Subtrópicos n22

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revista da editora da ufsc

outubro 2015

#22

Os limites da imprensa moralista • Ianques no paraíso • Uma caixa de ressonância • A biblioteca de Lima Barreto • Valor e celebridade • Amor aos animais • Abismo entre sinônimos • Museu do Índio • Fotografia: Henrique Pereira


expediente

Elias Machado (Cacequi, 1966) é doutor em Jornalismo pela Universidade

luiz macedo/câmara dos deputados

Autônoma de Barcelona e professor no Departamento de Jornalismo da UFSC. Atualmente ocupa a direção do Departamento de Projetos na Pró-Reitoria de Pesquisa.

política

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Os limites da imprensa moralista Na ausência de regras claras quanto à atuação de juízes, jornalistas, policiais e políticos no vazamento seletivo de informações sobre um processo como o da Lava-Jato, o maior prejudicado é a sociedade brasileira como um todo

revista da editora da ufsc

outubro 2015

#22

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Reitora Roselane Neckel Vice-Reitora Lúcia Helena Martins Pacheco EDITORA DA UFSC Diretor Executivo Fábio Lopes da Silva Conselho Editorial Fábio Lopes da Silva (Presidente) Ana Lice Brancher

Elias Machado Em termos mais ou menos resumidos, a imprensa, numa democracia, deveria possibilitar a compreensão dos fatos, publicando informações bem apuradas, contribuindo para a discussão de opiniões e, na medida do possível, antecipando tendências futuras. Em qualquer que seja a circunstância, nada menos indicado que, como instituição, a imprensa lidere ou participe de cruzadas ou campanhas em defesa de um falso moralismo, que desconhece a complexidade das relações sociais, econômicas, políticas, e as fragilidades do comportamento humano. Evidentemente, todos os atos de corrupção, uma vez apurados, devem ter seus responsáveis punidos na forma da Lei.

Andréa Vieira Zanella Andréia Guerini Clélia Maria de Mello Campigotto Luis Alberto Gómez João Luiz Dornelles Bastos Marilda Aparecida de Oliveira Effting Editor Dorva Rezende Planejamento gráfico Ayrton Cruz Foto da capa Ayrton Cruz Revisão Aline Valim Gráfica Rocha Tiragem 1,5 mil exemplares

Acesse a versão eletrônica da Subtrópicos no site da Editora da UFSC — www.editora.ufsc.br

Uma imprensa moralista, que prega de forma implacável o fim da corrupção, como se fosse um mal alheio a este mundo, e a simples eliminação dos corruptos, está sempre condenada a ficar na superfície dos fatos, sem jamais desvelar as causas profundas da corrupção e, mais grave ainda, as limitações desse tipo de jornalismo. A evidência mais clara das pernas curtas dessa estratégia é que entre, as empresas listadas na operação Zelotes, que investiga o pagamento de propinas para reduzir pagamento de multas para a Receita Federal, e no escândalo das 106 mil contas na agência do HSBC, em Genebra, estão algumas das principais organizações de comunicação do país, as campeãs do moralismo de plantão. Depois de mais de um ano de ações conjugadas da imprensa, que publica seletivamente informações das ações da Justiça e da Polícia Federal na operação Lava-Jato no combate à corrupção, está mais do que em tempo de algumas reflexões sobre os desdobramentos da atuação dessas instituições. Antes de mais nada, cabe destacar que, apesar dos primeiros resultados negativos aferidos pelo Banco Central na capta-

Campus Universitário — Trindade Caixa Postal 476 88010-970 — Florianópolis/SC Fones: (48) 3721-9408, 3721-9605 e 3721-9686 editora@editora.ufsc.br www.editora.ufsc.br www.facebook.com/editora.ufsc.5


ção de investimentos estrangeiros e no aumento da taxa de desemprego, ainda estão para serem levantadas, de forma oficial por órgãos como IBGE e IPEA, as consequências da operação Lava-Jato para a retração da economia, de empresas como a Petrobras, para as grandes empreiteiras brasileiras com atuação no mercado internacional de obras públicas e para os procedimentos legais adotados no Estado Democrático de Direito. Até aqui, ao menos algumas coisas já estão bem mais claras: 1) os procedimentos como delações, prisões antes de julgamentos e condenações em que o próprio juiz reconhece que não existem provas cabais contra os acusados, mas apenas indícios (ao menos assim a imprensa vem noticiando), têm consequências sérias para as garantias e direitos individuais, o que, no médio e longo prazos, não deveria ser desconsiderado. Ao contrário, vem sendo afirmado nas manifestações de diversos juristas e advogados que esses procedimentos, conforme adotados de forma generalizada na Lava-Jato, são bastante discutíveis e seus desdobramentos imprevisíveis; 2) nas decisões judiciais envolvendo comutação de penas de criminosos — as delações são um exemplo disso, quando se alivia a pena de um criminoso confesso para punir um crime maior —, seria fundamental que a Justiça considerasse as consequências de suas decisões para as garantias individuais, para a economia do país e para a sociedade como um todo. Se faz um grande estardalhaço e se diz que a Lava-Jato ajudou a recuperar R$ 1,5 bilhão, e as perguntas são: Quanto está custando a Lava-Jato? Quais as suas consequências para a economia do país? Quanto prejuízo trouxe para uma empresa como a Petrobras? E para a Sete Brasil, que foi inviabilizada? E para todas as demais empresas e pessoas envolvidas? Apenas a Petrobras contabilizou, até março deste ano, mais de 20 mil demissões relacionadas ao Pré-Sal. A indústria da construção civil dispensou mais de 100 mil empregados, e são feitas estimativas de que o PIB sofrerá uma retração de 2,5%, com redução de mais de 140 bilhões. O estaleiro Paraguaçu, na Bahia, por exemplo, demitiu 7 mil trabalhadores. Em que medida os seus métodos, incluindo escutas ilegais, conforme denunciado pela imprensa e por membros da própria Polícia Federal, são aceitáveis no Estado Democrático de Direito? 3) por que a Lava-Jato opera com dois pesos e duas medidas, considerando que, enquanto as delações envolvendo o PT e seus aliados são investigadas a ferro e fogo, as denúncias contra o PSDB e seus representantes, reiteradas por Alberto Youssef na CPI da Petrobras, não foram investigadas, apesar das denúncias públicas feitas pelos delatores? Aparentemente, nada disso levou a ações do Ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Justiça para avaliar e corrigir seus procedimentos.

