nº 52 - março/2015
Eu escolho o que é notícia O maior caso de corrupção da história da humanidade pode não ser um escândalo, enquanto uma simples suspeita pode se tornar uma notícia bombástica. Quem decide é a imprensa, com base nos seus interesses
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Revista dos Bancários Publicação do Sindicato dos Bancários de Pernambuco
Redação Av. Manoel Borba, 564 - Boa Vista, Recife/PE - CEP 50070-00 Fone 3316.4233 / 3316.4221 Site www.bancariospe.org.br Presidenta Jaqueline Mello Secretária de Comunicação Anabele Silva Jornalista responsável Fábio Jammal Makhoul Conselho editorial Jaqueline Mello, Anabele Silva, Geraldo Times e João Rufino Redação Camila Lima e Fabiana Coelho Projeto gráfico e diagramação Bruno Lombardi - Studio Fundação Imagem da capa Jumpingsack / ©DepositPhotos Impressão NGE Gráfica Tiragem 12.000 exemplares
Sindicato filiado a
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Revista dos Bancários
Editorial
Irresponsabilidade Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, escândalo é um “mau procedimento”, um “ato reprovável” ou “vergonhoso”. Para compreender o fenômeno e suas consequências, o professor de Sociologia da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, John Thompson, elaborou uma teoria social sobre o escândalo que, hoje, é a mais aceita e usada no meio acadêmico. Uma curiosidade da pesquisa do professor é que a palavra scandre, do francês do século XI, era derivada do termo em latim sacandalum e podia significar tanto escândalo como calúnia. Ou seja, desde a origem da palavra, a linha que separa o escândalo da calúnia é tênue. Thompson mostra, em diversos livros, que os escândalos são, muitas vezes, acontecimentos confusos, “uma miscelânea de atos e suposições mais ou menos fundamentados”. No Brasil, todos os dias a imprensa tem noticiado, de forma escandalosa, os casos de corrupção da Petrobrás. Porém, um escândalo muito maior tem sido escondido pela mesmo imprensa: o caso em que o HSBC “ajudava” clientes ricos a sonegar impostos. Só com os clientes brasileiros, estima-se que o HSBC tenha ocultado mais de R$ 20 bilhões da Receita Federal. O valor é quase cinco vezes maior que os casos de corrupção na Petrobrás, que desviaram R$ 4,5 bilhões da estatal. Mas por que o caso da Petrobrás se tornou um grande escândalo e o caso do HSBC não? Para Thompson, escândalos não acontecem simplesmente, eles têm finalidades e objetivos. E que objetivos seriam esses? Um leitor mais atento dos jornais sabe que a quase todas as principais publicações do Brasil são de direita e querem tirar o PT do governo federal. Não que o partido seja vítima ou inocente, mas é fato que o que ocorre na Petrobrás, hoje, já acontecia no governo do PSDB e nunca foi publicado por jornal nenhum. Já no caso do HSBC, basta ver que o banco é um dos principais anunciantes dos jornais, assim como os milionários que integram a lista de pessoas que se favoreceram da sonegação fiscal. Para o jornalista Luciano Martins Costa, do Observatório da Imprensa, a crise política que o Brasil vive hoje é, essencialmente, uma obra da mídia hegemônica, cujo objetivo de negócio é interromper a trajetória da aliança liderada pelo Partido dos Trabalhadores. E o grande trunfo dessa mídia é a irresponsabilidade.
