nº 49 - dezembro/2014
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MÍDIA E POLÍTICA
Cuidado, querem manipular você! Ela jura que é imparcial e que só noticia aquilo que interessa para a sociedade. Mas, por trás desta máscara, a grande imprensa brasileira tenta manipular as pessoas e impor uma agenda que, em geral, não interessa para o país
Revista dos Bancários Publicação do Sindicato dos Bancários de Pernambuco
Redação Av. Manoel Borba, 564 - Boa Vista, Recife/PE - CEP 50070-00 Fone 3316.4233 / 3316.4221 Site www.bancariospe.org.br Presidenta Jaqueline Mello Secretária de Comunicação Anabele Silva Jornalista responsável Fábio Jammal Makhoul Conselho editorial Jaqueline Mello, Anabele Silva, Geraldo Times e João Rufino Redação Camila Lima e Fabiana Coelho Projeto gráfico e diagramação Bruno Lombardi - Studio Fundação Imagem da capa Sergey Nivens / ©DepositPhotos Impressão NGE Gráfica Tiragem 12.000 exemplares
Sindicato filiado a
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Revista dos Bancários
Editorial
Crise de credibilidade Nunca antes na história deste país a imprensa brasileira sofreu uma crise tão grande de credibilidade como na última década. Desde que o ex-presidente Lula assumiu a Presidência da República, em 2003, a chamada grande imprensa tem feito campanha sistemática para apear o PT do poder, fomentando escândalos e chegando, até mesmo, a pedir o impeachment de Lula, como já fez a revista Veja em várias ocasiões. É claro que jornalismo não pode ser chapa branca, deve investigar as ações de todo e qualquer governo e denunciar os problemas. Mas jornalismo de oposição também não é jornalismo. Principalmente se a oposição for direcionada a alguns partidos enquanto outros são poupados. A Revista dos Bancários não quer aqui defender o PT e os governos Lula/Dilma. Eles não são vítimas da grande imprensa, até porque todos – políticos e mídia – fazem parte do mesmo jogo. A questão que abordamos na matéria principal dessa edição e na entrevista do mês é a manipulação que a imprensa faz do noticiário para tentar impor uma visão de mundo que, em geral, é elitista, de direita e em nada contribui com o país. Tudo isso travestido pelo véu da imparcialidade e objetividade que, definitivamente, só existem nos manuais de redação. Essa revista, por exemplo, não é imparcial, nunca foi e nunca afirmou que é. A revista, editada pelo Sindicato, tem um lado: o dos trabalhadores. Aqui você não vai ler nada que defenda o interesse de empresários, por exemplo. Mas, mesmo tendo um lado, esta revista não vai circular com denúncias vazias ou acusar alguém sem provas. Ser parcial não dá o direito ao jornalista de mentir, deturpar fatos e destruir reputações. Os grandes jornais, as principais revistas e redes de televisão pertencem a empresários que, como classe, defendem seus interesses. Isso é compreensível. O que é inadmissível é a manipulação, que vem sempre acompanhada de mentiras, má-fé e até incompetência, como ocorreu no famoso caso da “Escola Base”, em que a imprensa, baseada nas especulações de um delegado que só queria aparecer, acusou os donos de uma escola, em São Paulo, de abusar sexualmente dos alunos. A população, revoltada, destruiu a escola e por pouco não linchou os donos. Dias depois, as acusações se revelaram falsas, os donos da escola foram inocentados, mas suas vidas já estavam destruídas. Os dois principais sócios morreram recentemente sem ver suas ações, na Justiça, concluídas. Morreram na miséria e sem receber nenhum centavo de indenização. Por essas e outras, o grande debate que está colocado hoje, no Brasil, é o da democratização da imprensa. E essa será uma das principais bandeiras do Sindicato em 2015.
Arquivo pessoal
Índice
Ivan Moraes Filho fala sobre o direito à comunicação
Divulgação
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Giselly Andrade
A grande imprensa tem lado
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Nada de novo no Novo Recife Página 9
Cultura Natalina do Nordeste sobrevive graças ao povo Página 11
Confira nossas dicas de cultura e lazer Página 14
Manuel Buarque, o bancário que é poeta e compositor Página 15
O Natal imperdível de Cidade Tabajara Página 16 Dezembro de 2014
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Mídia e política
“Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz”, já cantava Raul Seixas nos anos 80. Três décadas depois, a grande imprensa brasileira vive uma das suas maiores crises de credibilidade, enquanto os movimentos sociais lutam para democratizar a mídia
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comunicação tem um papel estratégico nas relações humanas; e, nas relações políticas, não é diferente. Por isso mesmo, os maiores veículos de comunicação do país são utilizados como ferramentas de defesa e difusão dos valores e interesses de grupos dominantes, política e economicamente. Em 2014, como de costume, a grande imprensa brasileira fez uma cobertura jornalística parcial e contrária aos interesse dos trabalhadores. As eleições presidenciais, que
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Revista dos Bancários
freevector/Vecteezy.com
Você acredita na imprensa?
