R ef ug i os (versĂŁo em portuguĂŞs)
por Are You a Cop or What?
O
que é um corpo? O que é um corpo? O que é um corpo? Eu mal posso respirar. Eu apenas deixo o ar entrar. Mal. Eu não quero que nada entre no meu corpo. O ar vai sozinho. Eu gostaria de morrer, sim, gostaria de morrer. É um corpo se não está relacionado a outros corpos? Por que nos sentimos sozinhos e sozinhas? Por que me sinto sozinho se não estou com alguém? Por que não posso coexistir com a solidão física, com meu próprio corpo? Por que preciso de alguém para poder dormir? Sinto que sou apenas mediado pelo meu relacionamento com os outros, um relacionamento legitimado pelo sexual e daí a aprovação do meu corpo. Contanto que eu seja útil sexualmente, posso considerar meu corpo como um objeto de desejo e, enquanto meu corpo é desejado, ele tem valor social e individual. Então, o que é um corpo que não deseja respirar mais, ansiando por morte rápida? Talvez eu precise e eu esteja procurando por uma forte penetração que me separe no meio e eu não queira, e ninguém mais me quer. Talvez eu esteja procurando por aquela penetração que me deixa sangrando, uma hemorragia interna no trânsito prazer-morte-prazer. E então nunca mais sentir nada.
* Em sua casa havia vinho. Era uma casa quente. Talvez a casa onde eu gostaria de viver. Tinha molduras de fotos viradas. Ele não queria envolver sua família, me disse. Ele havia comprado mais duas cervejas para eu beber. Ele só bebia vinho. Vinho e cocaína, isso não vai faltar. Qual é o significado de tudo isso, se quanto mais tem, mais se quer. Queria que eu transasse com ele e sem cocaína ele não conseguia. Quando ele me dizia para nos ver era porque ele tinha pegado cocaína. Eu também sabia que iríamos nos ver porque minha amiga, a Romi, e ele compartilhavam o mesmo traficante, e eles se pegavam ao mesmo tempo. Ele vinha até mim de motocicleta. Ele só tinha um capacete. Tenho uma cicatriz por causa disso. O golpe fez meu cérebro se mexer um pouco, diz a Romi. Então fiquei assim, não consigo evitar falar de forma interseccional, às vezes, pulando de uma coisa para outra, atravessando o presente, com o passado e ao mesmo tempo para o futuro. * Fomos para a casa do primo dele, disse. Tinha um pátio cheio de lixo, 3
abandonado e me perguntava por que, por que não aproveitavam? A ferrugem corroendo tudo, os escombros de um depósito que nunca existiu, a terra seca sem vida. Outro pátio abandonado. E eu pensei novamente que talvez quem não ama o seu pátio, não ama a sua casa, e quem não ama a casa, não ama o seu presente. * Ele diz que vai de moto porque pode passar entre os carros, chegar mais cedo a seu trabalho, não precisa ser o motorista de sua família, pode sentir a morte de perto, fugir se precisar. Vai de motocicleta porque ele diz que nem o frio nem o calor o incomodam, ele gosta de sentí-los. Vai de moto porque é mais rápido fugir. Acelera, e sai. Como um homem que procura destacar sua masculinidade. Eu me perguntei muitas vezes porque eu gostava de me encontrar com ele. Por que eu o chamo e respondo “sim” quando ele me pergunta: quer transar?. E eu sempre quero. Gostaria de ter mais orgulho, mas meu orgulho some quando aceito isso. * Ele havia cometido suicídio. O demitiram de seu trabalho. Quem poderia pensar que foi por causa de outra coisa que ele havia cometido suicídio? Quem teria pensado que o ódio de sua família, da sociedade e o ódio contra si mesmo poderia levar sua pulsão de morte ao limite? Como o empoderamento é alcançado e como a tristeza se torna potência? * Eu cubro meus olhos com minhas mãos, mantenho meus olhos fechados. Eles me olham infantil, me percebem bonito com seus olhos, meus olhos estão cobertos. Nesse mundo interior, com meus olhos fechados, a realidade está ficando mais escura. E eu também. * 4
Pupila preta como o carvão. Cabelo escuro. Sinto que ele saiu de uma lagoa. Sua pele estava tensa, como se ao nascer tivesse sido banhado numa cachoeira e ficou acostumado aos golpes. Olhos negros que ficaram brancos quando transávamos. O prazer fazia seus olhos virarem. No começo eu ficava preocupado, depois entendi que ele estava bem, que a cocaína, a bebida e o pau faziam isso com ele. Então eu seguia, apertava sua cintura com minhas mãos, apertava seu peito e enterrava-me em seu corpo. Não olhava para mim. No começo isso também me preocupou, ele preferia de costas. E lá estava, todos os tipos de contato, exceto o visual. * Como se conhece alguém? Eu quase não tenho amigos, tenho algumas amigas. Não tenho família. Nunca me importei em fazer algo para ser visto. Eu não acho que eu tenha habilidades ou habilidades que me diferenciam de outras pessoas, nem quero fazer um esforço para construir laços, tenho muito para construir comigo mesmo e permanecer vivo. Como se conhece alguém? Quando há uma necessidade, mas enquanto não há necessidade, não há tentativas. Eu acho que às vezes estamos mais predispostos a conhecer outras pessoas, porque é notável que estamos procurando por elas. Nós somos como um lugar, um espaço do qual deixamos a porta aberta, ou a janela, ou alguma fenda que permite a passagem de terra, água, vento ou fogo. * Não havia camisinhas na unidade de saúde. Eu sempre pego lá. Tinha um amigo da minha tia trabalhando lá, mas há algumas semanas os preservativos começaram a faltar. Eles dizem que não estão distribuindo, que apenas nos hospitais haviam algumas que sobraram do ano passado. Tinha que escolher entre comprar camisinhas ou cigarros. Eu não ia ficar com o desejo de fumar, então peguei a bicicleta e fui para o hospital. Quarenta quadras, um cigarro para começar e outro quando cheguei no hospital agitado. Um 5
homem idoso é empurrado por uma velha que carrega dois tubos de oxigênio ao mesmo tempo. Eu pensei que a última vez que eu não usei preservativo, peguei gonorréia. Eu não conseguia nem andar de bicicleta. E agora eles não distribuem mais. Eu não sabia que existia uma coisa chamada gonorréia até que eu peguei. Junto forças com um último baseado para retornar. Quarenta blocos no inverno, um maço de cigarros e um pacote de camisinhas. * Eu nunca o vi tão triste. Eu nunca o vi chorar. Eu nunca o vi chorar enquanto transávamos. Ele nunca tinha consumido tanta cocaína como para acabar no hospital. Ele nunca havia tocado seu telefone para procurar alguém para acompanhá-lo enquanto despertava da intoxicação. Eu nunca o abracei com tanto amor. Eu nunca chorei assim tentando acordá-lo. Ele nunca me pediu para me comer. Eu nunca tinha chorado enquanto ele transava comigo. Eu nunca senti seu rosto na minha bunda e suas lágrimas se misturando com sua saliva para me lubrificar. Eu nunca pensei que transar poderia ser triste. Eu nunca o vi tão triste. * O chamam “Vila Hermosa”. É o espaço entre os trilhos do trem e a avenida com algumas árvores que criam um caminho de mais ou menos três quadras, onde a poucos metros as travestis encontram um lugar para trabalhar, alugam seu corpo. Sempre que eu as vejo, penso que devo voltar a trabalhar nisso, talvez com elas. Tanta foda livre e sem dinheiro, não faz sentido. De ser pago tá bom para fazer algo que você gosta. Embora a exposição a que isso implica é algo que você tenha que aguentar. Eu também estou novamente em um momento de conflito com meu corpo, me sinto muito magro, não gosto da minha pele ou dos meus movimentos. Eu não acho que alguém ainda pagaria meu corpo. Bem, seria possível se tivesse esses clientes merdas, aqueles que querem que eu finja que sou seu filho ou amigo do seu filho que 6
