LIVRO LUTO
Mas vivamos e venhamos... (João Guimarães Rosa)
MMXXII ... se fosse um prefácio eu diria, amparada em Guimarães e mirando em volta – mundo, pessoas, fatos, nasceres e morreres – que me autorizo com essas escritas e imagens, a não calar a dor da falta que tantas mortes causam, não porque não as entenda ou as sinta “de menos”, mas porque asfixiam, espalham angústias e um mal-estar entulhado de violências. Além do mais, porque tensionam os andaimes que acodem perdas, que elaboram lutos (mormente os de forma coletiva) e que se constituem em suporte para digerir tamanho e agudo sofrer, uma vez que quem está morrendo, na verdade, é um país. Criam-se ânsias que afetam e impedem, às vezes, compreender os desvariosdo entorno ou a qualificar o quanto “não sabemos que estamos com saudades uns [umas] dos outros[as]...” e, talvez, de um tempo não vivido, mas querido. Uma espécie de saudades de futuro, quem sabe... E saudades não só daqueles com quem se segue vida, mas daqueles que se foram na pandemia. Definhados de vírus, de descasos, de equívocos submissos, submetidos, subjugados a certos gabinetes, a certas megalomanias abomino medos, vinganças, ignorâncias... E de outras tantas descaratices, qual fantasmas que tanto rondam a morte, quanto amortecem lucidezes. Se fosseum prefácio, o faria na busca de discernimento, na procura e na partilha de palavras feitas com olhos de “luminâncias”, como lá no México ou na Guatemala, entre outros países da latinoamérica, que choram e festejam seus mortos em espaços sociais, públicos de en(luta)mento e louvor. O faria, para dizer da necessidade de condenar os ases dos imbróglios brasileiros de agora...“Mas vivamos e venhamos”: as pestes que pandemonizam territórios e suspiros de vida, contraditoriamente, no mesmo e exato momento em que enfermizam corpos e corpas, deflagram possibilidades de revoluções.
Me da mucha risa de ver a los muertos tan llenos de vida moviendo los huesos En un cementerio tocava una orquesta pues todos los muertos andaban de fiesta (...) (Caveirinhas literárias, México)
no México esqueletos dançam afetos encontram-se em orquestra de corpos e gestos festam em boca única a alegria coletiva entrelaçada em enfeites, café, pães, mescal – história e pertencimento no dia dos mortos incensos acesos, espelho de espíritos, que vêm voar como borboletas
os sonhos e as promessas ias memórias abraçadas em lembranças vividas vínculos que se cruzam
flores e roupas coloridas caveirinhas que conclamam passos que coreografam conquistas passos que pisam nos soluços amargos das lutas ancestrais rememorações
as caveirinhas resguardam a força do ontem nas madeiras, panos, plásticos, fios ... tessitura do presente doces oferendas que ressoam as vozes caladas em cantos, falas, palavras que arquitetam futuros passos que antecipam novas vitórias
na Guatemala pipas são festas no ar rodopiam ligeiras num vozerio de cores
tão altas e tão múltiplas que espiam uníssonas à procura de alguém as pipas sentem saudades desejam encontro desejam partilha lembram-relembram revoadas vontades, esperanças
no Haiti tambores altos convocam louvores que despertam o deus dos mortos
a tradição faz valer o poder ancestral
que realimenta coragem semeia a luta e a dignidade do luto no festejo de esperanças
américa latina das dores, gesta garra da herança de morte, a vida o gosto gélido das perdas
revolve na boca a voz calada dos seus sob a terra se sangra, se chora, coloca no palco um povo que renova em coro na festa dos mortos as tristezas rezadas do luto social
se sangra feridas novas, se chora feridas velhas, elabora cuidado e cura fraterna, sobre os pêsames as “memórias de futuro” danças outras, passos novos, coreografia acesa de pipas e borboletas
se somos Severinos iguais em tudo na vida morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto)
e de vírus! aos milhares
a s s a e d n bosca m e a cada perda pedaços suprimidos corpo de cada um corpo nacional desmantelados fragmentos agudos
corações recebem o vazio
como falta instalada gestos cravados no adeus
simultâneos
o sim
o ã n o e espalham-se invasores
desestabilizam os suportes tristonhos envergados, confusos
açoites de distâncias inscritas em chagas que derrubam corpos
corpos corpos fios de vida, nas enfermarias abalroadas de assombrosa seleção na espera, ânsia tecida pelas dores da respiração remédios, presenças, ausências vínculos feitos, desfeitos mão na mão, o calor da mão? a pele da mão? mão mascarada em látex mas que transpassa o calor ao corpo acamado de solidão e nos casebres e em outros tantos leitos
frágeis de tamanho peso de angústia medo, desesperança
ou de auxílios pandemínimos
finados de desatenção
corpos também definham
nenhuns
máscaras alertam perigo, proteção em urgências simultâneas máscaras escondem um rosto ou o último suspiro de alguém
menosprezo
à máscara ou à nação? diretrizes doentes despreparo, um projeto? máscaras denunciam sentidos camuflados
a ausência de máscara
o que desmascara?