ocorreram em outubro deste ano, intensificaram as campanhas partidárias, sob a máscara de jornalismo imparcial. Para discutir jornalismo, é preciso considerar uma questão pacífica em ambientes em que se discute comunicação com seriedade: não existe imparcialidade jornalística. O professor do curso de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, Juremir Machado Silva, afirma, no seu livro “A miséria do jornalismo brasileiro: as (in) certezas da mídia”, que, desde a invenção do jornalismo, a objetividade é uma gangorra que sobe e desce, de acordo com a filosofia do patrão e com a moda profissional. E, no contexto de aparente neutralidade do jornalismo, identificar po-
Escândalos A última década foi marcada por escândalos de corrupção no governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Os casos que deram origem a esses escândalos têm sido, largamente, divulgados pela imprensa e pela oposição para desqualificar o partido e seu governo. Mas o que é um escândalo mesmo? Segundo o professor de Sociologia da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, John B. Thompson, no seu livro “O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia”, escândalo, em seu sentido atual, refere-se a transgressões que se tornam conhecidas, por meio da mídia, e são sérias o suficiente para provocar uma resposta pública. O professor explica, no entanto, que nem só de fatos constituem-se os escândalos. Em sua maioria, constituem-se miscelâneas de atos e suposições, nem sempre bem fundamentadas. Para Thompson, o objetivo do
Arquivo pessoal
sicionamentos ideológicos não é tarefa fácil. Mesmo porque, ao produzir, os jornalistas são motivados por interesses difusos. Segundo afirma o também professor Nelson Jahr Garcia, no seu livro “O que é propaganda ideológica”, a propaganda ideológica tem a função de formar a maior parte das ideias e convicções dos indivíduos e, com isso, orientar o seu comportamento social. E uma das condições básicas para o sucesso dessa propaganda é a ignorância do receptor, que acredita estar recebendo uma informação objetiva e desprovida de interesses.
Venício Lima: Mesmo com toda tentativa golpista, a imprensa não conseguiu eleger Aécio Neves
escândalo político é atingir a reputação de adversários; e o que está em jogo é o poder que eles têm. Escândalos são lucrativos para mídia, pois, além de “venderem bem”, atendem aos seus interesses e de seus aliados políticos. O Manchetômetro é um site, mantido pelo grupo de pesquisa “Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública” da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que analisou a cobertura midiática das eleições presidenciais de 2014. Os veículos de comunicação cuja produção foi analisada, pelo grupo, foram Folha de S. Paulo, O Globo e O Estado de São Paulo (os três principais jornais diários do país) e o Jornal Nacional (programa de notícias mais popular da televisão aberta). De acordo com o site, na cobertura das eleições de 2014, foram noticiados seis escândalos contrários ao PT (Correios de Minas Gerais, Doleiro Yousseff, Graça Foster na CPI, Mensalão, Miriam Leitão na Wikipedia e Petrobrás) e cinco contrários ao PSDB (Aeroporto de
Cláudio, Alstom, Cantareira/Água em São Paulo, Mensalão Tucano e Metrô de São Paulo). A diferença está no número de edições em que esses escândalos foram objeto de capas dos jornais impressos ou de chamadas no jornal televisivo: foram 688 edições contrárias ao PT e 229 contrárias ao PSDB. Mas, por que os casos de corrupção que envolvem o PSDB são abordados de formas tão diferentes dos que envolvem o PT? Há uma clara escolha da mídia de poupar o primeiro partido e desgastar a imagem do segundo. A discussão, nesse caso, não é a inocência ou culpa de petistas envolvidos em casos de corrupção – mesmo porque, muitos deles já foram considerados culpados, pela Justiça –, mas a parcialidade da cobertura midiática. A corrupção faz parte de todo sistema político brasileiro, e a grande imprensa se nega a discutir as raízes desse problema e as mudanças estruturais necessárias para superá-lo – entre elas, a reforma política. Em vez Dezembro de 2014
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disso, difunde recortes distorcidos da realidade, que beneficiam seus interesses – entre eles, a ideia de que o PT é partido da corrupção, no Brasil. De acordo com Thompson, é a imprensa que define o que é escândalo e que tamanho ele tem. Algumas transgressões não se transformam em escândalos políticos, mas simples suspeitas podem desencadeá-los. A força do escândalo depende do grau de conhecimento público. O caso da edição da Revista Veja que foi publicada, nas vésperas do segundo turno da eleição presidencial deste ano, na tentativa de interferir no resultado do pleito, é um exemplo caricatural da postura da grande imprensa brasileira. A capa da edição 2397 de Veja afirmou que o ex-presidente Lula e a presidenta Dilma Rousseff tinham conhecimento do esquema de corrupção na Petrobras, que é alvo de investigação da Operação Lava Jato, feita pela Polícia Federal. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu a editora Abril, responsável pela publicação de Veja, de veicular publicidade sobre essa edição e garantiu direito resposta à presidenta e ao PT. A matéria publicada pela revista não trazia provas do que afirmava em sua capa.