4) as relações entre Judiciário e Imprensa precisam estar melhor reguladas, e o comportamento que a imprensa e o Judiciário vêm adotando na Lava-Jato, com filtrações seletivas não deveria ser naturalizado. Ao contrário, necessita ser problematizado. Na França, em que esse tipo de procedimento provocou profundo mal-estar durante os escândalos da contaminação do sangue por HIV nos anos 1980, existe vasta literatura sobre a necessidade de se estabelecer limites e normas claras. O direito à informação e à transparência não pode se sobrepor ao direito dos investigados, muitos ainda sequer estão na condição de indiciados, e as normas legais. O livro de Jean Marie Charon, Un secret si bien violé : La loi, le juge et le journaliste (edições Seuil, 2000), trata em detalhes da questão e dos riscos da atuação sem limitações de todos os envolvidos (juízes, jornalistas, magistrados, policiais e políticos) 5) uma democracia é tanto melhor e mais consolidada quando a Justiça atua com discrição e sem estardalhaço, e quando juízes não funcionam tendo como parâmetro para a legitimidade de suas ações apenas o suposto apoio da população. Como se sabe, o que deve orientar a ação dos juízes são a legislação vigente, o embasamento em provas concretas e o caráter justo de suas decisões. O próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, em artigo publicado no dia 13 de setembro na Folha de S.Paulo, alerta para a necessidade de que a Justiça e, mais ainda, cada um de seus membros mantenham a compostura, e volta a defender que o lugar de manifestação dos juízes são os autos, devendo eles evitar exposições públicas e defesa de posições políticas, o que, aliás, é proibido por Lei. As pessoas e, principalmente, a imprensa, enquanto instituição, não deveriam se posicionar contrariamente ou a favor de uma operação como a Lava-Jato a partir de suas conveniências e interesses imediatos, mas considerando as consequências de longo prazo de suas ações para a sociedade, para o país e para o aperfeiçoamento da aplicação da Justiça. No caso específico das relações entre a imprensa e o Judiciário, tal como aconteceu na França, parece evidente que existe a necessidade de que a situação seja melhor normatizada, porque, conforme constatou Jean Marie Charon, “enquanto faltar coragem aos políticos para reformar a magistratura e os procedimentos penais, cada um dos envolvidos — juízes, jornalistas, policiais e políticos — vai continuar recorrendo a uma estratégia midiática selvagem”. Como sempre, na ausência de regras claras, os mais prejudicados são, em primeiro lugar, cada pessoa ou organização que pode ter a sua reputação enxovalhada e, no final das contas, a própria sociedade devido à desconsideração dos direitos e garantias individuais e aos desdobramentos econômicos das decisões da Justiça como falência de empresas estratégicas e desemprego.

lançamentos da

EdUFSC

livros

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Caspar Erich Stemmer: Administração, Ciência e Tecnologia autor: Arno Blass O professor Caspar Erich Stemmer (1930-2012) foi uma das mais importantes figuras no cenário científico-tecnológico brasileiro. Ao longo de sua brilhante carreira, ocupou algumas das mais altas funções estaduais e nacionais. Fundou e presidiu a Fundação de Ensino e Engenharia de Santa Catarina (Feesc), foi reitor da UFSC e secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia. Neste livro, Arno Blass, um de seus mais próximos colaboradores, narra de maneira minuciosa e comovida a exemplar trajetória do professor Stemmer.

Ciência, Tecnologia e Sociedade: e o Contexto da Educação Tecnológica autor: Walter Antonio Bazzo Neste livro, o leitor encontrará uma análise crítica do ensino tecnológico, com ênfase nas escolas de engenharia do Brasil, como uma contribuição do autor para a consolidação de uma política mais eficiente de formação do corpo docente, procurando analisar as consequências dessa situação, propondo atividades, leituras e inserções, e centrando-se na premissa básica de que o ensino de engenharia somente sofrerá alguma modificação consistente se a comunidade docente voltar-se para esse intento.

O Mistério do Mal autor: Giorgio Agamben Neste livro, editado em conjunto com a a Boitempo, o filósofo italiano Giorgio Agambem comenta que, ao cumprir a “grande recusa”, Bento XVI deu prova não de vileza, mas de uma coragem que adquire hoje um sentido e um valor exemplares. Sua decisão chama atenção para a distinção entre dois princípios essenciais de nossa tradição ético-política, dos quais as sociedades parecem ter perdido qualquer consciência: a legitimidade e a legalidade. Se é tão profunda e grave a crise que nossa sociedade está atravessando, é porque ela não só questiona a legalidade das instituições, mas também sua legitimidade; não apenas, como se repete muito frequentemente, as regras e as modalidades de exercício do poder, mas o próprio princípio que o fundamenta e o legitima.

notas universitárias w A Editora da UFSC mantém um programa na Rádio Joinville Cultural FM 105.1. A cada semana, um livro do catálogo é abordado. w Já foram gravadas 40 edições. Para ouvir todos os áudios, acesse https://radio.joinville.sc.gov.br/radio/index/categoria/46


Ianques no paraíso Livro publicado pela Editora Insular conta a saga e as impressões dos norte-americanos que passaram por Santa Catarina, no século 19, durante a corrida do ouro

Marli Cristina Scomazzon

(Garibaldi, 1956) é jornalista, formada na UFRGS, com mestrado na UFSC.

Marli Cristina Scomazzon Uma história inédita, ocorrida em meados do século 19, quando da passagem de milhares de norte-americanos por Santa Catarina. Este é o conteúdo do livro A Corrida do Ouro — norte-americanos em Santa Catarina, escrito por mim e por Jeff Franco e publicado pela Editora Insular. O livro, baseado em dezenas de manuscritos destes viajantes e nos registros oficiais de Desterro, conta a saga de ianques, homens nascidos nos Estados Unidos numa época de euforia, quando foram descobertas enormes quantidades de ouro na Califórnia. Esses homens nascidos na Costa Leste dos Estados Unidos eram jovens atrás do sonho de enriquecer nas jazidas de ouro que ficavam no outro extremo do país. Na época, não havia estradas que cruzassem os Estados Unidos de costa a costa, e os perigos da viagem por terra eram imensos, com índios ferozes pelo meio do caminho, além de montanhas intransponí-

