Revista Av. Independência #2

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EXPEDIENTE EQUIPE REPORTAGEM: CARIME ELMOR, DANILO TERRA, FERNANDA CASTILHO, HYRLLA TOMÉ, ISABELLA GONÇALVES, KAROLINE DISCACIATI, PEDRO HENRIQUE REZENDE, THAÍS ANDRADE, TIFFANY GONÇALVES E TÚLIO MATTOS PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: PEDRO HENRIQUE REZENDE E TIFFANY GONÇALVES CATÁLOGO: HYRLLA TOMÉ RELAÇÕES PÚBLICAS: DANILO TERRA, THAÍS ANDRADE E TÚLIO MATTOS EDITORES DE IMAGEM: PEDRO HENRIQUE REZENDE E TIFFANY GONÇALVES EDITORA-CHEFE: LARA LINHALIS COLABORADORES CONSULTORIA: CARLOS FERNANDO CUNHA, LUCAS SOARES E PEDRO HENRIQUE REZENDE FERREIRA (OLDI) REVISÃO: OLÍVIA MALTHA ILUSTRAÇÃO: DANIEL SLIM E PEDRO VALE MOREIRA FOTOGRAFIA: BERNHARD SANTOS, CECÍLIA SAMEL, DANIEL DEFILIPPO E THIAGO LEMOS ASSESSORIA DE IMPRENSA: MARIA THEREZA FIALHO COLUNISTAS BLOG: CARLOS FERNANDO CUNHA, JÚLIA PESSÔA, FERNANDA AMARAL, PEDRO HENRIQUE REZENDE FERREIRA (OLDI) E WENDELL GUIDUCCI AGRADECIMENTOS ADENILDE PETRINA, ADRIANO POLISSENI, ARNALDO BAPTISTA, CAIO FERREIRA, CAROL SERDEIRA, CECÍLIA SAMEL, COLETIVO VOZES DA RUA, BETO CAMPOS, BRENO ZEFERINO, DANIEL SLIM, DANNIEL DEFILIPPO, DUDU LIMA, EDINHO TOSTES, EDWALD JOSÉ WINAND, ENCONTRO DE MCS, EVERTON BEAT MAKER, FESTIVAL DE BANDAS NOVAS, GIOVANI VERAZZANI, GIHANA FAVA, GUILHERME POLIDORO, GUTTI MENDES, HENRIQUE ARAÚJO, HUDSON COELHO, ISABELLA LADEIRA, ÍSIS DE OLIVEIRA, JOÃO CORDEIRO, JOÃO VICTOR MEDEIROS, JOÃO VICTOR SILVA (JAMAL), JUCÉLIO MARIA, JULIANA STANZANI, KADU MAUAD, LAURA JANNUZZI, LIA REZENDE, LINDA BRAGA, LUCAS SOARES, LUIZINHO LOPES, MARCELA OLIVEIRA AFONSO, MARCELO CASTRO, MARCOS MARINHO, MARCOS VINICIUS, MARCOS VALÉRIO, MARIA THEREZA FIALHO, MASSOM, MC XUXU, MONGE MC, NATHALIA GUIMARÃES, NEGRO BÚSSOLA, OLÍVIA MALTHA, PAULINHO JALÃO, PASTOR SIMON, PEDRO FARINAZZO, PEDRO SALGADO, PEDRO SANTOS, PEDRO VALE MOREIRA, PROJETO EDUCARTE, RICARDO ITABORAHY, ROGER RESENDE, ROSANA BRITTO, SR. ARQUIMEDES, STHANIER WILLIAM, THAINÁ GOMES, THIAGO MIRANDA, THIAGO VALENTE, TIAGO ÁVILA, VALDIR, VALÉRIA FARIA, UIARA LEIGO, WALDIR FREITAS NASCIMENTO, WALMOR CALADO E WELLERSON FELING. AOS QUERIDOS COLUNISTAS DO BLOG: CARLOS FERNANDO CUNHA, FERNANDA AMARAL, JÚLIA PESSÔA, PEDRO HENRIQUE REZENDE FERREIRA (OLDI) E WENDELL GUIDUCCI. AOS ARTISTAS QUE PARTICIPARAM DA 2ª EDIÇÃO DO CATÁLOGO: BULA TEMPORÁRIA, CAETANO BRASIL, CHAINS OF DYSTOPIA, COROÑA, DANNIEL GOULART, JORGE TERROR, LÚDICA MÚSICA, NAGÔ REGGAE INSTRUMENTAL, SUBEFEITO, THE BASEMENT TRACKS E TRUPICADA.


EQUIPE


EDITORIAL Já diz o velho ditado 1 é pouco. 2 é bom. Pra quê? Bom pra avaliar, repensar, aprofundar. 2 em um relacionamento é desafiador: hora de afinar expectativas, compreender frustrações, respeitar o Um e encontrar o que é Dois. No “1, 2 e…”, o 2 é a iminência do que virá, o entremeio de dois momentos: o nascimento e a possível consolidação. A 2ª edição da Revista Digital Avenida Independência reúne um pouco de cada um desses significados, somado ao fato de que somos 10 e o dobro de asas querendo ser apenas duas. Crescemos com essa matemática toda. Equação difícil de resolver. Quando chegamos ao resultado, é como terminar um texto feito a trocentas mãos, ou chegar ao fim de uma viagem de ônibus de 48 horas em poltrona com inclinação máxima de 10 graus, ou ver os olhos do bebê semicerrados após um repertório infindável de canções de ninar, ou cruzar a faixa de uma maratona de triathlon, ou ter um insight criativo após 1 ano com aquela música faltando o chorus. Agora vai ser hit! Ufa! Aí vem o #sóquenão: todo mundo ficou satisfeito? Foi o melhor que pudemos fazer? Gregos, troianos; agradou? Nem Cristo, nem a Avenida, já dizem, né? Mas sabe o que é unânime? O prazer de ver concluída mais uma etapa do desejo coletivo de ouvir a cidade. Somos o 2º número de uma revista e o primeiro lugar em tesão. Sem tesão não há utopia. Quer ser parte dessa equipe transante? Torne-se uma variável da nossa equação. E já aviso que aqui ninguém saca de matemática! Aceita-se propostas de ações para evitar o congestionamento, facilitar a circulação e chegar com segurança e pontualidade à área de dispersão da Avenida. Vende-se sonhos. Aqui desfila a 2ª edição. Valvulamos as alegorias em free style, com direito a conversa de guitarras batidas, abraço coletivo na cadeia musical e heavy metal direto da Caverna. O fio que tece a unidade desse parangolé todo é a sua essência saltimbanca: a gente foge do que nos define. Boa leitura!

Lara Linhalis Editora-chefe


TRACKLIST PERFIL

REPORTAGEM O Músico Atual

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Hanseático 17

Um abraço na cadeia produtiva musical

SINESTÉSICO

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DOSSIÊ HIP HOP

Bandas Novas 49

CATÁLOGO

Música Autoral 65

29 Percurso Histórico 31 Encontro de Mc’s 37 Aice NP 41 Thainá Gomes

FESTIVAIS

ESPECIAL CARNAVAL SIC 46 Caverna do Rock

Meu Rei Sou Eu 51 O Tradicional e o Novo 53 Frevo, Parangolé e Rock’n Roll 57 Na Garagem: CD Parangolé 61 Valvulado Letra Ilustrada: Frevo-enredo 63 2016



O Músico Atual Atarefado, multifuncional e antenado, o músico atual é uma figura facilmente encontrada nos meios digitais. Adaptação é a palavra de ordem! Por isso, dar conta de sua jornada não é tão simples quanto faz parecer o senso comum.

“A Terra gira em volta do sol e esse vazio que a tudo sustém nos faz querer; com isso, imagino que tanger a lira com os dedos do caos é nada mais nada menos do que cantar a mentira da qual somos feitos, sublimes seres de luz que se cegam e seguem obcecados com sua própria imagem e semelhança” Laboratório Literário - Kadu Mauad avenidaindependencia.com | Dez 2015 | 6


Tudo está na web Viver no século XXI e não se fazer presente no meio digital é quase impensável. Hoje a tecnologia nos permite experiências que, por mais que transitem por uma zona infestada de paradoxos e ambiguidades, mostram um potencial de alcance ainda surpreendente por seu crescimento exponencial. Dado o cenário atual, no qual as mudanças ocorrem num intervalo de tempo cada vez menor, é de se esperar que o mercado musical não permaneça inerte. Portanto, as dinâmicas que envolvem todas as etapas do fazer musical se mostram cada vez mais ágeis. E é tarefa do músico, esse ser camaleônico, se adaptar às mudanças do meio utilizando as ferramentas disponíveis. A tecnologia é sempre um fator gerador de boas discussões. Na esfera musical, os avanços tecnológicos permitiram uma certa democracia na produção artística. Com equipamentos mais acessíveis e compactos, a possibilidade de se ter um estúdio na própria casa passou para o campo da realidade. A oferta de trabalhos musicais aumentou e seu escoamento foi potencializado por um meio mais democrático do que as mídias tradicionais já existentes: a internet. As novas plataformas de streaming, as redes sociais e a própria rede mundial de computadores criaram um espaço mais acessível aos músicos independentes, pelo menos até que se provasse o contrário. Não que possamos atribuir caráter puramente negativo a essas novidades, mas a realidade soa um pouco distópica ao ouvidos mais atentos. Isso porque a mesma mão que segura o mouse dá e toma. É bem verdade que a coletividade é uma máxima no cenário atual e que novas plataformas são lugares perfeitos para que ela seja praticada. É mais fácil ser encontrado, tanto pela acessibilidade quanto pela viralização de conteúdos, e esse fator move a turma do “vamo que vamo!” em busca de cada vez mais novidades. E além de estar mais visível, além de se valer de menos esforços para gravar um álbum independente, a internet traz a possibilidade de pesquisa para o músico, que lança mão da globalização no estudo musical. Mas, não é mentira dizer que o aumento na oferta gera uma certa saturação do meio, que muitas vezes faz vista grossa com relação à qualidade do trabalho em si. Para Rosana Brito, cantora, musicista e uma das fundadoras do grupo

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Lúdica Música!, o cenário ficou inflacionado. Para ela, “todo mundo virou artista”, o que entra em conflito com a acessibilidade: é muito mais fácil ser encontrado, mas existem muitos mais artistas buscando esse encontro com o público. O próprio modo de uso das redes sociais pelo público traz consigo aspectos não muito favoráveis aos músicos e compositores. Ao estilo “eu tenho pressa, tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim”, os internautas boiam na superfície de um imenso mar de dados, sem sequer espiar o que existe de mais profundo nele. Isso faz com que a tal da personalidade camaleônica aflore. O CD, por exemplo, virou uma espécie de cartão de visitas, segundo a intérprete Juliana Stanzani, vocalista da banda Matilda. No entendimento dela, por mais que ainda exista o público que opta por possuir o álbum físico, é pouco inteligente “segurar o material”. É mais aconselhável disponibilizá-lo na internet. O desejo de tocar, de querer ser ouvido, perpassa toda a cena musical juiz-forana, seja na soul music de Marcelo Castro, seja na mpb de Laura Januzzi. “Pra você tocar precisam te contratar, pra te contratarem precisam te conhecer”, explica Marcelo. Laura segue a linha de pensamento: “É compartilhar mesmo, querer ser ouvida, querer tocar nos lugares, querer tocar pessoas. Esse é o ponto onde quero chegar em minha carreira.” Essa mesma vontade guiou o músico Thiago Miranda numa busca proveitosa. Na ansiedade por encontrar um produto mais interessante do que os já existentes, Thiago uniu uma demanda da vida moderna a uma demanda pessoal de distribuição do seu trabalho. Juntando seu disco a um dispositivo de armazenamento móvel, ele criou o Pendisc. “Foi uma forma romântica de ver um dispositivo USB. Eu fiz um disquinho pequeno que abre e tem um pendrive. Isso tá sendo muito legal. Isso é um exemplo claro de empreendedorismo, da minha visão da necessidade de conexão com o público, porque eu percebi que o CD não estava dando o recado. O cara comprava disco e ficava meses sem ouvir por falta de um cd player à mão, mas USB tem em todo lugar. E eu acho que o papel do músico atual é esse: procurar.” Esse é apenas um dos exemplos de artistas inventivos que, ao fugir da zona de conforto, desafiam o mercado, moldando os benefícios e driblando as adversidades apresentadas.



Artista e consumidor seguem à procura da melhor experiência musical, buscando a informação disponível e ferramentas que os auxiliem nessa busca. O que não podemos deixar de perceber é que esse cenário atual não é uma discussão, é uma realidade.