Até o poder da mídia tem limite O jornalista, sociólogo e professor aposentado de Ciência Política e Comunicação Social da Universidade de Brasília (UnB), Venício Lima, explica que o poder de influência da grande mídia so-
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Revista dos Bancários
Lumen Fotos
Mídia e política
Jaqueline Mello: Sindicato luta pela democratização da comunicação
bre a sociedade não é o mesmo de outrora. Os avanços tecnológicos na comunicação, especialmente os relacionados à internet, contribuíram muito para a mudança. “Em 1989, a grande imprensa conseguiu eleger seu candidato à presidência, Fernando Collor. Em 2014, mesmo com todas as investidas golpistas, não conseguiu eleger Aécio Neves. Houve uma clara tentativa de interferir no resultado das eleições”, afirma Venício. Para o professor, no entanto, uma mudança efetiva na área passa, necessariamente, pela democratização da comunicação. “Se a Constituição Federal fosse respeitada, já teríamos muitos avanços na área da comunicação. O parágrafo quinto do artigo 220, por exemplo, determina que os meios de comunicação não podem ser objeto de monopólio ou oligopólio”, comenta Venício.
O que não é notícia Outra questão primordial, na construção da realidade pela mídia, é a escolha do que é, ou não, notícia. Alguns temas muito relevantes para a população brasileira são, deliberadamente, ignorados pela grande imprensa. O Plebiscito Popular sobre a Reforma Política é um grande exemplo disso. A campanha do Plebiscito Popular foi lançada em novembro de 2013, e a coleta de votos ocorreu em setembro deste ano. Foram quase 8 milhões de votos (7.754.436 votos), dos quais 97% favoráveis à realização de uma Constituinte Exclusiva e Soberana sobre o sistema político brasileiro. Mesmo com toda essa repercussão social, a mobilização não foi noticiada pelos principais veículos de comunicação do país. O Sindicato dos Bancários de Pernambuco foi uma das entidades sociais que coletaram votos e participaram ativamente da campanha pelo Plebiscito. Para a presidenta do Sindicato, Jaqueline Mello, o Plebiscito estimulou a discussão acerca do sistema político brasileiro e demonstrou a vontade da população de mudá-lo. “Mas os proprietários dos veículos de comunicação têm estreitas relações com os políticos – quando não detêm, eles próprios, cargos eletivos. E, portanto, têm interesse na manutenção do atual sistema político, por se beneficiarem dele”, comenta Jaqueline, destacando que uma das principais lutas do movimento sindical ligado à CUT, hoje, é pela democratização dos meios de comunicação.