veis e rios caudalosos impedindo a passagem. O único caminho conhecido por baleeiros e comerciantes que negociavam com o Oriente era a passagem pelo Cabo Horn, no extremo da América do Sul. Nessa quase odisseia, a primeira parada para reabastecer os barcos com víveres, água e consertar avarias, muitas vezes, foi Santa Catarina, considerada um paraíso por boa parte dos navegantes. “A terra é sublime e lindamente verdejante: as praias orientais apresentam, à medida que velejamos por elas, trechos alternados de praias de areias brancas e promontórios de pedras coroados de matas. (...) Tudo aqui é muito parecido com as Ilhas dos Mares do Sul... As palmeiras agitando suas plumas brancas no ar, as folhas largas das bananeiras farfalhando na brisa, o perfume da floração das laranjeiras e jasmins, a cana de açúcar e a plantação de café, de algodão, de palma christi e de goiabas — as leves canoas na água e as rudes cabanas pontilhando a costa....”, descreveu um via-

jante num dos vários manuscritos analisados pelos autores dentre milhares espalhados pelo território americano ainda à espera de serem trazidos ao presente. Além das descrições, o livro conta como a passagem foi encarada pelos catarinenses. Do encanto e solicitude da maioria e, também, dos problemas e conflitos decorrentes da quase invasão. Bailes e festas, contrabando e motins surgiram desse encontro entre duas culturas tão diferentes, e eles são descritos segundo documentos oficiais e relatos de jornais da época. É contada até a história de alguns dos norte-americanos que, encantados com a terra e belas mulheres, ficaram por aqui constituindo famílias cujos descendentes ainda estão entre nós. Muito trabalho também teve o consulado dos Estados Unidos em Desterro, que funcionou por mais de 50 anos na Ilha de Santa Catarina. Aplacar a ira de viajantes, incomodados com o desconforto de navios que não haviam sido feitos para passageiros, com a dieta pouco variada das refeições e com a água muitas vezes racionada, não era tarefa fácil. Além disso, havia as deserções das tripulações que fugiam terra adentro, e a tarefa inglória de conseguir lugar para quem chegava em navios tão avariados que não tinham como prosseguir a viagem. Uma visão geral do ambiente e da vida em Santa Catarina frente à invasão de tantos estranhos é dada pelo relato bem documentado de uma história que ainda não havia sido contada e estava esquecida inclusive na memória popular.

creative commons

história

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teatro

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Uma caixa de ressonância Fora do consagrado eixo Rio-São Paulo, jornal Caixa do Ponto se apresenta como um bem-vindo espaço para a crítica e o debate acerca das artes cênicas

Edélcio Mostaço

O jornal Caixa do Ponto vem preencher uma importante lacuna em relação ao teatro praticado no Sul do país: oferecer um espaço para a divulgação de análises críticas, ensaios, entrevistas e circulação de novos materiais relativos às artes cênicas. Após a abertura do programa de pós-graduação em teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), em 2002, é visível o incremento das atividades cênicas na região, desdobramento natural da longa formação em graduação operada pela mesma instituição. Em seguida, também Porto Alegre lançou seu programa de pós e, mais à frente, igualmente Curitiba, contando o Sul do país com mão de obra extremamente qualificada. Isso tudo gerou maior qualidade nos produtos oferecidos às plateias, bem como intensificou as atividades reflexivas e analíticas. É nesse território favorável que o jornal Caixa do Ponto finca sua inscrição, por meio da iniciativa de Marco Vasques e Rubens da Cunha — um recém-doutor e outro doutorando —, ambos há anos envolvidos com atividades literárias que lhes granjearam posições de peso no circuito intelectual. O novo periódico se destaca, ademais, como publicação nascida fora do consagrado eixo Rio-São Paulo, onde estão concentrados outros veículos dessa natureza. Outro fator diferencial da iniciativa está em seu duplo formato: em papel e eletrônico, ampliando enormemente suas possibilidades de recepção, abrindo um diálogo generoso não apenas com aqueles diretamente envolvidos com as atividades cênicas e de pesquisa como, notadamente, o amplo espectro de espectadores que buscam algo mais além das informações padronizadas pelos suplementos jornalísticos tradicionais. Faz parte de seu projeto editorial manter um vivo diálogo com os vizinhos países hispânicos, o que o qualifica com outro viés inovador. Reunindo, assim, a força de um projeto e as condições favoráveis a seu desenvolvimento, Caixa do Ponto nasce sob o signo do diálogo editorial e crítico, ampliando horizontes. O que não é pouco, quando se sabe que as artes cênicas expandem, com intensidade cada vez maior, seu espectro de atenções e interfaces com outras importantes áreas de conhecimento, fomentando investigações consistentes e oportunas.

(São Caetano do Sul, 1949) é professor de Artes Cênicas na Udesc.

divulgação

Edélcio Mostaço


literatura

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Para a lógica capitalista, passados 100 anos desde a publicação de Policarpo Quaresma, “trabalhar” é mais importante do que ler, principalmente para quem é pobre

Fábio Brüggemann Quando decidi, pelos anos 1980, fazer meu ex libris, mesmo tendo uma biblioteca muito pequena (um piá metido a besta, se dizia em Lages), acreditei que a melhor frase seria a de Jorge Luís Borges, que, em outras palavras, disse que, se existisse mesmo o paraíso, ele deveria ser parecido com uma biblioteca. Mas já haviam feito muito mais e melhor do que eu. Por isso, e pela paixão pela escrita de autor francês, meu ex libris, desde então, tem uma frase de Flaubert: “Ler para viver”. No romance Policarpo Quaresma, Lima Barreto (1881-1922), que sempre foi pobre, porque também preto, ainda mais no início da República (da qual ele não gostava nenhum pouco), relata o desdém de seus

vizinhos e outros “bacharéis” pela despropositada “arrogância” de um sujeito que não precisava ter livros, mas os tinha. Policarpo, o personagem quixotesco e nacionalista de Lima Barreto, era um pouco o próprio autor. Há algo de autobiográfico em Policarpo Quaresma. Aliás, em toda a obra de Barreto, desde um simples conto de três páginas, como, por exemplo, “Um que vendeu sua alma”, passando pelo Diário Íntimo, notadamente autobiográfico, por Cemitério dos vivos, até Recordações do escrivão Isaías Caminha e Policarpo Quaresma. Alguém já disse que toda obra é autobiográfica, cada qual a seu modo. No conto “Um que vendeu sua alma”, de apenas três páginas, Lima Barreto, ao narrar a pequena história (na voz de um personagem) de um homem que vendeu

