicional. “Antes era da partitura para o som, hoje é do som e não necessariamente para a partitura. Eu quero ter a experiência direta do som, da interioridade do som. Quando você fala em composição em termos eletrônicos, na verdade você tem um trabalho de decomposição. Vai ao interior do som, estraçalha, quebra como se fosse um átomo e a partir dali, diretamente com o som, faz o que tem que fazer, isso é o Sintagma”.

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No início, quando começou a se enveredar pelo mundo dos recursos eletrônicos, Paulo disse que se sentiu um pouco “esquizofrênico”, já que sempre seu repertório era de músicas étnicas, aquelas inseridas em um pequeno contexto cultural específico. Porém, com o tempo, viu que a música eletroacústica e étnica se cruzavam em um ponto: ambas são pouco conhecidas e distribuídas. Talvez, seja a própria estranheza dessas composições, capaz de incomodar e nos tirar do lugar esperado, o motivo de elas ainda não serem tão difundidas. “Pelo fato dessa música ser um gênero já estabelecido – a música eletroacústica – isso não torna a audição previsível. Esse tipo de música sempre tira você do lugar, embora eu esteja enquadrado em um gênero, em uma palavra”. O Sintagma é estritamente eletrônico, Paulo usa recursos analógicos de suas engenhocas e sintetizadores relíquias, mas também tem usado muito o digital. Apesar de alguns programas e aplicativos não emitirem sons com muita qualidade, ou não permitirem um controle, por exemplo, de volume, ele não se importa. Não tem um purismo quanto a isso: para ele todo som e ruído são aproveitados em seu processo de produção. Uma peculiaridade que se propõe a fazer é não ter nenhum tipo de montagem, recorte, equalização e qualquer forma imaginável de edição. É como se tivesse gravando em fita, só que no computador. “Um detalhe agoniante: meio milímetro de movimento que eu faço no controle, faz com que eu me depare com um som que não tinha como prever, e eu tenho que lidar com ele naquele momento ali. Porque não vai haver edição, não vou fazer equalização, e aquilo vai estar online para todo o mundo”. Daniel Quaranta “Quando a ditadura acabou na Argentina, muitos compositores voltaram e começaram a fazer concertos”, lembra Daniel Quaranta. Inspirado por essa geração argentina dos anos de 1980, Quaranta é um daqueles artistas que representa o atual momento composicional e tecnológico, transitando e articulando as tantas informações disponíveis. Ou melhor, técnicas de composição, algo colecionado por anos. “A técnica te dá independência e te permite fazer o que quiser. É como um painel de ferramentas”. É a forma como ele enxerga o fazer musical e a maneira que leciona a seus alunos da UFJF. Geralmente, as pessoas o conhecem por seu trabalho com música eletroa-

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cústica, mas isso é apenas uma face, algo que começou de 1997 para cá. A música instrumental está presente em sua trajetória, como no duo para clarone e trombone baixo, o Azul Quase Transparente, que está fresquinho, saindo do forno agora, em 2016. A peça é inspirada no romance de mesmo nome, do escritor e diretor japonês Ryu Murakami. A atmosfera dos jovens junkies que viviam próximos a uma base militar norte americana no Japão dos anos 70 é transposta para a composição. O trabalho é de intertextualidade, de passagem de um meio para o outro. A leitura, a escrita e principalmente a palavra são suas fontes. Vindas de romances, poemas e contos. A literatura é seu oásis, preparando-o para a viagem através dos sons. Seja para qual gênero for, tudo vem de lá. O equipamento não é a âncora de seu processo de composição. Sua obra compreende e transita nas estruturas típicas de concerto. Foi assim desde o início, ainda na sua Argentina natal, quando o estudante de piano começou compondo coisas mais populares, um tipo de jazz experimental. Seja instrumental, eletroacústico ou misto, o estilo é sempre cruzado, não há um purismo ao pé dá letra. O conhecimento de diversas técnicas tem sua clareza na aplicação, no momento da composição. O instrumental constantemente atravessa o eletroacústico e vice-versa. Para um leitor um pouco mais informado em música ou para um músico tradicional, suas partituras são quase enigmáticas. É preciso sentir certa modernidade. Inclusive essa é uma das questões pela qual ele começou a trilhar o eletroacústico. “Era complicado no início encontrar um instrumentista que tocasse bem música instrumental contemporânea. Me satisfazia

Fragmento da partitura de “Azul Quase Transparente”.


mais compor música eletroacústica porque eu não tinha que brigar com o instrumentista. Hoje, conheço músicos muito competentes e transito nos dois gêneros”. Ele nunca abandonou a escrita tradicional, mas as estruturas modernas são latentes em seu trabalho, como mostra o exemplo gráfico do fragmento de Azul Quase Transparente, o visual próximo e quase distante do pentagrama usual. Podemos conferir em seu SoundClound alguns trabalhos, como o La Hora Mágica, que diz respeito a uma hora do dia que tem uma luz especial para fotógrafos e cineastas, ou ainda, o Aire, que reflete sobre nosso futuro incerto com as questões do meio ambiente, o respirar. Recentemente, ele compôs inclusive para o curta-metragem espanhol Kukthulu. Já trabalhou com teatro e fez músicas em um trabalho com vídeos, junto com o artista Nadam Guerra. Seu próximo passo, que possivelmente ocorrerá a partir do meio do ano, trata-se de um trabalho na composição de óperas de Câmara. Cenas para uma próxima conversa e entrelaçamentos eletro-acústico-instrumentais. Luiz Eduardo Castelões Criar música sem fronteiras. Relativizar o uso das “novas tecnologias”. Pensar o resgate de materiais antigos em novos usos. Conversar com Luiz Eduardo Castelões sobre o atual momento musical, significa encarar esses aspectos de maneira mais realista. Sua música transmite esses dilemas e oposições, fugindo do senso comum. Uma vida de dedicação, que encontra frustação na banalidade divulgada pela mídia do dia-adia. Palavra pesada, essa, a frustação. Mas vamos deixar a atmosfera assim. É im-