Entrevista: Ivan Moraes Filho
Para o jornalista Ivan Moraes Filho, a comunicação no Brasil nunca foi tratada como um direito
Militante pelo direito à comunicação, Ivan quer o fim do monopólio da mídia
Arquivo pessoal
‘Comunicação é um direito humano’
A
democratização da comunicação é um tema de grande importância no processo de consolidação da democracia brasileira. A Revista dos Bancários conversou sobre o assunto com Ivan Moraes Filho, militante pelo direito à comunicação e jornalista do Centro de Cultura Luiz Freire, uma das entidades que integram o Fórum Pernambucano de Comunicação. Qual o papel da comunicação para os movimentos sociais? Primeiro, a comunicação é um direito humano. E, assim como todos os outros direitos, deve ser garantida por políticas públicas. No Brasil, no entanto, a comunicação nunca foi tratada como direito, e os meios de comunicação estão concentrados nas mãos de poucas pessoas, que, em geral, compõem uma mesma classe social e possuem interesses políticos semelhantes. Em Pernambuco, são três ou quatro empresas que controlam os meios
de comunicação. E quem controla os meios de comunicação controla o discurso e quais discussões são legítimas e relevantes, na Assembleia Legislativa ou na parada de ônibus. Se luto pelo direito das mulheres de realizar o aborto, por exemplo, preciso perceber que quem controla o discurso sobre esse tema faz parte de uma classe hegemônica, que é heteronormativa, machista e racista. Se luto pelos direitos das mulheres, preciso perceber que a mídia é controlada por homens brancos que vivem no sul e no sudeste do país. Portanto, minha luta não será divulgada com a atenção que eu quero. Não me sinto representado pelo discurso hegemônico. Como as greves de trabalhadores são retratadas, nos meios de comunicação? Poucas vezes, há discussões sobre as situações que levam os trabalhadores a fazerem a greve. O discurso dominante é o do patrão. De que forma os meios de comunicação independentes podem ser utilizados como instrumentos de atuação política? Os movimentos sociais, entre eles os sindicatos, são muito imporDezembro de 2014
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Entrevista: Ivan Moraes Filho
Campanhas do Fórum Pernambucano de Comunicação pedem democratização da imprensa
tantes pela possibilidade que têm de questionar o discurso hegemônico. Quando um sindicato se propõe a discutir as pautas que a mídia tradicional não discute, trata-se de uma guerrilha para quebrar a censura do capital. É essencial, inclusive, que a mídia independente questione o problema estrutural da comunicação no Brasil. Quais as perspectivas da democratização da comunicação no novo governo Dilma? Dilma andou dizendo que vai fazer a regulação econômica dos meios de comunicação. Mas, quando ela diz que vai fazer a regulação econômica, já está excluindo a regulação do conteúdo, embora o maior problema da comunicação brasileira seja estrutural, econômico. A regulação econômica que queremos é a que põe em prática o artigo 220 da Constituição Federal, que, em seu parágrafo quinto, diz que os
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Revista dos Bancários
meios de comunicação social não podem ser, direta ou indiretamente, objeto de monopólio e oligopólio. É preciso estabelecer os limites, como existem em vários países do mundo. E o artigo 223 da Constituição diz que, para os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, deve haver complementariedade entre os sistemas público, estatal e privado. Em tese, o espectador mudaria de canal e veria canais públicos, estatais e privados. Defendemos um projeto de iniciativa popular chamado “Projeto de Lei da Mídia Democrática” e estamos nas ruas, coletando assinaturas. O projeto prevê a complementariedade de 33%, para cada sistema, e regras para interdição de propriedade cruzada dos meios de comunicação. Além disso, proíbe políticos de serem seus concessionários. Historicamente, no Brasil, os políticos têm usado suas concessões de rádio e TV para se perpetuar no poder.
Qual o papel da internet no contrafluxo do monopólio midiático? A internet, assim como todos os meios independentes, é uma possibilidade de intervir no discurso hegemônico. A partir do momento em que as pessoas deixam de ser apenas leitoras e consumidoras para se tornarem produtoras de informação, elas passam enxergar os meios de comunicação com outros olhos. É muito comum as pessoas – principalmente as da classe média – acharem que o problema da comunicação está resolvido porque elas têm a internet. Mas não é assim. A internet no Brasil ainda é um privilégio de poucos. Poucas pessoas têm banda larga que funciona, de fato. E a nossa internet é cara, de péssima qualidade e não chega a todo lugar. A universalização da internet, com neutralidade da rede e com a garantia de que todas as pessoas vão poder usufruir desse ambiente, é muito importante.
O velho Novo Recife
Divulgação
Cidadania X Especulação Imobiliária
Os shoppings e os condomínios de luxo que estão tomando a capital pernambucana não têm nada de moderno: apenas reproduzem o caráter segregador de nossa história
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stá na edição do dia 11 de novembro do Diário de Pernambuco: até 2017, a Região Metropolitana do Recife ganhará quatro novos shoppings: em Camaragibe, Olinda, Paulista e na capital. Encartado na edição do dia 30 de novembro do DP, um informe publicitário de doze páginas, da Prefeitura do Recife, fala sobre as obras realizadas na cidade. Coincidentemente ou não, o encarte foi publicado dois dias depois da realização da audiência pública que discutiu o redesenho da proposta para o chamado Novo Recife, polêmico empreendimento imobiliário de luxo, previsto para a área do Cais José Estelita. Dez dias antes, outra audiência
ocupou a cena: a que discutiu o empreendimento da Vila Naval, em Santo Amaro. Em comum entre todas estas notícias e empreendimentos, um conceito de cidade que vem sendo discutido pela sociedade civil. E uma ideia do novo que apenas repete velhas posturas e beneficia as mesmas classes sociais.