os forçam a chupar seus paus e foder, reproduzir e dramatizar a lógica de abuso e dominação. Agora eu prefiro usar meu corpo para roubar. Tudo o que posso, com meus gestos e corporeidade infantis, costumo me dar bem e é difícil desconfiar de mim. Vila Hermosa é o lugar onde a escuridão predomina, exceto por alguns holofotes mal direcionados e a luz ocasional do trem. Os caras que andam (andamos) ao longo desse caminho aproveitam a oportunidade para ver seus rostos, às vezes com a mão no pau e outros com um cigarro. Também aquele fogo que acende o cigarro ilumina. Eles fazem a sequência de fazer xixi para tirar o pau, talvez para não se sentirem óbvios. Não deixa de se perceber no ar fresco daquele parque, a tensão sexual e a excitação que gesticula o desconhecido, a escuridão e o efêmero. Talvez depois de um pó você consegue dormir em paz. Então, atrás das árvores e entre a estrada ingressa uma pessoa. Outro cara que o viu entrar o segue. Eles começam tocando o pau que tiram na escuridão. Aquele que é mais animado ou com tesão estende a mão. Outro cara passa e olha para eles. Entre os dois eles fazem contato visual para aproválo. Aquele com o pau na mão empurra a nuca do segundo para ser chupado enquanto olha para o terceiro, que como uma arma, estava engatilhado. Assim, com seus olhos, ele autoriza a aproximação para que também possa sacudir sua ereção e compartilhar ao segundo, que submisso e gentil, confortavelmente se dedica a chupar os sacos. Enquanto os dois que estavam de pé espalhavam sua saliva, que às vezes compartilhavam quase violentamente cuspindo em seus próprios falos e no rosto do outro cara que estava ansiosamente apreciando a penetração oral. O trem passa de novo e a sensação de que alguém poderia assistir, que algum passageiro os alcançou brevemente pela janela, pareceu dar mais tesão, porque o ritmo de seus movimentos era tão rápido quanto o motor e, também dos carros. Um quarto cara entra em cena. O transe por que passaram não lhes permitiu perceber, mas junta-se aos três ajudando-os a gozar tocando suas bundas com uma mão, enquanto com a outra não pararam de agitar seus paus. Sabendo que o fim tinha chegado para os outros também teve que vir para ele. E assim foi. Vila Hermosa é então algo parecido. Um espaço de sociabilidade mediado pelo efêmero e pelo escuro, onde sujeitos 7
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discordantes desejosos conseguem expressar o que não podem fazer em espaços públicos, em uma cidade de merda como essa. Os desejos oprimidos pela sociedade nos obriga a criar arquiteturas dissidentes baseadas em arquiteturas existentes, onde os prazeres que não vão com a norma hipocritamente são relegados às margens, invisibilizando-os e, geralmente, quando alcançam a luz são estigmatizados, estuprados e até mesmo podem chegar à luz sem vida, como corpos sem desejo. * Chuva e imprudência. Aconteceu às oito da noite talvez. Decidimos voltar do lago às seis, mas até começarmos já eram sete horas. O lago fica na outra cidade, escondido e felizmente não é um lugar turístico nem familiar, apenas um lugar para os entusiastas da pesca e solidão. Durante minha infância meu pai queria que eu me interessasse pela pesca, e não porque era algo que ele fez, mas porque eu acho que ele pensava que cada criança tinha que pescar, incentivando a aventura e também como um começo para a naturalização da caça e da dominação das outras espécies. Um ritual infantil e meramente inocente e ingênuo, mas cheio de significados. Meu pai e dois de seus amigos me levavam para pescar. Já comecei a perceber minha sexualidade de outra maneira e especialmente meu desejo. Eu quase não falava, apenas observava. Observava seus braços, seus torsos, suas bocas, suas mãos, suas pernas. Dez anos. Eu tracei seus corpos com meus olhos e mal respondia suas palavras com a minha cabeça, com vergonha e timidez, mas também confuso, sem saber o que estava acontecendo comigo. Havia algo sobre a pesca que parecia divertido para mim. Ficava muito tempo esperando ao lado do lago. Eu usei esse tempo para pensar em coisas abstratas e outras mais concretas. Enquanto isso, meu pai e seus amigos estavam bebendo. Eles não ficavam extremamente bêbados, mas estavam em pé seminus ao redor do fogo da grelha com carne cozida do mercado. Eles quase não conversavam. Só falavam e os outros assentiam monossilabicamente. De vez em quando eu os observava traçando suas feições. Até chegar ao meu velho e me via atravessando seu corpo, a união de seus músculos 9
através de sua pele escura e tensa, realçada pela luz do fogo, o calor do verão profundo e a umidade do lago. * Eu nasci de novo aos catorze anos, com o primeiro acidente. Como quando todos os meus companheiros da escola comemoravam sua inocência, eu decidi parar de tê-la. Foi melhor deixar de acreditar na pureza que supostamente tem a família, meu corpo e a escola, entre outras instituições. Acho que nasci de novo porque encontrei uma nova casa, novas maneiras de me relacionar com outras pessoas, comigo mesmo, de me perceber, de viver. Eu conheci Florencia aos onze anos no meio da madrugada de um sábado. As crianças do bairro que eu conhecia às vezes tinham uma casa livre, então eles ligavam para três meninas (até cinco) para transar entre eles. Pelo calor eu disse que não sentia vontade de ficar dentro da casa, então fiquei no quintal a noite toda. Tudo foi fogo naquela noite. As estrelas pareciam estar mais próximas e geravam o calor do verão. De repente, Florencia saiu de casa. Eu me apaixonei desde o momento que ela me pediu cerveja sem hesitar. Ela me perguntou se eu tinha namorado. Ao que eu disse que não, que eu gostava das meninas, mas não tinha vontade de transar porque acreditava no amor e tudo eu fazia com amor. Ela me falou sobre o corpo. Do seu corpo. De se sentir desejada. De usar seu corpo como arma na guerra para poder pegar alguma coisa para comer. Do desejo que ela sentia pelos corpos e pelos benefícios que obteve ao torná-los realidade. Ela disse que era óbvio que eu era uma “bicha”. Eu tinha que entender que estava bem assim, que eu era bonitinho e que eu tinha que explorar isso com os velhos para roubá-los, que a cidade estava cheia deles. Florencia voltou e saiu algumas vezes. Eu esperava seu retorno um pouco ansioso, como se toda vez que ela voltasse para me trazer uma revelação, seria algo importante, com muitas verdades. Eu ouvi dois tiros. As meninas saíram correndo da casa. Florencia foi com elas e olhou para mim. Eu decidi correr com elas. Um dos caras da casa sai com sangue em suas roupas. “Não seja mais bicha do que você é, se você for embora vão pegar todos nós”, ele grita. As meninas 10