Músico multiuso Imagine-se folheando uma página de classificados de um grande jornal. Eis que, em meio aos tradicionais anúncios, um te prende a atenção: “Músico Multiuso! Canto impecável, voz aveludada, domínio de diversos instrumentos musicais, produz, arranja e grava. Possui noções de mixagem, captação de áudio e operação de luz, bem como de marketing, design e comunicação de um modo geral. Lava, passa, cozinha e já foi até roadie do Roberto Carlos”. Inusitado, não? Pois esse é um dos perfis do músico hoje. Uma dica: ele dá conta de tudo, mas nem sempre é por vontade própria. Diversos são os fatores que levam um músico a acumular tarefas e diversas são as situações nas quais esse acúmulo se aplica. Aqueles que optam por realizar produção musical e executiva da própria carreira, o fazem por inúmeros motivos, tais quais a falta de profissionais especializados no cenário autoral de Juiz de Fora (cenário esse que tem o costume de exportar bons profissionais da área); a vontade de possuir um controle maior sobre o próprio trabalho; os talentos específicos nas áreas requisitadas, como na assessoria de imprensa, por exemplo; o desejo de evitar maiores transtornos e a necessidade de diminuir gastos. Na opinião do instrumentista Caetano Brasil, “o músico hoje em dia deve jogar nas onze”, tendo em mente que uma boa produção executiva é indispensável para quem quer fazer sucesso. Acontece que é muito difícil para o artista sustentar essa situação de forma saudável. Para dar conta de tantos processos, o músico abre mão de uma quantidade enorme de tempo que poderia ser empregado no estudo do instrumento e em novas composições, ou seja, no artesanato de seu principal produto, que é a música. O grande perigo é que o acúmulo anule a função do artista e contribua para a desprofissionalização da classe. É importante perceber a concentração de tarefas como uma necessidade momentânea e buscar formas mais saudáveis de se produzir no futuro, para que os artistas possam herdar os práticas 9 | Dez 2015 | avenidaindependencia.com

positivas naturais a agentes que se valem de ambas as formas de tratar a questão da centralização de atividades. O mercado é dinâmico, flexível e sabe recompensar criatividade, inventividade e o bom e velho trabalho duro. Mais importante para a efetividade do trabalho realizado, seja ele de composição, produção ou divulgação, é refletir sobre as possibilidades, as ferramentas e os meios acessíveis, sempre respeitando a subjetividade do músico e o trabalho do mesmo enquanto artista.




{Um abraço na cadeia produtiva musical} Um pouquinho da rotina do músico multifacetado Ricardo Itaborahy

Texto Hyrlla Tomé Foto Pedro Henrique Rezende


E

le esfrega os olhos cansados. O dia foi longo, com tantas notas musicais permeando seus pensamentos. O resultado: algumas pré-produções bem sucedidas e harmonias que ainda não se encontram encaixadas nos arranjos prematuros que só existem em sua cabeça. Agradece a Deus pelo alimento, janta com a família, beija a esposa e os quatro filhos. Levanta-se e vai para o seu home studio. Já na frente do computador, tarde da noite, encara a lista de afazeres e prazos apertados. Esfrega novamente os olhos e se pergunta como foi parar ali. O ponto é justamente esse. A carreira para a qual foi escolhido é tão instável financeiramente que ele teve que se multiplicar. São vários Ricardos em um só: o pianista, o compositor, o produtor, o técnico de áudio, o arranjador, o gerente de

ção musical de Ricardo e, talvez, a inspiração de vida. Não se contentava em ser apenas músico multi-instrumentista: era compositor, alfaiate, viajante e pai de sete filhos, cuja criação foi à base da música. Na década de 1960 formou o Conjunto Itaborahy, com membros da família, e viajou pelo Brasil tocando em clubes, salões e até mesmo na Rádio Nacional. Durante um tempo da infância, Ricardo - conhecido também como Caquinho - morou com o avô. O contato diário com a rotina musical da casa e com as histórias de Neném só fez crescer a ligação entre os dois e a vontade de aprender música. Cresceu como um menino prodígio, tocando em saraus da cidade aos seis anos. Foi sendo chamado pela família para tocar em casamentos e eventos. O primeiro cachê da vida foi investido nas uti-

mídias, o pai, o marido, o filho, o neto, entre todas as outras funções que deixam suas marcas e constroem sua identidade. Mas quando foi que os seus dias passaram a ser tão curtos? Olhando para cima, tentando lembrar, reencontra-se nas primeiras aulas de piano, aos três anos de idade. Ricardo ri para si mesmo ao se deparar com os primeiros erros, acertos e o descobrimento das teclas que estariam emaranhadas em todos os seus anos seguintes. No pouco entendimento, se espelha no professor, ídolo e avô: o maestro Neném Itaborahy, de São João de Nepomuceno, Minas Gerais. Sebastião Itaborahy Sobrinho, Neném Itaborahy para os íntimos, foi o responsável pela voca-

lidades da infância: “Comprei tanto brinquedo…”, suspira. O primo Roger Resende, também músico, seis anos mais velho que Caquinho, admirava-se com a maturidade precoce daquele menino que era a atração da família. Chamou-o para integrar a sua banda nos shows em clubes e boates, e Ricardo ri novamente ao lembrar-se de suas entradas triunfais, aos nove anos, passando pelos seguranças sempre na corcunda de alguém, para que não fosse percebido. Esse foi só o começo. Aos 14 anos parou de estudar, deixou São João e foi morar no Rio de Janeiro. Estudou música, tocou em casas de shows clássicas da MPB; foi requisitado por Billy Blanco,

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mestre da Bossa Nova e parceiro de Tom Jobim, para acompanhá-lo em alguns shows; além de tocar em eventos da alta sociedade. Morando com o primo, Roger, a rotina não deixava de ser musical. Ouviam música de um jeito que a correria dos dias atuais não permite mais: apreciavam música. Separavam algumas horas do dia para sentir e analisar os acordes da MPB, as notas de Tom Jobim que tanto o fascinavam. De tanto ouvir, começaram a gravar. Nessa época, no Rio, comprou o primeiro gravador Tascam. A vida multifunção começava a se tornar complexa. Assim como Neném Itaborahy percebia a aptidão de Ricardo para o instrumento, Roger percebia o jeito que o primo levava para aprimorar composições de outros com os seus arranjos e produções. “Ele tem essa visão de produtor, o cara que enxerga tudo. Ele percebe a música do jeito que ela é e o que ele pode contribuir para ela. Não fica inventando muito, apenas espera a música soprar o que ela quer”. Nessas idas e vindas, Ricardo voltou para São João aos 17 anos. Criou uma escola de música com os amigos e conterrâneos Emmerson Nogueira e Weber Martins, fundou a associação cultural da cidade e mergulhou mais ainda nas produções musicais, gravando as músicas que Emmerson enviava para os festivais. Foi nessa época que a vida, cheia de surpresas e poucas certezas, levou Neném Itaborahy. A motivação e inspiração de Ricardo foram abaladas. Durante o velório ele desabafa com Roger: “Eu tocava pra ele… Agora eu vou tocar pra quem?”. O avô continua sendo a principal referência para o músico em tudo o que faz, como uma “cisma”, como ele mesmo diz. Foi nessa época também - a da partida do avô - que em um dos bailes da vida, Ricardo conheceu Dudu Lima, amizade e parceria que duram até hoje. Dudu Lima ofereceu um desafio musical para Ricardo e Weber: formar um grupo de jazz instrumental. Nenhum dos dois havia experimentado o jazz na vida. Dudu vendeu uma filosofia e todos compraram na hora, formando o Trio Bela Fonte. “Foi impressionante o primeiro som que nós fizemos juntos. Aquilo foi tão profundo que nós mu-

damos a nossa vida, fomos morar juntos”, lembra Dudu. Em Juiz de Fora, estabeleceram uma “colônia musical”, segundo Ricardo, num quarto e sala localizado no encontro da Av. Getúlio Vargas com a Rua Barbosa Lima e desenvolveram um ritmo intenso de shows e composições. Ao lembrar-se dessa fase, Ricardo fica sério. A rotina da época tinha o seu lado negativo no consumo excessivo de drogas ilícitas. Aos 20 anos, aflito com os caminhos que havia tomado, converte-se ao catolicismo, que passa a ter importância fundamental em sua vida espiritual e profissional. Por um tempo, deixou de tocar em casas de shows, festas e bailes. Mas a música permaneceu nas missas e na vida da igreja. A Igreja Católica abriu um novo espaço de trabalho para Ricardo. O afastamento dos palcos fez com que o músico mergulhasse dentro de si e conhecesse um novo público para o seu trabalho de produção e técnico de som: os músicos da própria Igreja. Seu destaque foi tão grande que, nas Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) de 2013, Ricardo Itaborahy ficou responsável pelo palco em que aconteceu o show “Vida In Concert”, com a participação de mais de 40 artistas, contando com Elba Ramalho, Toni Garrido, Geraldo Azevedo e Eros Biondini. *** Ah, então foi assim que começou! As funções foram se acumulando e os dias foram se encurtando de uma maneira tão natural que ele nem sentiu. Se pudesse, faria tudo do mesmo jeito. “Eu sou avenidaindependencia.com | Dez 2015 | 14


meio doido, é natural da minha personalidade. Eu não espero ninguém, eu saio fazendo”, ele ri. Se não existisse Festival de Jazz em São João, ele daria um jeito de produzir, como o fez. Se não existisse escola de música ou associação cultural também, como ele fez.Respira fundo. O trabalho atual toma tempo e exige perfeccionismo de sua parte, como tudo em que se envolve. Está concentrado no novo álbum do Luizinho Lopes, o Pontualmente às 3. Luizinho trabalhara anteriormente com Ricardo em outro álbum e a qualidade do áudio foi tão elogiada por todos os profissionais pelos quais passou depois, que, quando aprovado na Lei Murilo Mendes, o cantor já sabia quem ficaria responsável pelo áudio de seu álbum. No processo, descobriu o músico que Ricardo era e o convidou a tocar. Acabou chamando até para ajudá-lo com os arranjos, dando-lhe liberdade total em suas composições. Pausa no trabalho. Ricardo levanta, deseja boa noite a cada um dos filhos e volta ao home studio. Tem que terminar o tratamento das últimas grava-

ções do álbum do Luizinho. Ficará ali, trabalhando arduamente, até a hora que aguentar. Não se importa em trabalhar tanto: o estúdio fica dentro de casa, uma das melhores decisões que já tomou na vida: ficar perto da família. Mas, falando em trabalho, tocar, para Ricardo, não é trabalho. É prazer. Um prazer pelo qual ele é pago, bem verdade. Além de ainda tocar em casamentos, o pianista possui os seus trabalhos autorais registrados nos álbuns Trino e Em Tuas Mãos e é tecladista no projeto do amigo Dudud Lima, o Dudu Lima Trio. E não para de se aprimorar, não. Atualmente é aluno do curso de Afinação e Restauração de Pianos da Bituca - Universidade de Música Popular, para que ele mesmo possa controlar a qualidade dos instrumentos que toca. Mas é o jeito dele, o que o faz feliz. Ricardo vai abraçando a cadeia produtiva musical, e quando se vê, está fazendo malabarismos com o próprio tempo e sendo mestre em tudo o que faz.

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3 Ricardo Itaborahy com Dudu Lima Trio em apresentação no Canto da Mata (1) / No show de lançamento do CD “Pontualmente às 3” de Luizinho Lopes (2,3) / Ao lado do parceiro Dudu Lima (4) / No palco do Centro Cutural Bernardo Mascarenhas (5)

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Hanseático

A união dos músicos, de Bremen a Juiz de Fora Maltratados por seus donos, um burro, um cão, um gato e um galo, abandonaram o feudo onde viviam e partiram para a cidade de Bremen, um lugar livre. Lá chegando, resolveram fazer morada num casebre habitado por ladrões. Valendo-se de esperteza e da força de seu canto, os animais expulsaram os malfeitores e por lá viveram felizes, até o fim de seus dias. A Avenida Independência foi buscar inspiração na fábula “Os Músicos de Bremen”, dos irmãos Grimm, para transmitir um importante recado ao cenário musical autoral da cidade.










Expediente

Maquiagem e Figurino: JĂşlia Fregadolli e Gabriela Alves Fotos: Pedro Henrique Rezende Modelos: Caetano Brasil, Juliana Stanzani, Kadu Mauad e Laura Januzzi




AVENIDADOSSIÊ

HIP HOP EM JUIZ DE FORA: UM PERCURSO HISTÓRICO DE 1980 ATÉ OS DIAS ATUAIS PMC, um dos primeiros Bboy’s e Mc’s juiz-foranos, introduziu rodas de rima e dança no calçadão da rua Halfeld, em encontros que antecediam os bailes black. A música negra e o breakdancing tomavam conta do Rex Dancing, Turunas, Vasquinho, Montesinas e de outros pontos da cidade: esses foram os primeiros sinais de que a cultura Hip Hop chegava a Juiz de Fora, e de que vinha pra ficar.

DÉCADA DE 80 DÉCADA DE 2000 Paralelamente às demais organizações, surgiu o Ministério Galera de Cristo, criado por Negro Bússola - idealizador do evento Café com Hip Hop e da Casa de Cultura Evailton Vilela, no bairro Santa Efigênia - com a preocupação de conectar a música gospel ao rap.

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A mudança de PMC para São Paulo ocasionou o enfraquecimento dos bailes e rodas, fazendo com que o Hip Hop fosse, de certa forma, postergado, abrindo espaço para que o funk carioca ganhasse força e cada vez mais adeptos.

INÍCIO DOS 90 ATÉ 2007 A coexistência dos diversos grupos contribuiu para a consolidação da cultura e sua afirmação como objeto transformador de jovens da periferia e outras regiões. Em março de 2007, o falecimento de Jagal abalou o movimento local, principalmente a vertente que priorizava levar o Hip Hop para todas as esferas sociais e bairros de Juiz de Fora. O cenário do movimento na cidade ficou restrito aos eventos organizados, principalmente, pela PZP e pelo Ministério Galera de Cristo.