Imagem: Daniel Quaranta

portante que isso ocorra, para cultivar o afeto em torno da polêmica que ele quer levantar. “Como podem não aparecer no jornal caras como Baden Powell, Thelonious Monk, João Donato, Glenn Gould, Elis Regina, Webern, Gesualdo, Machaut, Hendrix, Nina Simone? Eu tenho impressão de que se eu abrir o caderno de cultura do jornal local durante um ano inteiro, não lerei esses nomes nunca, ou quase. Eu sinceramente não entendo e acho lamentável”. A música eletroacústica surge no contexto de seu trabalho composicional, como uma escola preparatória. As palavras eletrônica e acústica funcionam independentes em seu trabalho. Luiz, músico e professor do Instituto de Artes e Design, da UFJF, é um compositor que trocou a solitude da “Bat caverna” do estúdio eletroacústico, para trabalhar com gente de carne e osso, nos gêneros da música de Câmara. A 8 Fábricas é a obra em andamento, um quarteto de cordas que segue o seu procedimento: música antiga gerando nova, sem fronteiras. O título é provisório. São 8 movimentos transitando entre o contemporâneo (glissandi, microtonalismo) e as músicas populares (rock, pop, funk, canção de ninar, choro). A estreia e a gravação será em setembro de 2016, pelo Quartetto Maurice, da Itália. Compor para ele é um ato de respeito ao intelecto do ouvinte. Quase uma questão de honra com os músicos que vieram antes, sacrificando-se pela qualidade. Se ele escolhe gravar ou produzir algo, vai ao encontro de sua “tribo”, a geografia pouco importa. Isso significa que o pessoal prepara, estuda, ensaia e trabalha muito. “Buscar isso não é luxo ou afetação, mas me parece uma necessidade acachapante, tendo em vista que há um excesso de som-música no mundo e que não faz sentido colocar ainda mais som-música no mundo se não for pra apresentar algo digno de ser ouvido”. Em Juiz de Fora, ele tem realizado trabalhos com o Trio COMUS e a pianista Grazi Elis. Sua obra é de característica mista, uma via de mão dupla, entre algo mais tradicional e o eletroacústico. Algumas de suas peças eletroacústicas utilizam materiais sonoros pouco convencionais, dados extra-musicais. Imagens são convertidas em som com o auxílio do computador, como no Estudo Cancelas, Estudo Ouvidor, Estudo Rotações e no Estudo Capanema. Esse processo pode envolver, por exemplo, a conversão de cores em ritmos e harmonias. Ou de pontos imóveis 2D e 3D (fotografias, desenho livre, ou listas de coordenadas de objetos escaneados) em parâmetros

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musicais. A construção é contemporânea, música algorítmica. Exemplos que revelam outro modo de utilizar o computador no fazer musical, diferente da simples realidade de conectar um microfone a ele e gravar. Em tom de brincadeira, Castelões diz que suas ferramentas preferidas são papel, lápis e cérebro. Nas peças mais recentes, nem os instrumentos participam do processo. É a tentativa de buscar algo que ultrapasse alguma questão virtuosística própria, ou os vícios já existentes na sua linguagem ao instrumento. O uso de equipamentos parte da necessidade de cada projeto. Alguns softwares já foram utilizados em suas obras, como o OpenMusic, o AudioSCulpt, o Reaper, o Praat e o Spear, e ainda o Finale, para editorar as partituras. “Qualquer Rascunho do Estudo Cancelas, acusmática, no OpenMusic.

Imagem: Luiz Eduardo Castelões

Imagem: Luiz Eduardo Castelões

Rascunho do Micro-Fado, 1º movimento dos 5 Sons para Noel Rosa, para quarteto de cordas.

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ferramenta é uma extensão do corpo e do cérebro e, portanto, das ideias, da escuta, da expressão, do movimento”. Ao compor música acústica, para instrumentos musicais, ele utiliza partituras para se comunicar com os intérpretes. No caso da música mista (instrumentos e eletrônica) são partituras de cunho semi-improvisativo. Quando é acusmática (difusão puramente eletro-eletrônica), ele não utiliza partituras. “Em todos os casos, durante o processo composicional uso muitos tipos de rascunhos que me auxiliam a fazer a música: diagramas, gráficos, desenhos, partituras, patches de computador.” O que mais chama a atenção é sua consciência com relação à efervescência tecnológica, apesar do caráter contemporâneo de sua música eletroacústica. O uso de tecnologia é explícito em suas obras, para não dizer indispensável. Quem pensaria numa conversão direta de imagens em som, há vinte anos? O digital, hoje, permite isso. Castelões, no entanto, nos lembra, por exemplo, da tecnologia piano, que foi nova um dia e continua a ser usada 200 anos depois. “São tecnologias absolutamente notáveis! Duráveis! São de fazer enrubescer a obsolescência programada de nossa época. Às vezes um aparelho eletrônico ou um software atual não dura dois verões! Mais do que uma ferramenta nova, então, eu estou pensando na ferramenta que dura e, por isso mesmo, se torna muito expressiva, muito orgânica, parte do seu corpo-cérebro-vivência a longo prazo”. Procedimentos musicais também devem ser lembrados como formas de tecnologia. Escritas musicais, polifonia, harmonia, poliritmos e afinações; todas elas são memoráveis e atravessam os tempos. “Acho que essa longevidade de tecnologias musicais ‘antigas’ torna nossa época mais humilde, oferece uma consciência de um tempo mais amplo, que nos coloca mais em uma linha de continuidade com o que veio antes do que como uma ruptura radical que tenha necessariamente alterado ou aprimorado a música. Tanto que a música nova não é necessariamente melhor que a antiga”.

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o final da década de 1970, um juizforano, estudante de Psicologia, conheceu a música eletrônica. A faculdade ficou para trás e ele ganhou o mundo, produzindo uma obra de vanguarda, com um repertório que traduz e sintetiza o fin-de-siècle e o admirável mundo novo da primeira década do século XXI. Paulo Motta concedeu uma entrevista à Avenida, na qual conversou sobre o trabalho de experimentação que desenvolveu a partir da década de 1980, misturando música, artes plásticas, dança e uma série de outras expressões. A conversa não deixa de ser uma aula de história da música eletrônica, contada por quem faz parte dela. Avenida Independência: Como você teve o primeiro contato com a música eletrônica? Paulo Motta: Eu vi esse termo [música eletrônica] em um livro de psicologia, em 1979. Mas as minhas primeiras incursões, em termos de fazer alguma coisa ativamente, foram em 1984, quando eu comecei a fazer partituras de música cartográfica. Esse tipo de música tem uma ligação com a tecnologia, porque quando você toma contato com a produção de som eletrônico, você sintetiza o som. Além disso, os textos que falam sobre o tema e as músicas que você ouve ao pesquisar, as composições que você tem contato, abrem um leque de possibilidades de escuta. O leque de sons que existia se tornou dilatado em função dos timbres que podemos criar usando recursos eletrônicos. Isso é fantástico: poder usar qualquer som na composição. Então são duas vertentes que podem se juntar. Trabalhar com sons que já existem, por exemplo, o som do disparo da máquina fotográfica que eu acho maravilhoso, que é um som que está aí e não tem intenção musical nenhuma e que podemos usar uma abordagem concreta. E o pessoal que começou com isso, lá em Paris, no final dos anos 1940, eles não tinham essa intenção. Eles não tinham uma preocupação com o material sonoro, com o material musical.

