Subtrópicos n21

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revista da editora da ufsc

agosto 2015

#21

Vantagens de aprender • Fortalezas lusitanas • A vida é rala • Pregação sem medida • Na sala vip • Diante de Kafka • Sylvio Back: Dores silenciosas • Onde a pintura faz a curva • Fotografia: Paula Michels


expediente

Caléu Nilson Moraes (Santa Cecília, 1984)

é escritor, mestre em Antropologia Social pela UFSC, doutorando em Estudos da Tradução na universidade.

pamella schneider

literatura

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Vantagens de aprender

Caléu Nilson Moraes

Conto do livro Guia literário para machos, vencedor do Concurso de Contos Silveira de Souza, promovido pela EdUFSC, que será lançado em breve pela editora

revista da editora da ufsc

agosto 2015

#21

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Reitora Roselane Neckel Vice-Reitora Lúcia Helena Martins Pacheco EDITORA DA UFSC Diretor Executivo Fábio Lopes da Silva Conselho Editorial Fábio Lopes da Silva (Presidente) Ana Lice Brancher

Hoje as coisas mudam. Minha vida está uma bosta. Tenho trinta anos, já li de tudo. Sei mais que você, estou certo. Escrevi 13 teses, 6 dissertações e 34 monografias. Tenho, portanto, 13 doutorados; só em história são 4. Tenho 497 livros. Um número pequeno. Já tive cerca de dois mil. Como as coisas apertaram, fui forçado a vendê-los. Grande parte do que tenho é roubado. Hoje eu me livro de mais três: vou vender os exemplares de Harold Bloom para um estudante empobrecido que ainda o lê. Eu limpo meus livros com álcool toda semana.

Andréa Vieira Zanella Andréia Guerini Clélia Maria de Mello Campigotto Luis Alberto Gómez João Luiz Dornelles Bastos Marilda Aparecida de Oliveira Effting Editor Dorva Rezende Planejamento gráfico Ayrton Cruz Foto da capa Ayrton Cruz Revisão Aline Valim Gráfica Tipotil Tiragem 1,5 mil exemplares

Acesse a versão eletrônica da Subtrópicos no site da Editora da UFSC — www.editora.ufsc.br

Eu dizia que minha vida está uma bosta. Verdade. Eu preciso de alguma coisa que me salve. Eu não ganho muito escrevendo teses. Ganhei mais, mas parece que as pessoas estão tentando escrever as suas. Descobri há pouco que sou viciado em livros. Eu gosto de tê-los. De roubá-los. Quando as coisas apertam, eu os vendo. Mas hoje as coisas mudam. Às vezes eu quero escrever um diário do ladrão de livros. Há histórias de furto, presumivelmente. Mas também reflexões ou pensamentos sobre a arte de roubar. Talvez, um que outro ensaio sobre os exemplares roubados e lidos ou sobre livros em que existem ladrões de livros. Não sei. Tenho preguiça. Muita preguiça. Dizem que os textos de Nicolae Iorga, escritor romeno morto com nove tiros, somam 1.250 volumes e outros 25 mil artigos. Caralho! No Brasil ninguém escreveria tanto. Por duas razões: primeiro, temos de fazer sexo; depois, o calor. Este país é muito quente. Mesmo aqui onde vivo, ainda que apareça neve de vez em quando, é quente. Existem moscas... insetos. Uma merda! Não quero escrever tanto. Não poderia fazê-lo. Tenho de foder. Foder. Não me sobra outra coisa. Nem pra mim, nem pros outros brasileiros. Não pensem que foder é um tipo de martírio. É um dever, decerto. Mas temos sorte de que esse seja o nosso dever. Os outros têm outros deveres: como ir a Marte; arranjar dinheiro; produzir porcarias, como os chineses. Escrever livros; fazer música; matar-se e aos adversários. Meu dever, graças ao diabo, é trepar. É perseguir meninas. Que vida, porra! Que vida. Eu não reclamo, porque odeio quem reclama. Fazer poesia e reclamar é coisa de viado. Quando eu tinha quinze anos, comecei escrevendo versos. Aí, logo que fiz dois ou três poemas, eu desisti. Pensei: isso é coisa de viado. Não dá! Claro que há tempos e tempos. Por exemplo, na época dos trovadores, quando as pessoas não sabiam mais escrever em prosa, faziam canções e poesia. Mesmo os homens de verdade. É o caso de Guilherme IX, o rei trovador. Li um romance de Doris Lessing em que uma velha começa a transar com todo mundo. De repente, ela põe uma fita pra tocar: são as músicas duma trovadora medieval que, a despeito de ser mulher, escreveu feito um homem.

Campus Universitário — Trindade Caixa Postal 476 88010-970 — Florianópolis/SC Fones: (48) 3721-9408, 3721-9605 e 3721-9686 editora@editora.ufsc.br www.editora.ufsc.br www.facebook.com/editora.ufsc.5


Guilherme IX comia todo mundo. Gosto dos seus poemas: Uma, com um manto me cobriu, Levou-me pro quarto e o frio, Sentindo-me bem, foi, sumiu! Que bela chama! E eu me aquecendo nos grandes Carvões da dama.

Estes versos narram a história de duas irmãs que o trovador comeu fingindo-se de mudo. Mentir para transar é bastante comum. Todos fazemos isso. Às vezes dizemos que as mulheres são lindas mesmo que sejam feias como o diabo. Tenho uma história. Ontem pela manhã eu comprei carne. Quase não compro, porque detesto. Mas como estou ficando muito magro, acho que tenho que comer à força. Não posso sair por aí comendo gente com um corpo feio. As pessoas merecem que sejamos todos um pouco belos. Eu costumo fazer exercícios e tal, mas sem comer carne não tem jeito. Eu queria ter dinheiro para comprar aqueles suplementos alimentares, as bombas de proteína. Aí eu poderia me livrar da carne. Eu gosto dos bichos e quero que voltem a dominar o mundo, mas isso é outra história. Pela manhã de ontem eu comprei carne. Meio quilo de bife. Caralho! Que rabão o da filha da minha vizinha! Enquanto escrevo meu conto eu a vejo desfilando a bunda grande num shortinho apertado. Bendito seja o verão! Enfim, de volta à história da carne, convidei a caixa do supermercado para jantar. Disse que fui comprar carne porque eu queria convidá-la. Porra nenhuma! Aí, falei qualquer bobagem sobre ela ser linda. Ficou com vergonha e disse que não podia porque tinha que cuidar do filho. — Leva junto, poxa! — eu disse. O menino não estava nos meus planos. Hoje quase todo mundo tem filhos. Eu já devia saber. Enquanto eu falava com ela, roubei dois chocolates. Pediu meu nome, e menti que era Eduardo. É a porra dum nome de playboy mas não tenho onde cair morto. Ela não precisa saber. Elas nunca precisam saber a verdade. Temos que sobreviver de aparências. Por fim, depois de alguma insistência, ela aceitou. Emprestei a casa dum amigo e a levei até lá. O moleque estava no banco de trás. Meu quilo de bife não ia dar pra nada. Eu nem sei cozinhar. Então, pedi pra Jéssica, minha vizinha, que fizesse alguma coisa. Eu a como de vez em quando. Ela gosta de chupar. Sempre dá a buceta e o cu, mas gosta mesmo é de lamber uma pica. Cozinhou arroz, fez batata frita, uma salada e bife. Disse que faz qualquer coisa que eu pedir. Não é bonita. É velha. Tem quarenta anos. Mas que se foda. Sempre tenho alguém pra me chupar. Levei a comida até o apartamento do meu amigo. Depois, chegamos eu, a moça e