Índice
O que é notícia? Página 4
Dia da Mulher Existem profissões de homens e de mulheres? Página 12
Confira nossas dicas de cultura e lazer
Entrevista do mês Ana Flor e sua luta pelo direito de ser mulher Página 8
Página 14
Conheça Primavera, a cidade das cachoeiras Página 16
Bancária reconta a história do Cangaço Página 15 Março de 2015
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Capa
A corrupção que não aparece nos jornais
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inte bilhões de reais. Este é o valor estimado do dinheiro que pode ter sido ocultado da Receita Federal brasileira, por meio de mais de seis mil contas abertas na filial suíça do HSBC. O escândalo é mundial e envolve um total de cerca de US$ 200 bilhões em depósitos sigilosos em 100 mil contas bancárias do HSBC. Desde meados de fevereiro, o escândalo passou a ser noticiado por alguns dos principais telejornais do mundo. No Brasil, no entanto, as informações vêm à conta-gotas. As denúncias mostram que 8.667 correntistas, do chamado escândalo do “suiçalão”, são brasileiros. Trata-se da quarta maior clientela do mundo. Em volume de dinheiro, o Brasil ocupa a nona posição no ranking. O montante é muito maior que os recursos desviados na chamada “Operação Lava Jato”, classificada pela grande mídia brasileira como o maior escândalo de corrupção da história, e que envolvem cerca de R$ 4,5 bilhões. As operações realizadas na Suiça podem ser até legítimas. No caso do Brasil, a lei exige
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O escândalo do “Suiçalão” do HSBC traz à tona um cenário desolador, que se esconde em paraísos fiscais e que é escondido pela chamada grande imprensa brasileira que o saldo no exterior seja declarado e, se a origem do dinheiro for tributável, os impostos sejam pagos, inclusive os que são cobrados pela remessa ao exterior. No entanto, a apuração feita em outros países demonstra que esse tipo de conta costuma ser usada para sonegar impostos e esconder renda. Na Inglaterra, por exemplo, sede do HSBC, a Receita identificou 7 mil clientes que não pagaram impostos. Na França, 99,8% dos que estavam na lista praticaram evasão fiscal. Na Argentina, a filial do HSBC foi denunciada em novembro de 2014 por ajudar 4 mil cidadãos a evadir impostos. No Brasil, o jornalista Fernando Rodrigues, do portal UOL, do Grupo Folha, detém a exclusividade para divulgação dos dados. Com a justificativa de que quer “evitar a invasão de privacidade de cidadãos que tenham aberto contas no HSBC Suíço de boa-fé”, ele revelou pouquíssimos nomes, quase todos ligados à Operação Lava Jato. Mas, segundo ele, há nomes conhecidos de empresários, banqueiros, artistas, esportistas e intelectuais. As informações sobre o escândalo foram vazadas por um ex-funcionário do HSBC. O jornal “Le Monde” teve acesso e compartilhou com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, formado por mais de 150 jornalistas, de 45 países. Na Europa, o assunto colocou jornalistas e donos de mídia em conflito aberto, revelando os interesses que movem as empresas de comunicação. Proprietários de jornais como o “Le Monde”, da França, e o “Daily Telegraph”, da Inglaterra, acusam editores e jornalistas de prejudicarem seus negócios. No Brasil, o tema é tratado pelos principais jornais – inclusive pela Folha de São Paulo, que participou da investigação – como nota sem importância. Vale ressaltar que, em 2006, a Rede Globo foi forçada a pagar à Receita Federal uma multa de R$ 270 milhões, por irregularidades
no processo de compra dos direitos exclusivos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. Segundo o auto de infração, obtido pelo repórter e blogueiro Miguel do Rosário, para não recolher os impostos devidos pela operação, a empresa adquiriu, em aparência, uma pessoa jurídica com sede nas Ilhas Virgens Britânicas. Um ano depois, a empresa foi dissolvida e seu patrimônio vertido para a Rede Globo. Ou seja, a dita grande mídia tem antecedentes quando se trata de evasão fiscal.
cerca de US$ 12,1 trilhões em “ativos transfronteiriços” investidos pelos clientes. É mais que o dobro da cifra de 2005 e representa uma taxa média de crescimento anual superior a 16%. O Brasil está na quarta posição quando se trata de recursos depositados em paraísos fiscais. Os brasileiros muito ricos possuíam, em 2010, cerca de US$ 520 bilhões em instituições deste tipo. Significa R$ 1,5 trilhão,
cerca de um quarto do PIB do país, o equivalente a tudo o que o BNDES prevê de investimento pesado no Brasil nos setores industrial e de infraestrutura entre 2015 e 2018. “Se a fortuna mantida nos bunkers de dinheiro frio retornasse em forma de investimento produtivo – constata a reportagem da Carta Maior – significaria dobrar o impulso de expansão industrial, logística e encomendas na dinâmica
Paraísos fiscais A filial suíça do HSBC é apenas uma entre várias outras instituições financeiras que servem como paraísos fiscais. Estudo da Rede Tax Justice Network, intitulado The Price of Offshore Revisited, revelam que, até 2010, um montante estimado entre US$ 21 trilhões e US$ 32 trilhões estavam em bunkers de dinheiro frio. O número representa algo entre um terço e a metade de toda a riqueza produtiva no planeta, já que o Produto Interno Bruto mundial é de US$ 70 trilhões. O estudo foi coordenado pelo ex-economista chefe da Mckinsey, empresa americana líder mundial no mercado de consultoria empresarial, e são a base de um especial na Agência Carta Maior. Ele mostra que, no final de 2010, os maiores 50 bancos privados do planeta administravam Março de 2015
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Capa
Espaço reservado para as capas de jornal ou revista com manchetes sobre o escândalo do HSBC
econômica brasileira até o final da década”. A Convenção da ONU sobre Corrupção revela que esta custa aos países em desenvolvimento entre vinte e quarenta bilhões de dólares mundiais. Mas, se o custo da corrupção é alto, o da evasão fiscal é 25 vezes maior.