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Eles estavam preocupados em observar e usar a matéria sonora. O que é material musical? É aplicação do tempo, do ritmo, da intensidade. É a musicalidade que você imprime a um determinado som. Quando os franceses começaram na música concreta, eles não tinham essa preocupação de atribuir significado àquele som. Já na Alemanha, aconteceu o extremo oposto, porque eles vieram de uma escola da partitura tradicional, de Schoeberg e Webern, que tinha uma forte carga de significação musical. Não era simplesmente criar um som eletrônico, colocar em uma máquina, soltar e a pessoa ouvir sem intérprete. Tinha que ter uma lógica interna que dava sentido e uma justificativa daqueles sons serem do jeito que eles são e ter a forma que eles tinham. Então são duas formas de pensar completamente diferentes, que podem unir, tanto que isso aconteceu, juntando som concreto com som eletrônico. Isso é fundamental para entender o ponto de vista do material sonoro. Se trabalharmos puramente com a matéria sonora, a produção musical fica, a princípio, sem sentido. Ao passo que se preocuparmos somente com a forma e o significado, renegamos os sons já existentes e partimos para aquilo que foi feito no início da música eletrônica. Criamos o próprio som, a partir dos aparelhos. Aquele som não existia, quando o criamos, aplicamos um sentido de criação daquele som que vai ser usado para composições específicas. Cada vez que uma composição é criada, novos timbres podem ser pensados especificamente para aquele trabalho. Olha que coisa fenomenal! Isso é novo até hoje.

que ela seja aberta, eu sigo um caminho. Agora, quando me coloco diante de um dispositivo com inúmeras possibilidades de encontrar aplicativos e programas, preciso aprender a lidar com a gestualidade que é própria daquele programa. E, ao mesmo tempo, é necessário imprimir a personalidade do músico naquele som. Porque a matéria sonora tá ali, produz aqueles sons e qualquer pessoa que chegar e apertar algum botão vai fazer um tipo de som. Mas como o músico, pessoalmente ou virtualmente, vai aplicar uma característica própria àquele som produzido? Esse é o desafio. E sem a intermediação da partitura. Essa interação direta com a matéria sonora é como se você, na ponta de cada dedo, tivesse o pensamento do material sonoro. E muitas vezes isso não funciona da forma como você quer. Os dispositivos eletrônicos são um pouco traiçoeiros. Você nunca sabe exatamente, por mais que você tenha conhecimento do que cada módulo faz, você nunca sabe exatamente o que vai resultar da interação de um dispositivo ou de um módulo com o outro. Então é você associar o imprevisível com o determinado. Avenida: E o termo música eletrônica, diante da disponibilidade de tecnologia atual, como você enxerga essa abertura? Paulo: quando eu ouço o termo música eletrônica hoje, eu sempre lembro do início, para eu ter um critério de escuta e avaliação. É difícil, para o público leigo, tomar conhecimento disso porque realmente, por mais que você tenha a informação hoje, você tem que ter a intenção de descobrir a história. Então, eu posso perfeitamente ser um DJ hoje em dia, ou seja lá o que for, mas eu tenho que, no mínimo, ter ideia da onde aquilo veio. É um compromisso que tem que se ter consigo mesmo. Só que raramente isso acontece. Eu conheço poucos que sabem e isso faz uma grande diferença. Porque uma coisa é você tocar um instrumento, por exemplo, ser um exímio intérprete, tudo bem, ótimo, tem que existir isso, mas cultura musical não é só você saber tocar. Cultura musical é a história da música, sociologia da música, estética, antropologia da música. Se você puder, for um músico com M maiúsculo, você vai ter um mínimo de informação dessas coisas. Em qualquer área, qualquer gênero.

Avenida: Hoje em dia, o que é o som para você? Paulo: Parece contraditório porque, eventualmente, pode-se ter a preocupação de escrever a partitura, anotar decibéis e volume, criar símbolos novos ou usar aqueles já existentes, ser extremamente lógico e matemático a fim de ter a visibilidade daquilo que você quer produzir em termos de composição de som. Ou seja, eu tenho um dispositivo eletrônico em um celular, um tablet, um computador, que vai ser operacionalizado diretamente. Eu tenho um dispositivo físico também, um sintetizador analógico. Eu tenho esses dispositivos, virtuais ou não, eu tenho a possibilidade de interagir com eles de formas diferentes, porque cada um me apresenta de uma forma. Então, Avenida: Quando você começou a compor, o desafio agora pra mim é o de aplicar o material ainda era raro ter um sintetizador em casa. Como sonoro à matéria sem a intermediação da partitu- você fez? ra. Porque quando eu tenho a partitura, mesmo

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Paulo: Eu tinha meu sintetizador, e desde os anos 1990, eu já tinha o meu computador. Ali eu comecei. Tinha o Protocolo Midi [Musical Instrument Digital Interface] também, que foi fantástico. Eu comprei o meu sintetizador, mesmo nos grandes centros era difícil de encontrar. Eu consegui tudo de segunda mão, até hoje eu tenho meu [sintetizador] Korg. Esse é um modelo que migrava do analógico para o digital. Não importa a origem do som, se é consistente, não é, se é virtual ou analógico, se você roda os botões ou desliza o dedo na tela do computador, o que interessa é que tipo de pensamento musical você aplica naquele som. Qualquer som pode se transformar em um som musical, isso não é um problema. Esse teclado [aponta para o seu próprio teclado] tem um caso curioso: um dia eu abri e encontrei lá os componentes, os fios e aí vi um punhado de confete, falei: gente, confete? Eu abri para ver né? É porque ele tinha pertencido a um grupo de baile [risos], mas ele tava, assim, lotado.