reprodução

A biblioteca de Lima Barreto sua alma ao diabo, cita vários autores, entre eles um tal Lacroix, o francês Renan, o teólogo Jacques Bossuet e o personagem Raskólnikoff, do romance Crime e Castigo, de Dostoiévski. Cita ainda as áreas de conhecimento a que certamente teve acesso, como a antropologia, a psicologia, a sociologia e a etnologia. Sem contar a alusão velada à própria história do homem que vendeu a alma ao diabo, que remonta à tradição oral europeia, recontada pelo inglês Christopher Marlowe (contemporâneo de Shakespeare) e posteriomente por Goethe, Thomas Mann e o brasileiro Álvares de Azevedo, no seu Macário. O “paideuma” de Lima Barreto era “amplo” (como a palavra-chave de seu ex libris), ia muito mais longe do que as leituras literárias. Em várias obras, ele cita


tinha sido uma espécie de coletor ou coisa parecida no tempo do rei. Ele o foi, meu filho, para ter dinheiro com que custeasse as suas experiências. Veja você como são as coisas e como é preciso ser mais do que homem para bem servir aos homens...”. Aí mistura-se uma informação biográfica sobre Lavoisier que se remete à biografia do personagem, que se torna a autobiografia do próprio Lima Barreto. Por que Lima Barreto fazia questão de relacionar sua erudição? No conto, o autor comenta o fardo de se carregar uma biblioteca tão valiosa e, ao mesmo tempo, tão disfuncional para sua vida pobre, como metáfora de sua própria existência. Relacionar os livros que leu em um conto não seria um modo de avisar o leitor de sua incapacidade para lidar com sua própria biblioteca? Ele escreve: “Era uma biblioteca rica assim de obras de ciências físicas e matemáticas que o filho do conselheiro Carregal, há quarenta anos para cinquenta, piedosamente carregava de casa em casa”. A palavra “piedosamente” é a chave. Não se cuida de uma biblioteca sem piedade.

Ex libris de Lima Barreto, desenhado pelo artista português Correia Dias, que veio para o Brasil no começo do século 20 e integrou o círculo intelectual carioca. A expressão latina amplius é significativa, denota a sede do autor de querer sempre “mais”

Outro motivo para relacionar os volumes de uma biblioteca, também com traços autobiográficos, talvez tenha a ver com as transformações pelas quais passava o Brasil, na mudança de regime, do monárquico para o republicano. As condições para quem era descendente de escravos (a monarquia, de certo modo, era popular) e pobre só pioraram com a ascensão da burguesia ao poder. Pior, uma burguesia aliada ao militarismo. Lima Barreto, no Policarpo Quaresma, fazia questão de criticar o regime florianista, colocando seu personagem em conflito com a República (pelo menos aquela, de Floriano Peixoto) em várias passagens. Em um país em franca mudança de paradigmas, Lima Barreto previa a decadência da família de seu personagem, o qual sofreu tanto para cuidar de uma biblioteca e tinha a certeza de que seus filhos (metá-

fora das novas gerações) não dariam a menor importância a ela: “Pelos seus quatro anos de idade, Fausto Carregal já tinha podido ver o desenvolvimento dos dois outros seus filhos varões e havia desesperado de ver qualquer um deles entender, quer hoje ou amanhã, os livros do avô e do bisavô, que jaziam limpos, tratados, embalsamados, nos jazigos das prateleiras das estantes de vinhático, à espera de uma inteligência, na descendência dos seus primeiros proprietários, para de novo fazê-los voltar à completa e total vida do pensamento e da atividade mental fecunda”. A frase “quer hoje ou amanhã” é visionária. A atitude do personagem Carregal, com a desventura de ver sua prole ignorar a única herança que ele poderia deixar aos filhos, os livros, é narrada de forma quase desesperadora. Pelo menos um filho, alguém da nova geração, alguém nessa mudança radical da vida brasileira, onde os pretos são libertos sem nenhum tipo de auxílio, poderia querer o conhecimento tão diverso demonstrado por Lima Barreto, através de uma lista heterogênea, que passava por praticamente todas as áreas do conhecimento? Ninguém. Para Lima Barreto, tal e qual o infortúnio de Policarpo Quaresma, incompreendido por sua vontade de saber, não havia esperança para quem fosse pobre e inteligente ao mesmo tempo. Um visionário. Nada mudou em pouco mais de cem anos. As bibliotecas são perigosas, avisa a estratégia pequeno-burguesa ao desmerecer a erudição. Afinal, para a lógica capitalista, “trabalhar” é mais importante do que ler, principalmente para quem é pobre. Por fim, a biblioteca é queimada. Não a querem, pois não a terão. A tristeza quixotesca pelo fim deprimente de Policarpo tem paralelo com o fim da biblioteca de Carregal: “Amontoou os em vários grupos, aqui e ali, untou de petróleo cada um, muito cuidadosamente, e ateou lhes fogo sucessivamente”. E mais, o fogo demonstrava a vitória de um regime ao qual Lima Barreto não sobreviveu como indivíduo. Toda sua desventura pelos hospícios (ele dizia que seu caso não era de loucura, mas de polícia) está descrita nessa fascinante metáfora do fogo amarelo da biblioteca queimada: “No começo a espessa fumaça negra do querosene não deixava ver bem as chamas brilharem; mas logo que ele se evolou, o clarão delas, muito amarelo, brilhou vitoriosamente com a cor que o povo diz ser a do desespero...” O grande Lima Barreto entendeu tudo de sua época e transformou sua angústia em linguagem, como fazem grandes escritores. Como escreveu Ezra Pound: “Os homens só podem compreender um livro profundo, depois de terem vivido, pelo menos, uma parte daquilo que ele contém”. Lima Barreto talvez não tenha tido tempo de ler todos os livros que ele referenciou, como Baudelaire, que se queixava não ter tempo de ler todos os livros publicados em sua época. Por fim, somos sujeitos feitos dessa pequena parte do pouco que lemos.