Simulação do espaço público
No vídeo “Velho Recife Novo”, produzido para o grupo Direitos Urbanos, o geógrafo Jan Bitoun, professor da Universidade Federal de Pernambuco, lembra que na história do Recife sempre houve um privilégio do espaço privado e uma negação da rua, cujo objetivo é apenas o de circulação. “É assim que espaços, que deveriam ser públicos, acabam confinados no privado. Os shopping centers e os condomínios privados são um exemplo disso”, diz. Os shoppings, criados nos Estados Unidos para atender a demanda de quem morava fora dos grandes centros urbanos por comércio e serviços, acabou sendo incorporado no Brasil com uma outra filosofia. “Shopping não é praça. Shopping não é rua. Shopping tem dono. Ele é um espaço público de mentira baseado em um modelo em que o público e o coletivo são negados”, afirma o integrante do grupo Direitos Urbanos, Lucas Alves, em depoimento no vídeo “Cidade Roubada”. O modelo não é novo. Está na base da formação social do Recife e do país. Dezembro de 2014
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Foto do vídeo “Velho Recife Novo”
Cidadania X Especulação Imobiliária
Divulgação
A história mostra que no Recife sempre houve um privilégio do espaço privado Shopping Riomar: parece um espaço público, mas é privado e elitista
“As fotografias que a gente tem do Recife no século XIX mostram o espaço público sendo ocupado por alguns poucos homens e escravos. As vivências familiares sempre foram muito fechadas nos ambientes das casas e o convívio coletivo era restrito a algumas cerimônias, como a missa”, afirma o arquiteto Luiz Amorim, professor da Universidade Federal de Pernambuco. Os shoppings concentram tudo em um único lugar. Para lá vão as famílias de classe média ou alta, sem risco de se misturarem com outras classes sociais. Saem de seus
condomínios fechados, trancam-se nos carros e, nestes centros comerciais, encontram espaços de lazer, restaurantes, lojas, cabeleireiros e até centros médicos.
O medo da rua
Os grandes condomínios reproduzem o mesmo conceito. Cria-se, no ambiente privado, todos os espaços que deveriam estar em áreas públicas, onde as pessoas se misturam e convivem com suas diferenças. Parques, academias, centros estéticos... tudo se transfere para
dentro dos muros, reforçando a segregação. “Nas periferias a gente encontra campo de futebol, gente nas ruas... o que mostra que o sentimento do espaço público existe. Mas o medo da insegurança, vivido pela classe média, reproduz um modelo segregador e reforça interesses imobiliários”, opina o arquiteto Julien Ineichen, da ONG Eu Quero Nadar no Capibaribe. Para os integrantes do grupo Ocupe Estelita, o redesenho do projeto Novo Recife, apresentado pela Prefeitura do Recife em audiência pública no dia 28 de novembro, mantém este modelo. A nova proposta consta de nove prédios residenciais, dois empresariais e um apart-hotel, com alturas que variam de 93 a 122 metros, podendo ter até 40 andares. A grande mudança é a ampliação do percentual reservado à área pública, que passa a ser 65% do empreendimento. Para o movimento, o projeto, a ser construído em área pública cujo leilão é questionado judicialmente, mantém o seu conceito segregador. Moradora do Coque, Valdimarta Ferreira, explica o porquê: “Alguém, do Coque, consegue se ver brincando em um parque construído para os filhos da elite? Temos um déficit habitacional imenso e se usa uma área como essas para beneficiar quem sempre é beneficiado. Alguém acredita que a gente vai conseguir comprar alguma coisa nas lojas do Novo Recife?”.