Os donos do mundo Estudo do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica revela que pelo menos um terço de toda riqueza financeira privada do mundo é propriedade de 91 mil pessoas – só 0,001% da população mundial. Estes afortunados são donos de quase a metade dos recursos depositados em paraísos fiscais.
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Os dados também mostram que 737 corporações do planeta controlam 80% de todos os recursos corporativos mundiais. E, dentre estes, há um núcleo de 147 que controlam 40%. Desse total, três quartos são grupos financeiros. Em artigo escrito no especial à Agência Carta Maior, o economista Ladislau Dowbor afirma que nunca houve, na história da humanidade, nada de parecido com este nível de controle planetário através de mecanismos econômicos e financeiros. E ressalta: “Esta elite transnacional tem forte interesse em garantir impostos mais fracos sobre a renda e a riqueza, em fragilizar a capacidade de regulação do governo, em assegurar mercados mais abertos, e em
fragilizar as restrições sobre a influência política e gastos de campanhas além das fronteiras – com um enorme ‘exército do paraíso’ com banqueiros piratas, empresas de advocacia, empresas de contabilidade, lobistas e empresas de relações públicas aos seus serviços.”
Dois pesos, duas medidas São estes interesses que estão em jogo quando se trata de denegrir a imagem da Petrobrás. Em abaixo assinado que circula pelo país, a Federação Única dos Petroleiros ressalta: “Não vamos abrir mão de esclarecer todas as denúncias, de exigir o julgamento e a punição dos responsáveis; mas (…) há poderosos interesses contrariados pelo cresci-
mento da Petrobrás, ávidos por se apossar da empresa, de seu mercado, suas encomendas e das imensas jazidas de petróleo e gás do Brasil”. De fato, não por acaso o escândalo do “Suiçalão” do HSBC ocupa pequenas notas internas dos jornais, apesar das vultosas somas de R$ 20 bilhões em contas fantasmas. Muito mais que os R$ 4,5 bi desviados da Petrobrás, que ocupam diariamente as capas e quase todas as páginas do caderno de política da grande imprensa. Para os representantes dos petroleiros, os objetivos são claros: depreciar a empresa para facilitar sua captura por interesses privados, nacionais e estrangeiros; fragilizar o setor brasileiro de Óleo e Gás para favorecer fornecedores estrangeiros; e revogar a nova Lei do
Petróleo, o sistema de partilha e a soberania brasileira sobre as imensas jazidas do PréSal. Vale ressaltar que os Estados Unidos, por exemplo, ficaram de fora da exploração do campo de Libra, em leilão realizado no ano passado, vencido por um consórcio de petroleiras chinesas. Não por acaso, a Petrobrás vem sendo apresentada pelos meios de comunicação e lobistas como uma empresa arruinada. Mas os resultados de 2014 contradizem a campanha. Foram 2,670 milhões de barris de petróleo e gás por dia; 666 mil barris de petróleo produzidos pelo Pré-sal por dia; 84,5 milhões de metros cúbicos diários de gás natural. Além disso, a capacidade de processamento de óleo aumentou em 500 mil barris por dia, com a operação de quatro novas unidades, e a produção de etanol cresceu 17%. Com tais números, a Petrobrás tornou-se a maior produtora mundial de petróleo entre as empresas de capital aberto, superando a ExxonMobil (Esso). Para a presidenta do Sindicato, Jaqueline Mello, tais resultados despertam a cobiça daquela elite transnacional, cujos recursos trafegam nos milionários paraísos fiscais. “Eles bradam contra a corrupção, mas se negam a falar da evasão fiscal. Não é a toa que os tucanos se recusaram a assinar o pedido de CPI do “Suiçalão”. Eles falam em escândalo da Petrobrás, mas muitos figuram na lista da operação Lava Jato”, critica.