AP

Após a mo Crew se re Associação liderada inic e Igor Tenxu rou suas aç membros e Vozes da Ru vidades até realização d


AVENIDADOSSIÊ

A consolidação do Hip Hop local ocorreu simultaneamente ao nascimento da Mega FM, rádio comunitária do bairro Santa Cândida, criada por DJ Nonô. Com o objetivo de conscientizar, informar e formar cidadãos na comunidade, a rádio era o principal veículo mobilizador dos habitantes da região, e foi a partir dela que o número de simpatizantes do rap – e de rappers – em Juiz de Fora cresceu significativamente. A Mega FM promovia concursos de rap e de dança, nos quais surgiram os primeiros grupos do gênero, como o Rajada Verbal, composto por Telin Honorato, Marcelo, Washington, Marcel, João Ileso - o primeiro nome do grafite em Juiz de Fora - e, mais tarde, por Jagal, importante figura na expansão da cultura para além das periferias. Jagal organizava eventos no centro da cidade para que o Hip Hop tivesse um maior alcance e pudesse ser respeitado por todas as classes sociais.

1997

PÓS 2007

orte de Jagal, o Jotaefe eorganizou, formando a Juiz-forana de Hip Hop, cialmente por João Ileso u. A PZP também encerções, mas alguns de seus estruturaram o Coletivo ua, que mantém suas atié os dias de hoje, como a do Agosto Negro.

A Posse Visionário Antônio Conselheiro, conhecida como PAC, surgiu com o objetivo de difundir a cultura negra dentro da comunidade do bairro Santa Cândida. Devido à divergências ideológicas, a PAC se desmembrou em dois principais grupos: a Posse de Cultura Hip Hop Zumbi dos Palmares (PZP), formada inicialmente por Adenilde Petrina, Thaís, Erê dos Palmares e, mais tarde, por Aice NP, e a Associação Cultural Jotaefe Crew, liderada por Jagal. De um lado, a PZP tinha suas ações voltadas especificamente para a periferia de Juiz de Fora, já que encarava o Hip Hop como cultura negra de resistência, instrumento transformador, de conscientização e de luta contra as opressões vividas pelas pessoas da comunidade; de outro, o Jotaefe Crew buscava a expansão e visibilidade da cultura em toda a cidade. Dessa forma, Juiz de Fora era palco para bboys, mc’s, dj’s, grafiteiros e militantes da cultura que, embora tivessem objetivos e perspectivas diferentes, buscavam o reconhecimento e a legitimação do Hip Hop juiz-forano.

1999 2011

Em fevereiro de 2011, surgiu o Encontro de Mc’s idealizado por Pedro Henrique Rezende, conhecido como Mc Oldi. No início, o Encontro contava apenas com uma pequena roda de mc’s e adeptos da cultura, e hoje reúne de 100 a 300 pessoas e festivais de maior porte.

ATUALMENTE O Hip Hop se faz presente na cidade através de diferentes organizações que estruturam seus eventos e ações paralelamente. Há uma preocupação acerca da união desses grupos, no entanto, as divergências de ideologia não permitem a concretização dessa vontade. O objetivo maior ainda é estreitar os laços entre os coletivos da cidade para que o movimento ganhe força, estabilidade e organização tanto nas periferias quanto no centro, priorizando os cinco elementos da cultura: o DJ, o Mc, o Break, o Grafite e o conhecimento, sem o qual nenhum dos outros faria sentido.

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O verbo faço parte A

palavra pertencimento remete a fazer parte e ser ligado a algo. Aqui essa palavra ganha um sentido mais profundo. Pertencimento significa o esforço empenhado para manter ativa uma ideia que virou evento e consolidou-se como identidade de um grupo. Sejam todos muito bem-vindos ao Encontro de Mc’s e à tentativa de um repórter curioso de descrever o que viveu ao longo dessas suas incursões nas rodas. Satisfação total.

Texto Danilo Terra Foto Pedro Henrique Rezende



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Monge MC, um dos organizadores do Duelo de MCs de Belo Horizonte, comentando sobre problemas que o evento sofreu, durante o debate “Faço Parte Dessa História”. Foto: Pedro Henrique Rezende

Passado 26 de fevereiro de 2011. Essa história, que se entrelaça com tantas outras, começa nessa data, quando é fundado o Encontro de Mc’s de Juiz de Fora. Pedro Henrique Ferreira, que já era Mc quatro anos antes, resolveu encarar o desafio de colaborar para a cena da cidade. “Tive um papo com o Ileso, da Associação Juiz-forana de Hip Hop, e ele me disse: você está há mó tempão na cena, já está na hora de contribuir”. Pertencer também significa ajudar a compor, construir. Oldi, como é conhecido, resolveu deste jeito: pertencer ao Hip Hop, criando um evento que tornou pertencente à cena e que tem várias pessoas a ele agregadas. Outras pessoas também conheceram o rap longe do Encontro de Mc’s e se apaixonaram antes de participarem das Rodas de Sexta, como Pedro Santos, Mc e um dos organizadores do evento: “Eu comecei a ouvir rap antes, mas eu não me aprofundava tanto. Mas no começo, não animava de colar por achar o Encontro daqui cópia da Batalha de Santa Cruz, de São Paulo. Não valorizava os artistas da minha cidade”. Pedro só tomou conhecimento do Encontro em 2014, quando participou de sua primeira roda. Foi uma experiência marcante para o Mc. “Minha primeira roda de sexta foi na PAC [Praça Antônio Carlos], na primeira roda de sexta do ano. Fiquei de canto, mas depois que vim, nunca mais parei de colar”. Depois disso, Pedro começou a entender o que era o Encontro

33 | Dez 2015 | avenidaindependencia.com

e a colaborar aos pouquinhos com o evento. Hoje, ele faz parte da organização, além de batalhar. Giovani Verazzani também já havia se apaixonado pelo Hip Hop antes de conhecer o Encontro. “Fiquei sabendo que estavam acontecendo rodas na Praça da Baleia [centro da cidade], sem som, só na capela mesmo. Eu fui na primeira edição elétrica, no Happy Lanches, no Mariano Procópio e levei minha esposa inclusive”. Giovani, que é professor e poeta, começou a frequentar o Encontro algumas vezes e, aos poucos, foi conhecendo os frequentadores. No final de 2012, o Encontro realizou uma parceria com o Eco Performances Poéticas. “Frequentemente leio no microfone do Eco e um dia li uma homenagem, uma ode ao rap e o freestyle, que escrevi para o Encontro”. Depois disso, Verazzani foi chamado para participar das Rodas de Sexta e das Rodas Absurdas, no bairro Granbery. “Oldi me chamou para participar das Rodas Absurdas, onde sempre aconteciam saraus de poesia. No primeiro, acabou que só eu li”, relembra sorridente. Hoje em dia os poetas fazem fila para ler suas composições. Pertencer também significa somar forças. Seja música ou poesia, no Encontro elas celebram o casamento possível.


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PRESENTE atuação dos Mc’s, força: “Hoje em dia temos uma Giovani destaca uma mudança nas batalhas em relação ao que era apresentado nos primeiros Encontros: “O nível dos Mc’s subiu muito. No início tinham muitas rimas fracas e com o passar do tempo, novas pessoas foram chegando e assim os contatos foram ampliados”. Novas mentes surgiram aos poucos e trouxeram consigo uma imensa vontade de fazer parte do evento. O conhecimento começou a ser compartilhado para cada vez mais pessoas. “Houve um crescimento nas ruas, com mais pessoas indo às rodas”, pondera Verazzani. Para João Victor Silva, ou Jamal, para os mais chegados, as mudanças no perfil do público não foram positivas. “Eu sinto uma vibe diferente quando colo nas rodas, acho que desde o tempo que eu comecei a frequentar, parece que o público ficou mais desanimado, não curte batalha como quando eu comecei a batalhar, acho o que mudou mesmo foi o público”, afirma. Uma nova plateia implica o desenho de uma nova cara para o evento e também de novos desafios. São pequenos e grandes detalhes que vão, aos poucos, transformando o Encontro. Mas, a máxima continua verdadeira: “Quem faz a energia é a plateia”, palavra de Mc! O combustível da roda, assim, é o grito da galera, as mãos para o alto. Até porque o voto popular tem o mesmo peso dos votos dos avaliadores, normalmente Mc’s ou personagens ligados ao Hip Hop. Assim, é preciso mais do que só saber rimar, é preciso saber agradar ao público, impressionar. É a plateia que torna a praça, a rua, um coliseu. Nos primeiros anos do Encontro, a falta de referência e prática tornava os duelos mais inocentes. Com o tempo, o discurso ganhou peso e a

variedade de rimas muito grande, um vocabulário interessante, adquirido com o tempo. Apesar de muita rima repetida, preconceito, a qualidade aumentou bastante”, avalia Oldi. Segundo ele, a internet permite esse desenvolvimento rápido dos Mc’s: “A grande charada da evolução do Encontro foi o grande volume de informação que a internet nos proporcionou”, acredita.

Uma interrupção na história “Não é fácil produzir cultura independente em Juiz de Fora”: declaração impactante e que reflete muito do período negro da história do Encontro. Uma briga entre dois rapazes. Esse foi o start para a suspensão em prol da continuidade. O que levou o Encontro a suspender suas atividades por três meses foi a necessidade de se autorreciclar e recuar em alguns aspectos. Depois deste episódio, outra edição aconteceu no Parque Halfeld, onde compareceram apenas os seguidores mais fiéis. Pouco tempo depois, com a morte de Aice NP(colocar aqui o link para o perfil que Carime fez), um dos fundadores das Rodas de Sexta e grande nome da cena Hip Hop juiz-forana, foi decretado o período de retaguarda. “O Encontro parou para se reformular, repensar e buscar alternativas para que a ocupação urbana não seja ameaçadora para a população. Ameaçadora deve ser, mas não para a sociedade, e sim para o sistema de opressão”, afirma Giovani Verazzani. Oldi pontua que “não existia mais segurança em roda, uma situação insustentável, completamente sem rumo”. Segundo os organizadores, o uso de bebida alcoólica e drogas tornou-se excessivo, bem como as confusões que aconteciam, muitas vezes, com pessoas que

Com o tempo, as Batalhas começaram a encher e receber diversos públicos, o que implicou uma nova dinâmica para o Encontro. Foto: Pedro Henrique Rezende.

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não frequentavam os Encontros e que estavam no mesmo lugar onde aconteciam as rodas. “Foi uma merda. Como Mc, sinto falta das batalhas e não ter é ruim. Como organizador, foi um momento de preparação, um momento que precisava acontecer”, reflete Oldi. Deste período de introspecção, saíram decisões importantes, como o repúdio ao preconceito dentro das batalhas e a seleção ainda mais minuciosa de jurados. “As sextas eram vazias, independentemente de onde eu estava, era essa a sensação”, afirma o Mc. O período foi positivo no sentido de resgatar o sentimento de pertencimento do Encontro com o Hip Hop. Para eles, as Rodas de Sexta hoje “são muito mais Hip Hop”. Neste período de intensa reflexão, os pertencentes ao Encontro fizeram enorme diferença. A participação maciça na campanha “Faço Parte Dessa História”, que promoveu o debate que inspirou essa reportagem (link pro ensaio que saiu no Blog), além de outras ações, permitiu que o evento voltasse a acontecer e ganhasse maior consistência. Oldi confessa que não tem palavras para descrever a satisfação de ver o Encontro de Mc’s de volta. Para ele, o que resume o retorno é o sentimento de recuperação.