* Matéria produzida com informações e depoimentos do vídeo “Velho Recife Novo”, feito por Luís Henrique Leal, Cristiano Borba, Lívia Nóbrega e Caio Zatti para o grupo Direitos Urbanos, e do vídeo “Cidade Roubada”, produzido por cineastas pernambucanos em apoio ao movimento Ocupe Estelita
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Revista dos Bancários
Arte e história
Pastoril Giselle Andrade (acima) e Pastoril Estrela de Belém (abaixo) Arquivo pessoal
Mestres de pastoril, reisado e cavalomarinho passam a cultura de geração pra geração, apesar das dificuldades
Giselly Andrade
Guerreiros da Cultura Natalina
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esde o mês de agosto, no bairro do Amaro Branco, em Olinda, mais de trinta meninas se reúnem quase todas as noites para ensaiar as coreografias para o Pastoril Estrela de Belém. Com 70 anos de idade e uma vida inteira dedicada à cultura popular, mestra Ana Lúcia ensina, organiza, apoia, escuta e sofre com cada dificuldade vivida pelo grupo. Como ela, outros grandes mestres ajudam a manter viva a cultura de Natal. É o caso de Biu Alexandre, do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, em Condado, e de Seu Geraldo, 90 anos de amor pelo Reisado Imperial, na Bomba do Hemetério. Mestre Biu tem a cultura nas veias. Seu pai era mestre de cavalo-marinho, mas já tinha largado o folguedo quando o filho, com 12 anos de idade, decidiu se lançar à brincadeira. Começou cantando
no banco e, com 15 anos, passou a botar figura. É assim que se fala dos brincantes que incorporam os mais de setenta personagens do folguedo: Capitão, Mateus, Bastião, soldado, galante, dama, boi, diabo, jaraguá... Biu Alexandre passou por vários grupos antes de criar o Estrela de Ouro, em 1979. Hoje, com 71 anos, tem quatro filhos brincantes: três galantes e um cantando no banco. E se orgulha de sua relação com a cultura popular: “É um dom que Deus dá pra gente. Eu gosto de tudo no cavalo-marinho, da louvação ao estribilho. Já virei noites inteiras, até amanhecer o dia, sem cansar”, diz. O cavalo-marinho é um espetáculo do ciclo natalino, que reúne cantos, loas, improvisos, diálogos e dança. Ao som da rabeca, pandeiro, ganzá e reco-reco, os personagens e o enredo se desenvolvem. O mestre é o Capitão: o dono das terras, patrão dos bufões Mateus e Bastião, e que promove a festa em honra aos santos reis do Oriente. Dezembro de 2014
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É ele quem comanda as danças, em 63 atos, até seu desfecho: a entrada, morte e divisão do boi entre os participantes.
Cavalo-marinho Estrela de Ouro
Arquivo pessoal
Arte e história
Reis da anunciação
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Revista dos Bancários
Roberta Guimarães
repassa para os outros, da comunidade, o conhecimento que tem.
Azul e encarnado Assim é também com Mestra Ana Lúcia do Amaro Branco, com seus 70 anos de cultura. No Natal, sua casa é o centro dos festejos da comunidade. É lá que ensaiam as mais de trinta meninas do Pastoril Estrela de Belém. É lá que se concentra o cortejo de pastoras e personagens que descem até a Praça da Preguiça para a Queima da Lapinha, que fecha o ciclo natalino. Ana Lúcia herdou de outros mestres sua sabedoria. Cresceu nas rodas de coco, e ouvindo o pai, que tinha uma oficina em casa, puxando coco enquanto trabalhava. “Eu tinha três anos de idade e vivia nas rodas. Tinha muito mestre bom aqui: Aruá, Zé de Helena, Benedito Grande. Naquela época, era quase tudo homem. Só Dona Jovi e eu no meio deles. A coisa mais linda era ver o Acorda Povo no mês
Mestre Biu Alexandre
Mestra Ana Lúcia
Arquivo pessoal
Também nos reisados, há Mateus, Catirina, galantes, boi, jaraguá – além do rei e rainha. Também nos reisados, são os mestres que regem as loas, músicas e danças, comandando o cortejo que segue de casa em casa para anunciar a vinda do menino Jesus. Seu Geraldo é mestre e fundador do Reisado Imperial, que existe na Bomba do Hemetério desde 1951. Com 90 anos de idade, ele não abre mão da brincadeira e carrega a família consigo. “Perguntaram uma vez quando eu me tornaria mestre. Eu respondi: - Espero que demore muito, porque meu pai ainda há de brincar muitos anos conosco”, afirma um dos filhos, Sérgio. Além dos dois filhos, seu Geraldo tem um neto que participa do folguedo. Aliás, não só de reisado é feita a cultura da família. São eles que estão à frente da tradicional Ciranda Imperial. Sem falar nas rodas de coco, troça de carnaval e até marujada. “O problema é que nosso brincante mestre da marujada, seu João Batista, faleceu este ano. E a gente não tem o conhecimento dele, das músicas. De reisado, eu sei tudo, mas de marujada não... Mas a gente vai dar um jeito de retomar”, garante Sérgio. Durante o ano inteiro, a família de seu Geraldo respira cultura. E
Arquivo pessoal Arquivo pessoal
Reisado Imperial e Mestre Geraldo: 90 anos de cultura
de maio. A gente fazia procissão, levando o andor até o rio de Casa Caiada. Chegando lá, todo mundo mergulhava e, depois, era roda de coco e batida de maracujá na beira do rio. Voltava pra casa e a festa ainda continuava...”, lembra.