correm muito rápido. Eu as perco. Decido continuar correndo. Eles atiram no ar. O som me dá mais força para continuar correndo. Eram dez quadras. Eu termino na junção de duas avenidas e um carro que saiu do nada me empurra trinta metros para um banco de arbustos e flores. A última coisa que me lembro é o cheiro daquele colchão que arranhou todo o meu corpo, quase como uma carícia em relação à colisão do meu corpo com o carro. Eu nasci de novo aos catorze anos, foi o que todos disseram. Eu queria que não tivesse sido nas flores e arbustos. * Chega um momento em que você perde a consciência de quanto e do que está entrando em seu corpo. Pela boca. Pelo nariz. Através dos poros da pele. Na bunda. Pelos olhos. Pelas orelhas. Nós consumimos até que não percebermos o quanto ou o quê. Mas conseguimos continuar. Chega um momento em que o corpo não tolera mais o agente externo. Nada é como da primeira vez, nem prazer nem dor. Você não aprendeu a raciocinar, nem a droga nem o pau. Você não aprendeu a administrar a dose. Você não pode administrar bem e esqueceu que é a única pessoa que pode saber até onde o seu corpo aguenta. Você esqueceu de cuidar de si mesmo para cuidar dos outros. Você se esqueceu dos outros e não convidou ninguém para consumir tudo sozinho. E a cocaína estava cortada, o amor começou a bater em você e o corpo começou a rejeitar tudo o que você queria ingressar. Quem você achou? O que você acha? Continuamos até que o corpo seja exposto ao excesso querendo mais. Mais dentro. Mais acima. Mais profundo. Quantos golpes aguenta o coração? Quantos o corpo aguenta até se corroer? Quantos golpes o desejo aguenta até se desintegrar e reprimir? Quantos golpes aguenta a repressão até escapar pela fissura? Quão longe você quer chegar? Um orifício no corpo permite a entrada e saída, vibrações, movimento, energia, alcançando a alma, existindo, sentindo a alma. Tocar a alma e finalmente se perguntar se você quer deixar esse corpo. * 11
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O lago estava quieto. Sua tranquilidade nos acalmava. Foi olhar para o horizonte e tentando decifrar o que estava acontecendo do outro lado. O que estava acontecendo abaixo. Víamos o céu refletido e nos perguntamos o que estava acontecendo lá em cima também. Depois que vimos o nosso reflexo no lago, o menino olhou pra mim. Nos perguntamos o que estava acontecendo dentro de nós. Sem palavras, os corpos costumam escrever suas próprias histórias. * Decidir morar em um lugar pequeno como esta cidade tem suas conseqüências. Eu acho que não poderia escolher outro lugar no mundo. Às vezes sinto que esta cidade é minha. É uma vila plana para atravessar de bicicleta, sem subidas forçadas, apenas invernos crus. Eu moro em uma casa legal que contra o frio sempre tem a opção de fazer um fogo na lareira e dormir ao lado dele. Ele já sofreu três incêndios e apenas uma morte por isso. Eu moro com Romi, minha melhor amiga e seu namorado, Darío. A casa pertence à mãe do Darío, e ele acha que tem mais direitos que nós, como quando ele me pede para sacudir seu pau enquanto assiste a um pornô e quando a Romi não está em casa. Ele acha que, dando-me uma mão pra morar na casa, eu tenho que lhe dar outra. Aguento porque eu gosto um pouco dele. Gosto de seu pau e seus sacos. Quando ele estiver relaxado, vou enfiar um dedo na bunda para que ele seja honesto com o que sente ou nunca mais me pedir alguma coisa, usando seu privilégio como homem dono da casa. Me deixa com raiva o fato de eu não poder falar com a Romi. Eu sei que ela ficaria louca, não importa o quanto ela tenha a mente aberta, não suportaria, nem por ela nem por mim. Ela é a menina mais louca que conheço. Confia em mim porque sabe que eu não consumo cocaína, que com algumas flores e charutos eu estou bem. Ela também sabe de tudo o que eu faço, eu falo com ela sobre todos os caras que eu conheço, menos sobre Marcos. Marcos nunca quis que eu falasse com ninguém sobre ele acusando a vida de merda desta cidade e todas as pessoas ao seu redor. E isso era verdade. Aqui a tolerância e aceitação da sociedade não existem. Só “toleram” as 13
pessoas porque eles são da família e isso lhes convém pela grana, mas qualquer merda é destruída se você é pobre, preto ou afeminado. Eles não têm interesse em mudar seu pensamento, não precisam aceitar ninguém, se sentem confortáveis rejeitando tudo. Aqui vai ter alguma modificação num século. Mesmo o ambiente de homossexuais é uma merda, é repugnante na forma como se discrimina, se invisibiliza para não perturbar e perpetua a discriminação rejeitando a seus pares. Aqui as políticas não chegam. Apenas o trem passa e chega de uma a outra cidade e nem dá para andar com a bicicleta no vagão. O ABGLT não existe no trem, nem na rua quando as pedras são atiradas e eu tento fugir de bicicleta rápido. Não tem ABGLT quando a família nega um prato de comida à noite por ser afeminado aos dez, doze anos. anos. * Chuva e imprudência. Aconteceu, sim, às oito da noite. Marcos usava o capacete e a água interrompia sua visão. O lago e o dia ensolarado foram deixados para trás. Na hora em que íamos sair as nuvens se formaram. As primeiras gotas caíram e nos forçaram a pegar a estrada de volta. As visitas ao lago com Marcos sempre foram uma pausa desintoxicante. Na cidade os encontros eram clandestinos na casa de seu primo, sempre no meio estava a cocaína e seus efeitos. Estava também a escuridão da noite num ambiente fechado. O lago era o oposto. A oportunidade de estar ao ar livre e ensolarado, falar sobre coisas diferentes, estar um com o outro e ver um ao outro nos olhos. Nasci de novo. Um carro que não vimos passou perto de nós, mas a fricção fez sair do equilíbrio, nos deixando no acostamento. Eu abracei Marcos como nunca antes pra nao não me separar. Um pedaço de ferro bateu na minha cabeça e comecei a perder sangue. Consciente, levantei-me. Marcos também, enquanto me gritava que isso não tinha que acontecer conosco. Então minha visão se torna turva. “Cara, não faça isso comigo”, disse ele, agarrando-me na descompensação. E não me lembro de mais nada até acordar enquanto costuravam minha testa sem anestesia no hospital. Depois de duas horas, a Romi chegou. Eu não acreditava que estava vendo-a. Deu tudo certo, mas poderia 14