durou um ano, um ano e meio. Depois que eu saí do grupo, eu fiz uma exposição em 1985 e eu comecei a trabalhar pessoalmente, de forma mais direcionada, a interação entre os gêneros. Trabalhei com computador também em 1984 e 1985, fiz a primeira peça para computador com um amigo meu que tinha um Exato Pró, da CCE. E a linguagem era toda por linhas, então eu propus a ele fazer uma programação visual e ele programava os sons também. Isso foi disparado ao mesmo tempo com exposições que eu montei com artistas convidados, devia ter mais de 100 trabalhos expostos em monotipia. Tinha eu, Walter Sebastião, tinha uma dançarina, a Patrícia Borges, Jorge Arbache e outros nomes. Foi um evento muito interessante. Tinha música quadrafônica eletrônica que fiz em um estúdio daqui. Tinha projeção de slide, projeção em três ou quatro televisores, cada um de um tamanho. Essa exposição ficou em cartaz durante três semanas. Era interessante porque foi visitado por 3 mil, 4 mil pessoas. E eu fazia apresentações de Avenida: Na primeira metade da década de música eletrônica quase que diariamente. 1980 você fez, em Juiz de Fora, projetos inusitados que ultrapassavam a questão musical: como o Avenida: Como foi aquela exposição em que Uavisiliu e as mostras envolvendo vários tipos de as pessoas roubaram os cartazes? arte. Como foi a recepção do público? Paulo: Essa foi na UFJF, entre 1989 e 1992. É Paulo: O Uavisiliu fazia essa fusão que você uma história curiosa, porque você tem uma ideia falou. Era imagem, dança, música, artes plásticas. boa, mas é só a ideia que é boa, porque o resulIsso foi em 1982/1983. Ele estreou aqui na Uni- tado.... O cartaz foi feito sem a titulagem, em imversidade [UFJF] em um domingo musical, que o pressões de monotipia. Cada cartaz era diferente DCE organizava. Nós usávamos elementos ele- um do outro. Eu espalhei pela Universidade, só troacústicos, mas o principal era a música instru- que no dia seguinte, tinha um ou dois cartazes à mental ensaiada, não escrita, mas tocada sempre mostra. Depois o Paulo Beto [músico, composida mesma forma. Nós fomos pra São Paulo, apre- tor de música eletrônica] fez um trabalho legal, sentamos no Boca do Trombone, que era um Cen- nessa linha. Ele lançou um LP, em que cada capa tro Cultural. Nós fomos o único grupo mineiro a tinha um desenho diferente também. Mas, claro participar. Depois que o grupo se dissolveu, ele que com pouca tiragem. A história foi essa, a ideia

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é boa, mas às vezes não funciona. Os cartazes ficaram tão bons que as pessoas acharam que eram obras de artes e levaram para casa. Na segunda metade dos anos 1980, eu comecei a organizar exposições, fiz uma que chamava Proposições Contemporâneas. Convidei vários artistas plásticos: Arlindo Daibert, Ruy Merheb, Dnar Rocha e vários outros. O convite foi feito por Jorge Arbache. Coloquei música, desenho, partitura e eu fiz questão de convidar artistas plásticos, sobretudo. Apesar de ser da área de música, eu tinha contato com eles. Todos aceitaram de bom grado. Eu me interessava pela imagem, óbvio, mas como uma possibilidade de fazer música. É isso que te tira do seu lugar, quando você conversa com alguém que não é da sua área. Eles podem entender de música, mas obviamente não fazem um trabalho em música. Só que você conversando com eles, passa a imaginar coisas que não fazem parte do seu métier, que podem ser aplicadas na música. Essa ideia de trabalhar em um meio é fantástica, porque o artista plástico faz isso, ele pinta pensando com a mão. Como é que você vai conceber uma música que é pensada com a mão, e não por intermédio da partitura, por exemplo? Como você vai lidar com esse paroxismo de trabalhar esse tempo real, com um tipo de dispositivo? Mesmo porque, por mais que você tenha algum controle, sempre há alguma surpresa, de algum resultado sonoro imprevisível. Avenida: Qual sua percepção da música eletroacústica neste momento digital contemporâneo? Paulo: Por incrível que pareça, em função da diversidade do que é produzido hoje, é muito difícil setorizar alguma coisa. Você ter 10 composito-

res que fazem o mesmo tipo de música, é complicado. O trabalho é individual. Existem grupos de pessoas que divulgam seu trabalho num site específico, Plataforma Records, por exemplo, do Max Chami. Mas, lá mesmo no site você tem: noise music, weird music, experimental ou eletroacústica. Então, cada setor desse, vai ter um nicho de produção que vai se identificar. No eletroacústico, você tem vários tipos e formas de fazê-la. Se você não souber a origem, não vai poder identificá-la. Hoje, eu tenho a possibilidade de fazer agora e no segundo seguinte já divulgo minha produção. Mas, isso vai atingir quantas pessoas? Porque o mundo virtual também é seletivo. Eu me assustei hoje, quando vi uma mãe que fez uma música pra sua filha, um bebê. Teve já mais de 2 milhões de visualizações. No entanto se eu coloco uma composição eletroacústica agora, ela vai ter 2 milhões de acessos? Então, um meio não vai garantir um público. Eu tenho amigos em São Paulo e no Rio de Janeiro, que fazem apresentações fenomenais, têm consistência musical, é uma proposta legítima, autêntica e sincera. Só que tem de 100 a 150 pessoas na plateia. Eu não sei como responder essa pergunta de uma forma definitiva, mas é algo a se pensar. Não me importo de ter 100 visualizações, porque na verdade pra mim não muda muito. Porque, quando eu fazia as apresentações de música eletroacústica tinha 30 ou 50 pessoas. Quando tinha 100, era uma multidão! O que você oferece tem que ter um nível de sedução, que por vezes não cumpre a expectativa de quem recebe. Não que eu não esteja preocupado com o receptor. Mas, o nível de concessão que você faz, relaciona-se com sua vida. Eu não vou ter milhões de visualizações. É preferível você ter 10 ouvintes, que vamos dizer assim, não se trata de quem entendeu, mas sim, que eles tenham um compromisso com a escuta. Melhor do que ter 100 mil e aquilo não significar nada. O que é melhor: você fazer apresentações em tempo real ou ficar no mundo virtual? Eu acho que o mundo virtual alavanca o real. Porque não adianta nada você ficar postando e postando, se você não encontrar as pessoas. Não adianta eu ficar em casa, no meu estúdio, como um claustro. Porque hoje, você tem a possibilidade de fazer isso, já que pode chegar a qualquer parte do mundo, virtualmente. Eu não sei até onde isso pode chegar. Claro que, atualmente, eu tenho ouvintes nos cinco continentes, antes não tinha.