o menino. Três infelizes com fome. Dois filhos da puta com vontade de trepar. Não sei o que passava na cabeça da criança. Porra nenhuma, sei lá. Quando a gente é pequeno, nunca pensa em nada. Enquanto a gente comia, ela perguntou: — Faz tempo que você mora aqui? — Dez anos — gosto de números redondos. Mandei o piá assistir televisão, e fomos para o quarto. Eu digo desde já: NÃO ERA BONITA. Não valeu a carne que gastei. O bife me rendia três dias de almoço. E aquele menino de bosta comeu tanto... Tanto! Eu poderia esquentar a comida. Não sei. Inventar alguma coisa. Mas ele comeu tudo. Depois que ela tirou a roupa, comecei a perceber a merda que eu tinha feito. Era muito magra. Tinha ossos saltados por todo o corpo. Além disso, uma verruga muito feia nas costas. Vai tomar no cu! Porém, já que estávamos lá, eu a comi. Felizmente inventei um nome, e o apartamento não era meu. A buceta parecia a de uma velha. Já comi algumas velhas, duas ou três, em troca de algum dinheiro. Mas aí é diferente. Você está ganhando. Com aquela coitada, eu havia perdido. Detesto pensar que perdi alguma coisa. Vivemos para ganhar. Eu festejo qualquer conquista. As coisas boas que me acontecem é que me dão ânimo para seguir vivendo. Quando as coisas dão certo, eu sinto que meu sangue ferve e tenho vontade de explodir. Bato muita punheta para comemorar. Às vezes eu bato punheta para comemorar quando eu fodo com uma mulher gostosa. Mas aquela coitada! Puta merda... eu queria bater nela de pena. Mas não fiz nada. Eu apenas a comi, mal e porcamente. Foi uma merda. Ela deve ter pensando que eu sou um bosta na cama. Depois da ereção, que consegui a custo, eu meti com força, mas sem vontade. Ela percebeu. As mulheres sabem quando o homem não come com vontade. Uma amiga me contou. Enfim. Foi uma bosta. Perdi dinheiro e tempo. Poderia ter lido algo que prestasse e aprendido alguma coisa, batido uma punheta ou comido alguém melhor. Minha vida está uma merda. Quando as coisas dão errado, não conseguimos nem atrair uma mulher que valha a pena. Não sou de acreditar em nada, mas eu li certa vez que Aleister Crowley, o satanista maluco, disse que todo ato intencional é um ato mágico. A vida é uma espécie de mágica. Sempre temos algo para aprender, e eu gosto quando podemos usar aquilo que aprendemos. Por isso eu escrevi há pouco que minha vida vai mudar. Fazer alguma coisa com vontade é um ato mágico. Veja, você está na merda, todo ferrado, as pessoas cuspindo em você. De repente, você levanta. A gente só perde o jogo que quer perder. A vida só vai me passar a perna se eu tiver alguma vantagem nisso. Não sei quando, mas vou mudar minha vida. Hoje eu escolhi mudar. Agora é só pôr em prática. Eu queria escrever sobre as vantagens de aprender. Mas vou fazê-lo em outro conto, porque este já está muito longo.

lançamentos da

EdUFSC

livros

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Mulheres e o Mar: Pescadoras Embarcadas no Litoral de Santa Catarina, Sul do Brasil autora: Rose Mary Gerber Este livro apresenta o resultado de uma pesquisa em antropologia com pescadoras que se dedicam à pesca artesanal no litoral de Santa Catarina. Durante 11 meses, Rose Mary Gerber mergulhou no cotidiano dessas mulheres de forma intensa, participando dos momentos de ação em terra e no mar. Os embarques e as conversas no dia a dia permitiram que a pesquisadora capturasse sutilezas no modo como as pescadoras se constituem como sujeitos em meio aos processos de assujeitamento com que constantemente se deparam.

Saúde Indígena: Políticas Comparadas na América Latina organizadoras: Esther Jean Langdon e Marina D. Cardoso O livro preenche uma lacuna importante na literatura sobre saúde indígena e políticas de saúde na América Latina, temas que até agora têm sido objeto de pouca reflexão comparativa. Trata-se de uma análise sobre as políticas de saúde indígena implantadas em seis países latino-americanos (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Venezuela), realizando uma discussão crítica sobre a formulação e a práxis dessas políticas em contextos nacionais e etnográficos distintos. Mesmo que todos esses países tenham implementado políticas e programas de saúde em nome da diversidade, multiculturalidade ou interculturalidade, as diversas soluções examinadas neste livro revelam as contradições e os desafios que ainda se fazem necessários para a realização plena dos direitos dos povos indígenas da América Latina de inclusão nos programas estatais de atenção à saúde.

O Clamor de Antígona: Parentesco entre a Vida e a Morte autora: Judith Butler Este livro, originalmente publicado nos Estados Unidos há uma década e meia, é um marco na obra de Judith Butler. Nele, está desenvolvido um dos eixos centrais de sua reflexão teórica feminista: a tensão entre as regras — representadas pelas leis do Estado — e o desejo dos sujeitos, expresso e vivido através de práticas sociais inovadoras e transformadoras. Antígona, personagem que por muito tempo perdeu espaço para Édipo nas interpretações da obra de Sófocles, foi retomada por teóricas e militantes feministas contemporâneas como um exemplo da revolta das mulheres e da luta contra o Estado. Judith Butler aqui vai além das leituras tradicionais, a partir de um intenso diálogo com Hegel e Lacan.

notas universitárias w A série Livro da Minha Vida, produzida pela Editora da UFSC para o Facebook, já conta com 80 depoimentos. Entre os entrevistados, estão Toquinho, Lenine e o escritor Fernando Morais. w Confira todos os vídeos em nosso canal no Youtube: https:// www.youtube.com/user/editoraufsc


reprodução EDUFSC

história

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Fortalezas lusitanas Revisada e ampliada, segunda edição de As defesas da Ilha de Santa Catarina e do Rio Grande de São Pedro em 1786 resgata o documento histórico do engenheiro português José Correia Rangel, compilado pelos arquitetos Roberto Tonera e Mário Mendonça de Oliveira

formado na PUC-RS, com MBA em Jornalismo: Gestão Editorial pela Universidade Tuiuti do Paraná.