ter sido muito ruim. A Romi soube que eu estava no hospital por um primo que trabalhava lá. Eles me disseram mais tarde que um cara tinha me encontrado deitado na estrada, com uma bicicleta no acostamento. Que ele não me conhecia e que não tinha relação com o que havia acontecido. Quando ele me deixou, saiu. Eu aguentei. Eu aguentei. Eu aguentei. * Marcos pegou uma arma calibre 22, chamada “a bala que anda”. Uma vez que entra no corpo, tem um caminho errático e imprevisível devido à sua fragmentação no impacto. Tentaram roubar sua motocicleta duas vezes. As duas vezes não conseguiram, mas ele não tinha vontade de ficar com medo. E uma arma parecia ajudá-lo. * Você não chora pela outra pessoa. Você chora para si mesmo, para sua solidão, que acha que não vai conseguir suportar. Você também clama pelo presente e pela visão destruída de um futuro idealizado. Eu não choro sua ausência, choro porque estou sozinho e não consigo lidar com isso. * Passaram três dias até que meu pai chegou no hospital. Ninguém conseguia entender como uma criança de catorze anos em uma cidade como essa podia passar tanto tempo sozinho internada quase sem falar. Do hospital chamaram por meu pai, mas ele disse que não ia me buscar. Não falei do que aconteceu naquela noite na casa das crianças. Nem falei sobre Florencia. Eu sabia que se eu falasse iria complicar para os outros caras, para as meninas e pra mim, que já tínhamos muitos problemas. “Isso aconteceu com você porque é um viado”, falou meu pai quando me viu. Sem saber o que isso significava, ele estava me punindo e com isso me negando aquele abrigo necessário na 15
adolescência no meio da tempestuosa confusão. O que é um corpo aos quatorze anos? O que é um corpo tão pouco consciente de si mesmo? Comecei a entender quem eu era pelas formas que encontraram as outras pessoas para me nomear. Meu corpo magro, minha voz aguda, meus movimentos tímidos, minha recusa em reproduzir esses agrupamentos masculinos. Toda essa percepção que eles tinham de mim era real, mas não em termos negativos e destrutivos, à medida que tentavam me convencer. O que havia de errado com aquele préadolescente, desajeitado e tímido em suas palavras, frágil em seus movimentos? O que havia de errado com aquele corpo que estavam apedrejando? A desvantagem desse contexto é que despotencia o que podemos ser e não fomos, o que poderíamos ter sido e não seremos. A rejeição do meu pai me impulsionou. Eu deixei a casa dele. Saí do hospital, procurei algumas coisas e fui embora. Passei alguns dias por diferentes bairros até me encontrar com Florencia novamente. Me ofereceu uma cama em sua casa depois que eu falei com ela. Muitas pessoas passaram por sua casa e eu aprendia de todos alguma coisa. Florencia insistiu em me apresentar a outros caras. Gostava de alguns, mas outros eu tinha que rejeitar. Por causa da amizade que tinham com a Florencia, eram sempre respeitosos, embora alguma situação sempre saísse do controle. Ela sempre me incentivou, encorajou e me instruiu na prostituição. E eu tentei pegar alguma grana no meio da tentativa de emancipação. Me serviu mas, novamente, as coisas ficaram meio escuras. * Às vezes o problema de ter algo é nunca ter tido nada e esse vazio gera a intensidade, com a qual passamos pela experiência. O encontro presença ganha força pelo período de ausências anteriores. Também condicionados por uma primeira falta, tendo algo pensamos que temos tudo. Estou apaixonado pelo passado e o futuro chupa meu pau. Nós fodemos com o amanhã, mas o ontem faz amor comigo. * 16
Vila Hermosa. Em uma cidade de cinco mil habitantes, os perfumes caros, os desodorantes suaves e o cheiro de mijo são misturados em um canto escuro. O trabalhador, o médico, o político com os poucos anarquistas. A polícia nunca perturbou. As ligações das cadeias herdadas e as da chapa de aço cirúrgica barata ficam combinadas. A linguagem oral é reduzida a monossílabos e gemidos reprimidos. A habilidade visual também é reduzida, o olhar é controlado em direção ao corpo com objetivos fixos e a capacidade de enxergar no escuro é desenvolvida. Fica atento, como predador em busca de sua presa, como presa na procura de seu predador, corpos desejantes moradores das sombras. Um fio de sêmen é visto pendurado em um galho, a luz violenta e excitante do último trem o revela. Talvez fertiliza esta vila para tornála mais bonita. Esta noite não está o cara que eu gosto. Aquele que tem as pernas capazes de fugir se algo acontecer. Aquele que tem o pau pronto para quando percebemos que deu certo para transar. Quando a lâmpada que ilumina o canto se apaga. Esta noite o garoto que eu gosto não está, aquele que me convidou para um cigarro depois de gozar, o cigarro que não é negado a ninguém. Eu decidi sentar no lado da rua, ao lado da luz. Eu tinha maconha e dois cigarros. Comecei com o cigarro para me livrar desse sentimento de frustração com a solidão. A fumaça do charuto me envolve, reforçada pela luz. Eu sinto que talvez ninguém me veja através da nuvem. Eu ouço um apito à distância. Acalma-se. Ouço de novo, um pouco mais perto. Olho pra todas direções. Se detém. Eu sinto um cheiro especial no lugar. Como se tivessem jogado uma árvore, partiu e explodiu, perturbando o solo, a flora e a fauna. De repente eu ouço o apito mais perto. Uma regressão. O cheiro de flores. Aqueles do lago. Aqueles do velório. Aqueles que não cresceram em Vila Hermosa. O apito se torna um zumbido. A nuvem de fumaça parecia estar passando pelos meus olhos. De repente, me vejo conversando com outro cara. “Sim, às vezes eu fico bem chapado também”, ele me disse. Custou-me voltar. Parecia que estávamos conversando por um tempo. Foi lindo. Comecei a pensar que já tínhamos falado antes. “Você vem aqui com frequência?”, me perguntou. O que seria “com frequência”? Todos os dias? Uma vez por semana? Mensalmente? Eu não respondi, às vezes dá pra vir. “Na Vila Hermosa as pessoas não falam. Eu não gosto muito de falar, mas acho que tenho maneiras diferentes de fazer 17