ARTE: PEDRO HENRIQUE REZENDE avenidaindependencia.com | Ago 2016 | 71


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eia este texto como se estivesse em uma mesa redonda. Não em um ambiente glamouroso, mas uma sala climatizada com a atmosfera ideal para a absorção de conceitos e ideias. Todas as informações aqui são inspiradas pelas conversas que tive com o músico e compositor nascido em Juiz de Fora, Paulo Beto (do Anvil FX, para os iniciados). Alguns pontos deste conteúdo são suposições levantadas por mim e, outros, são fragmentos de leituras que realizo diariamente. A tentativa aqui não é construir uma estrutura sólida sobre a história da música eletrônica, até porque a linha do tempo deste gênero musical é volátil e, como o universo, está em constante expansão. Na verdade, o objetivo central é acender o maior número de lâmpadas possível para iluminar um quarto escuro. Dois de setembro de 1945. Foi declarada a vitória dos Aliados perante o Eixo, na Segunda Grande Guerra. Seis anos de conflito em terras europeias e japonesas causaram um sofrimento irrestaurável. Cidades foram totalmente destruídas, famílias se encontravam arrasadas e países chegaram à beira da falência. Armas foram desenvolvidas e testadas de forma massiva. As avaliações bélicas e científicas chegaram ao seu ápice com o lançamento das duas bombas atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão. A herança tecnológica desse período ainda impacta a forma com que desenvolvemos as nossas ferramentas, aparatos e dispositivos, sejam para uso militar, civil ou acadêmico. Inclusive na música.

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É em 1948 que a música concreta é fundada. Pierre Shaeffer e outros entusiastas inauguram, na França, o Clube de Essai (GRM, atualmente), uma iniciativa que visava estudar e aplicar teorias, metodologias e práticas de composição musical que adotavam uma gama de aparatos eletrônicos e acústicos disponibilizados por meio dos avanços tecnológicos do pós-guerra. A premissa para o desenvolvimento das peças musicais concretas era a de que os produtos sonoros eram tão importantes quanto os sons em si, e a maioria dos elementos utilizados vinham de fontes naturais. Os trabalhos deveriam ter a possibilidade de reprodução de forma idêntica, porém a apresentação não exigia uma performance humana para ser executada. O material audiofônico deveria ser captado através de gravação ou regravação do som. Alterações poderiam ser realizadas a fim de obter o resultado esperado pelos compositores. Na tentativa de omitir as origens físicas dos sons, os compositores vetavam o acesso visual aos equipamentos utilizados para a produção das obras. Os autores da época alegavam que através desta atitude, “o ouvinte estaria mais atento a perceber a própria estrutura constitutiva dos sons [...] e o comportamento do som no tempo”, nas palavras do pesquisador João Francisco de Souza Corrêa, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Um ano mais tarde, na Alemanha, o compositor Herbert Eimert e o foneticista e teórico da comunicação, Werner Meyer-Eppler, fundaram a escola da música eletrônica. Karlheiz Stockhausen, Henri Pousseur, Karel Goeyvaerts e outros estu-


diosos são exemplos de entusiastas que fizeram parte da Escola Senoidal, instituição responsável por inaugurar o contato com os meios eletrônicos, permitindo, assim, a execução da sintetização dos meios físicos do som. A principal característica da escola da música eletrônica era definida pelos métodos utilizados para obter e reproduzir sons a partir de filtros, sintetizadores, moduladores e aparatos que permitiam o estudo do seu sinal físico. Com a possibilidade quase infinita de produção de timbres, o esforço dos estudiosos era compor e descompor o som desenvolvido através de sínteses. “Tal possibilidade propiciou que se libertassem das limitações de escritura instrumental na manufatura das obras que agora não mais dependiam de dificuldades técnicas instrumentais”, observou Corrêa, no texto de sua pesquisa. Devido ao radicalismo na produção de sonoridades das duas escolas, a música concreta e a música eletrônica eram consideradas rivais. A repulsa entre as duas frentes era intensificada devido ao fato dos dois países serem inimigos durante a Segunda Guerra. No entanto, a partir do ano de 1955, através da mente visionária de Stockhausen, as músicas começaram a ser produzidas a partir do conhecimento dos intelectuais de ambas as escolas. Com a adoção dos elementos concretos e com a música eletrônica sendo cada vez mais difundida, em 1958, Schaeffer adotou o termo electroacústico para definir as composições que relacionavam as duas frentes. O conceito permitiu, assim, a eliminação da resistência entre as duas escolas e a consequente aproximação dos compositores para a experimentação do que chamamos hoje de música eletroacústica. Paralelamente aos avanços das escolas da música concreta e música eletrônica, o aperfeiçoamento dos computadores nos Estados Unidos permitiu o desenvolvimento não só dos hardwares para a produção musical, mas também de

softwares. Na época, equipamentos periféricos aos computadores – como teclado e mouse – inspiraram indústrias, entusiastas e empresas a desenvolverem dispositivos que facilitassem a construção de sonoridades. A música, com o tempo, deixou de ser uma obra para se apreciar e escutar, para ser um produto para se consumir e dançar. Surge, então, o que conhecemos por música eletrônica (atenção: não confundir com a escola da música eletrônica alemã). A instrumentalização do som tornou-se uma prioridade nesta época, no entanto, ao mesmo tempo, não se abandonaram as sonoridades exploradas pelos pioneiros. Ao contrário, utilizaram-se os conhecimentos adquiridos até então para o desenvolvimento de instrumentos capazes de programar uma série de sonoridades a serem “disparadas” de forma ordenada, configurando, portanto, uma música eletrônica. Do avanço tecnológico ao desenvolvimento de instrumentos Pode-se dizer que a alma da música eletrônica tida como “moderna” está na repetição e na edição do som. Talvez o instrumento mais importante para a configuração atual da música eletrônica seja o sequencer. A origem deste aparelho remete aos persas do século IX. Composto por cilindros e pinos, o órgão hidráulico era capaz de reproduzir sons sequencialmente e era alimentado, também, pelo vapor. Mais tarde, por volta do século XIV, cilindros rotativos eram usados para tocar o carillon, uma espécie de piano que controlava um conjunto de sinos dos mais variados formatos e tons. O último estágio deste mecanismo de que se tem notícia pode ser observado no realejo, um instrumento mecânico portátil capaz de reproduzir automaticamente uma sequência de notas através de um rolo cuja a superfície possuía uma textura em alto-relevo.