Caetano Machado (Criciúma, 1975) é jornalista

Caetano Machado Feito entre 1786 e 1789 por José Correia Rangel, ajudante de Infantaria com exercício de engenheiro, o documento sobre as fortalezas de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul é um rico relatório técnico dessas unidades bélicas. Quase 230 anos depois, Roberto Tonera e Mário Mendonça de Oliveira o resgatam e transformam em livro, contextualizando e traduzindo as informações sobre esses locais e os homens que neles viviam e os guarneciam. A segunda edição de As defesas da Ilha de Santa Catarina e do Rio Grande de São Pedro em 1786, revisada e ampliada, da Editora da UFSC, está sendo vendida, ainda, a preço de custo — R$ 30,00, enquanto durar a tiragem subsidiada pelo Ministério da Cultura. A disputa entre Portugal e Espanha pela porção austral do Brasil é analisada pelos autores na Introdução. Logo depois da trégua entre os países ibéricos, Rangel compi-

lou o sistema defensivo lusitano, quantificando minuciosamente os recursos humanos e materiais para a empreitada. Tonera e Mendonça reproduzem os detalhamentos descritos por Rangel nas 76 páginas do original — atualmente depositado no Arquivo Histórico Militar de Lisboa. O manuscrito, de tamanho de uma caderneta, inclui o levantamento gráfico das fortificações e mapas extremamente acurados, com “pouquíssimas discrepâncias em relação aos atuais: a Ilha de Santa Catarina já é precisamente representada em seus 54 quilômetros de extensão e 18 de largura máxima leste-oeste”. Fortificações como as de Santa Cruz de Anhatomirim, São José da Ponta Grossa e Santo Antônio de Ratones (revitalizadas pelo projeto Fortalezas, da UFSC) são vivamente reproduzidas em fotografias. Rangel fez o mesmo dentro de suas possibilidades, duzentos anos antes: desenhou-as minuciosamente, dando pistas para estudos nos séculos seguintes, usando as convenções para repre-

sentar as técnicas utilizadas em determinada construção ou projetos não executados. As aquarelas de Rangel reproduzem o vestuário de cada regimento, em suas variadas classes, de Desterro (Floriano Peixoto ainda não havia nascido) a Rio Grande — “não havia uniformidade no trajar das tropas, nem em Portugal nem em suas colônias”. Azul-ferrete, vermelho, branco e amarelo eram as cores predominantes; pelo menos no final do século 18, o verde não era utilizado para cobrir a barriga dos militares catarinenses, demonstra Rangel. Glossário técnico ilustrado e bibliografia de referência complementam o livro, que também traz encartado CD-ROM com o conteúdo integral da obra impressa, acrescido de outros recursos virtuais. A realização da obra teve apoio da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, patrocínio do programa Mecenas, além de suporte cultural do Exército brasileiro. Os autores Nascido em Florianópolis, o arquiteto Roberto Tonera dedicou boa parte de sua vida profissional às fortalezas mantidas pela UFSC, trabalhando em seu restauro, conservação e divulgação, e também escrevendo sobre elas, como em As defesas da Ilha de Santa Catarina e do Rio Grande de São Pedro em 1786. Na UFSC desde 1989, criou e coordena o projeto “Fortalezas Multimídia”, cujo CD-ROM de mesmo nome foi lançado em 2001. Baiano de Itiúba, Mário Mendonça de Oliveira, professor aposentado de História da Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde foi agraciado com o título de Professor Emérito, atua no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA e como pesquisador 1-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


A vida é rala Em As fantasias eletivas, Carlos Henrique Schroeder apresenta novos personagens desencontrados, dilacerados e precários, que buscam uma saída do próprio mundo (e da literatura) como uma disposição ao milagre Manoel Ricardo de Lima Copi provoca uma experiência com disposição ao milagre porque a vida é rala. E isso já é mais do que suficiente, através e com a literatura, para uma tentativa de apropriação do inapropriável diante da relação do homem com a história. Quando a literatura, como potência, ainda inscreve um mundo. Como diz L., personagem arruinada de A Geladeira, uma peça de Copi: “Eu não sou mais aquele manequim que você conheceu, virei escritor.” Carlos Henrique Schroeder, faz tempo, vem numa composição de esforço para imprimir algum movimento em torno dessas passagens de circunstância da vida para a literatura, com toda disposição ao milagre. Seu último livro, As fantasias eletivas, recupera um Copi refeito num travesti dilacerado e inoperoso, lançado no ritmo de uma cidade catastrófica (porque toda organizada para o turismo, nossa violência mais caricata), Balneário Camboriú, e misturado com um homem quase simplório, Renê, um recepcionista de hotel que, de algum modo, procura desfazer sua precariedade e construir no seu pequeno universo de figurações

alguma constelação fabulosa com o que tem. Esses personagens desencontrados já são perseguidos por Schroeder em alguns de seus livros anteriores, caso de Ensaio do Vazio e, depois, As certezas e as palavras. E isso parece ser uma responsabilidade: constituir uma observação da vida rala e repará-la ou apará-la (pode-se dizer, também, ampará-la) com severos contornos de ação e desejo para algum pensamento, qualquer um, mínimo que seja: “Enquanto Copi, sofregamente, segurava o pincel, dois raciocínios a assustavam: o primeiro era de que havia muita palavra no mundo, muito mais do que gente. E o segundo de que o que nos liga ao passado, a memória (que rege essas inúmeras fantasias eletivas que chamamos de lembranças) empalidece ao sinal do primeiro desejo.” E isso é, como prática, um contraponto e, muito importante, é também a constituição de alguma estranheza. Porque, por outro lado, é muito comum ver por aí, proliferado, como literatura permitida e instituída, uma deliberação infecunda de mesmice e divertimento, ou seja, repetição encandeada e pouca sombra em direção ao grande público. Algo muito próximo daquilo que

literatura

Silvina Rodrigues Lopes interroga: “É preciso impedir que a banalidade que aparece hoje consensualmente como literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade.” ou “Aquilo que se chama ‘grande público’ só pode ser composto por gostos esclerosados, pelo que há de mais resistente à mudança e, por conseguinte, pelo que há de mais antiartístico, a negação do movimento. Aquilo que se destina ao grande público é a espetacularização, que esteriliza ao colocar a diversão como substituta da estranheza, tornando-se eficaz na relegação do humano para o nível mais triste da vida animal — a domesticação.” Nesse contraponto de As fantasias eletivas — que é também um maneira de tocar aquele Goethe de 1809, porque Schroeder não perde de vista seu primeiro jogo descompassado, a literatura —, temos dois personagens rigorosamente infensos: Copi e Renê, el Ratón ou “a porra de um caipira lá do interior, mas...”. Depois, temos o desenho de uma cidade sem nenhuma expansão ou desmesura, porque tudo nela é mapa, metamodelo e auto-referência, como, por exemplo, o assustador artifício geométrico imposto por um calendário anual que divide e mede a população de turistas, as temporadas de visitas, os lugares indicados e os tempos a ocupar etc. Os sintomas — a queda sem volta, numa vida rala — aparecem e reaparecem o tempo inteiro durante todo o percurso dos personagens no desenho comprimido dessa cidade enquanto conversam e relatam-se entre hotéis, hóspedes, putas, grana, calçadas, lembranças e essa falcatrua que pegou fogo chamada livro, biblioteca: “A primeira vez que Renê viu uma biblioteca que não fosse um órgão público foi no apartamento de Copi. Ao lado da porta havia uma estante abarrotada de livros, e Renê achava aquilo engraçado, pra que serviriam livros para um traveco, pensava (mas não dizia). Até que soube da trajetória de Copi: do nascimentos em Las Heras, na província de Mendoza, até o curso de jornalismo em Buenos Aires, onde caiu na noite portenha. O estágio como assistente de El Clarín, as tentativas de seguir os caminhos da escrita e seu retorno para Mendoza. E, por fim, a coragem de fazer o que achava que devia fazer.” Esses Copi e Renê, el Ratón, inscritos como um mundo por Carlos Henrique Schroeder, têm a ver com uma tentativa de romper o metamodelo, essa representação afásica. Sair do manequim, tornar-se escritor. O plano que vem não é mais a composição de uma afinidade eletiva, como se o mundo se dividisse entre amigos ou inimigos, ritmo ou fetiche, mas sim de algumas fantasias eletivas, que nos são muitas vezes tênues, frágeis, mas que nos colocam mais perto, talvez, de uma laceração, quando um pedaço perdido consegue regenerar um fragmento correspondente. E isso também pode ser lido como uma pequena força da e com a literatura: uma disposição ao milagre.