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catarse. Às vezes a gente fala, às vezes você fode, às vezes a gente fica chapado até que não aguenta mais, às vezes você vai a lugares onde não conhece ninguém e você esquece de tudo e de todos, né?”. Eu estava perturbado. Seus movimentos foram um pouco nojentos. Ele fumou um charuto atrás do outro. Tava pedrado. Às vezes me deixava tonto, parecia que ele estava falando sozinho, mas depois parava e esperava que eu respondesse alguma coisa. “Cara, depois de falar tanto tô querendo foder, você quer?”, me perguntou. Não podíamos ir pra casa da Romi, ela havia organizado uma farra na casa. “Não importa, eu não quero que ninguém me veja. É verão, vamos procurar por algum lugar”. Ele estava de motocicleta. Eu de bicicleta. Ele ia esperar-me em vinte quadras onde eu sabia que poderia deixar a bicicleta naquela noite. Fizemos isso. * O que somos? Eu nunca me senti enraizado a muito. Em particular eu sempre me percebi como um observador. No lago. Na escola. No parque. Na Vila Hermosa. Na cocaína. Enquanto as outras pessoas estavam fazendo, eu apenas olhava. Me perdia nos movimentos dos corpos e pensava. Imagens. Imagens. Imagens. Mais tarde, quando a noite chegasse, eu as projetaria no telhado do meu quarto. Forçava minha cabeça, colocava aromas e sons fortes para não ouvir meu pai transando no quarto dele. Eu não tinha televisão. Não tinha livros. Nem pra ouvir música ou rádio. Só tinha imagens na minha cabeça e com isso silenciar a meu pai gritando “filha da puta, vou rasgar sua bunda”. Minha mãe morreu quando eu tinha seis anos tentando dar à luz um irmão que eu nunca conheci (como construir a partir da ausência?). Meu velho grita com uma mulher. Um golpe é ouvido (como construir através da violência, como podemos reconstruir depois da violência?). Silêncio. Silêncio. O problema não está no que aconteceu. Vidas de merda acontecem todos os dias. O problema está no que fazemos com a vida de merda que nos toca. Plantar flores em Vila Hermosa. * 19
Romantizar algo é acreditar no absoluto, uma situação que acreditamos ser perfeita, mas ao entrar no cotidiano, torna-se uma merda. * Fomos de moto para um terreno baldio. Estava escuro. Ele jogou a motocicleta pela cerca. Cheirou três linhas de cocaína. Ficamos debaixo de uma árvore, parecia que era um ponto de encontro para outras pessoas porque tinha algumas pedras para se sentar. Me olhou e cheirou uma linha de cocaína atrás da outra. Eu tocava meu pau como se cada linha que ele inalasse me excitasse mais. Pegou a maconha que tinha. “Eu posso sentir isso daqui, cara”. Pegou meu pau. Eu continuo fumando. Colocou sua mão na minha calça. Acariciou meu cabelo e levou a mão para baixo. Eu continuo fumando. Me empurra. Eu tropeço. Caio. Eu continuo fumando. Deixo cair minhas calças. Chupa meu pau. Eu continuo fumando. “Vem me comer”, me pede. Coloquei ele no chão. Enfiei meu pau. Via sua expressão de prazer e seus olhos virar. Gozo dentro dele. Continuo fumando. Cheiro de flores. * A vida é tão contraditória que pedimos coisas eternas para situações efêmeras. Um trem em uma ponte. Uma estrela cadente. Um copo de vinho. Uma pessoa desconhecida. Uma linha de cocaína. O cara que conheci na Vila Hermosa. * A Florencia e a Romi tinham muitas diferenças. Diferiam pela forma como aplicaram essa rejeição pela vida e faziam algo mais prático, cotidiano e crítico. Romi já se sentia muito velha e cansada pra tentar mudar seu mundo ou pelo menos sua vida. Ela tinha um namorado com um pau bem grosso, que tinha uma casa onde seus amigos e amigas podiam ficar, também um bom traficante e também um trabalho estável. Eu gostaria de tê-las conhecido antes. Ou na infância. 20
Embora, ao mesmo tempo, pensei que não poderia ter sido melhor. Eram mulheres como as que nunca conhecera, como as mulheres que meu pai fodia, mas eu sei que nem a Florencia nem a Romi teriam se permitido ser arrastadas. * Eu não beijava. Mantive os beijos para o garoto que não me pagasse. A Florencia me ajudou a pegar alguns clientes com algumas conversas na internet e alguns de seus conhecidos que gostavam de novinhos. A pior coisa sobre não encontrar as pessoas certas é se deparar muitas vezes com as pessoas erradas. Eu tive a minha primeira vez com um homem de quarenta anos ou mais que era o pai de outro cara que eu conhecia no bairro. Primeiro ele me pediu para chupá-lo, se abaixou até o saco, abriu as pernas e quase colocou minha cara em sua bunda. Me pediu para fodê-lo e logo que a cabeça do meu pau o penetrou, ele gozou e me disse para sair. Depois de três dias ele me pediu para vê-lo novamente, me disse que tinha ficado querendo me aproveitar melhor. Alguns caras me pediram sem camisinha, que eu gozasse fora. Pensava que nada ia acontecer, mas peguei a gonorréia assim, por acreditar nesses idiotas que fodem sem se cuidar e sem cuidar das outras pessoas. * Pele fria como a terra de uma ilha do sul. Ele tinha histórias que o atravessavam formando traços geográficos por todo o corpo. Canais que eu queria atravessar. Seu cabelo era frágil, suave e leve. Me pedia para acariciar seus cabelos e a nuca. Depois ficava mais insistente e me pedia com força no pescoço. Ele gostava de tudo. Gostava suave e forte. E eu me movia, suave e forte. O amor não precisa doer, mesmo que você tenha aprendido isso quando menino. O sexo não precisa ser mediado pela violência, mesmo que você tenha experimentado isso quando criança. Não é necessário submeter-se a alguém para se sentir amado, mesmo que o tenha tratado dessa maneira. O amor 21
não precisa ser uma relação de troca. Não é necessário destruir tudo para construir. Não é necessário atingir os limites para saber até onde ir. * Voltei para Vila Hermosa duas semanas depois de conhecer o Marcos. Eu ainda podia sentir sua pele contra a minha, a explosão do meu corpo dentro dele e todo aquele acúmulo de sensações antes do surto. A gente não falou para se encontrar novamente, mas em nossas palavras, era possível encontrar algo do futuro. Voltei a fumar um cigarro sob essa luz. Lá estava ele de novo. “Tô com a casa sozinha, você quer vir ou dar pra fazer alguma coisa aqui?”, falou. Colocou o capacete e fomos para uma casa, aquela de seu primo que, de acordo com o que ele me disse, uma vez por mês deixava a cidade por uns dois dias. Poderíamos nos ver com mais frequência, mas eu não tinha que falar com ninguém sobre a casa ou especificamente sobre isso. Naquele dia ele cozinhou alguma coisa. Tinha pra beber. Ligou a televisão. Permaneceu ligada. Tirou seu tênis. Nos sentamos em uma poltrona. “Peguei uma bem boa, vem pra cá, me abraça”. Eu coloquei minhas pernas ao redor dele para sentí-lo com meu peito, respiro em suas costas e o contenho com meus braços. Uma atrás da outra, ele subiu com cada linha. * Dario se jogou em mim enquanto eu dormia na sala. Ele colocou seu pau na minha boca. A Romi estava vomitando no banheiro. * A diferença entre nós é também que se ele me dissesse para correr para a casa onde ele estava, eu pegaria a moto e sairia. E se ele me ligasse e me disser que não, eu não ficaria bravo com ele, mas sim comigo. Ele ficava bravo com si mesmo por se deixar seduzir pelo fantasma da 22