Futuro FUTURO De volta, o Encontro olha para as suas conquistas e já se sente personagem de uma nova realidade. Mas é hora de olhar para o futuro, alçar voos maiores. “A sociedade ainda não sabe o que é um rap, nunca deu importância e também não quer pensar naquilo”, afirma Giovani. O Encontro ainda luta por espaços e pela ocupação dentro de um 35 | Dez 2015 | avenidaindependencia.com

sistema social que legitima poucas manifestações culturais e exclui outras. Para ele, a sociedade ainda olha com maus olhos os jovens que se expressam através do rap. “Tem uma parte da sociedade que apoia o Encontro e outra tem uma visão totalmente errada sobre”, acredita Jamal. Pedro Santos e Oldi compartilham dessa mesma visão. O superintendente da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage - a Funalfa -, Toninho Dutra, avalia que o processo pelo qual o movimento do Hip Hop tem passado é semelhante ao que passaram estilos musicais como o samba, que era negligenciado em sua fundação e ganhou respeito e admiração dos mais diversos setores sociais. Para os organizadores do Encontro, problemas estruturais, como a falta de banheiros químicos e policiamento, são os maiores desafios na realização do evento. “Nos falta conhecimento legítimo, além de som, tenda, e tudo mais. Para mim, o mais importante seria uma sede. Falta um espaço para organizar as reuniões, guardar os equipamentos”, defende Oldi. Pedro Santos acrescenta que os organizadores necessitam de um maior apoio do poder público para conseguir melhorias, seja em relação às burocracias ou de infraestrutura e segurança: “O governo precisa facilitar o nosso acesso às coisas”. Alguns projetos envolvendo o Hip Hop são aprovados anualmente na Lei Murilo Mendes, uma das ferramentas de fomento da cena cultural da cidade. Para Toninho Dutra, o relacionamento entre a Funalfa - que gerencia Lei -, o Encontro de Mc’s e a cena Hip Hop de forma geral é positivo. “Temos uma abertura para com essas cenas e eles tem liberdade e espaço para conversar e propor


projetos”, afirma ele. Segundo Toninho, não existe a possibilidade de apoiar todos os projetos da cidade e, sempre que possível, auxílios pontuais são feitos. O superintendente destacou que a aprovação do Plano Municipal de Cultura, documento que permite a inserção de Juiz de Fora no Sistema Nacional de Cultura (SNC/MinC), e que traz diretrizes para o mapeamento e investimento na cultura da cidade, seria um enorme avanço para a cultura em sua totalidade. Apesar dos dilemas e cenários adversos para o desenvolvimento e valorização da cultura Hip Hop na cidade, o Encontro se mantém com a garra de seus colaboradores. “É muito importante destacar o trabalho da equipe que organiza o Encontro. Sem eles, não conseguiríamos”, confessa Oldi. São os moleques e molecas que resolvem não só pertencer ao Encontro, mas colaborar para que esse sentimento se esparrame pelas ruas de Juiz de Fora. E não se pode esquecer da figura que dá nome e vida ao Encontro: o Mc. “Para mim, todo Mc é um poeta, mas não sei se todo poeta é um Mc”. Giovani brinca com uma tônica que reflete sobre os vários elementos relacionados no jogo das rimas improvisadas. “Quero detonar o outro

Mc. Quero trazer novidade, quero fazer uma rima maneira, agitar a galera. Me passa um universo inteiro em 45 segundos”. Assim define Oldi tudo o que sente enquanto batalha. “Passa um turbilhão de ideias, é uma coisa única. Não tem comparação o sentimento de honra quando se ganha uma batalha. É inexplicável”, declara Pedro Santos. Verazzani define participar do Encontro como uma espécie de devajú, aquilo que sempre sonhou em ver na cidade. “Não que não existisse antes. Existiram pessoas que plantaram sementes que estão germinando. E o que vamos fazer com essas sementes que estão germinando?”.

“A diferença entre o poeta e o MC está no bit que não tá aqui, na levada da base se preferir.”

Ode ao Encontro de MCs – Giovani Verazzani

Giovani lê poemas em todas as Rodas de Sexta e acredita que o Mc é o poeta de rimas improvisadas. Foto: Pedro Henrique Rezende.

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Como não entrevistar Aice NP Texto Carime Elmor Ilustra Daniel Slim

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ara de coração aberto a qualquer sujeito que estiver disposto a levar o Hip Hop à diante. Descomplica limites, enxerga além dos véus. Sua missão parece ser unir todos os grupos, pôr “cara a cara” os meninos da batalha do passinho com os b-boys, pessoas que dificilmente fariam arte juntas – embora ambas digam o mesmo ou tenham origens condizentes, são culturas periféricas que sofrem o mesmo tipo de opressão. Ele é essa corda fina que se amarra à tudo, guiado pela vontade sublime de fortalecer o Hip Hop juizforano. Quem me dera ter o conhecido pessoalmente, e não apenas por palavras escapadas da boca de outras pessoas próximas a ele. Quando suas músicas preenchem o ambiente, tudo muda. Ele chega e é notável: a personificação do Mc, do Rapper e de toda manifestação social e artística atrelada à cultura. Existência dedicada por inteiro ao Hip Hop, até a última vez que inspirou e encheu seu pulmão de ar. Sua rima é ele, que também é seu estilo de vestir e de interagir com o público. Seus pensamentos mais variados formam uma comple-

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xidade ímpar. Une o funk, o rap e o break em um só projeto – o “Adoro essa Vida” –, que leva essa mistura para praças de todas as zonas da cidade, ao invés de brigas e tiro, gangues rivais se enfrentarem pela arte. Resgata a raiz do Afrika Bambaataa, mostrando que com batalha artística há evolução, e chega a fazer rimas em Miami Bass. Não é mais possível tatear a pele fria que lhe deu o nome. Essa foi a reportagem mais difícil que já encarei. Cheguei a pensar por vários momentos que o mais coerente seria a pauta cair, mas em seguida vinha logo esse pensamento: “se eu quero ser jornalista, tenho que encarar”. Depois, conhecendo Aice pelas palavras e também pelos olhos cheios de água, misturados com boas risadas, vi que persistência é o maior legado que ele deixou. Ir à luta. O período de apuração, ou melhor, de tentativa de mergulhar em quem é essa pessoa, sem poder ao menos lhe dar um aperto de mão, foi um misto de sentimentos. O riso solto e espontâneo de quem conversava comigo, era depois carregado da triste lembrança. Um olhar silencioso me encarava de travar o coração, deixando-me desconser-


AVENIDADOSSIÊ tada. A cada vez que chego mais perto dele, mais aumenta o medo de não conseguir contemplar quem é esse, que para tantos é um mestre. Samba em espaços antagônicos, enxerga o mundo e as relações humanas com a mente livre, descategoriza qualquer tentativa de imposição de barreira. Sua missão é a aproximação de vários grupos, já que, para ele, todos são uma coisa só: Hip Hop. E quando vê brilho nos olhos de um menino, o encoraja a seguir sendo protagonista de sua vida. Antes de se tornar Mc de rap, Aice era Mc de funk e tinha o grupo Morfos Ragga – um reggae dançante. Desde essa época, sua forma de expressão destoava dos outros funkeiros, tanto pelas letras, quanto pelas roupas e maneira de se apresentar. Através da Rádio Mega, descobriu o amor pelo Hip Hop. Sem abandonar os outros ritmos periféricos, colocava em seu programa - o “Som das Quebradas” - desde rap aos sambas de Bezerra da Silva. Chamava Adenilde Petrina, líder de movimentos da cultura negra, que deu início à rádio comunitária junto ao seu irmão, pela forma mais carinhosa e forte entre as relações humanas: mãe. Enquanto eu conversava com ela e mais três meninos do Coletivo Vozes da Rua - Marcos Vinícius, Wellerson e Sirlan, que assim como a Mega, são da região do bairro Santa Cândida, ao perguntar sobre a personalidade de Aice, risadas começaram a aparecer junto à lembrança de momentos em que ele estava presente, enchendo o espaço de cor. Foi lá também que conheceu a Mc Xuxu, enxergou talento e sempre a incentivou a fazer funk sem perder a mensagem, encarando seu verdadeiro eu. Dessa amizade, muitas parcerias musicais surgiram.

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“O Aice tinha garra e determinação e, além disso, era uma pessoa mais pra frente, não existia padrão, fronteira. Tudo o que ele tinha de luta ele colocava nas letras. Quando um sistema fecha as portas para um negro, um transexual, Deus inventou a arte como saída para nós expressarmos e mostrarmos nosso valor.” Mc Xuxu

Quando a PZP – Posse de Cultura Hip Hop Zumbi dos Palmares - ocupava as batalhas, com performance, atuação e pregando a pacificação, todo mundo parava. Aice e seu parceiro Waldir de Freitas, mais conhecido nessa época como Erê, faziam juntos vários shows, em que além das músicas, havia uma teatralidade na intenção de educar.

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“A gente batia de frente com os racistas e nesse dia estava presente lá a comunidade do São Benedito inteira, eu consegui ingressos, nós descemos com a favela, meu irmão! Arrumamos ônibus, conseguimos fazer um diferencial. Só vou falar algo para você, é muito forte, foi muito emocionante. A PZP, eu e Aice, tudo era muito espontâneo. A gente aparecia do jeito que era.” Waldir (Erê)

De fato, a real intenção da Posse era transformar a mentalidade dos jovens. E espalhavam essa convocação: “Que tal vocês trocarem as drogas e a violência pela arte e pela cultura Hip Hop?”. Quando Erê fala comigo sobre Aice, usa apenas o pronome “nós”. A PZP se fundia em um só sujeito que falava para a rua escutar um rap de conscientização que dizia respeito ao morro, à periferia, aos problemas sociais vivenciados a cada dia, acreditando veementemente na força do Hip Hop para transformar a vida das pessoas. Foram juntos que PZP e a Zumbreak ocuparam pela primeira vez o palco do Cine Theatro Central. No entanto, Aice não se fecha, não: é uma miscelânea de samba, funk, pagode e rap, ritmos que dão chance aos músicos e artistas da comunidade de colocar para fora suas produções e mostrar a que vieram. Aice NP – Negão Problema, não deixa o sonho morrer, cria ainda mais anseios. Todo aquele que se deparou com ele, levou algo de bom. Seu carisma deixa qualquer outro Mc embasbacado. As pessoas se envolvem nesse dom de fazer free style e músicas únicas cabíveis em ritmos diversos. Som maleável, versátil como seu estilo: de banguela funkeiro que cantava virado

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AVENIDADOSSIÊ de costas para o público, passando pelo estilo pagodeiro com roupas e sapato inteiramente brancos, da cor do boné que ganhou do Mc Marechal, Aice às vezes chegava assim no meio de uma batalha de Mc’s. Outras, era também o estereótipo mais caricaturado de um rapper, com aquele andar marrento, mas que por trás da estampa “Cabuloso” tinha um sorriso frouxo e cultivava humildade. Já com os dentes no lugar, era raro não vê-lo com um sorriso largo no rosto, esbanjando alegria, alegria. É inigualável a qualquer Mc de Juiz de Fora e até brasileiro. Seu jeito e pegada estão embebidos em todos os signos que carrega. Singularidade construída na pluralidade. O visual carregado, caricaturado, não faz dele um personagem, ele é real quanto à autenticidade exibida. Para compor essa figura, sua voz é fora do comum de tão grave, com uma leve rouquidão. Só ouvindo suas músicas para entender como essa era uma característica tão marcante nele.

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“O amor da vida do Aice, não era uma pessoa, uma mulher, era o Hip Hop, essa é a minha impressão. Somos frutos de Aice, do cabuloso e vamos carregar ele aí para qualquer lugar, vai ficar pra sempre. Ele é o cara! Não deixou só a família e os filhos, mas uma legião de amantes da cultura Hip Hop.” Oldi

O que me surpreende nas entrevistas é que ele ainda é falado no presente, uma prova de que Aice está vivo no Hip Hop em Juiz de Fora. Suas músicas provocam um sentimento muito forte, ele é a massa, o popular. Continuou sendo o negro da periferia, mas se dispôs a sair de sua zona e expandir outras iniciativas que carregam como fiel intenção dar continuidade ao todo que é o Hip Hop. Aice esteve presente no primeiro Encontro de MC’s da cidade. Foi um pilar para a construção desse movimento imaginado por cabeças da nova geração. Não se restringia somente à periferia, pluralizou seu trabalho 39 | Dez 2015 | avenidaindependencia.com

e conseguiu atingir toda a cidade. “Cabuloso”, “Vagabundo” e “Menina Má” não paravam de tocar. Fazia questão de passar sua experiência para os novos Mcs, por isso, se Aice considerava Adenilde como mãe, ele com certeza é uma figura paternal de todos ali, que enxergavam nele a inspiração e o norte que queriam seguir para se desenvolver como Mc de rap. Foi exatamente isso que J.Vito me contou sobre sua última conversa com Aice: ele o chamou de pai quando se encontraram e disse que enxergava nele o que queria poder alcançar um dia. Para Mc Oldi, ele foi como um furacão que passou por sua vida e o modificou por completo. Em tantos outros espaços de Juiz de Fora, existem pessoas que aprenderam com Aice, seja em uma conversa, no exemplo, ou em uma convivência mais frequente, que é preciso acreditar e seguir em frente. Ele é o impulso principal para o Hip Hop de nossa cidade crescer e alcançar muitos mais ouvidos.


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“Outro moleque se foi, agora virou tendência Profissional do lazer marca ponto na ausência E o mesmo até sem ver troca tiro na sequencia, o resultado de que é mais uma penitencia Outra mãe que vai sofrer e não tomam providencia Tornam as coisas fáceis como impossíveis, tornando nossos jovens como peças substituíveis Eles acham isso coisa normal destroem a si mesmos de uma forma natural. Mais uma lágrima que cai, enquanto do outro lado um moleque vai embora E deixa quem ama, que chora.”

“Mais uma Lágrima”, última música de Aice NP. Participação de Telin e RT Mallone. Produzido por Everton Beat Maker. avenidaindependencia.com | Dez 2015 | 40


“Eu não consigo parar de rimar, se eu parar de rimar, eu fico sem ar”. Texto Carime Elmor Foto Carime Elmor/ Cecília Samel

Mc Thainá mostra que é possível descontruir: é a exceção diante de tantos Mc’s do gênero masculino. Ela recebeu-me gentilmente em sua casa para conversarmos sobre sua missão no rap de Juiz de Fora.