Funcionários não podem pagar pelos problemas do HSBC As denúncias que envolvem o HSBC têm causado apreensão entre os funcionários do banco. Embora as contas secretas na Suíça, que permitem a sonegação de impostos, tenham se tornado públicas graças aos funcionários, os bancários de Pernambuco estão vivendo um clima de incerteza. A presidenta do Sindicato, Jaqueline Mello, destaca que os bancários não podem ser penalizados pelos eventuais delitos cometidos pelo alto escalão do banco. “As denúncias envolvem milhares de clientes em 203 países. Ou seja, se houve algum esquema para sonegação de impostos, ele não foi armado pelos trabalhadores, e sim pelo banco”, diz Jaqueline. Ela ressalta que o Sindicato está acompanhando de perto o desenrolar das denúncias para que nenhum bancário pague por eventuais delitos cometidos pelo banco. Jaqueline diz que a mesma situação vivem os funcionários da Petrobrás. “Os petroleiros também vivem um clima de incerteza. E eles também não podem ser penalizados pelas denúncias que ainda estão sendo investigadas. Nem a própria Petrobrás. Tanto é que os petroleiros, junto com outros trabalhadores, inclusive os bancários, estão realizando uma série de atos em defesa da Petrobrás, que é um patrimônio do povo brasileiro”, finaliza Jaqueline.
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Natália Lopes
Entrevista com Ana Flor
O direito de SER MULHER
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ransexuais e travestis são, proporcionalmente, as maiores vítimas dos crimes motivados por homofobia ou transfobia. Relatório publicado em setembro do ano passado mostrava, até então, 84 travestis assassinados em 2014 no Brasil. Apesar dos números apontarem maior número de mortes de gays (124), eles são cerca de 20 milhões. As transexuais não chegam a
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1 milhão. Estudos da Antra (Articulação Nacional de Transexuais e Travestis) revelam que 90% das mulheres trans estão na prostituição. Para elas, é negado o direito à educação, a um emprego, ao próprio nome. Ana Flor tem apenas 19 anos. Mas a maturidade de quem precisa fazer da existência uma luta constante. “Em governo nenhum, jamais existiu uma política trans. A gente vive de favor. Tem que
pedir favor até para ser chamada pelo próprio nome”, diz. No mês da mulher, ela reivindica que o feminismo englobe todas as mulheres e conclui: “não existe uma única identidade de mulher. Tanto para as mulheres como para as trans, existem várias formas de ser e existir”. O mundo costuma dividir as pessoas em gênero masculino e feminino. Como você se enquadra?
Natália Lopes
Eu me identifico com as mulheres, enquanto gênero feminino. Como foi esse processo de descoberta da tua identidade? Eu comecei a me identificar como mulher aos 16 anos. Comecei a ver que eu não me enquadrava naquele padrão de homem que as pessoas construíam e pensei: - Meu caminho não é esse! No princípio, eu me identifiquei enquanto andrógino. Depois percebi que eu não era andrógino, era uma mulher. Uma mulher trans. Como assim, andrógino? Andrógino é uma expressão de gênero. É uma pessoa que parece ser menina, mas é menino. Ou o contrário. Eu vi que minha identidade ia muito além disso. Eu comecei a ler, a conhecer e me identificar com outras mulheres trans. Mas eu não sabia muito bem como era isso. A mídia apresentava estas mulheres de forma deturpada e a gente não entendia bem o que era a transexualidade. Quando eu comecei a ter uma visão mais ampla a respeito, descobri: - É isso aí que eu sou... E o que é a transexualidade? Não dá pra ser explicada. Existem várias formas de identidade trans. O mundo trans é imenso... O que eu posso dizer é que uma pessoa trans é o contrário de uma pessoa sis, que foi registrada de uma forma e não se identifica como tal. Quando eu nasci, o médico se achou no direito de dizer que eu era um menino. Hoje eu me identifico enquanto mulher:
uma mulher trans. Teu nome de registro, qual é? Essa é uma das perguntas que não se faz a uma pessoa trans. Por que? É uma coisa que a mídia tem necessidade de saber, como que para interligar a mim, Ana Flor, com algum João, algum José, alguma coisa que eu não sou. E eu recuso essa interligação. Mas houve uma fase de tua vida em que você era enquadrada enquanto menino... Você lembra de tua relação com isso quando criança? O que minha mãe conta é que eu sempre estive em um lado mais feminino da vida. Como é a relação da tua família com você? Minha mãe é muito minha amiga. Esse é um imenso privilégio