O realejo produz sons a partir da leitura de uma fita em relevo Foto: Pixabay

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Uma gama de instrumentos automáticos foi desenvolvida, na esteira da Revolução Industrial. A popularização desses equipamentos aconteceu anos mais tarde, por meio das rádios e das trilhas sonoras de filmes e jogos. Novas formas de se reproduzir o som foram adotadas, como a utilização de rolos de fita, ao invés de tecidos, sinos e placas. Entre os anos de 1940 e 1960, o compositor de música eletrônica e engenheiro americano, Raymond Scott, desenvolveu o primeiro sequenciador analógico de que se tem notícia. O equipamento produzia padrões de ritmos que eram obtidos através de componentes eletrônicos. A evolução dos instrumentos construídos pelo americano continuaria nos anos seguintes: sequenciadores de passos (máquina de baterias), música computadorizada, sequenciadores digitais e softwares de sequenciamento aperfeiçoaram a forma com que se manipulavam as sonoridades, dando vantagens criativas para o compositor. Seguindo a mesma lógica da evolução tecnológica, a experimentação e a prototipagem (o uso de itens, equipamentos e recursos para o desenvolvimento de sistemas, objetos e artefatos que auxiliem no dia a dia do ser humano) foram adotadas por engenheiros, compositores e inventores para resolver entraves no processo criativo. Criou-se o sequencer com o intuito de reunir, em um só dispositivo, as mais variadas possibilidades de som, ruído ou barulho de um conjunto de aparelhos. Desenvolveram-se sintetizadores, com o objetivo de descartar a necessidade de se captar uma determinada sonoridade todas as vezes que um músico fosse se apresentar em um determinado concerto ou show. Construiu-se samplers para manipular e editar sonoridades pré-concebidas para o desenvolvimento de novos arranjos e timbres. Com o tempo, estes aparelhos diminuíram de tamanho. Roland, MOOG e Korg são exemplos de empresas que se dedicaram a tornar a produção da música eletrônica mais prática para os compositores ávidos por portabilidade. Não só os equipamentos evoluíram neste período: softwares de criação, métodos de produção e formatos de mídia para a gravação tornaram a música eletrônica algo mais acessível. Fitas magnéticas foram substituídas por computadores capazes de gerar sonoridade a partir dos seus componentes eletrônicos; painéis moduladores de som foram “substituídos” por equipamentos cada vez menores, mas com a mesma qualidade de som; instrumentos elétricos, como o baixo, tiveram as suas sonori-

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dades armazenadas em equipamentos menores e portáteis. Mais e mais experiências foram realizadas por pessoas de todo o mundo. Com o surgimento de determinados instrumentos eletrônicos, alguns gêneros ganharam escopo. A house music foi um exemplo. Com nascimento em Chicago, Estados Unidos, na década de 1980, a house foi concebida paralelamente às drum machines. Provavelmente a máquina de bateria mais popular na época era a Roland, TR-808, instrumento utilizado para dar ritmo às músicas a serem produzidas. Com batidas predominantemente 4/4, o gênero popularizou-se como um ritmo extremamente dançante. Além dos artistas da música house, o hip hop adotou a TR-808 para a produção de suas sonoridades. Apesar da limitação de sons, a variedade de timbres emitidos pelo equipamento era vasta. A partir de então, os elementos eletrônicos perderam gradativamente espaço para equipamentos com sons polifônicos e digitais. Além da TR-808, a Roland foi responsável por desenvolver outro instrumento que iria inspirar artistas da música eletrônica em todo o mundo: a TB-303, uma caixa metálica capaz de reproduzir as sonoridades de um baixo elétrico, além de aplicar filtros nos sons emitidos pelo instrumento. Efeitos poderiam ser sobrepostos nos canais, a fim de alcançar novas experiências auditivas. As pistas de dança agradecem. Além dos instrumentos, o aperfeiçoamento dos computadores pessoais permitiu que produtores de música eletrônica desenvolvessem as suas sonoridades através de softwares que simulavam instrumentos reais. Plug-ins, como são chamadas as funcionalidades dentro dos softwares, funcionavam da mesma forma que os instrumentos físicos, a única diferença seria a interatividade e relação com o equipamento que alternava entre knobs e teclas, e leveis e o mouse. Fruit Loops, Ableton Live, Cubase, Logic Pro e Pro Tools, são exemplos de softwares que foram desenvolvidos por programadores e engenheiros, a fim de transportar as sonoridades dos instrumentos musicais para o PC. A música eletrônica mainstream Se observamos a evolução na forma de se produzir música eletrônica, dos equipamentos intransportáveis para os portáteis, dos portáteis para os digitais e dos digitais para os virtuais, dá para perceber que o esforço dos entusiastas concentra-se em compactar cada vez mais a forma