Manoel Ricardo de Lima (Parnaíba, 1970) é poeta, professor na Escola de Letras e no PPGMS (UNIRIO). Publicou, entre outros, Jogo de Varetas, Geografia Aérea e Um tiro lento atingiu meu coração (7Letras) e A forma-formante: ensaios com Joaquim Cardozo (EdUFSC).

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Pregação sem medida

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literatura

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Sermões, de Nuno Ramos, é parco de significados e perdulário em sua dispersão, e pretende ser poético sem passar pela poesia, isto é, sem dar o devido crédito a eventos constitutivos de seus arranjos com a linguagem Ronald Augusto No que diz respeito aos processos construtivo e formal, no sentido de uma determinação compositiva, Sermões, de Nuno Ramos, parece não ter um desígnio preciso. Tudo vai ao modo do acaso, como se o autor levasse um encontrão fortuito e, desse episódio, surgisse sua pregação sem medida. A forma é insignificante e meramente contingente, isto é, poderia ser diferente, o impulso poderia vir de qualquer lado. Ainda que pareça uma ideia fora do lugar — e para provar o contrário julgo ser oportuno apelar ao domínio das artes visuais, de onde vem Nuno Ramos —, eu diria que sua poesia é uma tentativa não muito bem sucedida de transposição do informalismo pictórico para o campo da criação verbal. Com efeito, em Sermões há uma série de indícios que se ligam a princípios do movimento do informalismo na pintura, por

exemplo, a aposta no uso imprevisto das matérias que resulta no apetite pela mancha e pelo errático; a aleatoriedade do gesto como fetiche estético, bem como a angústia com relação a qualquer forma de controle, na medida em que isso está na base da recusa à concepção tradicional de pintura; o informalismo de Sermões também emula a resistência daquele movimento à obra conclusa (com sentido formal mais ou menos claro), e é por essa razão que o poema de Nuno Ramos se revela como um grande rascunho ou esboço pretensioso. Retardatário do clichê da “obra aberta”, e justamente porque se aproveita de tal noção na sua faixa de significação mais pop ou fraca, isto é, a do relativismo do juízo estético, Nuno Ramos acena à preguiça do leitor com a possibilidade de que o livro seja lido livremente; afinal de contas, seu sermonário é meio maluco beleza mesmo. Assim como a experiência pictórica do informalismo envelheceu abrupta-

mente devido à pretensão de novidade, pois abdicou de formas significantes em vista de construir signos, Sermões, em função dessa marca de origem, antes tropeça do que pisa firmemente nessa via mal pavimentada. Sua escrita repleta de sintagmas que se conjugam parcamente — modelo de parataxe tout court — não consegue oferecer um sentido (uma direção) à relativa autonomia interpretativa do leitor. Abandono meu baço canta a moto na calçada. Que foi, quem fui que fiz eu do que me deram, v aleu? Questões graves. Mas pronuncio, agora e até o fim o longo sermão da luz meu pâncreas canta — autora confusa, borrando e fumando o fundo e a figura poderias por um só


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Por que meu Deus ou t ótem seria o som contínuo, o guizo sem sentido o cosmo falso, insaciável das gargantas repetindo cifras, expelindo máximas, números? Se há um útero onde cabem mãos ficção, poema se há um peito e um a bunda e o ganido e o conforto dissipado, óxido puro?

Com relação a um movimento demasiadamente expansivo, atinente à representação de um campo semântico com que o leitor tem de se haver, Nuno Ramos é exitoso, mas apenas em uma acepção: se aparentemente ele faz de tudo com a linguagem, já no aspecto de formas significantes ele, no entanto, não faz o suficiente. Isto é, sendo mais ligado ao gesticulatório do que ao desenho do gesto, Sermões é parco de significados e perdulário em sua dispersão, ou melhor, a mobilidade do texto simula profundidades. Por meio de uma retórica da emoção erótica e do apetite estético, Nuno Ramos se dobra sobre a escrita com a vontade de que essa atividade alcance a condição de um objeto de linguagem capaz de se comportar, por assim dizer, como uma tradução simultânea de determinados estados perceptuais e pulsões íntimas. Mas isso não se cumpre, a afetação artística ou a simulação indecorosa de confissão e poesia visam imantar de interesse algo que não tem tanto interesse a não ser de um ponto de vista dos prazeres obtidos com pornografemas. Por essa razão, durante minha leitura me senti como se vagasse por cômodos e quartos de casa alheia; como se eu inspecionasse o jornal íntimo de alguém com quem me fosse vedado ter toda e qualquer efetiva interlocução. Mesmo os elementos obscenos — evocados tanto na capa, quanto dispersados no texto — se têm a ver com a determinação do artista em fazer um mergulho nos âmbitos mais secretos do desejo humano, visando a uma compreensão mais desanuviada relativamente àquilo que a vida normal e cotidiana entende como chocante, repugnante e repreensível, mesmo isso não dá suficiente consistência ao livro. A aparição de tais elementos eventualmente censuráveis — caprichosas diluições da imagética de Sexus, de Henry Miller —, operaria ainda um ferimento na superfície alva da página? Reificação perversa (perversus = posto às avessas) de eros. O foco

literatura

do sujeito narcísico é se dizer ad nauseam, ainda que ele venha a se dizer mal, ou seja, imperitamente. A toada costumeira: fazer de tudo e fazer de nada com o significado. Coisa que calha muito bem como uma predicação do clichê. Diante dessa perda não seria correto morrerem alegremente cães e macacos? De que valem fungos, cogumelos, picap aus, bactérias se não há conas para mim?

Esse fragmento resume os problemas de Sermões, por exemplo, há enumeração excessiva, justaposição de quadros mnemônicos, indecisão entre os léxicos chulo e parnasiano referentes à genitália (“cona”; “caralho”), e cortes de versos em pontos aleatórios (a rigor, são linhas de prosa fraturada) que talvez sirvam apenas para dar um solavanco no leitor. A propósito, disso destaquei alguns parágrafos acima uma estrofe que contém a seguinte passagem: “Deus ou t/ ótem seria o som...”. O que Nuno Ramos pretende com esse tipo de efeito? Em vários momentos do livro há fraturas análogas. Contudo, confesso que, em termos construtivos, não consegui entender qual a sua função. O curioso é que, na superfície desse cacoete, pode-se notar uma pretensão poética, mas isso parece contraditório, pois, para Nuno Ramos, atinar para questões do verso livre ou tradicional, seus limites e virtudes, é coisa de menor importância. Sermões pretende ser poético — inclusive no uso de citações ou expropriações de filósofos e escritores —, mas sem passar pela poesia, isto é, sem dar o devido crédito a eventos constitutivos de semelhante arranjo com a linguagem. Nuno Ramos quer passar diretamente aos efeitos causados pela poesia, efeitos cuja verificação é sempre muito árdua. O verso não é um mero acidente em direção à poesia. Da mesma forma, a tortografia cummingsiana (como se fosse mais um ponto final imposto ao verso) não é qualquer coisa, nem coisa qualquer em que o poeta tropeça distraído com sua genialidade. O verso, livre ou não, o fragmento reiterado, implicam senso métrico, consciência acentual, pausas, rapidez e demora. Infelizmente, é na parte final de Sermões que Nuno Ramos, por assim dizer, quase assume a prosa que passa o tempo todo, ao longo das cerca de duzentas páginas do livro, sendo imperitamente dissimulada. Mas já é tarde, o estrago foi consumado. Sermões não melhora nem piora por causa disso, apenas confere ao ato criativo do artista-poeta uma intenção menos dolosa do que culposa, na medida em que não faculta ao leitor nem uma coisa nem outra: a ida inacabada de algo que nem chega a ser poema até uma prosa levada meio a contragosto.