que eu tenho enquanto mulher trans, porque são poucas que têm esse apoio da família. Isso certamente se reflete na situação da mulher trans na sociedade. Os dados da Antra (Articulação Nacional de Transexuais e Travestis) mostram que 90% das transsexuais brasileiras estão na prostituição. E isso não é uma escolha. É uma imposição do sistema. Elas não têm estudo, muitas são colocadas para fora de casa, não têm emprego e é difícil colocar a cara na rua durante o dia. O mundo exige a elas que só apareçam à noite... Eu tenho o privilégio de ter uma casa, de ter uma mãe, de ter um namorado. Mas são privilégios, que poucas mulheres trans têm. Saiu recentemente uma portaria do reitor da Universidade Federal de Pernambuco a respeito da utilização do nome social das transexuais... É verdade. E tivemos uma reuMarço de 2015
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Entrevista com Ana Flor nião hoje pra adequar a portaria, que tinha vários problemas. Até porque não teve participação de pessoas trans em sua construção. E enquanto as pessoas sis acharem que são protagonistas de uma luta que é das pessoas trans, a gente nunca vai avançar. A gente precisa estar presente em todos os lugares: nas universidades, nas ruas, nos empregos, de manhã, de tarde, de noite... E isso hoje não existe.
Hoje, a transexualidade é tida como doença, como a homosexualidade um dia já foi. Estamos incluídas no Catálogo Internacional de Doenças Ana Flor
Você já sofreu preconceito? Sempre e em todos os lugares, inclusive aqueles onde eu não deveria passar por isso. Por exemplo, eu fui em uma delegacia, quando perdi meus documentos, para fazer um boletim de ocorrência, e fui muito mal tratada. Fui agredida verbalmente, tratada de forma vexatória, desrespeitaram minha identidade de gênero, mesmo eu dizendo que eu era uma mulher e queria ser tratada desta forma. Acho que a gente tem, inclusive, que discutir a desmilitarização da Polícia. Outra coisa: a gente vê, diariamente, programas como Cardinot e outros do tipo, que ridicularizam e desrespeitam as mulheres trans. E violência física, você já sofreu? Já, já sofri. Fui deixar uma amiga em casa, perto do Castelo de Brennand. Quando estávamos voltando, que nos viramos para ver se nossa amiga já tinha entrado na rua dela, vimos cinco caras se aproximando, cada um com uma ripa de madeira na mão. Pensei: - Tô morta! E então começamos a correr. Chegamos em uma rua sem saída. Tinha algumas pessoas lá, mas que também não nos ajudaram. Cada um correu e se trancou em sua casa. Fiquei me defendendo por trás de um poste. Minha amiga se agarrou a uma mulher que estava na rua... Foi horrível! E não tínhamos feito absolutamente nada! A gente percebe que você tem uma consciência política... De onde vem essa tua formação? É difícil dizer. Eu, por exemplo, ainda não consegui entrar na faculdade. Quem me deu esta formação foi a vida, a necessidade de existir e resistir. Mesmo não fazendo parte da universidade hoje, eu estou nela. Só que estou sendo estudada e não estudando, o que é um problema. Somos objeto de pesquisa sobre transexualidade, mas ainda não somos sujeitos. As informações que tenho é que existem, na Universidade Federal, apenas seis ou sete estudantes trans. Qual tua principal luta atualmente? A mudança de meu nome. Mas é muito difícil. A Justiça exige
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Natália Lopes
que a gente se pareça muito com uma mulher sis, o que exige um longo tratamento com hormônios. O processo vivido por uma transexual para ter direito ao seu nome e à sua identidade é totalmente patologizante. A gente tem de passar por assistente social, endocrinologista, psicólogo, psiquiatra, juiz... Mesmo que a gente não queira, somos obrigadas a nos hormonizar para poder chegar na frente de um juiz e ele dizer quem a gente é ou quem a gente não é. Hoje eu não tenho direito ao meu corpo, eu não tenho direito à minha identidade, à minha fala, à nada. Hoje, a transexualidade é tida como doença, como a homosexualidade um dia já foi. Estamos incluídas no CID (Catálogo Internacional de Doenças), como disforia de gênero. E não existem políticas para que a gente saia disso. No movimento LGBT, por exemplo, a pauta gay é quem domina. Tanto que algumas tran-