FÁBIO BRÜGGEMANN (Lages, 1962) é escritor e editor, autor de Transporte (poesia, 1988), A lebre dói como faca de ouvido (novela, 1994), Trilogia da Angústia (teatro, 1999) e Fabulário dos Ilustres Desconhecidos (contos, 2002), entre outros livros.

livros que não são necessariamente considerados literários. É curioso notar que, apesar de ter criado o personagem Policarpo Quaresma, um notório nacionalista, suas leituras eram, ao que demonstra em suas citações, de autores estrangeiros, com predileção pelos franceses, talvez porque estivessem na moda e eram mais publicados na época. Machado de Assis é influenciado também por essa literatura. Seria Lima Barreto, ao ler o estrangeiro e tentar fazer destas leituras a construção de uma tese nacionalista, um protoantropofágico? De certo modo, a maneira como escrevia, de forma simples, com vários erros, principalmente de pontuação, não atentando à sintaxe lusitana, como fazia Machado, se aproximava muito mais do que pretendia Oswald de Andrade (“Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido”), anos mais tarde, do que do modo como se escrevia antes da Semana de Arte Moderna. Lima Barreto é o próprio mulato sabido. A impressão, numa leitura de entrelinhas, é a de que Lima Barreto, de certo modo, queria, com as citações que fazia, sustentar uma espécie de autoridade ingênua para garantir sua obra, já que não conseguia garantir sua vida. Lima foi um homem frágil, dependente do álcool e que sofria o preconceito na pele. No conto “A biblioteca”, ele também se utiliza dessa “autoridade” ao falar de tudo o que havia na biblioteca herdada pelo personagem. Mas há sempre avisos nas entrelinhas. Apesar de citar uma miríade de autores, denunciava também que a falta de leitores das novas gerações poderia ser a desgraça do país. No conto, o personagem descreve a decadência econômica de sua família, de avô militar, do pai professor e do que poderia acontecer com os livros num futuro nem tão remoto. A culpa não era do pai, ele escreve: “A culpa não era sua, dele, era da marcha da sociedade em que vivia...” Mais uma vez, como em outros livros, Lima Barreto cria personagens que não são escritores ou intelectuais, como seus ascendentes diretos (militares e químicos), mas têm amor aos livros e aos assuntos de outras naturezas, como o próprio autor em “A biblioteca”. Isso fica claro quando faz alusão a Lavoisier e seu “Tratado elementar de química, apresentado em uma nova ordem e de acordo com as descobertas modernas”, contido na biblioteca tanto no original quanto traduzido. Sinal inequívoco de que Lima Barreto teve acesso a esse livro e, obviamente, a todos os que referencia. E, apesar de ser um livro técnico, o pai do personagem dizia que não se podia lê-lo sem emoção. Quando o pai conta o motivo da emoção, explica que Lavoisier, ao escrever sobre tão importante tema, sofreu o que ele mesmo sofria, a mesma crítica feita a Policarpo, por ser pobre, e pobre não pode ser inteligente. Narra o pai: “Porque Lavoisier

literatura

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robert elswit/skydance production

música

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ALBERTO ANDRÉS HELLER (Buenos Aires, 1971) é compositor e pianista, doutor em

Literatura e autor dos livros Fenomenologia da expressão musical (Letras Contemporâneas, 2007) e John Cage e a poética do silêncio (Letras Contemporâneas, 2012).

Valor e celebridade Tocar com Steve Vai no Rock in Rio pode ser uma experiência tão transformadora quanto a de qualquer outra parceria, mesmo as ruins Alberto ANDRÉS Heller No dia 25 de setembro, toquei com o guitarrista Steve Vai e a orquestra Camerata Florianópolis no Rock in Rio. Difícil descrever a sensação de estar num palco como aquele, tocando em frente a cem mil pessoas; é uma experiência única. Assim como tocar na frente de uma pessoa ou mesmo sozinho. Explico-me. Faço essa observação devido a uma pergunta que me foi feita durante uma entrevista: “Tocar com Steve Vai nesse festival é algo transformador em sua trajetória artística”? Sim, claro! Da mesma forma que todas as parcerias pelas quais passei em minha vida foram e são transformadoras, respondi. Todas, sem exceção. Mesmo as ruins (principalmente as ruins) deixaram suas marcas. A pergunta do repórter se insere no universo imaginário que faz das celebridades o ápice do desejo e da realização pessoal. É mais ou menos como

achar que transar com a Angelina Jolie será uma experiência infinitamente superior a transar com qualquer outra mulher. Fora o duvidoso prazer de poder gabar-se disso junto aos amigos (“Cara, você não vai acreditar com quem saí ontem à noite!”), nada garante que a experiência com a beldade-celebridade será mais especial ou prazerosa. Não me entendam mal, não estou desfazendo de minha experiência no Rock in Rio — ela foi maravilhosa! O que me incomoda é que se subestimem e desvalorizem nossas experiências diárias; que, ao qualificá-las de “pequenas” e corriqueiras, se lhes negue qualquer possibilidade de valor (que é quando as pessoas começam a duvidar de

suas escolhas e passam a viver frustradas porque não chegaram aonde as revistas de celebridades dizem que pessoas “de sucesso” deveriam chegar). Nossa cultura insiste em confundir grandeza com grandiosidade. Pode haver grandeza (ou não) num momento artístico envolvendo dez pessoas, enquanto um evento grandioso como o Rock in Rio pode (ou não) passar-lhe ao largo. No dia a dia vivemos coisas extraordinárias. Sem holofotes. Sem repórteres. Sem curtidas no Facebook. Como lamenta em seu monólogo final o androide do filme Blade Runner, “todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva”. Sim: se perderão. É essa a grandeza do efêmero.