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Carime Elmor (Av. Independência): Há quanto tempo você faz parte do movimento Hip Hop de Juiz de Fora e frequenta as batalhas de improviso? Mc Thainá: Faz uns três anos e meio que eu frequento. Mas eu já tinha contato com o rap, porque eu escutava na adolescência Planet Hemp, Marcelo D2, Racionais e Thaíde. A minha primeira vez em uma batalha foi na Lapa, onde uns Mc’s estavam fazendo improviso em cima de batidas de Sound System. Lá eu conheci o Igor Bidi, que fazia umas rimas sobre espiritualidade, liberdade e positividade. Eu achei genial porque ele tinha o poder na mão: o microfone. Voltei pra Juiz de Fora e o Encontro de Mc’s já estava acontecendo. Depois de um tempo, resolvi pegar o microfone e os meninos me acolheram, principalmente o Oldi, ele é quem puxa esse bonde. Batalhei pela primeira vez na Casa Absurda no final de 2012. Carime: Quando você está fazendo sua improvisação ou escrevendo suas letras, o que mais te motiva? Mc Thainá: Poder criar uma reflexão para a transformação. As pessoas precisam ter a consciência de que elas são sujeitos ativos no processo de criação do mundo. E eu estando ali, fazendo meu papel, estou participando ativamente disso. Foi um caminho que eu escolhi através da arte. Eu gosto muito da linguagem verbal, acredito que eu tenha facilidade para poder me expressar através da fala. Carime: Indo às Rodas de Sexta eu percebi que o número de meninas que frequentam, somente para assistir, é totalmente desproporcional ao número de Mc’s do gênero feminino. Você acha que as mulheres se sentem um pouco intimidadas por haver uma presença majoritária masculina? Mc Thainá: Pelo o que eu ouço falar, acredito que sim. Eu mesma quando entrei para o movimento, querendo ou não, por mais que ele seja

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aberto, sofri algum tipo de preconceito. No início, como tem muito homem, as pessoas comentam: “ela só quer participar por causa de interesse nos caras”. O machismo é muito arraigado, as pessoas criam esse raciocínio automaticamente. Pra você desfazer, você tem que persistir ali. Carime: Nas batalhas de sangue os jurados deixam claro que será descontado ponto do Mc que cometer qualquer tipo de preconceito racial, machista ou homofóbico durante sua improvisação, podendo causar até sua desclassificação. Isso acontece em qualquer batalha ou só em Juiz de Fora? Mc Thainá: Aqui em Juiz de Fora essas regras foram sendo formadas através da observação de que as pessoas estavam falando coisas que geravam problemas. Então é bom deixar claro no começo, porque ferir as pessoas não é mesmo a intenção do Rap. Apesar de ser uma batalha de ataque e resposta, tem que haver um limite. Sendo um exemplo na batalha, serve de exemplo para todos na vida. É um estilo de educação dentro da roda de improviso. Carime: Não é raro encontrar rappers, principalmente internacionais, fazendo músicas machistas. Como é a relação o Mc homem e a Mc Mulher em Juiz de Fora? Existe uma relação de poder entre os gêneros? Mc Thainá: No início, como as pessoas não me conheciam e não sabiam das minhas reais intenções, já teve muita gente que tentou me discriminar, soltar piadinhas. Quando o tem-


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po foi passando e as pessoas viram que não havia nenhuma máscara minha pra cair, começaram a mudar. É uma coisa que eu lutei, porque é a realidade da nossa sociedade patriarcal. E tem muitas músicas de Rap que pregam isso, até crimes hediondos. Muitos Hip Hops americanos fazem isso e aqui no Brasil tem muita gente que compra. As pessoas nem percebem o que elas estão fazendo de tão banalizado que está, de tanto repetir, passa batido. Mas para nós mulheres não, porque a gente está sofrendo na pele, né? Carime: Diante de tanta heterogeneidade, como a rua e o Encontro se fortaleceram para que se tornassem uma família? Mc Thainá: Às vezes a gente usa o Free Style para debater pontos de vista. Ninguém tem que pensar igualzinho a ninguém, mas nas rodas você pode expor seu ponto e por mais que o outro não concorde, ele expõe à maneira dele e fica todo mundo entendido. Por isso que a gente fala “Máximo Respeito no Rap”. O Hip Hop é uma coisa que quando você começa a vivenciar, você fica apaixonada. Eu não consigo parar de rimar, se eu parar de rimar, eu fico sem ar. Mas há muita falta de apoio, se a gente não se unir nada acontece. Carime: Como acontece a batalha do conhecimento? Ela existe aqui em Juiz de Fora desde quando? Mc Thainá: Na batalha do conhecimento, a plateia sugere temas que você tem que discorrer sobre eles no seu Free Style. Faz o Mc ter que estudar, porque estamos sujeitos a falar sobre qualquer questão pertinente ao público. O Hip Hop é uma oportunidade de autoconhecimento e produção de aprendizado muito grande, porque se você não estudar, passa vergonha. Se o seu vocabulário for muito restrito, você fica repetitivo. Tem que estar muito ligado também nos temas atuais. É um jeito de você querer crescer tanto na arte, quanto no conhecimento. Te incentiva à busca e não para. Você fica viciado em querer escrever e ler. O Hip Hop muda a sua vida. Carime: E qual a importância para você, que também é assistente social, de participar do Educarte – Hip Hop + Arte?

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AVENIDADOSSIÊ Mc Thainá: O projeto tem tudo a ver porque eu acredito: o estilo de ensino nas escolas, hoje, não funciona muito bem. Como diria Paulo Freire, é um estilo bancário, de imposição de conteúdo, e não de criar reflexão pra poder extrair das pessoas o que já é inato. A partir do Hip Hop, eu descobri que as pessoas podem ser mais ativas, mais sujeitos desse processo. Antes de acontecer o encontro, a gente passa nas salas de aula perguntando se tem alguém que faz poesia ou alguma outra forma de manifestação artística. Nossa proposta é explorar uma nova forma de educação, que tenta extrair o conhecimento interior de cada um. E tem resultado, várias crianças me adicionam no WhatsApp e no Facebook, gravam rima e mandam para mim, perguntando: “e essa aqui, o que você achou?” Teve um colégio que depois que o Educarte teve lá, criou um Sarau de Poesia, incentivando os alunos a se expressarem e ajudando a escola a inovar. Carime: Aqui em Juiz de Fora só existe você de mulher batalhando hoje em dia? Mc Thainá: É. Só tem eu. Há um tempo, tinha vindo uma menina do Rio morar aqui, ela até batalhou algumas vezes, mas voltou e mora em Niterói. Como sou só eu, eu tento incentivar ao máximo, vou às escolas, converso com as meninas, passo umas dicas, mas ainda ninguém animou ou teve coragem. Eu fico tentando pilhar. Acho que vou formar um grupo de meninas, marcar no grupo do Encontro de Mc’s, vê se elas estão a fim de encontrar para gente fazer uns Free Style. Carime: Nas suas músicas e rimas, você costuma trazer temas relacionados ao empoderamento das mulheres? Mc Thainá: Eu procuro trabalhar esse prisma sim, mas o ponto principal que eu tento buscar é o do respeito na interação humana, de modo geral. Como é uma realidade essa questão do gênero, eu tento abordar isso nas minhas rimas, inclusive em algumas batalhas do conhecimento que participei surgiu essa temática. E como já estou rimando há alguns anos, os meninos me indicam ou as próprias meninas que tem interesse me procuram pra conversar sobre as rimas e alguns pontos pertinentes ao tema e sobre a cultura Hip Hop. Eu vou sugerir um encontro feminino de rap, para poder passar tudo o que eu já aprendi. A gente tem um grupo de meninas daqui de Juiz de Fora, o Delica Treta; somos eu, a Pekena, que é grafiteira, a Cris Assis, que fez o projeto Educarte, a Débora, que é uma menina que não participa das batalhas, mas tem umas letras maneiras e outras que participam das 45 | Dez 2015 | avenidaindependencia.com

mais variadas formas. Estamos nos comunicando cada vez mais intimamente através de um grupo no facebook criado pela Isabella Campos, organizadora do Encontro de Mc’s. A gente tá pensando em um evento para o dia Internacional das Mulheres do ano que vem, com debate, Free Style, oficina de grafite. Tem várias meninas que fazem rimas escondidas, então, se as mulheres se unirem, podemos nos fortalecer e servir de incentivo umas às outras. Carime: E você, inclusive, foi de encontro a todos os estereótipos. Além de ser mulher, é branca, formada na universidade e não é da periferia. Mc Thainá: Eu sofro preconceito por não ser da periferia, e sim, além de eu ser mulher, eu ainda sou branca e classe média, mas eu tenho que lutar para fazer o que acredito. Eu quero ir lá e mostrar que é possível mudar a vida deles, porque pra mim nada caiu do céu também. Mas tem uma galera que quer dividir o movimento. Eu entendo, mas tudo que fragmenta e segrega não me interessa, eu luto pela unidade. Eles têm uma vivência na pele ali do que são as mazelas sociais. O Hip Hop é uma necessidade da periferia de se expressar, de ser ouvida, de se manifestar. Por isso escolhi trabalhar no bairro Santa Cândida, que é o berço da cultura Hip Hop daqui. A vivência ali é muito mais importante para eu fazer minhas letras do que só o conhecimento acadêmico, porque escrever alguma coisa que você não vive, não enxerga, fica muito superficial.


Agradando a deus do jeito que o diabo gosta

AVENIDASIC

Texto e foto Túlio Mattos

Surgiu em uma moda diferente, não de viola, de gente. Uma igreja muito além do convencional que sabe bem que Deus tem um variado gosto musical. “Antes eu ouvia muito é... esses rocks mundanos, tipo, bem pesados, até satânicos. Enfim, quando eu descobri que eu poderia não mudar o meu estilo de ouvir músicas e adorar a Deus ao mesmo tempo, me chamou muita atenção. Aí eu disse assim: ‘não, eu quero isso. Eu quero…’. Porque mesmo eu ouvindo aquelas músicas, eu me sentia muito vazia e eu queria me preencher, só que eu não queria sair do meu estilo. Aí eu vim pra cá e pensei: ‘nossa, eu posso ser cheia do Espírito santo, eu posso ser cheia do bálsamo de Deus e ao mesmo tempo eu posso ser do mesmo estilo porque Deus me aceita do jeito que eu sou’, é por isso que eu tô aqui hoje. Aqui eu aprendi a tocar bateria mais... pesada sem ser julgada” Linda Braga

Deus toca na vida delas, porque os louvores também costumam ser muito diferentes do que as igrejas tradicionais tocam e todo mundo aqui sempre se esforça pra ler a palavra sempre, continuar orando, perseverando e fazendo isso tudo em forma de música.” Sthanier

O homem se desafoga quando canta E da cantoria nasce a farra. Agradecem por essa loucura santa E deixam as distorções só pra guitarra.

A palavra não é pregada, é cantada. A criação brinca de criador e já deixa a afinação mais pesada. Pesada como a palavra do Senhor.

“Eu fui sempre de uma igreja tradicional, mas sempre tive vontade de conhecer o ministério Caverna do Rock, saber o que que realmente acontecia aqui. Um dia eu fiquei sabendo que tinha um evento, vim, gostei, vi que realmente as pessoas gostam de rock, são pessoas animadas e têm um compromisso real com Deus, têm algo verdadeiro, né? As pessoas entram aqui e falam o que realmente são e buscam a Deus de verdade e fazem um som diferente do convencional. Hoje eu sou professora aqui, faço estudos bíblicos e gosto muito dessa... dessa fuga do convencional, né? Tocar mais pesado só mostra o nosso gosto musical, nada mais.” Ísis de Oliveira

“Então, fazer música aqui na igreja Caverna do Rock é um prazer diferente, porque você não faz a música só pra você, você faz a música pra agradar a Deus e nisso você se sente bem melhor, porque isso santifica o nosso espírito, santifica nossa vida. E até quem ouve também, muitas das vezes, o espírito santo de

Se assustar é normal, é até preciso. Não tão preciso quanto a bateria que mede o compasso. O mais difícil é sair no prejuízo, É encantador como o metal se encaixa naquele espaço. avenidaindependencia.com | Dez 2015 | 46


AVENIDASIC “Fazer música aqui no Caverna é... algo bem diferente. Ainda mais pra mim, que venho de uma igreja bem tradicional, sabe? Onde se você ligasse uma guitarra distorcida e tocasse uma bateria mais pegada, os irmãozinhos já queriam expulsar demônio de dentro de você. Então, tipo assim, quando eu cheguei aqui foi tipo... sei lá, foi tipo ‘uau! Que que esses caras tão arrumando, cara?’, foi amor à primeira vista. Então, cheguei, fiquei, tô aqui e continuo juntando o útil ao agradável. As parcerias que a gente faz também são muito importantes, todo mundo faz som com todo mundo e isso que é bonito” Breno Zeferino