Dificuldades Os olhos da mestra enchem de lágrimas quando ela imagina a possibilidade de toda esta cultura morrer. “Eu tenho 70 anos. Mas sou eu quem sei lidar com a meninada, ensinar as coreografias,
essas coisas... Se eu morrer, o que vai ser disso tudo?”, pergunta. A alegria meio nostálgica com que ela fala dos mestres e da cultura contrasta com uma amargura pela falta de reconhecimento e pelas dificuldades enfrentadas no dia a dia. “É a família de cada menina quem banca as roupas dela pro Pastoril. Mas, às vezes, chega uma que não tem nem o que comer dentro de casa. Como é que eu vou falar com a mãe pra fazer uma roupa? Com meu dinheiro mesmo eu mando fazer”, desabafa Ana Lúcia. Não é diferente do que é relatado por Sérgio, do Reisado Imperial. “Mesmo quando a gente consegue um apoio da Prefeitura ou do governo, é muito pouco. Não dá pra nada. Roupa de reisado é cara: tem muito espelho, muita fita, muito brilho...”, diz. Uma queixa comum aos dois revela uma outra face do apoio financeiro. “O dinheiro que a gente recebe é pouco pra o que a gente gasta. Mas, só porque tem apoio,
ninguém quer fazer mais nada de graça”, desabafa Sérgio. E Ana Lúcia completa: “Antigamente, todo mundo se juntava, se ajudava. Hoje isso não acontece mais”. Já para Biu Alexandre, do cavalo-marinho Estrela de Ouro, o que mais entristece é a falta de reconhecimento. Basta dizer que, há dois anos, não há apresentação de cavalo-marinho na programação natalina de Condado, conhecida como Terra do Cavalo-marinho. “Felizmente, o pessoal da família Salu faz o Festival lá em Cidade Tabajara. Se não, não haveria nada”, reclama. Há outros problemas. Sem uma formação acadêmica e erudita, os grandes mestres não conseguem elaborar projetos ou cumprir as exigências burocráticas dos poderes públicos para serem inseridos nas programações e políticas públicas. Tornam-se, portanto, alvos fáceis de produtores inescrupulosos. “Muita gente vem aqui, aprende com a gente, depois vai embora e cresce. Mas os mestres de verdade estão todos se acabando...”, desabafa Ana Lúcia. Mas, se existem produtores deste tipo, há também os que amam a cultura popular e desejam apenas ajudá-la a continuar viva. É o caso de Ana Farias, que criou um pastoril, com o nome da filha, Giselle Andrade, achou pouco organizar o seu grupo e passou a ajudar outros vinte e cinco. “Tem gente que luta tanto pra botar um pastoril na rua e não consegue apoio. Graças a Deus, consegui inserir todos os grupos na programação da Prefeitura”, diz. Dezembro de 2014
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Dicas de cultura
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Natal com cultura
SOM NA RURAL Em vários municípios do estado, a cultura popular é o ponto forte da programação natalina. Na capital são 16 polos que funcionam entre 11 de dezembro e 6 de janeiro. Pastoris, reisados, cantatas, bumba-meu-boi, orquestras e corais compõem a programação (confira em www.recife.pe.gov.br/natal/ PROGRAMACAO.pdf). No município de Triunfo, o ciclo natalino se une às comemorações da padroeira da cidade, Nossa Senhora das Dores. Realizada em parceria
com o Sesc, a programação também é marcada pela valorização das manifestações populares. No dia 25, o Papai Noel desfila junto com caretas, caiporas, maracatus, bois, grupos de xaxado, Cavaleiros Templários, pastoris, banda marcial e quadrilha junina (www. sesc-pe.com.br/hotsites/2014/ natal-triunfo). Em Garanhuns, reisados, cavalos-marinhos, corais e orquestras também se espalham pela cidade (www.garanhuns. pe.gov.br/programacao-natal-luz).
O projeto Som na Rural estará na Praça do Diário, no dia 28, com um motivo a mais para festa: a reintegração de posse da praça, após o comunicado de que não haverá camarotes da Globo no local, no carnaval do ano que vem. Devotos e China são alguns dos que animam a comemoração.
Poeta Valmir Jordão lança livro, com apoio do Sindicato O poeta Valmir Jordão lança, no dia 17 de dezembro, seu livro “Poemas reunidos”. Publicado com apoio do Sindicato, ele traz trinta poemas inéditos, além de textos anteriores, divididos entre Urbe et Orbe, Haikaindo nos Poemínimos, e Poems, este último com versões em inglês e português. Poeta desde 1982, Valmir faz parte da geração de artistas de Francisco Espinhara, Erickson Luna, França, Lara e outros tantos militantes da poesia. O lançamento, com recital, será no auditório do Sindicato, a partir das 19h.
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Revista dos Bancários
ISSO, ISSO, ISSO... O ator mexicano Roberto Bolaños pode até ter morrido no último dia 28 de novembro. Mas seus personagens continuam vivos. E estão todos juntos, o Chaves, o Chapolin e muitos outros no box com três DVDs, que pode ser adquirido na livrarias Saraiva.