É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com

Alguém levantará a questão: “mas o crítico extrai a passagem do contexto, portanto não é possível avaliar se o que ele afirma é verdade”. Respondo a essa objeção com uma lição do poeta Hans Magnus Enzensberger, lição pensada, por via da metáfora, como solução por contato ao problema de como distinguir o bom poema do mau poema, ele afirma o seguinte: qualquer um consegue perceber ao primeiro gole se o conteúdo de um barril é de vinho ou de vinagre. Esses breves goles, crítica por meio de sinédoques que apresento ao leitor, visam preparar seu ânimo para o livro que está no mercado para ser comprado, lido-fruído e avaliado. Não pretendo frear o eventual desejo do leitor pela obra, mas fique registrado que não foi por falta de aviso. Contudo, pode ser que o leitor flerte com a espontaneidade, o automatismo; com a crença de que ideias preconcebidas sempre causam prejuízo. A experiência da escritura que se faz em fluxo e que, por não ser nem prosa nem verso, já está — sabe-se lá por que razão — suficientemente justificada e é atraente ao leitor contemporâneo. Da justaposição de acontecimentos anotados de maneira maníaca se segue a irrupção da ideia; é o que propõe Nuno Ramos com Sermões. Mas sua forma insignificante, ideia sem desenho, acaba fazendo da obra o momento superestimado em que o artista se autoengana (dobrando-se profundamente sobre si mesmo) e se dá em espetáculo. Nem a noção de acaso — prefigurada no início desse texto —, mas desde o ponto de vista mallarmaico, pode ser mencionada em defesa de Nuno Ramos. Pois ao contrário da concepção do simbolista francês, cujo ponto de vista sobre o jogo artístico não apenas supõe a participação do acaso, mas, além disso, aspira ao seu controle em função dos limites da linguagem, na perspectiva de Nuno Ramos, seu Sermões — sendo mais um lance de sua atividade artística ambidestra — não poderia não se submeter ao acaso ou, ao menos, deveria nos fazer cientes de seu fervor por ele. Em outras palavras, o indeterminado que arrasta esse longo poema a uma espécie de vertigem, onde parece que tudo está sendo dito, se justifica pela via de uma ideia circular segundo a qual o poema é maluco porque a coisa representada causa um efeito maluco no poeta-artista. Felizmente não há como comprovar se a coisa (que dá corda ao poema) é maluca em si mesma. Como significar tudo ou a totalidade dos acontecimentos sob a mira do poema, do sexo safado do artista provecto à pintura clássica, passando por samambaias e gozo e conas (e Sermões foi escrito em vista disso), por meio de uma linguagem

tão frouxa, tão inessencial? Simples, usando mais uma vez a enumeração serial de imagens como pau pra toda obra, mas em prejuízo de todos os ritmos, “sobretudo os inumeráveis”, tão importantes para a realização de verso livre de qualidade, como percebera Manuel Bandeira. Então, o que nos dá Nuno Ramos?

Ronald Augusto (Rio Grande, 1961) é poeta, músico, letrista e crítico de poesia.

segundo, s egundinho, apagar-te para que eu enxergue melhor o que vai dentro?


robert elswit/skydance production

linguística

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HERON MOURA (Recife, 1963) é professor de Linguística na UFSC e poeta,

autor de Pergaminho (EdUFSC, 1987), Vendedores de Sonho (Nankin, 1999, Prêmio Minas Cultura) e O respirante (Editora 7Letras, 2006, Prêmio Goyaz de Poesia).

Na sala vip Com sua excessiva intimidade, a confortável poltrona no cinema do shopping traz à tona o caráter puramente indicial, não icônico, da arte atual. Os signos e a representação artística só fazem sentido, hoje em dia, na presença evocada daquilo que representam Heron Moura Fui assistir ao filme Missão Impossível 5 — Nação secreta, em uma sala vip de um shopping. Vip quer dizer que você pode se comportar como se estivesse em casa, refestelado na poltrona, numa sensação de intimidade com a tela. Tinha atendentes trazendo petiscos e pipocas. Um rapaz ao meu lado ingeriu uma refeição completa de salaminho e linguiça. A proximidade é tudo, até para o simbólico. O filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce elaborou uma famosa classificação dos tipos de signos. Ele dividiu os signos em índices, ícones e símbolos. Índices ocorrem quando o signo está colado a seu referente, ou seja, quando aparece junto daquilo que ele significa. Sem essa proximidade do signo e seu referente,

o índice não funciona. Por exemplo, uma seta no trânsito só funciona se está indicando a direção para a qual aponta naquele momento e situação. Uma placa de trânsito pendurada na parede do meu quarto vira um objeto decorativo, pois perdeu sua capacidade de conectar-se a um contexto específico. A palavra eu também é um índice. Suspensa no ar, sem alguém que a pronuncie e assuma, é vazia de significado. Já se enuncio, neste momento: “Eu estou em minha sala escrevendo um texto”, esse eu pertence a mim, e me designa. Um ícone, ao contrário, é um signo que não depende do contexto. Ele evoca, por semelhança e analogia, aquilo que significa. Um mapa é um signo marcadamente icônico. Todo mapa pretende ser uma imagem mimetizada de um território. Quanto mais calcado no referente, mais eficaz é um signo icônico. Como disse Borges, um mapa ideal dos Estados Unidos teria a dimensão dos Estados Unidos... Na vida simbólica, somos mais modestos e nos contentamos com a analogia e com a escala. Uma bandeira de um país derrubada no chão é uma representação icônica da derrota. Tremulando no ar, é uma evocação da altura e da glória. O signo icônico pressupõe que a realidade tem uma estrutura profunda, que o signo é capaz de desvelar. Metáforas são ícones flexíveis e reveladores. Para o Padre Vieira, o cristal é uma metáfora de Deus, “o que no cristal se vê como por vidraças”, “a divisão sem destruir a inteireza”. Se Deus existe, ele tem uma estrutura cristalina. O cristal mimetiza a divindade. A arte é uma tentativa de buscar as analogias precisas e ao mesmo tempo frágeis que mostrem o que está por trás das vidraças, quando as cortinas estão cerradas. Mas para essa arte icônica funcionar, é preciso acreditar que o objeto da ana-