Original e revolucionário É até difícil imaginar esse cenário. Um cenário em que, quem diria, O gutural fala a língua da bíblia. “Tudo começou há mais de 15 anos atrás. Era um grupo de pessoas que se reuniam no último andar de um prédio, ali próximo ao Morro da Glória. No começo começou a chegar cabeludo, punk, gótico... eu tinha costume de andar de coturno de exército, calça rasgada, parecia um mendigo. Lembro como se fosse hoje que todo mundo tinha medo de mim, ninguém queria sentar do meu lado no ônibus (risos). E foi assim que Deus começou a me usar, usar os rejeitados e humilhados que começaram a aparecer. Ali a gente assistia fitas de vídeo K7 na época e trocávamos gravações, ouvíamos música, comia pipoca, tomava refrigerante e orávamos. Um dia apareceu um cara que era bruxo, que subiu sem saber o que era, achava que a gente era tudo doidão igual ele, de repente começou uma oração e ele caiu endemoniado no chão. A barulheira foi tanta que os vizinhos se assustaram com os berros e com aquela galera cabeluda subindo e descendo. Só pudemos fazer mais uma reunião no prédio hahaha. O espírito santo nos mandou para a praça Agassis, ali perto da TV Panorama, onde o rapaz aos poucos foi aceitando a palavra de Deus. Gente de tudo quanto é jeito continuou a aparecer e, por ser na praça, tinha até mais gente. Fazíamos aquela roda imensa, imagina só, aquela galera toda de preto, com livro preto... quantas pessoas não se assustaram? Houve até um fato engraçado... duas jovens, filhas de pastor, estavam revoltadas e queriam se afastar de Jesus, diziam que iam se tornar bruxas (risos), e olharam pra gente e falaram ‘olha lá uma galera do mal, vamos lá’, e chegaram e ouviram a gente falando aleluia e graças a Deus... no final elas caíram de joelhos porque não conseguiram fugir do caminho de Deus. Veio a época da 47 | Dez 2015 | avenidaindependencia.com

chuva e nós fomos para uma bancada de frente para a praça, mas o lugar era muito pequeno e o número de pessoas foi crescendo. Até que nós fomos para um galpão abandonado em frente ao Sport, era uma caveira de galpão, e ali nós fazíamos as reuniões. No começo a polícia chegava lá toda ‘mão pro alto, mão pro alto!’ e a gente tentando falar de Jesus e eles não entendendo nada porque lá era um lugar conhecido pela depravação, uso de drogas, prostituição... com o tempo eles entenderam que não fazia sentido bater lá. Depois de quatro anos, Deus nos mandou orar pra encontrar esse lugar em que estamos hoje. Passando pelo Vitorino Braga, eu encontrei um senhor barrigudo em frente a um lugar e perguntei pra ele se ele sabia se tinha alguém alugando aquelas lojas. Depois de uma hora ele me contou que ele era o dono de lá e perguntou quando a gente ia começar, mas nós não tínhamos dinheiro nenhum. Ele falou que nós pagaríamos o que pudéssemos. Hoje, depois de muita glória, nós ainda estamos aqui na Rua do Monte, com tudo reformado e ainda somos conhecidos na cidade por sermos loucos demais em termos de aparência. Até hoje a Caverna do Rock é o lugar mais underground da cidade e já recebemos bandas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória e até bandas do Sul do país que viajaram três horas de van para tocar com a gente hahaha. Aproveito para chamar a todos que estão lendo essa matéria a conhecer a Caverna do Rock e que Jesus abençoe a vida de todos vocês, tá bom?” Pastor Simon *A Caverna do Rock fica na Rua do Monte, 310, bairro Vitorino Braga, Juiz de Fora - MG e funciona às terças, quintas, sextas, sábados e domingos, além de fazer eventos com convidados de fora. A entrada é 1kg de alimento.


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Uma tentativa arriscada de transar o New Journalism* com a arte de bater cabeรงa Texto e foto Tiffany Gonรงalves


AVENIDAFESTIVAIS Juiz de Fora, 1985. Ou 1998. Ou 2015.

estava presente no CCBM, em peso naquele dia. Era uma alegria sem precedentes. Passou toda a sua infância vendo as bandas tocarem naquele palco. Aquele era seu dia de tocar. E tocou! Como tocou! A banda tinha uma energia, sabe? A coisa estava fluindo de um jeito que ninguém entendia, mas que era bom demais. – Não tem como explicar, você só sente e pensa “é isso aqui mesmo que eu devia estar fazendo!”. E é o que faz, até hoje. Inclusive no Bandas Novas, está lá, tocando e divulgando o som para quem quiser ouvir e não tiver exagerado no Cantina da Serra. Ei, ei, ei! E você? Saindo aí despercebido, meio de mansinho? Gostou do show? – Gostei. Você vem sempre? – Sempre. Desde quando? – Ah, querida, eu tenho 60 anos. Venho desde o início. Unhas pintadas de preto, pulseiras de spikes, tatuagens, os cabelos brancos, uma cartola, coturno nos pés, uma camisa de banda – que eu desconhecia – e duas muletas. Aquele senhor num canto do auditório, em pé, mais perto do palco, assistia atento a todos os shows. Parecia satisfeito, mas nenhuma expressão era percebida em seu rosto já marcado pela idade. – Senta aqui, vamos bater um papo!, disse. Ah, o rock é a melhor música que tem, é uma forma de viver, cara! Sempre foi rockeiro.

Era uma geração que não tinha muita coisa, né? Naquela época era tudo bem limitado. Adriano Polisseni começou a montar festivais com 20 anos de idade porque queria tocar, queria fazer um som. Então criou o seu espaço para isso. E, nossa, que loucura que era! Bom demais! Mas não pense que era moleza, não! Era cortar jornal na mão para fazer cartaz, era brabo divulgar um show. A parte boa era que se enturmavam, faziam tudo junto e formavam as “trupes”, como falavam. O ruim é que a cidade já se dividiu naquela época: galera Zona Sul, galera do Centro e uma menor na Zona Norte, mas que de vez em quando misturava e ficava bom. Com a tecnologia a coisa foi mudando – Falando em tecnologia, esquece o celular e continua lendo aqui, oh, a história vai ficando boa. Prometo –, já não se encontravam, não precisavam estar todo o tempo juntos. E aí a coisa deu uma desandada. Numa noite, todo mundo reunido, o Marquinho sacou que estavam “quebrados”. – Puta que pariu! E agora?, pensaram todos. Precisavam pagar as contas senão iam perder o estúdio onde faziam o som. Imaginem só! Sem estúdio, sem som, sem festival. Depois de muito pensar e debater surgiu o: – Vamos fazer um festival integral! A gente chama todo mundo, junta tudo, bota inscrição e arre– Primeira vez que vi o Led foi emocionante. cada uma grana. Sabe All of My Love? Queria cantar pra mulher que eu amasse verdadeiramente. Ainda não cantei. Fui Aí bombou! no Rock in Rio ver o Metallica esse ano, sozinho, peguei o ônibus e fui. Mas não igual antigamen– A gente tinha certeza de que iria dar certo, o te. Antigamente eu tinha um cabelão, vi Cazuza, Bandas Novas pegou o Rock da Lajinha. A gente Queen e um tanto mais. Era diferente. Tinha lama botava 10 mil pessoas lá dentro, porque não tinha e pó. Hoje tem grama sintética e montanha-russa. outra coisa, não tinha esse monte de opção, ficava Mas é bom, foi bom também. uma loucura. Depois do segundo ano que foi a luta Cacete! Ele tacou a guitarra no chão! Você viu? do Bandas para sobreviver. Mas estava lá, fizemos – Ah, isso sim! Isso sim é rock’n roll! Você acaa festa. bou de vivenciar o rock! Antigamente era isso, era Na época ele tinha certeza de que iria dar certo, vivo! hoje já não é certo de que a próxima vá dar. Culpa O show continuou, para todos. Tentando fazer o tempo, a tecnologia. Antes era show toda sema- esse tal de rock’n roll (sobre)viver. E no próximo na, esse ano só tem quatro bandas novas. Diz que ano? Pergunto. as pessoas vão se separando também, cada um vai – Estarei lá. Firme e forte. Como sempre. prum lado, o gás já não é o mesmo. – Nem com essas bandas de hoje, acho que não sabem o que é Os quatro. Inclusive eu. esse feeling. – Feeling? Eu sei o que é! Sentiu esse tal de “feeling” na primeira vez que subiu no palco do Bandas Novas, o Guilherme Polidoro. Ano passado, mais precisamente. A plateia

* New Journalism é um não-movimento surgido na imprensa americana na década de 60. Seus expoentes buscavam inspiração no realismo social para amplificar a potência das narrativas jornalísticas e da captação do real.


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Rec: 00:01

Então, gente, hoje tem uma festa que vai ser ó... Maravilha. Se quiser te dou até convite. Mó orgia. Eita, tá gravando? Hum. Quanto tempo eu tenho mesmo? 10 minutos, só isso, sério? Não coloca isso aí não, tá? Corta! Isso aí que eu falei antes é off, porque senão vou perder toda a moral que já não tenho. Começa agora, valendo: Bom, desde todo o sempre, fui Rei. Já governei mais do que qualquer um. Estive nas mais diversas cidades, atuando sob uma única lei: a Liberdade. A arte do meu governo é a desordem. Eu acredito na subversão e que nada deva ser institucionalizado ou tradicional. Ora, mas que líder é esse? Você deve estar se perguntando, ou, quem sabe, até me difamando pelos quatro cantos. Torço para que os leitores da Avenida Independência não sejam lá tão previsíveis. Espero que estejam lendo com atenção, porque pela primeira vez estou sendo sério na vida. Nesse momento, devo estar perdendo umas milhares de festas para estar aqui, conversando com vocês. Posso falar já quem eu sou? Ou você acha que fica melhor mais pro final? Depois que editar, eu posso ler? Ah, só quando sair a publicação? Tá bom, então. É que eu nunca fui entrevistado antes, tô achando a experiência bem nova. Hahaha. Pois bem, vou me apresentar desde já: sou conhecido como o Rei Momo. Sou famoso por governar durante os dias do Carnaval. E olha, quando lidero, todos ficam felizes. Por que, então, eu deveria ser modesto e mentir que não sou o melhor rei do mundo? Sei bem que o sou. Mas se vocês me dessem a responsabilidade por mais tempo, eu jamais aceitaria. Imagina? O Rei Momo sendo Rei durante todo o sempre... Aí sim acabariam meus tempos de Rei! Mas durante o Carnaval, tudo é permitido: “É proibido proibir”, como diz Caetano. Homem vira mulher, a carne se torna sagrada e a alegria é, finalmente, permitida em todo o mundo. A verdade

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é que no Carnaval, meu caro, você pode ser quem quiser. E aí eu te provoco... Por que você não está sendo aquele que quer ser durante todos os outros dias do ano? Um belo desperdício de vida, não acha? Há! Há! Há! Você não acreditaria em tudo o que fiz. Nem vou contar agora, são anos de experiência. A editora me disse que o meu espaço é limitado (Mais Regras!). Não vai cortar o que eu falei de você, não! Vai escrever tudinho. Odeio jornalista que vai lá e tira a melhor parte, porque não é político o suficiente. Mas, bem, vou te dizer desde já, no pé do ouvido, que a minha Igreja é a Rua. Para mim, o verdadeiro Deus está na libertação. Meu melhor amigo, meus caros, é Exu! E, olha, ele não é tão demoníaco quanto você pensa. Te garanto: é mais humano que você. Porque o verdadeiro humano gira, gira e se liberta! Ele dança, toca o tambor, sente o sangue vibrar e se joga. Quando se dá por ele, já não é ele! Torna-se outro! E esse outro também é ele! A carne é uma comunhão de desejos. A carne é o corpo em liberdade. E no Carnaval, tudo que eu disse e faço é permitido. Durante o Carnaval, sou Rei, por ser aquele detentor de todos os valores estabelecidos. Nesses dias, o que é profano vira sagrado. A graça está na subversão e na desordem. Não acha que isso é um pouco…, não sei. Contraditório? Por que só em cinco dias do ano você pode ser verdadeiramente livre? Pode até tentar me explicar, mas eu jamais vou conseguir entender. Ah, acabou o tempo? Beleza, então. Aqui está o convite. Você é uma gracinha, vai ser ótimo te ter lá. Hahahaha. E você, querido, que olhos lindos! Deixem de ser inibidos! Ih, tô vendo que essa galera da Avenida Independência é mó puritana também. Se não forem, quero que provem indo pra festa! Tchau, gente, foi Ó-TI-MO conhecer vocês! Rec: 10:00

Texto Isabella Gonçalves

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Texto Karoline Discaciati Ilustra Carolinna Victorio 53 | Dez 2015 | avenidaindependencia.com