Bancário de talento Manuel Buarque
Brincando com as palavras Arquivo pessoal
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produção artística de Manuel Buarque começou ainda na adolescência. O jovem firmou uma parceria com dois amigos e descobriu a habilidade para composição de músicas. Escreveu poesias e uma peça de teatro. Há alguns anos, lançou um CD, com músicas autorais, e prepara-se para, em breve, lançar um romance. “Sempre gostei de brincar com os sons das palavras, mas percebi, cedo, que era preciso aliar isso a ao sentido do texto”, afirma Manuel. “Sempre escrevo poesias metrificadas, pensando nas músicas que poderão se tornar”, completa. Funcionário da Caixa, Manuel já ganhou vários prêmios: em 2002, foi o segundo colocado no Concurso de Poesia do Sindicato, com a poesia “Porque sou levado” e, em 2004, foi o segundo colocado do Concurso de Teatro da Fenae (Federação do Pessoal da Caixa) e o terceiro da região Nordeste no Concurso da Funarte (Fundação Nacional de Artes) – ambos com a peça “Entre o cão e o lobo”. Também ganhou um concurso de poemas, promovido pela Apcef
(Associação do Pessoal da Caixa). “Logo que entrei na Caixa, as pessoas achavam que, por ser artista, não me interessaria pelos trabalhos burocráticos e repetitivos de um banco, mas isso não é verdade. Sempre soube separar as coisas e gosto de trabalhar no banco”, conta Manuel, que trabalha, atualmente, na Gerência de Contratação. Com essa longa trajetória de produção, Manuel comenta que o tempo é um aliado. “Certamente, meu trabalho, hoje, é melhor do que dez anos atrás e espero que inferior ao que será no futuro”, afirma o artista. O CD “Maurícia” de Manuel Buarque, em homenagem à cidade do Recife, pode ser adquirido na Livraria Cultura e na loja Passa Disco. O álbum tem dez faixas, oito de autoria apenas do bancário e as outras duas em parceria com Jetter Bernardo e Evaldo Dantas – os dois amigos da adolescência, com quem começou a compor. A produção do CD é de Lulu Oliveira. Dezembro de 2014
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Ana Lira
Conheça Pernambuco
OLINDA
A casa da cultura popular
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á vários anos, a cada Natal e Dia de Reis, uma programação imperdível movimenta a cidade de Olinda, mais especificamente a Cidade Tabajara. É o Festival de Cavalo-marinho de Pernambuco, que reúne grupos de todo o estado. Quando essa edição da revista foi fechada, a programação ainda não estava definida, mas a expectativa era reunir todos os grupos ativos, com a promessa de varar a madrugada. Criado pelo saudoso mestre Salustiano, o evento foi abraçado pelos filhos, que dão continuidade à tradição. “É o único festival do estado que busca reunir todos os grupos de cavalo-marinho pernambucanos”, diz Pedro Salu. Segundo ele, existem atualmente cerca de quinze grupos ativos. A maior parte vem de cidades
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Revista dos Bancários
como Aliança, Glória do Goitá e Condado, na Zona da Mata. Dois grupos, um de Olinda e outro de Condado, são formados apenas por jovens e crianças Para Biu Alexandre, mestre do cavalo-marinho Estrela de Ouro, o festival engrandece a cultura pernambucana. “Dizem que Condado é terra do cavalo-marinho. Mas, há dois anos, não tem cavalo-marinho no Natal nem Dia de Reis da cidade. Esse festival é uma oportunidade para o artista popular mostrar sua cultura”, afirma o mestre. O encontro será nos dias 25 de dezembro e 6 de janeiro, na Casa da Rabeca do Brasil, em Cidade Tabajara. O espaço foi erguido em 2002, concretizando um sonho antigo do mestre Salu: um espaço dedicado à preservação da cultura e tradição do Estado. No início, era apenas uma tenda coberta de palhas de coqueiros. Funcionava aos domingos e recebia familiares, sanfoneiros, rabequeiros, zabumbeiros, pandeiristas, emboladores de coco, mestres de maracatu, cavalo-marinho, cirandeiros e os amigos da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Hoje, o espaço é um reduto de artistas populares, com apresentações de forró de rabeca, encontros de cavalo-marinho e maracatus, entre outras manifestações, que costumam reunir milhares de pessoas. Para este ano, por exemplo, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e também de São Paulo, já confirmou presença. Para chegar, é só pegar a Avenida Pan Nordestina, em Olinda, seguir pela PE-015, fazer o primeiro retorno à esquerda e entrar na Rua Curupira. Mais informações, acesse www.casadarabeca.com.br.