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Quando o assunto é poesia, as coisas nunca são o que parecem. Geralmente costumam ser bem piores. O poeta, entenda-se a maioria, considera-se um ser iluminado, e isso lhes dá o salvo conduto para escrever e dizer besteiras só porque as distribui em rimas. Raríssimas exceções, mas raríssimas mesmo, valem o tempo destinado à sua leitura. Repare que me refiro ao universo brasileiro. Mariana Ianelli, nossa poeta maior, Luís Augusto Cassas, Gullar, Tanussi Cardoso, Celso de Alencar. E ficamos por aqui. Carlos Nejar tem se dedicado mais à prosa. E Carpinejar, dos brilhantes Biografia de uma árvore e Terceira sede, atualmente pode ser lido na forma de cronista/humorista. Parte da paisagem, de Adriana Lisboa, é uma luz na poesia brasileira. É isso. E estamos conversados. O mais é pura desolação. Mas digamos que você, assim como este aprendiz, goste de ler poesia e não tenha acesso à poesia estrangeira, por não ler na língua de origem, por não ter edição em português, o que fazer? Afaste-se do gênero. Volte quando o poeta merecer sua atenção. Exemplos: as edições bilíngues de Um lance de dados, de Stéphane Mallarmé, e O homem e os animais, poemas de Umberto Saba. A maioria dos poetas gasta tempo, tinta e papel em pródigas repetições, mestres das aliterações, são concorrentes à altura dos dormonid, lexotan e seus congêneres. O homem e os animais chega ao leitor via EdUFSC (tradução de Aurora F. Bernardini). Entenda-se, editora preocupada com a qualidade em primeiro lugar. Antes que você me acuse de ter dito que só editoras com essa característica estão preocupadas com a qualidade, releia e perceberá que eu não escrevi isso. Mas se não escrevi foi por pouco. É quase isso. Voltemos a Umberto Saba. O leitor encontrará poemas aparentemente despretensiosos. Aparentemente. O poeta não faz uso de artifícios melodramáticos, tampouco perceberá poemas onde o distanciamento, tão cantado e decantado, produz peças insossas. Umberto Saba trata a tudo e a todos com o máximo respeito e importância conferida aos seres e coisas que compõem o dia a dia dos humanos dotados de sensibilidade capaz de valorizar o ima-

Reflexo do homem Não pense que essa coletânea de poemas de Umberto Saba apresenta sempre o animal como centro das atenções, o protagonista. Vai muito além, arrisco dizer que na maioria dos poemas o animal é o reflexo do homem, ou quem sabe o homem reflita o animal no espelho de suas ações diárias. Sem demérito a qualquer dos protagonistas. Olho, mulher, para teu cão que adorado te adora. E eu… se penso em minha vida! Agi variadamente, se mal ou bem não saberia; sabe-o Deus, ou mais ninguém, quem sabe. Nunca a alguém pertenci, nem nunca a alguma coisa. Fui sempre (“culpa tua” tu me respondes) um pobre cão de rua.

Os poemas de Saba são de uma delicadeza incomum. Importante ressaltar que tal delicadeza não implica banalidades. A edição bilingue enseja o contato/cotejo com a língua original. O homem e os animais é obra a ser saudada, a ser estudada, entre as ques-

reprodução

tões a pesquisar: como a simplicidade pode ser tão profunda? Vale destacar a sensibilidade das organizadoras dessa coletânea de Umberto Saba, não se percebe uma nota destoante, o agrupamento dos poemas confere-lhes unidade e permite ao leitor a familiaridade com aquele ponto de vista do eu lírico. Não se trata de uma obra solar, longe disso, percebem-se momentos crepusculares, aos quais todos estamos sujeitos, mas despidos de ranços apocalípticos. O poeta faz o mea culpa por nós, caro leitor. Acredite. A partir de suas confissões, as mais pessoais, ele confessa por nós. O poeta testemunha os acontecimentos, no mais das vezes sórdidos, que fazem o nosso mundo, esse “mesmo mundo”, e dele extrai sensações e conclusões onde percebe-se a ausência dos tão comuns laivos de pieguice que costumam invadir a poesia de um modo geral. Saba coloca o homem, mais precisamente a condição humana, no centro de sua poética e curiosamente se afasta do senso comum que enfadonhamente descreve o ser humano sem a perspectiva do futuro. O poeta não indica caminhos, embora não esconda a realidade, muito pelo contrário, parte dela para a luta imprescindível de viver com poesia. A poesia como arma. Além dos animais que “animam” vários poemas da coletânea, o leitor deve prestar redobrada atenção àqueles onde Saba “anima” a cidade. Nada a dever ao flâneur de Baudelaire, embora o eu lírico de Saba, diferentemente daquele de Baudelaire, deixa nítido seu compromisso, sua expectativa, para com sua Trieste. Minha cidade que em toda parte é viva tem seu cantinho afeito a mim, à minha vida pensativa e esquiva.

Caro leitor, está valendo a promessa de traduzir o livro de Matthieu Ricard. Enquanto isso, leia e releia O homem e os animais. Fiz isso, faço isso, olho nos olhos de meus cães e gatos, olho nos olhos do garoto que vende balas no semáforo, minha culpa só aumenta. Para a maioria, vale o que disse Matthieu: “Uma das vantagens de ser uma criatura racional é encontrar uma justificativa para tudo o que quero fazer”. A poesia — mesmo a de Mariana, Cassas, Alencar, Adriana, Saba — não pode fazer nada por nós.

grandes não cantam, entre outros. Texto originalmente publicado no jornal Rascunho (http://rascunho.gazetadopovo.com.br/).

Luiz Horácio

terial e de entender os sentimentos de um pintarroxo e um melro. Sempre que abordadas, as questões acerca do tratamento que dispensamos aos animais provocam reações belicosas. Seja de parte dos defensores dos animais, e pergunto como agir de forma diferente ao enfrentar um perverso, um cretino capaz de tirar o couro de um gato vivo? Outra reação, ainda mais comum, tem origem no medíocre que vislumbra o absurdo e cria o confronto ser humano x animal: “Onde se viu gastar com animais enquanto crianças morrem de fome?”. Esses gênios só atuam no confronto pois se fossem tão preocupados com o ser vivo, independentemente de humano ou não, tentariam ajudar a todos. Mas é isso, caro leitor, basta falar em tratamento digno para animais para que vozes roucas e patéticas se façam ouvir. Ao mesmo tempo que alguns lutam pela dignidade animal, paradoxalmente, os números da produção animal para consumo humano aumenta significativamente a cada ano, devido à crescente demanda dos países emergentes. Sobre esse tema, sugiro a leitura de Plaidoyer pour les animaux, de Matthieu Ricard, doutor em genética celular e monge budista. Não sei de edição brasileira, mas encomende que me comprometo a traduzir. Voltamos ao assunto interrompido. Poemas de Umberto Saba. Caso tenha pensado em La Fontaine, esqueça. Mas esquecer não implica desvalorizar o mestre das fábulas, implica ler Saba também por esse viés. Embora utilizem formas de expressão bem diferentes, e por isso a sugestão de não compará-los, vale a pena ler os poemas dedicados aos animais como “quase fábulas”.