ansiedade e do “amor romântico”. Ele ainda está bravo consigo por me dizer para nos vermos e para que eu fantasie novamente. Quando o amor não existe mais, aparentemente, mesmo que hoje eu queira sair e procurar por ele. Aprontei a mochila, armei um baseado, coloquei meu tênis, guardei algumas coisas que tinha que levar para meu trabalho amanhã. Eu já tinha me despedido do Braian e mentido para ele. Talvez eu devesse finalmente ficar com raiva de mim mesmo. O qué é a raiva se não me ajuda a refletir porque eu não sou mais cabeça, menos coração e menos pau. Se ele não tivesse me chamado pra sair, eu não teria tantas expectativas. Se ele não tivesse me dito pra sair, não estaríamos nessa situação. A contemporaneidade é marcada pelo conceito de realidades relativas. Realidades que nos separam cada vez mais. Tentamos nosdesarmar. De dois. Até onde vão os pensamentos? Até onde chega a fuga? Quando será o último dia em que eu vou para minha cama pensando nos detalhes da sua vida que você fez para mim? Quanto tempo você vai ocupar todas as ruas que compõem esta cidade? Estou outra noite assumindo coisas. Essa é a minha neurose. Eu vejo pessoas onde não há. Onde há pessoas, vejo o vazio. Eu vejo o vazio do corpo porque este corpo sempre esteve vazio. Eu vejo os problemas porque nesta cidade sempre houve problemas. Meu problema é a suposição do evento. Porque nada é estável e por causa da base eu sou instável. Eu queria pegar sua bicicleta. Eu sou o passageiro que perdeu a viagem mais legal de todas. * A Romi saiu do banheiro de joelhos. Darío goza na minha cara. A Romi joga uma garrafa em sua cabeça. Me expulsam da casa. * A mesma coisa sempre aconteceu com o Marcos. Ele passava pela rotatória por mim cada duas semanas, dependendo de duas coisas, se ele tivesse a casa sozinha ou se tivesse pegado cocaína. Eu tinha um número de telefone pra falar com ele em um horário específico. 23
Quando a Romi pegava cocaína, eu sabia que eu ia ver o Marcos em breve. Às vezes ficávamos muito tempo falando pelo telefone. Ele falava muito sobre seu presente como se fosse algo que não queria atravessar. Falava muito sobre seu passado, sua infância, sua adolescência e pósadolescência. Como se confiando em mim tudo isso, explicava como era ele no presente, mas sem usar palavras concretas. Eu ouvia ele juntando cada uma de suas anedotas. Entendi a forma de sua boca, pelo sorriso de uma infância que ele conseguiu desfrutar. Tinha os olhos um pouco tristes por uma adolescência obscura nesta cidade de merda. As drogas e um amor não resolvido em sua pós-adolescência também o marcaram por todo seu corpo. Ele iria por mim na rotunda. Quando ele chegava, eu não conseguia conter o abraço. Ele estava feliz com o meu abraço. Eu sabia. * Como percebe que está fazendo amor e não apenas fodendo? Senti algo passar por todo o meu corpo. Saiu pela minha boca e eu dei pra ele. Saiu pelos meus olhos e eu dei pra ele. Se expressou em minhas mãos e dedos e dei pra ele. Senti vibrar nas estruturas da minha pele e eu dei pra ele. Escapou de mim pelo pau e eu dei para ele. Quebrei meu corpo, alma e coração e dei pra ele. * Até que eu descobri que podia roubar, me prostituí por mais três anos. Aos 17 anos minha fisionomia estava tentando se transformar em um adulto e os caras gostavam disso. Eu tinha certa inocência no meu rosto e corpo, como se eu ainda fosse virgem e sempre fosse a primeira vez que eu fodia. Estava sendo conhecido no trabalho sexual e isso me trouxe problemas na rua. Eu quase não tenho moral, só a moral do respeito por aqueles que não me incomodam, mas as pessoas assim constroem sua moral baseada em imposições religiosas e instituições que perpetuam costumes e tradições hipócritas. Quando saía de casa durante o dia cruzava-me com alguém que primeiro me insultou; se 24
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eram mais pessoas me expulsariam do lugar e se vissem que eu andava de bicicleta, atirariam pedras em mim para me apressar. Certa noite, eu estava com um cara em sua casa pequena e longe do centro. Eu fui de bicicleta. A casa era só um ambiente único, me senti sufocado. Ele trancou a porta e disse que algumas pessoas tinham entrado duas vezes naquele mês. Me pediu para eu tirar seu tênis. As meias. Depois as calças. Para eu limpar a bunda dele. Depois me pediu para estragar tudo. Me pediu para mijar. Eu dei a ele. Ele me pediu para limpá-lo, limpar o chão. Sacou uma arma. Coloca na minha bunda enquanto eu estou agachado limpando. Quebro uma garrafa na cabeça dele. Ele cai inconsciente. Eu esvazio sua carteira. Eu cuspo no rosto dele. Eu acho a chave, vou embora. Nunca mais me prostituo nesta cidade de merda. * “Pra sempre com você cara”, me disse. E eu acreditei nele para sempre, mesmo que depois ele tenha desaparecido. Eu estava me apaixonando por Marcos, embora eu realmente não soubesse o que era estar apaixonado, o que eu tinha que fazer ou como eu tinha que agir. * O policial foi para Vila Hermosa. O traficante me falou. Uma denúncia sobre a venda de drogas feita por uma das famílias mais ricas da cidade - a segunda no comando da distribuição de cocaína na área. Tentaram desviar a investigação contra eles e também sujar o prefeito: seu filho é um dos detidos, a cidade está em estado de choque. O jornal local publica todos os nomes. Leio: Marcos Molinari. Eu chamo o telefone fixo que ele me deu. Um cara pega: - Oi, é o Marcos? - Não, não está. Quem fala? - Ele tá preso? 26
- Eu perguntei quem você é. - Um amigo. Você é o primo? - Que amigo? Não, eu não sou o primo, o Braian, seu parceiro. E sim, tá preso. Desliguei. * Quando Romi veio me visitar no hospital, me pediu para morar com ela novamente. Ela havia se mudado. Havia deixado Darío. Também estava trabalhando de noite para pagar uma casa. Me disse que não precisava me perdoar nada, que Darío havia tirado vantagem da minha situação na casa e da minha história. Talvez eu senti que ela estava me perdoando. Aprendi de seu perdão, do que um perdão pode significar, do que eu fui para ela e ao mesmo tempo o que ela significava para mim. Voltando, eu poderia ajudá-la com o aluguel e ela poderia começar a trabalhar menos. * Eu perdi minha capacidade criativa. Eu perdi a capacidade de imaginar, a força para acreditar e a força para criar. Desde o começo, mutilaram meu corpo. Eu tive que montar um novo com peças que encontrei no caminho. Ainda estou perdido na rota, não sei se me abandonaram ou se fugi de casa. Ninguém merece tantos golpes. Ninguém merece tantos golpes. Ninguém merece tantos golpes. Você tem que ser forte para não atacar quando de repente uma mão quiser acariciá-lo. Eu escapei na noite como se fosse um lugar habitável, entre grunhidos eu conheço meus pares. Entre arranhões, entre mordidas. Até onde vai a noite, quão profunda é a escuridão? Quão longe o vazio da escuridão? Eu pronuncio o meu nome uma, duas, três, infinitas vezes em voz alta para me sentir vivo. Um grito de dor me escapa. Eu desarmo meu nome em sílabas, as sílabas em letras.