sexuais e travestis, englobadas na sigla T, estão sentindo necessidade de criar sua própria luta, seu próprio movimento. Esse separatismo não atrapalha o movimento? O problema é que existem especificidades que precisam ser levadas em conta. No gráfico de assassinatos, por exemplo, todas as travestis são enquadradas como gays. E elas são as maiores vítimas destes assassinatos. Mas, não são criadas políticas públicas voltadas para essa população. A gente hoje vive apenas de migalha. Em governo nenhum, jamais existiu uma política trans. A gente vive de favor. Tem que pedir favor até para ser chamada pelo próprio nome. Acabou de ser aprovado o feminicídio como crime hediondo no Brasil. No entanto, as travestis e transexuais não estão incluídas na Lei, porque o Congresso modificou o
projeto original, substituindo a palavra gênero pela palavra sexo. Qual tua reivindicação neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher? Eu reivindico que o feminismo englobe todas as mulheres. Porque se existe uma luta que não engloba todas as mulheres, essa luta não me representa. Então eu reivindico que todas as mulheres, trans e sis, estejam na luta, juntas. O que é ser mulher, para você? Eu acho que não existe uma única identidade de mulher. Tanto para as mulheres sis como para as mulheres trans, existem várias formas de ser e existir. Cada um só pode falar por si. Nenhum homem pode dizer o que é ser mulher. Somente ela. Então, ser mulher é uma questão que fica, para que cada uma responda: - O que é ser mulher? Março de 2015
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Dia Internacional da Mulher
Isso é coisa de menina também! Arquivo pessoal
Rasgando os mares
Arquivo pessoal
As conquistas das mulheres, no mercado de trabalho e nos demais espaços sociais, são inegáveis. Mas em algumas atividades a presença feminina ainda chama muito a atenção por ser tão minoritária. São os casos de Milena, que pilota navio; de Thalita, que desenvolve jogos digitais; e de Lara, que gosta de cavalgadas.
Inventando diversão
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Milena Paulino fez a formação na Marinha e tornou-se Oficial de Náutica. Junto com ela, formaram-se 14 mulheres em uma turma de 80 pessoas. A escassez de mulheres só aumentou quando ela começou a trabalhar. “A tripulação dos navios têm, em média, 30 pessoas, e eu era a única mulher”, afirma. Ela conta que as mulheres não costuma ocupar o cargo de pilota de navio e, quando o fazem, é por pouco tempo. “Como a duração das viagens costuma ser longa – eu passava um mês embarcada, para passar um mês em terra –, a maioria das mulheres não tem interesse, pois quer constituir família e não deseja ficar tanto tempo longe dela”, diz. É mais comum, de acordo com Milena, as mulheres fazerem carreira na Marinha de Guerra, apesar de na Marinha Mercante – da qual faz parte o cargo de Oficial de Náutica –, o trabalho ser mais bem remunerado. A própria Milena foi aprovada em um concurso da Marinha de Guerra e está mudando de área.
Thalita Fernandes formou-se em uma das primeiras turmas do pioneiro curso técnico de Desenvolvimento de Jogos Digitais no Recife. Foi a única mulher da turma a se formar, junto com cerca de 20 homens. “Encontrar pessoas que desenvolvam jogos digitais ainda é raro no Brasil. Mulheres, ainda mais. Mas isso está mudando. A área está crescendo e o interesse das mulheres pelos jogos, também”, afirma Thalita. Para ela, o principal motivo de poucas mulheres se interessarem por jogos é cultural. “Muitas famílias não deixam as meninas jogar videogame, dizendo que é coisa de menino. Isso está mudando. Quanto à criação de jogos, o processo é mais lento. As meninas e mulheres estão jogando mais. Naturalmente, passarão a produzir mais, também”, explica Thalita. Ela conta que ganhou o primeiro videogame quando tinha seis anos de idade e os pais dela nunca fizeram objeção ao jogo por ela ser menina.