com que se produz uma sonoridade. A situação se repete nos formatos de áudio: das fitas magnéticas dos anos 50, para os sons compactados dos MP3. Apesar da simplificação dos formatos e dos modos de se produzir uma música, a criatividade dos compositores continua a mesma, salvos, claro, os “poréns”. Se quem “compõe” as músicas são os produtores, quem faz os “covers” são os deejays, ou DJs, sigla para a termo disk-jockeys. O uso de aspas indica a não fidelidade dos termos para as suas respectivas funções. Naquela mesma época do TB-303 e do TR-808, os primeiros deejays começaram a se apresentar nas casas noturnas e em festivais do mundo todo. Inicialmente, as faixas eram mixadas utilizando tocadores de fita e seletores de canais, depois, utilizando vinis em turntables ou pick-ups e mixers de dois a quatro canais. O termo discotecar ficou popular devido à presença cada vez mais crescente destes profissionais, nos mais variados formatos de festas e eventos. No início da música eletrônica, ou seja, quando os avanços da Revolução Industrial possibilitaram que o ser humano convivesse com o ruído e o barulho, os compositores eram de fato compositores. Todo um processo de se desenvolver uma música era adotado. Partituras eram escritas para atender uma necessidade comum na época, a música clássica erudita era referência. Com o tempo, o experimentalismo tornou-se o objeto principal. Com a procura incansável por novas sonoridades, o conceito de produção/composição divergiu-se com a base da música clássica, incitando questionamento quanto ao emprego da palavra “música”, em “música eletrônica”. Torna-se, portanto, pertinente, o questionamento: a música eletrônica é, de fato, “música” nos seus conceitos base? Sim - se considerarmos a necessidade de adotarmos escalas e outros elementos da teoria musical ao se produzir uma faixa - e não - se está pressuposto a necessidade de seguirmos “a ferro e fogo” essas mesmas teorias. A música eletrônica atual tornou-se uma indústria. Produções são publicadas diariamente com frequência assustadora. Gigas e mais gigabites de arquivos são movimentados na rede mundial de computadores a fim de abastecer gravadoras e lojas especializadas de música. Provavelmente a Beatport é ainda a principal plataforma de “negociação” de faixas dos mais diversos gêneros da eletrônica: hip hop, house, techno, breakbeat e outros formatos de música eletrôni-

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ca. Este lado business da música acabou se distanciando do que realmente importa para a cultura: a música. O abandono do tratamento “compositor”, a adoção da qualificação de “artista”, a superexposição da imagem para garantir a permanência do profissional no mercado e a presença nas redes sociais obrigatória, demonstram que o produtor de música eletrônica está de acordo com os anseios sociais: do consumo. Ao mencionar a questão da superexposição da imagem, é necessário apontarmos outros fatores que a música eletrônica atual encarna: o gênero ainda é masculinizado, atende a uma estética plastificada, é um gênero musical atrelado a marcas, é uma indústria que se fortaleceu com a intensificação do uso da rede mundial de computadores e a música eletrônica é associada à status social. Pode-se tecer uma lista interminável de características que se opõem aos fundamentos da música eletrônica erudita. Para algumas pessoas, organizações e iniciativas, a música eletrônica é considerada como a “música do futuro”. Ela serve de trilha sonora para filmes, jogos e websites e está presente nos smartphones, streamings de áudio e vídeo e nas rádios de diversos países. No entanto, a música eletrônica não deve ser observada apenas como um gênero musical, mas como cultura em constante expansão e reinvenção. Nos seus fundamentos a “emusic” se inspirava nas escolas eruditas. Com o avanço das tecnologias, aproximou-se dos métodos e instrumentalização do processo de criação e atualmente a música eletrônica está difundida de tal forma, que através do processamento computacional é nitidamente viável produzir uma faixa

para ser distribuída na rede mundial de computadores. O ruído deixou de ser um objeto de análise e observação para se tornar um ritmo adorado por pessoas ávidas por dançar e celebrar a vida. A figura por trás das pick-ups é claramente icônica se fizermos um exercício de imaginar: qual é o personagem mais lembrado ao citarmos o termo “música eletrônica”? Provavelmente será o deejay. Além da imagem, os disk-jockeys profissionais são responsáveis por propor novas sonoridades e artistas para que a pista de dança ou espaço aberto continue em constante movimento. As apresentações dos DJs são performáticas e técnicas, podendo expor trabalhos próprios ou de outros artistas; os chamados deejay sets podem ser considerados verdadeiras narrativas. Um “conto” capaz de viajar por diversos gêneros e propor um conjunto interminável de personagens que, com o desenrolar da “saga”, podem despertar uma série de sentimentos nos espectadores. Combinadas de forma sinergética, as músicas passam a sensação de ser uma só, no entanto, as faixas selecionadas cuidadosamente pelo deejay são combinadas através do que chamamos de mixagem. É neste ponto que a “magia” acontece: no intervalo entre uma música e a outra, uma nova sonoridade se materializa, efeitos podem ser acrescentados a fim de tornar a experiência audiofônica ainda mais vívida. Acrescentando efeitos visuais, as experiências vividas acabam tornando aquele momento único. Onde a atriz principal é a música eletrônica.

Fontes: -Música Concreta e Eletrônica: Uma Exposição Sobre as Origens da Música Eletroacústica. Autor: João Francisco de Souza Corrêa. -Energy Flash: A Journey Through Rave Music and Dance Culture. Autor: Simon Reynolds.

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odo gênero musical tem uma história. Alguns foram impactados pelo melhoramento tecnológico, outros foram aprimorados para atender a um determinado segmento de mercado. Ou, ainda, foram inspirados pela sociedade na qual determinado estilo está inserido. Com a música eletrônica não é diferente. Do house ao downtempo, listamos os principais gêneros – e alguns subgêneros – da indústria da música eletrônica atual.

House Considerado como um dos gêneros da música eletrônica mais populares do mundo, o house é caracterizado por elementos melódicos e pelo ritmo da bateria pautado em quatro por quatro. Seus principais subgêneros são: garage, acid, progressive, tribal, deep, tech, italo e disco house.

va e atmosférica possível. Subdividido em quatro subgrupos - industrial, eurotrance, hard dance e psy, os subgêneros mais populares são: industrial rock, psytrance, hardstyle e progressive trance.

Techno Nascido em 1980 em Detroit, o gênero sofreu forte influência do house de Chicago, do funk e do electro. Atualmente o gênero é mais conhecido pelos seus elementos sérios e introspectivos. No entanto, nas suas origens, para se configurar uma música techno bastava-se que as faixas fossem produzidas inteiramente por computadores, divergindo, portanto, do house e de outros gêneros da música eletrônica que adotavam instrumentos orgânicos e elétricos nas suas produções. Seus principais subgêneros são: minimal, detroit e deep techno.