Luiz Horácio (Quaraí, 1957) é escritor, autor de Pássaros

Destituídos de artifícios melodramáticos, poemas de Umberto Saba, publicados pela EdUFSC em 2014, são apenas aparentemente despretensiosos

literatura

Amor aos animais


fred keleman

robert elswit/skydance production

cinema

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Abismo entre sinônimos

Marco Túlio Ulhoa (Belo Horizonte, 1985) é jornalista, doutorando

em Comunicação na Universidade Federal Fluminense, na linha de pesquisa de Estudos de Cinema e Audiovisual, especialista em Produção e Crítica Cultural.

Em O Cavalo de Turim, o diretor húngaro Béla Tarr se apropria do texto bíblico para narrar, em tom político e metafísico, as misérias da vida camponesa do leste europeu Marco Túlio Ulhôa No sétimo dia, em vez do descanso, a morte. Para além de uma conclusão, o fim dos tempos. Em certa medida, pode-se dizer que essas palavras têm as propriedades de figurarem como sinônimos de uma mesma ideia. No entanto, são as singularidades postuladas em seus respectivos significados e a preensão conceitual e filosófica implícita em cada termo os mecanismos capazes de revelarem o abismo existente entre as suas definições e a maneira como elas se fazem presentes na reapropriação do texto bíblico operada pelo cinema do diretor húngaro, Béla Tarr. O filme O Cavalo de Turim (2011) é uma obra aterradora. Uma experiência sofrida, entretanto, necessária. Não porque deveríamos, necessariamente, experimentar tal projeção alguma vez em nossas vidas. Seria uma besteira afirmar algo dessa natureza, seja em relação à pertinência da obra do diretor, seja mesmo em relação ao próprio papel que o cinema ocupa em nossas vidas. O que urge no tempo cinematográfico de O Cavalo de Turim é a própria duração do cinema de Béla Tarr e a maneira como ela se propõe a ser assimilada, a partir de um deslocamento

que nada mais é do que o efeito do encontro entre o tempo diegético e o próprio tempo da consciência. E não estou falando de um cinema realista, de sua pedagogia própria, ou de suas categorias de pureza. O cinema de Béla Tarr comprime e tensiona por demais o real. O que se pretende aqui é uma abordagem que está muito mais voltada para os desdobramentos de uma experiência fundamental para que a completude dos efeitos políticos e metafísicos do cinema de Béla Tarr se realize, do que uma leitura sobre a objetividade da sua forma cinematográfica. A cada filme do diretor me convenço de que Béla Tarr é extremamente político. Mais do que sempre acreditei ser. Pois é justamente pela maneira como o filme O Cavalo de Turim costura a política e a teologia como preceitos inseparáveis no discurso histórico que, espantosamente, aquele que aparenta ser o filme menos político de Béla Tarr é uma das obras onde os efeitos estéticos dos aspectos formais de sua narrativa estão mais atravessados de questões profundamente políticas. Com isso, mais do que tratar da miserabilidade, da decrepitude e dos tons cinzas da vida camponesa no leste europeu, o filme é uma aposta em um viés revelador, onde a política, a metafísica e a parte maldita do saber histórico estão presentes na forma de se conceber uma memória do irrepresentável e dos caminhos do próprio esquecimento. Assim, como em Harmonias de Werckmeister (2000), onde a baleia exerce uma preensão misteriosa na decorrência dos fatos, no filme que, propositalmente, encerra a cinematografia de Béla Tarr, o cavalo é o ponto de tensão conceitual da narrativa. A disposição cosmológica engendrada no enaltecimento da animalidade como mantenedora da história da negatividade na cultura ocidental está representada, não só no desvelar de uma narrativa que toma o mito da criação a contrapelo, mas,

principalmente, na atividade dos personagens que estão alheios ou que estão sujeitos à eminência do caos. O que em Harmonias de Werckmeister repercute no desencadeamento de uma rebelião, em O Cavalo de Turim se dá por meio da ação intempestiva das forças da natureza, dos ventos e da tormenta. Natureza que é animada por Béla Tarr, como força que interrompe e realiza um corte histórico e existencial, garantindo que a obra do cineasta seja capaz de esboçar uma metáfora, não só de fundo filosófico, mas, sobretudo, político. Principalmente, pensando em relação à construção da imagem de uma sociedade retratada, simbolicamente, como a face relegada pelo período soviético. Por isso, Nietzsche chora. Diante da brutalidade e do esvaziamento que talvez ele mesmo, inevitavelmente, tenha ajudado a construir, o que se anuncia é um mundo em decadência, onde algumas histórias são, propositalmente, esquecidas no abismo do tempo. Histórias incapazes de reclamarem a sua própria importância. E é nesse sentido que o drama existencial de Béla Tarr ensaia, politicamente, os aspectos de um mundo sem plateia, sem transcendência e envolto pelo mistério da existência em seu eterno conflito com o ceticismo e com a apatia. Um mundo que propõe o conflito entre o funcionamento dos instrumentos de trabalho e a nossa própria natureza orgânica e animal. O espelhamento progressivo da composição e da montagem de O Cavalo de Turim é magistral. O deslocamento da perspectiva entre o pai, depois a filha e, no final, o terceiro elemento é fundamental na dissecação do ambiente. Novos elementos são adicionados enquanto outros se esvaziam. A cada dose alcoólica, um apetite a menos. E, no fim, diante das expressões cansadas: o descanso. Descanso enquanto morte. Morte sem nenhuma redenção.


Fernando Boppré Antes de tudo, asseguro e dou fé. Escrevo como quem redige ata ou relatório. Filho do presente, respondo ao sussurro da avó memória (e todos sabem: pedido de vô-vó não se deve negar). Por isso, coloco-me a descrever o que não mais existe. Chamava-se Museu do Índio. Não apenas isso me impele: tenho o propósito de comprovar a mim mesmo que aquilo que vi no interior do Museu do Índio não foi sonho ou delírio. Embora seja sonho e delírio imaginar que essa história não esteja destinada ao esquecimento das próximas gerações. Tudo bem, é o que há, as histórias passam mesmo como nuvens. Aliás, as melhores costumam ser aquelas que se perdem no meio da floresta ao cair da noite e que, pela manhã, todos se esquecem de procurar. É como se não tivessem existido, carregam algo de fantasmagórico. Menos de cinco anos após o fechamento definitivo ao público do Museu do Índio, poucos são os que ouviram falar ou tiveram a chance de visitar esse casario insólito. Ele ficava em frente ao Teatro da União Beneficente Recreativa Operária (UBRO), na escadaria da rua Pedro Soares, em pleno Centro de Florianópolis. Aviso aos marinheiros: o Museu do Índio não era do índio. Não era dedicado aos indígenas, nada tinha a ver com museu antropológico, etnográfico ou algo do tipo. Denominava-se Museu do Índio porque quem o criou e manteve era o Seu Índio, um