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Valorizando a tradição
Arquivo pessoal
Lara Moura faz parte de uma família de muitos vaqueiros, gosta de andar a cavalo e tinha um grande desejo de “correr vaquejada”. “Minha mãe nunca deixou, por achar que era muito perigoso. Então, decidi participar de cavalgadas”, afirma Lara. Ela conta que é raríssimo uma mulher participar de vaquejadas. Das cavalgadas, também são poucas as que participam. Nas cavalgadas, é comum as pessoas recitarem versos e cantarem toadas. É um momento de lazer que valoriza a cultura nordestina tradicional. “Queria que as minhas primas fossem às cavalgadas comigo, mas elas têm preconceito, dizem que é coisa de homem”, lamenta Lara.
Divisão Sexual do Trabalho De acordo com a pesquisadora feminista da Universidade de Paris 8, Danièle Kergoat, há dois princípios organizadores da divisão sexual do trabalho. Um deles é a separação, que diferencia “trabalho de homens” e “trabalho de mulheres”; e o outro é a hierarquia, que considera que o trabalho dos homens vale mais do que o das mulheres. Para Nalu Faria, integrante da Sempreviva Organização Feminista, uma das principais justificativas ideológicas para a divisão sexual do trabalho é a naturalização da desigualdade. Dessa forma, construções sociais, que diferenciam as práticas que devem ser de homens e das que devem ser de mulheres, são atribuídas a fatores biológicos. Para a secretária de Finanças do Sindicato, Suzineide Rodrigues, a discriminação das mulheres ocorre, inclusive, nos bancos. “Embora metade da categoria bancária seja composta por mulheres, elas ainda ganham menos que os homens e ocupam os cargos mais baixos. A luta pela igualdade de oportunidades nos bancos é uma das principais frentes de atuação do Sindicato”, conta. A presidenta do Sindicato, Jaqueline Mello, ressalta que, até meados do século passado, as mulheres não trabalhavam fora de casa. “Ganhamos o mercado de trabalho graças à luta feminista, que se consolidou após a década de 1960. Mas ainda temos muitas profissões que são dominadas pelos homens. Em geral, são as profissões mais bem remuneradas. Isso mostra que o feminismo continua atual e que a nossa luta pela igualdade com os homens só está começando”, finaliza.
Jaqueline: Em geral, as profissões mais bem remuneradas são ocupadas pelos homens
Suzineide: A discriminação contra as mulheres também acontece dentro dos bancos
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Dicas de cultura ANOS 60
Túnel do tempo musical ligar para o Sindicato, até o dia 17, e se inscrever pelos telefones (81) 3316-4226 ou 3316-4238. Quem não tiver a sorte de ga-
nhar um ingresso, pode adquirir o seu na própria Apcef. Mais informações pelos telefones 3224-5368 ou 3033-5630.
Divulgação
O
s anos 60 estão de volta em mais uma noite com muita música e nostalgia na festa promovida pela Apcef-PE, no próximo dia 21, a partir das 21h, no Círculo Militar. Com shows das bandas The Fevers e Cartada, a festa promete muita animação e diversão para os bancários. Para homenagear as mulheres, que comemoram seu dia em 8 de março, o Sindicato vai sortear seis convites para bancárias sindicalizadas, com direito a levar um acompanhante. As interessadas em participar do sorteio devem
The Fevers é uma das atrações da festa da Apcef
TEATRO
Opereta de rua Divulgação
O grupo de teatro Loucos e Oprimidos da Maciel apresenta seu espetáculo “Polo Marginal – Opereta de Rua” no próximo dia 28, último sábado de março, às 19h, no Palco Giratório do Sesc. A entrada é franca. O espetáculo fala sobre um grupo de poetas piratas, que aportam no Recife e recebem, da cidade, uma forte influência em sua poesia, que passa a se relacionar com o rio, a atmosfera e as pessoas em situação de vulnerabilidade social.