Trance A música trance é capaz de despertar as mais profundas emoções no ser humano. Tão melódico quanto o house, o gênero muitas vezes é considerado psicodélico devido a adoção de elementos hipnóticos e a associação com a cultura psicodélica: cada instrumento é acrescentado lentamente na tentativa de tornar a experiência mais imersi-

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Breakbeat Foi por meio do breakbeat que surgiu um dos subgêneros mais ouvidos nos dias de hoje: o hip hop. Alguns preferem desvincular a relação do hip hop e do rap com a música eletrônica, mas tal desassociação é impossível se observarmos os ele-


mentos que compõem tal subgênero. A partir do o responsável por gerar os seguintes subgêneros: breakbeat, podemos observar suas derivações: newbeat, nu style gabber, happy gabber e trancehip hop, turntablism (scratching), rap, miami bass, core. funk (Rio Funk ou Funk Carioca), freestyle e big beat. Downtempo

Jungle

Responsável por ser o “pai” de todos os gêneros da música eletrônica, o downtempo não é um Considerado como um dos gêneros mais re- gênero dançante, e sim, um estilo musical para se centes da música eletrônica, o jungle nasceu em ouvir e apreciar. Responsável por gerar todos os 1990, em terras britânicas, de onde partiu para outros gêneros da música eletrônica, os principais o restante do mundo. Com batidas aceleradas e subgêneros são: a música concreta (pioneirismo “quebradas” (não é um gênero quatro por quatro), eletrônico), electronic (Kraftwerk), synth, trip o estilo tem como principal subgênero o popular hop, french pop e minimalism. drum and bass. Alguns dos criadores do jungle Fonte: http://techno.org/electronic-music-guide discordam da desassociação entre jungle e d’n’b, porém, aqui nós optamos por separar os dois estilos de acordo com o que o mercado sugere. Outros subgêneros do breakbeat são: jump up, neurofunk, liquidfunk, jazzstep e ragga.

Hardcore Nascido nos países baixos, o gênero é considerado como o mais rápido da música eletrônica. Algumas produções chegam a 200 BPM sem perder o ritmo quatro por quatro. Atenção: não confunda com rock hardcore. O hardcore eletrônico foi

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NA GARAGEM

ARTE: VITOR RESENDE

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LETRA ILUSTRADA

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Por: Luísa Moreira e Rômulo Rosa

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conversa não poderia ser em outro local senão num bar, como pedem os sambas. Com passos calmos, fala macia e uma sacolinha enrolada nas mãos, Armando Fernandes Aguiar - o Mamão - chegou e cumprimentou quem estava por ali, pediu uma cerveja e sentou-se com a gente. Parecíamos recém-chegados numa roda de samba: como numa primeira vez, nos encantamos com a naturalidade da música e das palavras que acolhem. Mamão nos contou sua história, falou sobre sua família, seus filhos, seus amigos e sua relação com o samba. Lembrou dos antigos festivais de música popular de Juiz de Fora: “Participei de todos eles, do primeiro ao último. No primeiro fiquei em quinto lugar com ‘Adeus Diferente’, gravado pela Helen de Lima. No ano seguinte, em terceiro lugar junto de Pedrinho Rodrigues com a música ‘Boneca Joana’. Depois, emplaquei com Clara Nunes em ‘Tristeza Pé no Chão’, o primeiro lugar”. Lamentamos o fim dos festivais e a falta de

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ARTE: FRED CALABREZ espaço para a divulgação do trabalho de novos músicos. A proposta da entrevista era que Mamão comentasse sobre os novos sons de Juiz de Fora. Quando explicamos para ele, logo disse: “Mas eu entendo é de samba! Samba a gente faz na caixa de fósforo, na mesa. Depois é que se procura um instrumento. O samba é uma atividade muito importante, mas é simples... E por isso que é bonito”. Raí Freitas, “promessa do samba juiz-forano”, como a ele se referiu Mamão, despertou o interesse do sambista. Confira as outras reações na entrevista completa, disponível no blog da Avenida. Como uma enciclopédia, Mamão, por meio de sua música e dos seus casos, nos mostra o que é Juiz de Fora: uma cidade que respira arte. A verdade é que precisaríamos de várias edições da revista para contar o que o sambista tem a dizer para as novas e antigas gerações – e gentes.


Por: bianca colvara, laura sanábio, hyrlla tomé e lucas portilho

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o final de 2015, surgiu nas redes sociais de músicos e artistas de Juiz de Fora uma questão que dividia opiniões: os bares e restaurantes estavam sendo notificados pela prefeitura e impedidos de executar shows em seus estabelecimentos, devido à reclamações da vizinhança. A Avenida entrou na polêmica e produziu a série de entrevistas O Bar Silenciou, publicadas no blog do Coletivo. Conversamos com músicos, donos de estabelecimentos e representantes da Secretaria de Atividades Urbanas (SAU) do município, responsável pela fiscalização. A história ganhou novos capítulos com a realização de uma audiência pública, na Câmara Municipal de Juiz de Fora, em julho deste ano, com o objetivo de encaminhar soluções para o problema. Em pauta, a atuação da SAU. De acordo com o órgão, o trabalho tem o objetivo de responder às reclamações recebidas pela prefeitura, no que diz respeito ao excesso de barulho. No entendimento dos músicos, a Secretaria tem agido com muita rigidez em relação à emissão de som que parte de bares e restaurantes, levando muitas casas a fecharem as portas. Isso implicaria, por consequência, em menos possibilidades de trabalho para os

músicos da cidade. Dessa audiência nasceu uma comissão formada por vereadores, representantes da sociedade civil e da prefeitura, músicos e empresários do setor para discutir a questão da música nos bares Foi a partir dos desdobramentos desta história, ainda em andamento, que a Avenida criou o Mapa da Música de Juiz de Fora, uma ferramenta interativa, de cunho colaborativo, na qual as pessoas podem ter acesso à localização dos lugares onde há apresentações de músicos juiz-foranos, covers ou autorais, em toda a cidade. É o primeiro movimento para a criação de uma rede de informação e de relacionamento entre os donos dos estabelecimentos, os músicos e o público, na tentativa de oferecer escapes para a criação musical juiz-forana. Então, corre pro Blog da Avenida e contribua com o Mapa da Música de Juiz de Fora! Sua contribuição é essencial para o aprimoramento desta ferramenta. Conhece algum estabelecimento que não está indicado? Tem algums sugestão de atualização das informações já disponíveis? Conta pra gente! Fique atento aos sons e ouça a cidade!

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