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M-A-R-C-O-S Me desarmo para me reconstruir. Me vejo deitado no chão. Me vejo. Me sinto. Eu me percebo. A única maneira de perceber que eu existo é me encontrar desse jeito. Eu ainda estou vivo. Como continuo? Aquela batida do coração que ouço, como amplifico? Como dou canal para o sangue que eu ainda tenho? Como faço para entender minhas palavras, força pra meus sentimentos? A luz não se apaga, mas como posso propagá-la através desse vazio? Como espalhar a luz e sua energia através deste vácuo pesado? * Meu pai é encontrado morto em sua casa. Seu corpo se decompôs há uma semana. Se afogou em vômito, cirrose hepática. Eu fui para o velório. Dois colegas de trabalho, eu e uma coroa de flores. * Quanto tem que acumular para tornar a vida uma experiência? Quanto tempo pra você não dar errado novamente? Quanto tem de casual e quanto é intencional, verdadeiro e essencial? Forjei minha pessoa nadando no lago, trabalhando a terra do quintal abandonado com meu pai e minha mãe, projetando imagens no teto do meu quarto, decidindo não sair para o recesso para não passar tempo com alguém, escolhendo com quem eu queria foder, escolhendo com quem fazer amor, escolhendo meus companheiros de vida, devolvendo as pedras que eles me jogaram enquanto andava de bicicleta, sendo atingido, caía. Eu criei cicatrizes, endureci minha pele e meu espírito. Eu aprendi a abraçar. Eu aprendi a abraçar. Eu aprendi a me abraçar. Aprendi a te abraçar. * 28
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Um carro freia ao lado, eu estava na bicicleta. Um cara sai. Ele me pergunta se eu havia retornado à prostituição. Me oferece trezentos pesos. Não aceito. Puxa sua mão pela janela e agarra minha boca com força. Me diz que eu sou um viado de merda. Que um dia minha família ia ouvir de novo sobre mim, mas porque iam ler no jornal que tinham me encontrado estuprado e jogado em um terreno baldio. Eu pego uma pedra grande. Afundo o teto do carro. Saio rápido na bicicleta. Estou com medo, quero abraçar o Marcos. * Depois de dois meses, eu chamo Marcos naquela hora e dia que costumávamos nos falar. Ele responde. Me diz para voltar pra sua casa. Também me pergunta se eu posso pegar um pedido que fez ao traficante. Está tudo bem. Está tudo bem. Está tudo bem. Eu sinto que estamos num limbo. * Se a sorte existe, também há má sorte e nascer neste contexto é o mesmo. Há pessoas que acreditam que estou fazendo as coisas muito bem, há pessoas que acreditam que estou fazendo muito mal. Há pessoas que não acreditam em nada. Para essas pessoas eu não existo. Nós somos considerações. Eu sou considerado um homem por alguns. Eu não me sinto como um homem para ninguém. Eu não sinto. Às vezes me sinto representado por algumas figuras variáveis que compõem os outros. Outros, e na maioria dos casos por nenhum. O importante é que a configuração do outro não seja baseada em estereótipos estáticos repetitivos e fechados. Eu te condenei a me condenar. Não posso viver isso de outra forma, eu não posso passar por isso, exceto com culpa. Eu matei você me matando. Eu arruinei sua vida arruinando a minha. Ou fez uma merda de mim, e fomos fazendo merda de tudo. Eu teria estado lá para o Braian. Não sei o que fazer para cuidar de mim agora, porque não acho que você possa fazer isso. Eu não acho que você possa me perdoar. Não consigo ser honesto. Se a culpa não me matar, eu vou me 30
matar. Acreditando em otimismo com frases encorajadoras, nada fazemos senão tentar nos convencer de uma realidade inexistente. Eu não tenho mais futuro. Se vamos romantizar algo, isso é sofrimento, a vida é uma merda. O amor não pode ser romântico, o amor romântico é essencialmente violento. Sim, essencialmente violento. Você me pediu para não me apaixonar por drogas, eu me apaixonei por seu pau. Você sabe o que é ainda pior? Eu me apaixonei pelo resto do seu corpo, sua mente e sua história. * Eu chego na sua casa às dez da noite. As molduras estão sem girar. Vejo o Braian em quase todas as fotos. Eu nunca tinha visto o Marcos tão triste. Tira minha roupa imediatamente. Pega a cocaína. Me vira. Me lubrifica com um beijo. Ele vira para mim. “Te amo cara”, eu digo enquanto ele me fode com força. Eu podia ver suas lágrimas escaparem entre seus olhos fechados. (Onde você está Marcos, onde você está quando não olha para mim?). “Eu também te amo”, me respondeu. Coloca os dedos na minha boca, talvez para que eu não falasse mais. E mais e mais forte. Ele chora cada vez mais alto. Agarra minhas mãos, as coloca nas minhas costas e me estica. Me manda seu pau bem pra dentro. Acelera. Me arranha. Eu grito. Eu nunca o vi tão triste. Chora. Ele cobre seus olhos com uma das mãos, como se não quisesse ver o que estava pensando. Me fode mais forte. Nunca o vi tão triste. Me vira. Me abre. Me beija. Me molha com suas lágrimas. Me morde os pés. Beija meus pés. Eu sinto suas lágrimas em meus pés. Isso, goza por dentro. Eu nunca o vi tão triste. Consome toda a cocaína que pode novamente. Se injeta. Bebe. Volta para pegar mais cocaína. Não me fala. Não olha para mim. Fecha seus olhos e cai. Não acorda. Não acorda. Eu nunca o vi tão triste. Não consigo ouvir sua respiração. Chamo o primeiro número que encontro no seu telefone. Deixo nas mãos de sua irmã e da ambulância que chega apenas às duas horas. * O Marcos vai para o lago. Atirou em si mesmo com o 22. Braian morreu 31