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Bancários de talento ROSA BEZERRA
Recontando a história
Natália Lopes
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ilha de cangaceiro, Rosa Bezerra tem uma estreita relação com a cultura e a história nordestina. A forma como o cangaço era retratado, e ainda é, pela histografia oficial e pela imprensa da época inquietava a psicóloga e bancária aposentada do Banco do Brasil. Em uma especialização em Psicologia Social e Comunitária, Rosa decidiu fazer um trabalho sobre “A Representação Social do Cangaço”, material que foi transformado em um livro com o mesmo título. Enquanto a maioria dos trabalhos sobre o cangaço se restringe às narrativas, Rosa fez uma análise psicossocial do tema. “A imprensa e a historiografia oficial criminalizaram o cangaço, da mesma forma que, hoje, criminalizam Dilma e o PT, por uma questão ideológica e em troca de benesses”, afirma Rosa. O livro da bancária evidencia como a história brasileira é contada, sob a perspectiva dos grupos dominantes de cada época. A crueldade e o banditismo tão associados ao cangaço são, segundo a autora, apenas um recorte da realidade. “Os cangaceiros não eram mais cruéis que a volante [a polícia da época]. Por outro lado, não se fala que o cangaço foi um movimento social
Filha de cangaceiro, a bancária Rosa Bezerra está escrevendo seu segundo livro sobre um Cangaço que você nunca viu na história oficial
que não se curvava ao autoritarismo e às injustiças sociais, que eram tão comuns no Sertão”. Rosa conta que os líderes mais conhecidos do Cangaço entraram para o movimento depois de serem vítimas de grandes injustiças sociais. “Lampião, como tanto outros, entrou para vingar a morte do pai. Os cangaceiros não tinham ideologia política, agiam por interesses pessoais, mas, ainda assim, desafiaram a ordem vigente e questionaram, à maneira deles, as desigualdades sociais”, afirma. Para a pesquisadora, o Estado temia que a insubmissão dos cangaceiros tomasse conta do país. Daí, a demonização do cangaço e a dedicação para aniquilá-lo, assim como fez com Canudos.
Lançamento No dia 25 de abril, às 11h, na Livraria Jaqueira, haverá o lançamento da segunda edição do livro “A Representação Social do Cangaço”. Nesse dia, Dadá, mulher de Corisco, que é considerada a principal criadora da estética do Cangaço, completaria 100 anos, se estivesse viva. O segundo livro de Rosa Bezerra, ainda em fase de elaboração, já tem título “Mulher, sexo forte”. “É um livro sobre a satanização do feminino, e tem um capítulo dedicado a um estudo socio-histórico das cangaceiras”, afirma a autora. Março de 2015
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Conheça Pernambuco PRIMAVERA
Beleza em todas as estações
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Revista dos Bancários
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em pertinho da capital pernambucana, a cidade de Primavera se orgulha de ter uma das mais altas quedas d’água do estado: a Cachoeira do Urubu. Emoldurada pela Mata Atlântica, a cachoeira fica localizada dentro de um parque ecoturístico. Há bares, restaurantes, salão de eventos, área de camping e guias que podem orientar os visitantes em trilhas muito agradáveis. Os adeptos dos esportes radicais também podem se aventurar no rapel ou canyoning – descendo em cordas pelas cachoeiras. O banho na Cachoeira do Urubu não é recomendado. As águas vem do Rio Ipojuca, já bastante poluído. Mas há, no local, outras piscinas naturais para serem usufruídas. A entrada no Parque custa, em média, R$ 10 por pessoa. Mas há outras cachoeiras na cidade, de livre acesso. É o caso da Cachoeira do Convento, com pelo menos três quedas de até 18 metros de altura, e da Cachoeira da Pedra Branca, com água vinda direto da nascente. Além das cachoeiras, vale dar um passeio até a Usina União, que preserva o conjunto arquitetônico do século XIX: a casa grande, a capela, peças antigas e parte da malha ferroviária - uma locomotiva e um vagão de passageiros que faziam a linha Amaraji-Freixeiras. No passado, a Usina União chegou a ter 120 quilômetros de malha ferroviária própria e dez locomotivas para o transporte da cana. Para chegar a Primavera, o percurso leva menos de uma hora e meia pela BR 101. A entrada fica pouco depois da cidade de Escada.