AVENIDAESPECIALCARNAVAL A voz da experiência A paixão estabelecida entre um folião e uma escola de samba é, muitas vezes, incompreendida por aqueles que não se interessam tanto pelos desfiles das grandes alegorias avenida afora. Mas é possível comparar esse sentimento com o que acontece no futebol. Só quem é torcedor sabe como é viver em constante relação de amor e ódio com seu time, e ainda assim não abandoná-lo em nenhum momento da vida. Muitas vezes é assim também com as escolas de samba: nascido o sentimento de paixão, é difícil que ele se encerre ao longo da vida. Assim foi que aconteceu com Paulinho Jalão, membro da Unidos do Ladeira e que está prestes a completar 40 anos de trabalho e amor pelo carnaval. Tudo começou aos dezesseis anos, quando se tornou um dos intérpretes da escola juiz-forana Real Grandeza. “Era uma quinta-feira e durante o intervalo da aula à noite, uma colega liderou a galera pra ir pra quadra da Real Grandeza. Eu nunca ia porque minha mãe era muito brava e eu era muito caxias. Depois do intervalo, voltamos pra sala, eu e mais dois, aí a professora disse: por causa de vocês eu vou ter que dar aula, se não eu também iria.” Dito isso, os meninos acabaram por concordar em ir. Naquele dia, Jalão jamais poderia imaginar que estava indo ao encontro de uma paixão que o acompanharia por anos a fio. Era como se a vida o chamasse sem aceitar sua recusa inicial. O jovem garoto, que de fato era superobediente, ficou preocupadíssimo com tal situação, e só pensava no que a mãe faria se descobrisse que ele estava numa quadra de escola de samba enquanto deveria estar na aula. Mas tão encantado ficara com a energia provinda do samba, que aos poucos foi relaxando e aproveitando aquela novidade tão maravilhosa que acabava de conhecer. Essa é uma daquelas situações em que se pode dizer que foi amor à primeira vista. Mas a vida, como há muito já se sabe, é mesmo uma caixinha de surpresas, e ainda tinha suas cartas na manga para apresentar ao Paulinho. “Eu sempre tive a memória muito boa, então de

“Naquele dia, Jalão jamais poderia imaginar que estava indo ao encontro de uma paixão que o acompanharia por anos a fio. Era como se a vida o chamasse sem aceitar sua recusa inicial.” avenidaindependencia.com | Dez 2015 | 54


AVENIDAESPECIALCARNAVAL tanto ficar ouvindo o rapaz da escola cantar aquelas músicas de carnaval, logo decorei as letras e comecei a cantar também. Até que uma hora ele disse que precisava ir ao banheiro e que era pra eu segurar as pontas enquanto isso, e me deu o microfone.” Menino mais recatado que era, Jalão ficou completamente vermelho ao se ver com o microfone na mão e aquela multidão o olhando, esperando que ele fizesse logo alguma coisa. Sem ter alternativa, pôs-se logo a reproduzir as músicas que aprendera durante a apresentação do intérprete. “Para a minha surpresa, todo mundo gostou e pediu que eu cantasse mais.” O outro intérprete não retornou do tal banheiro, e Jalão permanece até hoje, quase quatro décadas após o ocorrido, entoando sambas de carnaval. A mãe dele de início foi relutante em aceitar que o filho passasse a frequentar os ensaios da escola de samba, mas a pedido do presidente da agremiação, acabou sendo convencida. Assim, Jalão começou sua história com o carnaval que dura até hoje. De lá pra cá foram várias interpretações e composições de sambas-enredo e passagens pela avenida. Em 2016, Jalão completa quarenta anos de folia. E numa data tão importante, não haverá desfile das escolas de samba em Juiz de Fora. “Feliz a gente não fica, né? Mas quem ama carnaval não consegue ficar longe. No ano que vem eu vou estar no carnaval de Três Rios.” A inovação chega de sorriso nos olhos “Minha família não tinha dinheiro pra comprar ingresso pra assistir o carnaval da arquibancada. Então meu pai me levava na concentração das escolas, depois a gente ia por fora e ficava esperando na dispersão pra ver a chegada.” Assim foi o primeiro contato de Henrique Araújo com o carnaval. Tendo grande parte da família envolvida com a festividade, logo passou a ter a vivência do carnaval dentro de uma escola de samba. Começou na ala das crianças da Unidos do Ladeira. Após passar um período em São Paulo, retornou à escola e se tornou coordenador de ala, além de também ter sido coordenador de alegoria; em 2011 foi para a Mocidade Alegre, onde atuou como diretor de harmonia, e em 2012 passou a ser diretor de carnaval, função que desempenha até hoje. Um currículo extenso para quem ainda não chegou aos trinta. Henrique consegue equilibrar bem a experiência adquirida ao longo dos anos com a pouca idade, o que permite uma visão reno55 | Dez 2015 | avenidaindependencia.com

vada do carnaval, ainda que com certo apego às antigas memórias. “Antigamente a festa era uma coisa mais de família. A gente ia junto pra avenida. Era uma coisa mais familiar, que passava de geração pra geração.” Para Henrique é preciso mudanças para que o carnaval de Juiz de Fora possa voltar a ter grande reconhecimento no país, como já acontecera outrora. “Quando eu vim pra mocidade em 2011, uma meta que a gente colocou foi colocar dentro da escola gente jovem. Se a tradição começa a se deteriorar, a primeira coisa que acontece é o afastamento do jovem.” No entanto, toda mudança deve ter sua efetividade pensada a longo prazo, e não apenas ser realizada de qualquer maneira. “Não adianta apenas adiantar a realização do carnaval da cidade pra fugir do eixo Rio – São Paulo; é preciso que se trabalhe para que isso se torne uma tradição sólida.” Mas a paixão é grande, de fato. Impossível não notar que seus olhos sorriem enquanto fala sobre o carnaval. “A gente fala que no próximo ano não vai se envolver, mas não tem jeito. Chega o outro ano e você tá lá trabalhando de novo, e tem que gostar muito, porque muitas vezes há mais tristeza que alegria.”

“Quando eu vim pra mocidade em 2011, uma meta que a gente colocou foi colocar dentro da escola gente jovem. Se a tradição começa a se deteriorar, a primeira coisa que acontece é o afastamento do jovem.” Encontro: a tradição e a inovação Afinal de contas, a pista por onde percorre o tradicional e o inovador se divide em vias de mão dupla, ou se tratam de vias geminadas, onde uma caminha lado a lado com a outra? Apegar-se ao tradicional significa estar atado a raízes intrínsecas à composição do ser, firme àquilo que é conhecido, confortável. Por outro lado, a inovação rompe barreiras: é feito uma criança que chega à escola no primeiro dia e não sabe o que esperar; é um misto de medo e expectativa que dá aquele frio na barriga tão bom quanto desesperador. Quando a tradição se torna um lugar de onde não há saída, um chão em que se pode caminhar apenas numa velocidade que não é capaz de oferecer impulso para alçar voo, perde-se uma gama de possibilidades. A adrenalina que nos motiva a ir em frente fica represada. Por outro lado, inovar


AVENIDAESPECIALCARNAVAL de maneira a se desgarrar completamente daqui“Não é falta de boa vontade da prefeitura; lo que já é conhecido é o mesmo que percorrer um os desfiles das escolas de samba são gemar congelado em que o gelo da superfície está radores de emprego, renda e cultura. Mas prestes a ceder. Qualquer passo em falso pode o custo para se colocar blocos nas ruas é colocar tudo abaixo. O tradicional e o inovador são interdependenbem inferior” tes. É como se fossem equilibristas percorrendo a corda bamba, arriscando-se ao mesmo tempo em Não vai ter “abre-alas” (2) que são cautelosos. Não pode tombar mais para um lado ou para o outro, já que do contrário não A decisão de não serem realizados os desfiles permanecerão de pé, logo vindo ao chão. das escolas de samba em 2016 parece não ter sido tão amigável assim. Nos últimos cinco anos, não houve qualquer reajuste no valor disponibilizaNão vai ter “abre-alas” do pela prefeitura para as escolas integrantes do Grupo A. Além da não atualização do valor, houve Após 50 anos ininterruptos de desfiles em Juiz um corte de 43 mil reais no repasse de 2015. Para de Fora, a avenida não verá as escolas de samMassom, presidente da escola Real Grandeza, a ba passarem em 2016. O motivo? A verba que a falta de reajuste no valor do subsídio já oferecia prefeitura destina à cultura sofreu um corte, que um corte indireto na verba, já que a cada ano auacarretou numa grande diminuição do dinheiro mentavam os preços dos materiais utilizados para repassado para as escolas e também ao destinado os desfiles. à montagem da estrutura necessária para o desfiDe fato, não é responsabilidade da prefeitura le. É o que afirma o diretor de Cultura da Funalfa, custear de forma integral o desfile carnavalesco. Edinho Tostes. “Nós podíamos oferecer um valor É necessário que as agremiações se empenhem o inferior ao dos outros anos para a Liga das Escolas ano todo para arrecadarem o valor necessário ao de Samba, e ela, dentro do seu direito, optou por custeio de parte dos gastos e pagamento de funnão realizar o desfile”. Edinho frisa que ainda que a cionários. No entanto, muitas das quadras estão verba tenha sido reduzida, trata-se apenas de um interditadas por apresentarem irregularidades. subsídio que o município oferece às escolas, senAlguns dirigentes apontam que há um certo do elas as maiores responsáveis pela arrecadação descaso do poder público para com as escolas de de sua renda principal. “Muitas quadras estão samba. “A falta de boa vontade é muito grande. A com problema de irregularidade, o que as levou a prefeitura criou uma maneira de isentar vários serem interditadas pelo corpo de bombeiros”, diz clubes da cidade de determinadas taxas, o que ele. Esse é, segundo o diretor de Cultura, o princinão foi aplicado às escolas. A maioria das escolas pal fator que impede que as escolas realizem seus estão localizadas em comunidades carentes, e poeventos, reduzindo sua arrecadação de verba. deria atuar em projetos sociais se houvesse mais Por que, então, manter o Corredor da Folia com cooperação”, acredita Marcos Valério, presidente a programação de blocos? Segundo Edinho Tosda Unidos do Ladeira. tes, a estrutura que o Corredor da Folia demanda “Não to falando pra fazer nada de graça. O ideé bem inferior à do desfile das escolas de samba, o al é que houvesse uma parceria”, afirmou Massom, que implica um custo bem inferior. “Não é falta de sobre o distanciamento que há entre as escolas e boa vontade da prefeitura; os desfiles das escolas prefeitura. E completou: “é uma ofensa essa quande samba são geradores de emprego, renda e cultia que nos foi oferecida”. Vale ressaltar que a não tura. Mas o custo para se colocar blocos nas ruas realização dos desfiles carnavalescos marca uma é bem inferior” (OLHO), afirma. data que seria de grande importância para o CarO Corredor da Folia será mantido na data annaval de Juiz de fora: em 2016 completam-se 50 tecipada, como em 2014 e em 2015, medida que anos que os desfiles começaram a acontecer na para a prefeitura tem sido efetiva por atrair pessocidade. “Perdeu-se a oportunidade de se fazer um as que normalmente não estão na cidade durante dos grandes carnavais dessa cidade e de se homeo carnaval em sua data tradicional. Vale ressaltar nagear pessoas que enxergavam o carnaval como que a prefeitura pretende retomar a conversa um forte atuante social e uma forma de cultura. com a Liga das Escolas de Samba entre março e Ficaram muito preocupados com valores em diabril de 2016, a fim de estabelecer as condições nheiro, e se esqueceram dos outros valores que do carnaval de 2017. mais importam”, desabafou Massom. avenidaindependencia.com | Dez 2015 | 56


Texto Isabella Gonรงalves Fotos Bernhard Santos Daniel Defilippo Thiago Lemos

FREVO, PARANGOL


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a pé que eu vou “ Vem,Omenina, Parangolé chegou

Tem alegria, me abraça se liga Que o carnaval começou

Lembro-me bem das festas da infância. O colégio cheio, a gente se fantasiando como podia e a criançada toda brincando na quadra. Eram marchinhas, confetes e serpentinas. Ainda me recordo de como eu ficava treinando jogar a tal serpentina, porque não tinha talento algum. Aí ela despencava no meio do caminho, depois de andar poucos metros. Eu ia e tentava de novo. A minha alegria sempre foi vê-la caindo graciosamente por metros longos, nos quais eu poderia fazê-la voar como uma pipa que não desejava ver chão. O carnaval é o momento em que nos deixamos entrar no ar e não há quem nos faça descer. A gente cresce. A sociedade nos molda. Logo, a imaginação deixa de ser peça fundamental e passa a ser colocada de lado. São poucos os que sobrevivem ao massacre. Entretanto, mesmo em meio a tanta ordem, sempre há os dias de Carnaval. E neles somos livres para rir, gritar e cantar. Por alguns dias, o Brasil fica em festa, celebra a alegria sublime e se entrega por inteiro à vontade de ser.