de HIV diagnosticado tarde. Impossível rastreá-lo com qualquer tratamento ou vontade do hospital público desta cidade de merda. O Marcos vai para o lago. Ele se mata com sua arma. Se sente fraco, culpado, não tem esperança. Toda a paisagem está assustada. Meu corpo cai no chão quando leio o jornal local. Quando toda a sociedade lê sua morte e nas entrelinhas pensam “outro viado morto de AIDS”, e eu acho que ele foi morto por essa sociedade. * O que é ser forte? O que é ser fraco? Quando abandonamos a vida, amamos a vida ou quando queremos a morte, quando abraçamos a morte, estamos sendo fracos ou fortes? Eu ouvi muitas vezes que você tem que ter coragem para tirar sua vida, deixar um amor. Eu ouvi muitas vezes que você tem que ser muito fraco para se deixar morrer, não continuar lutando. Precisamos de força de qualquer maneira, pontos fortes e fracos que agem juntos, talvez para nos manter vivos. Existe algo mais bonito do que estar vivo? A morte também deve ser linda, o problema é que você não sente isso. E o sentimento é lindo também. Eu acho que o Marcos era fraco, ele era fraco. Eu acho que eles nos querem fracos, sua família o queria fraco, ele queria estar morto, embora ele já tivesse sido morto várias vezes. Eu acho que eles nos querem mortos, a sociedade nos quer sem força para causar nossa autodestruição. Eles me mataram muitas vezes, mas eu nasci de novo. Não porque eu quisesse exatamente, não porque eu tivesse força. Essas forças eu mantive até agora, eu acho. Eu também acho que eu preciso deles agora mais do que nunca, se eu cheguei aqui é por causa de um pouco de sorte, um pouco de sorte e também graças aos meus amigos. Eu não quero ser forte para deixar de viver e para agradar meu pai que sempre quis me ver morto por ser viado. Eu não quero dar o gosto a esta cidade que nos quer nas sombras. Não quero dar prazer a este sistema de saúde que nos quer cada dia mais doentes. Não quero dar o gosto aos caras do bairro que tentaram com cada pedra fazer com que eu caísse da bicicleta para quebrar a cabeça. Eu não quero dar prazer a todos os caras que tentaram fazer do meu corpo um objeto 32
e depositar em mim todas as suas frustrações. Me pergunto se eu estava apaixonado por Marcos ou se eu estava apaixonado pela vida do Marcos, com a vida que eu poderia ter com ele, com a ideia de alguém que gostasse de mim e pudesse fazer isso por prazer e por amor. Eu também me pergunto se ele estava apaixonado por mim. Todo dia eu ouço vozes, a Romi me falou sobre, por isso ela teve que ir ao psiquiatra. Ele me disse que não é bom tomar antidepressivos. Uma cara me disse que o suicida fica separado do mundo da realidade. Para mim, o mundo da realidade são as palavras e a comunicação. O suicida não encontra mais palavras ou não consegue se comunicar. O suicida está morto. O suicida não escuta mais as vozes do lado de fora, apenas as da sua cabeça. O suicida não escuta, o suicida não fala mais. Eu acredito na existência de algo mais que um corpo. Corpos como refúgios, não apenas como campos de batalha. Eu acho que somos mais de um corpo muitas vezes. Somos refúgios de corpos. Acho que temos que cuidar do corpo refúgio que nos toca e tudo o que ele contém, o que entra e sai do refúgio, o nosso e o dos outros. * A irmã de Marcos me encontra andando de bicicleta pela cidade Foi difícil para ela me encontrar, me disse. Me deu uma carta que encontraram ao lado do corpo de Marcos naquela tarde.
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Me ame cara, me ame. Eu sei que sou um desastre com as emoções, que não ponho fim, que se fosse por mim eu dormiria com sua mão na minha bunda todas as noites. Mas há alguma verdade quando estamos fodendo e nos olhamos fixo por um tempo. Eu sei que é medo porque tudo isso é muito, na verdade, tudo isso é muito. Mas eu sinto você bem perto e quero que você apoie seu pau na minha perna e mova-se assim, lentamente ... Fazer isso com você em todos os lugares. Me ame, quando acordamos juntos, rindo e dizendo “olá, miau”. Realmente, cara, tudo isso é muito, e falar sobre os acordos e o coração partido em mil pedaços, a endogamia, ser politicamente corretos, toda aquela merda que nos faz ir mais longe do que fazem as carícias. Ficar mais em um poço que aprender do desapego. Eu sou um cachorro, um cachorro abandonado na chuva, todo molhado, todo triste e angustiado. Não me importo de ser um idiota, falando como crianças de três anos, eu sou tão idiota que eu não tenho vergonha de escrever com esta caneta que não é colorida e que não funciona. Cara, eu tenho tanto ódio dentro de mim, tantos copos para quebrar, tanto fogo para invocar ... Que isso, cara, tudo isso que invade minhas entranhas e meu pau, isso, não vou reprimir. Eu te amei. Eu juro que te amei. Mas preciso parar de sentir essa dor que sinto. Eu juro que te amei. Por favor, faça também. Marcos.
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Refugios Para às almas perdidas que poderiam se encontrar nesta história e àqueles corpos que também tiveram a sorte de se conhecer, coincidir e se apaixonar nas ruas, na estrada, no parque, na floresta, na vida e em todos os tipos de refugios que construimos para sobreviver neste mundo que nos quer mortxs. História e imagens homoeróticas, políticas e poéticas na busca da consciência dos corpos e visibilidade das opressões. A carta de Marcos foi originalmente escrita por Fer, el Perro de Alberdi, Córdoba, mas editada por AYACOW: instagram.com/escoria.ediciones A edição do Refugios em português é uma auto-publicação com correções na tradução de Celso Serrão, João Pedro Simões e Sillas H. Além da contenção de meus amigxs Jose e Mateo. Are You a Cop or What? Segunda edição e impressão en: Setembro - MMXVII Segunda edição e impressão: Junho - MMXVIII Edição em português: Julio - MMXIX Edições futuras serão feitas em contexto de desejo e urgência. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina ayacow.com ayacow@riseup.net