logia seja algo real, ou, ao menos, que seja apreensível pelo signo analógico e icônico. O terceiro tipo de signo, definido por Peirce, é o que ele chamou de símbolo, que envolve uma relação arbitrária entre signo e o que ele significa. Por exemplo, a palavra casa é uma escolha arbitrária para a representação do conceito de habitação. Podia ser outra palavra, podia ser masa, por exemplo. O que me interessa aqui é a oposição entre índice e ícone. O índice se cola ao real e ao contexto. Uma pegada é a marca concreta e indicial de uma pata ou um pé. Ainda que a pata ou pé não esteja mais lá, o signo só faz sentido na imaginação desse pé ou pata. Quando eu aponto para alguém (outro gesto indicial), o meu ato só faz sentido se há alguém ou algo a ser apontado. Não se aponta para o vazio. No ícone, é mais complicado. O bisão desenhado na caverna é um ícone do bisão que não está mais lá, e que provavelmente nunca esteve lá. Com o desenho, nós imaginamos o bisão que não vimos. O signo icônico se desloca da realidade, mas tenta recuperá-la com uma cópia ou uma analogia. O tigre imaginado no poema não precisa rugir perto do poema. O filósofo Sócrates disse que, numa linguagem perfeitamente mimética, as palavras valeriam tanto quanto as coisas que representam. As palavras seriam clones das coisas. Pois bem, a sala vip, com sua excessiva intimidade, para mim traz à tona o caráter puramente indicial, não icônico, da arte atual. Os signos e a representação artística só fazem sentido, hoje em dia, na presença evocada daquilo que representam. Perdemos a crença na analogia, com sua representação mimética de algo que não vemos. Queremos decifrar as pegadas, mas precisamos ter, presente na mente, também a pata ou o pé. Perdemos a crença em um mapa daquilo que não está disponível, daquilo que não está próximo na representação. Daí o sucesso e a modernidade das instalações, nas artes plásticas. A representação se consuma no próprio ato, na própria presença. Há um tipo de índice fantástico: as nossas expressões faciais. Uma expressão de medo só faz sentido em uma pessoa que sente medo (ou é capaz de fingir que sente). Não é possível desgrudar o medo da cara de medo. A cara de medo é o índice por excelência. Talvez a arte moderna precise sempre dessa presença do que é representado. O fotograma da expressão de terror da atriz na cena do banheiro no filme Psicose é um retrato da alma dessa arte indicial. Arte da proximidade e do contexto. Contato quase banal com o representável. Foi muito divertido comparar a cara de placidez do meu vizinho de poltrona, comendo seu salaminho, com a cara de audácia de Tom Cruise fazendo aquelas peripécias impossíveis. As duas caras, a da placidez e a da audácia, são índices de nossa sensibilidade.


Demétrio Panarotto Talvez um dos provérbios mais infames propagados no meio jurídico seja: “A justiça tarda, mas não falha”. Quando tardou pela primeira vez, ela começou a falhar; quando o processo atrasou, já não há mais volta; depois disso, a justiça empilha uma falha em cima da outra, e a pretensa solução do processo virá em forma de arquivo. É no tempo que a justiça acredita. Para a justiça, o tempo é um balcão de espera. É ele, sem que se possa atribuir qualquer tipo de culpa, a não ser esperar, o pai de toda a inoperância. No começo, diante do esquecimento, quem reinvindica amaldiçoa em voz alta. Depois que os anos passam, e que o corpo como um todo não responde mais, o que resta são resmungos. O resmungo vem tapado pelo peso. Não há mais forças. A resolução se dará normalmente depois que as melancias se acomodaram sobre a carroça.

literatura

guém mais. E tu te tornarás refém daquele homem que se coloca diante dela. Te tornarás esquecimento. Arquivo. O homem diante da porta é aquele que não te impedirá de te movimentares. O homem diante da porta é o homem que quer que tu te movimentes, que tu te pronuncies. Podes até te desanimar dizendo que logo adiante há outro como ele, e até mais forte. Mas fará questão que tu batas à porta de todos eles. Ao te movimentares, tu estarás aceitando o compromisso. Se tu ficares parado, também. Pois tu já estás Diante da Lei. Tu não és um nobre. Esperar por horas e horas, dias e dias, anos e anos, Diante da Lei, é acreditar no improvável. Clamar pela lei é aceitar que ela não existe. Fecho o texto com uma fábula que ouvi certa feita (num mundo pré-digital, que talvez precise ser virtualizado) e que me parece um diálogo com o mundo que não cansa de se repetir, o de Kafka: a de um homem do campo que está diante do médico. O médico se recusa a fazer a cirurgia que salvará a sua filha, pois precisa da confirmação de que o serviço será pago. Assim, o balcão da burocracia médica levou o homem até o balcão da burocracia do banco para sacar o dinheiro da poupança que lhe permitiria pagar a cirurgia da filha. Como ele foi pego desprevenido e estava sem um documento que comprovasse que ele era ele mesmo, o balcão da burocracia do banco o levou de volta ao médico, que se manteve fiel à sua burocracia. O homem do campo retornou até a sua pequena propriedade no interior do município e, depois de pegar os seus documentos pessoais e os da caderneta de poupança, regressou até o banco. Chegou ao banco um minuto (dois, três, não mais) depois de se encerrar o horário de atendimento ao público. E mesmo que tenha argumentado, não conseguiu convencer o porteiro de que precisava falar com um gerente que o autorizasse fazer o saque. Todas as tentativas foram inúteis, mesmo que várias outras pessoas, que ele não fazia ideia de quem eram, conseguissem entrar depois do horário. Levou o documento da caderneta até o médico, como forma de justificar que teria o dinheiro para pagar a cirurgia, mas, quando conseguiu encontrá-lo, a sua filha já havia morrido na sala de espera. No dia seguinte, percorreu os mesmos balcões da burocracia. Ao banco foi para retirar o dinheiro para pagar o enterro, pois tanto a funerária quanto o cemitério só aceitavam fazer o serviço com o dinheiro em mãos. Ah, a funcionária do banco, antes de ele dizer o motivo, ainda tentou, como última ratio, argumentar que se ele tirasse o dinheiro da caderneta, ela não cumpriria as metas do mês, as metas que lhe dariam o número de pontos necessários, que lhe dariam moral com o chefe, que lhe dariam a tão sonhada promoção, que lhe dariam... Estar diante de todas essas instituições, do mundo “civilizado”, é estar, de alguma forma, diante de Kafka.

Borboletas e Abacates (Editora Universitária, 2000); Mas é isso, um acontecimento (Editora da Casa, 2008) e 15´39” (Editora da Casa, 2010); e do ensaio, Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé (Lumme Editor, 2009).

A lei nunca foi feita pelas ou para as minorias. Foram os nobres que a fizeram e que sabem do que se trata. A nobreza, naturalmente, não será julgada, pois está fora da lei. Estando fora, jamais se colocará contra aquilo que a beneficia