A alegria dura até a quarta-feira “ então é cedo pra pedir a saideira

o povo canta, se agita na praça o nosso bloco é regado a cachaça

Mas há aqueles que se permitem sentir o carnaval durante mais do que apenas alguns dias do ano. São os vanguardistas que idealizam blocos, enfeitam a avenida e se entregam à música. Em Juiz de Fora, o bloco que se destaca é aquele que, além de se diferenciar por misturar rock’n roll com frevo, também se utiliza do inédito. É um dos principais blocos de música autoral da cidade e, obviamente, a Avenida Independência não poderia deixá-lo de lado. O Parangolé Valvulado nasceu do bater panelas, da mais pura vontade de fazer música, quando utilizamos a percussão do improviso. Batemos em

latarias e, de repente, temos uma melodia completa. No primeiro dia em que o Parangolé saiu pela rua, todos se transformaram em crianças que queriam mesmo era fazer barulho. Esse bloco de carnaval de rua nunca teve a ambição de se tornar um dos mais conhecidos de Juiz de Fora. Com uma mistura de ritmos, músicos e artistas da cidade se reuniram para brincar. Mas, afinal, não seria assim que um bloco deveria nascer? E como todo mundo gosta de se divertir junto, não tardou para ele atingir uma dimensão impressionante. Em 2016, o Parangolé Valvulado completa nove anos e não pretende parar por aí. “O objetivo não era fazer um bloco com enredo, nem definir se era samba, se era rock, se era frevo… A gente só queria bater panela na rua pra se divertir uma semana antes do carnaval. As coisas do Parangolé foram crescendo e tomando forma de uma maneira muito natural”, comenta Danniel Goulart, assessor de imprensa e guitarrista do bloco.

o que eu quero é beijar meu bem “ Tudo(Na boca) A fantasia rasgou O Santo já quebrou Não tem problema, eu tô muito zen

Assim como o Peter Pan tem medo de crescer, o Parangolé sofre o paradoxo da infância. Quando crianças, podemos sempre juntar uns papelões e formar carros, casas ou o que bem entendermos. Porém, ao crescermos, os aviões passam a ser construídos de metal e as casas, de concreto. A responsabilidade traz uma outra carga. “O Parangolé vive um paradigma. Crescer ou não crescer? Porque o crescer traz muita responsabilidade com o público”, avalia uma das cantoras, Uiara Leigo. O Parangolé Valvulado é um bloco diferente e, justamente nessa identidade original, ele se destaca. No Nordeste, o frevo é a trilha sonora principal. Entretanto, estamos em Juiz de Fora – MG, uma cidade localizada no Sudeste, onde a festa é conduzida majoritariamente por sambas e marchinhas. Mas o Parangolé Valvulado buscou mesmo foi a leveza nordestina. E que alegria! O bloco começou do improviso e ninguém se esquece

LÉ & ROCK’N ROLL


do primeiro ano, aquele 2008 que se diferenciou pelo espontâneo, como o carnaval deve ser. Danniel se lembra bem do início e, para ele, o primeiro momento já foi uma festa a parte. “Teve muita gente na rua, a gente se divertiu horrores. Talvez eu nunca tenha me divertido tanto na vida. Eu nem tava tocando guitarra, tava tocando repique e tal. Choveu, o ônibus passava no meio da gente, não tinha trânsito impedido e a gente se divertiu muito.”

tem porta-bandeira “Não Eu topo a brincadeira

Venha depressa Vem entrar nessa Que o Parangolé é uma festa

bloco valvulado tá na pista “ O nosso Ele é mutante, ele é Arnaldo,

Marcos Marinho, ator e palhaço, se recorda da época em que era sócio do Mezcla. Foi de lá que o bloco saiu pela primeira vez. “Marcelão falou assim: ah, a gente tá criando um bloco. Eu, mais a Valéria e um pessoal aí. Vamos fazer aqui na frente do Mezcla? Você abre a porta, e tal?” E assim foi: os músicos se organizaram, levaram uma caminhonete com som e lá plugaram alguns instrumentos. E quem não tocava instrumento, batia panela ou improvisava como podia. O importante mesmo era participar. “No primeiro ano, era um bloco de amigos. Você olhava para as pessoas e sabia quem eram e as que você não conhecia, já tinha visto em algum lugar”, conta Marcos. Uma das características do Parangolé Valvulado é trabalhar a composição dos frevos a partir de temas. No primeiro ano, o enredo apresentou o bloco. Em 2009, o homenageado da vez foi o músico Arnaldo Baptista, muito conhecido por seu trabalho na banda Os Mutantes e também por sua carreira solo. Para os foliões, 2009 foi um dos anos mais emocionantes do Parangolé, porque além da festa, houve a presença do próprio homenageado. Assim como os fãs, o músico Arnaldo Baptista também se emocionou com a temática do bloco.

APRESENTAÇÃO DO BLOCO

2008

“Ah, se você quiser ouvir uma verdade, eu fiquei totalmente bobo. Foi inesperado, pra mim, né? Eu fui entrando na dança, e foi gostoso, porque a letra tinha muita coisa minha. Eu fiquei acompanhando até o finalzinho, foi uma delícia.” Para ele, o fato de o bloco misturar ritmos só o engrandece, por mostrar o tamanho e a riqueza cultural do Brasil. A baixista da banda Seu Nadir, Nathalia Guimarães, tem a lembrança vívida de quando frequentou ao bloco pela primeira vez. Ela foi atraída por uma proposta diferente. “Foi muito legal, ainda mais que naquele ano teve a presença do Arnaldo Baptista e como eu sou musicista, eu fiquei assim: cara, eu escuto esse cara a minha vida inteira…”.

ele é Baptista então não vá se perder na avenida

Além de ser foliã, Nathalia também teve a oportunidade de tocar no bloco em duas ocasiões: uma no carnaval de 2012 e outra em 2013, durante um show no Bar da Fábrica. Ainda em 2013, ela foi convidada para a reunião de composição, momento em que os músicos do bloco se encontram para criar o frevo enredo do ano seguinte. Normalmente, a composição acontece durante um churrasco e demora quase um dia inteiro para ficar pronta. “É muita gente e muita ideia fantástica. Foi muito legal ver a coisa acontecendo, a letra surgindo e várias pessoas falando, colocando a sua opinião”, conta Nathalia. Além da homenagem a Arnaldo Baptista, outros personagens ganharam as letras dos frevos enredos do Parangolé: o cantor e comediante Mussum, em 2010; a Feira da Avenida Brasil, em 2011; o Fim do Mundo, em 2012; a Tropicália, em 2013; a Música Brega, em 2014 e, em 2015, o Clube da Esquina e, em 2016, Raul Seixas. Ao longo de todos esses anos, o bloco foi sempre marcado por muita alegria e liberdade, afinal,

2009

MUSSUM ARNALDO BAPTISTA

2010

2011 FEIRA DA AVENIDA BRASIL

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012

estamos falando de um bloco formado por artistas. Entre eles, estão alguns compositores de Juiz de Fora, como Uiara Leigo, que entrou no bloco em 2013, mas já era foliã desde 2008. “Eu me fascinei pela ideia do bloco, por essa liberdade e de ser autoral. Então eu sempre acompanhei e, como sou cantora e compositora, eu tinha muita vontade de entrar.” Uiara está no Parangolé pelo quarto ano e se lembra de ter ido ao céu e voltado quando recebeu o convite para ser uma das vocalistas do bloco. Para ela, entrar foi a realização de um sonho. “Eu falo que o Parangolé é um lugar mágico. É onde tudo transcende: a criatividade, a liberdade, e é o verdadeiro espírito do carnaval. Nele, você poder fazer tudo aquilo que você quer dentro do que você já faz sem ter aquele rigor de ser carnaval, porque só tem roqueiro e a galera da MPB.” Essa mistura de ritmos é uma das maiores riquezas do Parangolé. Nos intervalos dos frevos, os músicos soltam solos de rock. Mas tudo isso só faz o bloco ainda mais original, justamente por não ser rotulável. Danniel, refletindo sobre as origens do carnaval, explica: “A gente não vê problema em misturar rock com frevo e nem rock com carnaval, porque o carnaval é medieval. Ele vem de muito antes dos ritmos de hoje em dia. Em Portugal era o entrudo, em que você jogava farinha com água nas pessoas; em Veneza tinha o povo chique com as máscaras; na Roma Antiga tinha bacanal… Então o carnaval mesmo é um negócio de inversão.”

se fantasiar. Para ele, o seu papel no carnaval de Juiz de Fora é a abelhinha, que existe há oito anos. “Eu vejo que onde eu entro com a abelhinha, todo mundo sorri, tentam tirar foto. Eu fico: caramba, deu certo essa história de abelhinha.” Outro folião que também investe em fantasias para participar do bloco é Marcos Marinho. Quando criança, ele lembra de juntar uma galera para ficar batendo tambor e jogar farinha e água pelas ruas. Agora, ele se utiliza da criatividade como palhaço para elaborar fantasias temáticas. Durante os anos que frequentou o Parangolé, sempre aliou o tema com a sua fantasia. “Em um dos anos, eu entrei na palavra Parangolé, do Hélio Oiticica e fiz um manto todo feito de sacolas, era quase que uma noiva, porque ficou um manto branco e tinha umas asas, saquinho na cabeça e tal.”

é da rua é imaginário “ O nossoE lásom se vai mais um dia Tudo que move é sagrado O nosso bloco da esquina segue valvulado

O Parangolé Valvulado já se prepara para 2016. O ano, além de reservar mais um edição do bloco, também contará com o lançamento de seu primeiro CD. Nas próximas páginas, conheça os detalhes sobre o disco na seção “Na Garagem”.

comeu no estrangeiro “ AETropicália misturou com o jeito brasileiro Isso virou Parangolé Gilberto, Caetano e Tom Zé

E por ser um momento de inversão, a graça está em brincar. O fã Thiago Valente é de uma família de foliões e, desde criança, tem o costume de

FIM DO MUNDO

2013

BREGA TROPICÁLIA

2014

2015

RAUL SEIXAS CLUBE DA ESQUINA

2016


O RAUL Tร VALVULADO Texto Isabella Gonรงalves


AVENIDANAGARAGEM

A

Isabella: Como foi o processo de gravação do CD? Danniel: O processo de gravação foi basicamente o trabalho árduo de pegar todos os frevos desde 2008 até hoje. Tivemos que nos reunir para fazer tudo isso, por termos que organizar as harmonias. Juntamos a banda Valvulada, que é a parte de guitarra, baixo, bateria e vocal e fizemos ensaios, vários ensaios. Organizamos as convenções, as partes que eram juntas, o que que tinha solo, sempre com um vocalista para dar uma forIsabella: Como acontece a composição das mú- ça. Montamos os arranjos e gravamos. Primeiro, sicas, com um bloco tão grande? todas as baterias, depois o baixo, a guitarra e, por Danniel: É uma mesa grande, às vezes eu ou fim, os vocais. Os vocalistas acabaram de ralar um uma outra pessoa com um violão na mão, uma pouco mais pra poder botar as melodias em dia, pessoa com a caneta e todo mundo dando ideia na maneira correta. ao mesmo tempo. Como é muita gente falando, acaba que uma pessoa aprende de um jeito e mesmo que aquela “Além disso, no CD vai haver uma música frase tenha sido digitada, escrita inédita, que foi composta durante os e distribuída, ela continua can- ensaios. O nome dela é Parangolé em Cuba, tando daquela maneira. Tanto é uma salsa.” melodicamente, como de letra. Então às vezes uma pessoa canta assim: Tanãrinã. Outra: Panarãrã. E como que é a forma certa? EnIsabella: O CD será lançado durante o bloco no tão, antes de gravar, tivemos que chegar num con- ano que vem? senso para o disco. Danniel: A gente quer lançar na rua. Nada mais apropriado pra um bloco do que lançar o trabalho Isabella: Quais surpresas estão no CD? na rua. Nada de teatro, nada de clube. A ideia é esDanniel: Além dos frevos de cada ano, vão es- tar com ele pronto em Fevereiro. E talvez no dia tar no CD também os esquentas. Originariamen- do desfile, se der tempo, a gente lança o CD. Mas te, eles sugiram nas quadras das escolas de samba não tem nada certo. Se não der para ser no Care eram tocados durante o ensaio, sendo um extra naval, talvez a gente faça um desfile fora de época ao samba enredo. O esquenta serve pra bateria cantando as músicas que vão estar no disco. aquecer o braço e pra galera se animar antes de começar o frevo oficial. Além disso, no “A gente quer lançar na rua. Nada mais CD vai haver uma apropriado pra um bloco do que lançar o música inédita, que trabalho na rua. Nada de teatro, nada de foi composta du- clube.” rante os ensaios. O nome dela é Parangolé em Cuba, é uma salsa. E no disco tem umas surpresas que eu não posso te CD Parangolé Valvulado falar o que é, mas que são legais, por passarem a Previsão de lançamento: primeiro energia do bloco. semestre de 2016 Gravado com recursos da Lei Murilo Mendes seção Na Garagem desta edição traz uma entrevista com Danniel Goulart, guitarrista e assessor de imprensa do bloco Parangolé Valvulado, bloco que completa 9 anos em 2016. O Parangolé, em pouco tempo, tornou-se destaque na cidade por trazer composições autorais e ser uma verdadeira mistura de ritmos, indo do frevo ao rock. Danniel revela pra gente algumas surpresas do disco e conta como foi o processo de gravação do CD, que será lançado em 2016.

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AVENIDALETRAILUSTRADA

Ói, ói, óia o trem, Gitá Parangolé Raulvulado Tu és o grande amor da minha vida Cowboy fora da lei de Salvador A nossa sociedade, alternativa Mano onde cê vai eu também vou Não diga que a canção está perdida Let me sing, rock and roll O bloco Raulvulado na avenida No dia em que a terra parou Aaaaaaaaaaaaaaaa Me come, me cospe, me beija Canceriano sem lar Nós somos a luz das estrelas Nós somos a cor do luar Não temos mais medo da chuva Se eu quero e você quer Enlouquecer no Parangolé Sempre Maluco Beleza Não pasto capim guiné Posso partir sem problema algum Metamorfose brilhante Nunca um sujeito qualquer Plunct plact plunct plact zummm Nóis não vamo pagar nada Boa viagem!

Frevo-enredo Parangolé Valvulado 2016

63 | Dez 2015 | avenidaindependencia.com


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Ilustra Pedro Vale Moreira avenidaindependencia.com | Dez 2015 | 64



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