simpático senhor de estatura mediana, um tanto calvo e que definivamente em nada se parecia com um índio. Essa figura singular que, junto à família, morava no interior do próprio Museu, trazia na mente o nome científico e o vulgar de todas as espécies de animais que expunha empalhados (ou taxidermizados, como queiram). E não eram poucos os répteis, aves, mamíferos, insetos, dentre outros que dedicavam o seu post mortem ao Seu Índio e ao público do Museu. Não faço ideia do número preciso de peças (algo em torno de 10 mil?), mas o fato de ele haver decorado as nomenclaturas de cada uma das espécies e de mantê-las na ponta da língua mesmo ao final da vida, quando sofria de Alzheimer, fazia dele uma espécie de Funes endiabrado. Dentro do palacete, ao longo dos três andares, ocupando chão, paredes e mesmo o teto, havia uma infinidade de animais, mas também de vegetais e minerais. Era um gabinete de curiosidades encalhado no século 20. A impressão de acúmulo só aumentava a cada passo no interior daquele mundo paralelo. Até mesmo as laterais das escadas eram ocupadas por toda sorte de seres. Seu Índio teve o senso estético de ali instalar, seguindo a mesma angulação em diagonal ascendente da escada, somente os animais alongados (jacarés, cobras, enguias, iguanas, lagartos, peixe-espada). O que o tornava absolutamente singular é que, além da coleção, havia ali um modo

museu é curador e historiador, integra a equipe do Museu Victor Meirelles/IBRAM/MinC, de Florianópolis.

Verdadeiro gabinete de curiosidades que funcionava em um antigo prédio da rua Pedro Soares, no Centro de Florianópolis, não resistiu à morte de seu proprietário e ao desinteresse da esfera pública institucional

de expor que remetia aos gabinetes de curiosidade. Era uma maravilha encontrar, por exemplo, uma revoada de pássaros das mais diferentes espécies ali taxidermizados e encerrados em armários de vidro de madeira maciça. Uns praticamente colados aos outros, uma verdadeira orgia expográfica que me faz lembrar que as coleções, outrora, não eram tão aborrecedoras e exibidas em espaços assépticos, baseados na ideia de cubo branco, como são a maior parte dos museus de hoje. Mas havia algo a mais, a cereja do bolo. Em minha última visita ao Museu, Seu Índio parece ter se sentido mais à vontade para mostrar uma sala que eu ainda não conhecia (eu estava acompanhado de uma mulher, a artista Mabe Bethônico, quem sabe ele desejou impressioná-la? Nas outras vezes, eu havia ido sozinho...). Era uma sala que ele mantinha chaveada, um tanto secreta, reservada ao olhar da maior parte dos visitantes. Era a sala das aberrações. Lá habitava um exército de mutantes, verdadeiras bizarrices. Eram cabras com cinco patas, bois com dois rabos, galinhas com três bicos e assim por diante. E mais: duas cabeças humanas cortadas, segundo ele, absolutamente verdadeiras. Ou seja, ele tinha dois mortos ali dentro. A decapitação e a tomada da cabeça como troféu era uma prática ritual observada em vários lugares desde a Idade da Pedra. Na América do Sul — de onde provinham aquelas duas cabeças, conforme Seu Índio —, elas eram praticadas pelos índios jivaros, que vivem nos Andes equatorianos e peruanos. Eles são famosos pela habilidade com que reduzem a cabeça de seus inimigos ao tamanho de uma laranja, preservando os traços de expressão e os cabelos. Durante décadas, essas cabeças eram vendidas como suvenires aos turistas que iam aos Andes. Como aquelas duas cabeças foram parar ali, na coleção do seu Índio, isso eu realmente não sei. Epílogo: após a sua morte e de sua esposa, as peças do Museu foram vendidas a colecionadores, antiquários e outros museus. O esforço de uma vida se transformou em mercadoria. Acontece que, em vida, Índio esteve tão ocupado no fazimento de sua própria coleção, artífice de si mesmo, que não conseguiu reunir as condições necessárias para assegurar a continuidade de seu Museu após a sua morte. Ele não foi capaz de inseri-lo na esfera pública institucional. Ou será que não foi a esfera pública institucional que estava tão ocupada consigo mesma, em fazer a si própria funcionar, que não conseguiu enxergar aquilo que era um dever preservar? Acredito mais na segunda hipótese. Pouco importa, o certo é que hoje o silêncio e o esquecimento estão inscritos sobre cada peça dessa coleção. Do que prestavam contas — para as histórias, as poesias, as biologias, as museologias — resta apenas a lembrança para aqueles que, como eu, tiveram a chance e a experiência de conhecê-lo. Mas você sabe, como dizia Louis-Ferdinand Céline: “a experiência é uma lâmpada fraca que só ilumina aquele que a carrega”.

Fernando Boppré (Florianópolis, 1983)

Museu do Índio

cristiano prim

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e-mail: henrique@henriquepereira.com.br fones: 48 9997-0632 . 11 94834-9712

fotografia

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Henrique

Pereira

(Florianópolis, 1980) Fotógrafo de ofício desde 2006, divide seu trabalho comercial com suas pesquisas no campo da produção e discussão sobre imagens.

Autoretrato: 2015, negativos 6x6 sobre cianotipia. “Em meio as milhares de imagens que o fotógrafo de ofício produz, que em sua maioria respondem apenas ao briefing /pauta/pedido do cliente, creio que gerar imagens com potencial para discussão sobre seu processo (de sua gestação até o suporte) seja um dos caminhos para melhor entender a fotografia no século 21. Analisando meu próprio processo de criação, concebi uma série de peças que parecem levar ao início dessa curiosidade que tive em tentar dar vida a imagens e assim perder de vista o fim como um marco, entendendo o processo como potência de trabalho, utilizando como ferramenta de trabalho a crítica genética, aplicada em processos de cianotipia. A peça, em questão, faz parte do trabalho Primeiras Impressões.”


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