Os traumas? Nós os carregamos debaixo dos braços, debaixo das cobertas. O tempo é maquínico. “Que pretende um esquecido?”, pergunta o filósofo italiano Giorgio Agamben, no texto “Ideia da Justiça”, presente no livro Ideia da Prosa: “Não memória nem conhecimento, mas justiça.” A memória é esquecimento. Diante da lei, o único que se lembra de que aquele processo existe é quem o reivindica, ninguém mais. Diante da lei, somos arquivos. O conhecimento, por sua vez, também é um elemento que sustenta os arquivos. E os arquivos, reforço, se empilham; fazem par com a memória. Para Agamben, “A justiça é, assim, a tradição do esquecido. Mais essencial que a transmissão de memória é de fato, para o homem, a transmissão do esquecimento, cuja acumulação anônima lhe recai dia a dia sobre os ombros, inapagável e sem refúgio.” É o esquecido, e ninguém mais do que ele, que carrega o fardo desse acúmulo. A (esperada) justiça, domada pelo tempo, é uma “puta velha sem útero”, um pouco pra lá, um pouco pra cá. Estar diante da lei é estar diante daquilo que é inoperante: não foi feito para funcionar. “O que a nobreza faz é lei”, nos diria Kafka, no conto “Sobre as questões da lei”. Segundo o conto de Kafka, a lei nunca foi feita pelas ou para as minorias. Foram os nobres que a fizeram e que sabem do que se trata. A nobreza, naturalmente, não será julgada. “A nobreza está fora da lei”. Estando fora, jamais se colocará contra aquilo que a beneficia. Se burlar o código e se colocar dentro, vira esquecimento. É isso que diferencia a nobreza de (e dos personagens de) Kafka, ou a burguesia de hoje, dos demais cavalheiros que dependem de um mísero balde de carvão para passar a noite fria que se aproxima com a chegada do inverno. Kafka, na primeira narrativa de Um Médico Rural, reforça os contornos da questão das leis, assunto que parece intermitente para o escritor tcheco. Este nos diz, em “O Novo Advogado”, que o seu novo advogado é um cavalo, o Dr. Bucéfalo, que por fora parece diferente do cavalo de batalha de Alexandre, mas que, diante das portas, deslocadas para um local completamente diferente, mais longe e mais alto, mergulhou nos códigos. É bem provável que o aprendizado do Dr. Bucéfalo não o levará a lugar nenhum. A burocracia provavelmente o engolirá. Há um cavalo diante da lei. Porém, diante da lei, e perdoem o trocadilho, nem com a paciência de um cavalo. A língua é o que nos diferencia dos demais animais, no caso, dos cavalos; nos dá poder de comunicação, ideia de pertencimento, mas, para Agamben, ao falarmos, nos entregamos à justiça. A fala é o dispositivo da entrega. Quanto mais se fala, mais se entrega: é disso que a lei depende, de uma fala que se torne excesso, contradição, e que, por consequência, se torne inoperância; com o tempo, resmungos. A entrega, Diante da Lei, é aceitar os seus códigos e entender que aquela porta aberta foi feita para ti (para quem reivindica) e para nin-

DEMÉTRIO PANAROTTO (Chapecó, 1969) é músico, poeta e professor universitário (UFSC). Autor de

Diante de Kafka

creative commons

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Dores silenciosas Regina Teixeira

N

é jornalista, mestre em Ciências Políticas na Universidade Sorbonne Paris.

Regina Teixeira ((Varre-Sai, RJ, 1969)

esta entrevista, o cineasta e escritor catarinense Sylvio Back fala sobre os seus “poemas-roteiro” que ganharam a consistência da página impressa em Kinopoems, livro lançado pela Editora da UFSC na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Back define Kinopoems como uma colagem textual, tipográfica e fotográfica; epigramas e fotogramas ora se alternando, ora agindo simultaneamente, para que a palavra seja lida como filme. Na obra, uma (re)leitura epifânica a partir de Cruz e Sousa, Leminski e do trabalho do pintor paranaense Miguel Bakun, o autor reforça a ideia do poema como pura mediunidade que nos confunde, embaralhando tempo e espaço, erros e acertos formais, sentidos e sentimentos. EdUFSC | Como você definiria Kinopoems? Sylvio Back | Desde o título, neologismo que acopla as palavras Kino, cinema em alemão, e poem, poema em inglês, a expressão “poemas-roteiro” — com que defino essas epifanias fílmicas sobre os poetas João da Cruz e Sousa e Paulo Leminski, e o pintor Miguel Bakun — se afirma. Kinopoems é um painel gráfico-visual à procura de leituras, para que jamais se esgote nele mesmo. Dada sua natureza de fruição anfíbia, ora é fotograma, ora epigrama, quando não ambos, simultaneamente. É palavra se movendo, como na tela do cinema; verso se convertendo em imagens, para desafiar e conflagrar o nosso imaginário. Kinopoems: um livro para ser lido como filme! Fruto de diferentes épocas e estalos de consciência, a ecoar a conturbada existência de três vates a um só átimo, magníficos e imortais. Portanto, trata-se de uma invenção às avessas: do bruxulear eletrônico, os versos retornam ao leito primevo. E também sacramentam uma contemporaneidade a toda prova: todos os códigos se imbricam, são tão simultâneos e permeáveis quanto interdependentes. Ou seja, se bastam.

EdUFSC | Tendo em vista a sua obra cinematográfica premiada, qual o papel da poesia hoje em sua vida? Back | Ainda que, de há muito, a minha biblioteca de poesia seja maior do que a de cinema, só ousei poetar já homem maduro, aos 48 anos. Qualquer que seja a criação do espí­rito humano que se considere, a poesia é a única totalmente imprevisível. Intuitivamente, em especial nos docudramas, mas também, em alguma medida, nos filmes de ficção, roteiro e montagem perseguem o azimute da construção do poema. Uma imbricação quase selvagem, eu diria. Todo poema, afinal, é um assalto à linguagem, mesclando o mental e o visual, o antevisto com o entrevisto, o descontínuo solapando o contínuo, o anticlímax à espreita, para deixar o espectador desarvorado. Como nos poemas, o leitor fica órfão, à espera de uma completude que nem eu sou capaz de oferecer. O melhor poema é aquele jamais decifrado, mesmo que lido miríades de vezes! EdUFSC | Kinopoems — o cinema vai ao poema é o seu décimo livro de poesia. Que critério usou para a escolha dos três “poemas-roteiros”, como você os intitula? Back | Originalmente, Kinopoems era pura virtualidade. Surgiu como móbile audiovisual no portal Cronópios (www.cronopios.com. br), em 2006. Os versos ali se movem (movie) no éter e numa superfície (screen) autoinvertidos. Uma prestidigitação de câmara e fonemas com assinatura do notável editor e designer paulista Pipol (1961-2015), em forma de páginas rigorosamente inconsúteis. Medusa tecnológica. Foi, justamente, no encalço desse imaginário digital que, proposta a ideia de verter os chamados “poemas-roteiro” à concretude e à espacialidade da folha de papel, ela encantou Fábio Lopes, diretor da Editora da UFSC. Os versos acabaram se materializando nesta linda colagem textual, tipográfica e fotográfica produzida pelo conhecido designer carioca Fernando Pimenta. É truísmo dizer que a beleza de um livro de poemas deve começar na sua fatura gráfica. Sim, Kinopoems é um luxo, arrematado com inexcedível apresentação do poeta e escritor catarinense Péricles Prade intitulada “Backianas — microbiografias poéticas”! EdUFSC | Sendo você autor de belos poemas eróticos, como a recém-publicada obra

guilherme gonçalves

entrevista

10 reunida em Quermesse, o que representa Kinopoems em sua trajetória? Back | Se couber, a palavra serve para toda e qualquer criação: dor! Pode ser resumida seja nos infindáveis descaminhos na tentativa de levantar os recursos para realizar o filme, seja na inglória busca por um editor, uma distribuidora, telonas ou telinhas. São dores palpáveis, rotineiras e cotidianas, ainda mais entre nós, para quem as atividades do espírito não agregam valores (usando a expressão da moda). No entanto, nada se compara às dores silenciosas e inevitáveis do ato de criar quando se persegue a ideia de ectoplasmar a criatura no celuloide ou na página em branco. O crucial e incontornável em qualquer arte é, precipuamente, encontrar-se, descobrir o irrevelado, sintetizar o que não pode ser sintetizado, esquecer-se do já visto, ouvido e lido. Levitar, literalmente, sem o que nada de novo irá te conflagrar. Mesmo que não explicite esse desejo, todo cineasta quer reinventar o cinema, o poeta, a poesia, o músico, a canção, o romancista, o romance... Portanto, digo a mim mesmo: ouse imergir no desconhecido, na fatalidade do ignoto, e quando topar com uma imagem ou um verso que não se parece com nada que lhe seja íntimo moral e esteticamente, ou pareça mais um desvario mental, eureka, você pode estar à soleira da percepção de algo inevitavelmente genial ou tremendamente medíocre... Não tenha medo: assine embaixo, essa é a sua linguagem! EdUFSC | Você é um leitor voraz de poesia. Quais os poetas que mais lhe influenciam? Back | Infalivelmente, leio poesia todos os dias. Não passa um sem que me perca em versos e estrofes por alguns extasiantes e vitais minutos. E como poesia não é um ato compulsório, como sentencia o genial W.H. Auden, arrisco sublinhar que todo poema é pura mediunidade que nos confunde, embaralhando tempo e espaço, erros e acertos formais, sentidos e sentimentos. A estante dos meus poetas de cabeceira é vasta e multifacetada. São tantos, entre eles, Cabral, Whitman, Baudelaire, Safo, Murilo, Huidobro, Valéry, Marcial, Aretino, Lezama, Drummond, Ahkmátova, Cummings, Kolody, Bashô, LHughes, Goethe, Cecília, Darío, Riding, Pound, Bandeira, Andresen, Cruz, Dickinson, Mallarmé, Borges, Verlaine, Kaváfis, Eliot, Bocage, Rimbaud, Paz, Dante, Catulo, Keats. Appolinaire, Botto, Celan, Gregório, Blake etc. EdUFSC | A Bienal ainda é uma vitrine para a conquista de novos leitores? Back | Nestes tempos de leitura veloz e minimalista, toda e qualquer visibilidade que se der a um livro, ainda mais se for de poemas, é uma vitória a ser festejada. Todo o poder à Bienal do Livro e à sua megaoferta de obras, para degustação a qualquer hora, por gente de qualquer idade, intelecto e condição social. A permanência do livro reside nessa sua aura de sempre parecer algo inédito e único. Não importa como, quando e onde, o fundamental é que chegue sob os olhos, à mente e ao coração do leitor.


Onde a pintura faz a curva Rubens Oestrem, que ganha retrospectiva de sua obra, em Florianópolis, em 2015, traçou nessas três décadas, desde seu retorno ao Brasil, uma investigação sobre a superfície pictórica que o levou aos limites da própria linguagem Fernando Boppré Se porventura houvesse um todo. Uma ideia de completude que abarcasse tudo e todos. E se o todo daquilo que se convencionou chamar de artes visuais pudesse ser representado por um mapa, que incluísse desde o ontem até o hoje, desde o oriente até o ocidente, o lugar de Rubens Oestroem seria o da curva. O seu CEP coincidiria, simultaneamente, com tradição e com experimentação. Um paradoxo composto, de um lado, pela dedicação obstinada à pintura, processo artístico milenar na história da arte, e, por outro lado, pelo fato de que pintar, para Rubens, é um exercício constante de possibilidades e de seus próprios limites. Não por acaso, ele pinta quase sempre escutando jazz. Rubens entrou para a cena artística em 1973, com 20 anos, em sua cidade natal, Blumenau. A primeira exposição foi promovida pela lendária galeria Açu-Açu, de Lindolf Bell, Elke Hering e Péricles Prade. Vale lembrar que, naquele momento, Blumenau era o epicentro artístico de Santa Catarina, com uma entusiasman-

te produção no campo da música, do teatro e das artes visuais. Não surpreende que a maior parte das telas foi vendida. A estreia apresentava telas que tinham um gosto de surrealismo misturado com psicodelismo tropical. Havia algo de “mito e de magia” naqueles personagens e cenários fantásticos, para lembrarmos o termo da pesquisadora Adalice Araújo. O repertório pictórico seria radicalmente transformado pela experiência de viver e estudar na Alemanha, entre os anos 1970 e 80. Durante quase uma década — primeiro um curto período em Düsseldorf, depois uma longa estada em Berlim —, Rubens esteve em contato e fez parte do movimento que subverteu o cânone da pintura europeia, o neoexpressionismo. Chegou a frequentar aquilo que alguns, internamente, chamavam de bad art. Era preciso abrir o inconsciente, deixá-lo aflorar na superfície em jorros, pintar não do melhor modo, mas da pior maneira possível. Uma atitude punk na pintura. A volta ao Brasil, em meados da década de 1980 — quando participa da 18.a Bienal de São Paulo e, logo depois, decide se radicar em Florianópolis —, resultou no

Rubens Oestroem (1984). Os brutos também amam, 200x140cm, acrílico e carvão sobre tela

artes plásticas curador e historiador, parte da equipe do Museu Victor Meirelles/IBRAM/MinC, de Florianópolis.

Rubens Oestroen (1982). Monotipia II, 61x86cm, tinta de impressão sobre papel

reordenamento da superfície da pintura. E isso não se deu ao acaso, como bem escreveu Sergio Casares Pinto: “O retorno ao Brasil equivale à busca de um lugar mais adequado ao prosseguimento da luta interna que trava, perseguindo o estado psicossomático ideal à criação”. Isso quer dizer mens sana in corpo sano, significa imaginar que, ao chegar aos 30 anos, Rubens sentiu a legítima necessidade de se reinventar. Com isso, nas pinturas pós-Berlim, surgem a diferença, um contrário, um outro estado. Se, na Europa, as telas estavam repletas de cores, gestos, camadas, sentidos e não-sentidos, no Brasil, a linha ganha novamente importância, não mais para delimitar figuras ou coisas. A linha, agora, é algo mais próximo ao desenho do arquiteto: a delimitação de espaços, a construção (ou destruição...) de módulos. Atualmente, três décadas após o retorno ao Brasil, um novo problema se impõe: depois de explorar as diversas possibilidades da linha sobre a superfície bidimensional da pintura, Rubens se depara com o limite da própria linguagem: “Parece que eu não tenho mais muito o que fazer na pintura”, disse-me recentemente, em tom que me fez lembrar Bartleby, o escrivão de Herman Melville. E como quem não tem nada a perder, lança-se no vazio de um salto na terceira dimensão, no domínio do objeto, da escultura e da arquitetura, embora se trate de uma “arquitetura impossível”, como ele próprio gosta de dizer. Este ano, Rubens receberá uma grande retrospectiva de sua obra na Galeria Helena Fretta, em Florianópolis, que, concomitantemente, lançará uma publicação de referência sobre seu trabalho. É o reconhecimento mais do que merecido para alguém que há décadas sustenta suas próprias dúvidas numa sociedade cada vez mais cheia de certezas.

Fernando Boppré (Florianópolis, 1983) é

fotos Eduardo Marques e Tarcísio Mattos/Galeria Helena Fretta

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Paula

e-mail:

paulamichels.trad@gmail.com

Michels

(Florianópolis, 1989) tem formação em Letras-Inglês pela UFSC. O encanto pela fotografia veio desde cedo e acompanha o seu caminho enquanto forma de expressão. Vê na fotografia um lugar de descobertas e de experiências visuais compartilhadas que fazem enriquecer e repensar a realidade.

“Esta fotografia foi tirada durante uma apresentação de palhaços em um evento cultural de rua, no Centro de Florianópolis. Traz elementos do urbano, do mágico; o real e o imaginário. Inspira, de algum modo, uma leveza para enfrentar o cotidiano e o (in)esperado.”


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