or,
so
pa v
di á di s lo g so os ci a do re s,
rie
qu os e pe da bas rfis da s di tido re on bur reto res trat on de a gue rias de am qu de o ro sia , m car em s let , q an tad va dad a ro uart datá as i, q os da el r io ue ap , ro m on t a f ic t a , a m
su sto s,
de nta
çã
o
indecência! roda, roda a roleta números viciados? “tinham que que morrer” “tinham morrer” “já iam morrer” “já dia iam “um têmmorrer” que morrer!”
“um dia têm que morrer!”
a roleta não poupou
a roleta não poupou
tantas perdas
tantas feridas qualquer idade, qualquer gênero, qualquer... bocas ressecadas de horizontes opacos entreabertas, escancaradas cansadas, esgotadas de abrir caminhos ainda aguerridas lutam resistências teimando em acenar bandeiras que deflagram coragem
(des)
o que a morte cobriu?
ceifadas
as vidas a morte empilhou negação trancou bocas de choros sequestrou lutos sepultou lutos cobriu, escondeu, suprimiu afagos sociais
destapou a ironia que jorra nua reina e alfineta lágrimas
despido de pudor o genocídio! vazio de dor ausente de “gentidade” pleno de extermínio mas envolto em paradoxos portou, castigado, uma outra face e punido, escancarou importâncias fez insurgir levantes que fortaleceram a defesa do outro o outro companhia no encontro imprescindível que fertiliza gritos de resistência
e a busca cansada que não explica as lacunas dos mistérios da dor não compartida tristezas, limites vãos distâncias de abraços cheiro, afago, olhar nos brasis que se juntam na escuta nas perguntas que açoitam nas respostas que machucam o
(en) robusto de luta enfrenta os mantos do poder que urram submissão em mandos verticais
lutar
o luto clama tempos respeitos que autorizam velório de culpas espaços para enterros das faltas, convivências, rasgaduras
o luto arquiteta reinvenções fermenta feitura, preparos acende o real esmaecido o bom dia ao dia de ninar noites plenas repletas
completas de possíveis que fundem num só o frio, o inanimado e a ardente inquietude do reinício
se a morte é a boca insaciável que devora as forças repuxa as cicatrizes é também canteiro
das peleias de semeadura e elaborações dos lutos, dos conflitos
horam contorções enterram a raiva: vespa viscosa que ferroa gargantas estraçalha o peito gesta vazios no estômago
mas enterrar boca seca? ardência girando suores de um cérebro flutuante descabeçado perdido na ânsia de lágrimas bambas lágrimas surdas, lágrimas cegas medrosas as lágrimas da violência
o m a t o l c o v e e r r a m r r a e g s a ent r s a e h u c q e s fl o e s s s a p m o c des m a ç r a g ? s s e e õ ç a r i p s re
a cabeça rodopia uma explosão de suspiros no zumbido do ouvido vomita febre, náusea ombros em carne viva boca em dispnéia dentes rangem pesadelos uivos desamparados nas horas frias da insônia
cantar, dançar a dor? negação como vestimenta? vidro, gelo, tremura luto acimentado rigidez, rudeza veias de gesso
afagos com calor de lápides desprezo vida debochada? o passeio, a balada músculos, formas compras desvairadas humanidade que se vende
não, não!!! neste tempo esvaído de tanto doer gestos conjuntos preparam a revolta a fervura que irrigam o abrigo da luta
n ortáve
su
mente esgarçada somam-se mortes milhares visíveis, invisíveis distantes, próximas, desconhecidas
a envergadura
(im)palpável da morte coletiva retumba peito que arrebenta morte, vida aflição, regozijo vida, morte alegria, agonia mescla: do começo, do fim também do reverso de gemidos cambaleantes em bocas de espanto deslocamentos chegadas, partidas
estrondos enfermos irrompem e arrasam o tempo de esperas desmancham suportes individuais corações pandemificados alastram urgências disparatadas
corpos qualquer tamanho, qualquer idade, qualquer… bocas implorando trégua entreabertas, escancaradas novas, cansadas na busca da medida de um jeito próprio de (en)lutar
despedidas sequestradas
luto sequestrado silêncios lacunas preenchem o cotidiano transbordamento lembranças desmonte, desamparo futuros roubados
ar para a constituição
ar Urge urge para a para a ciência constituição
respirar RESPIRAR
pra que cruz? pra que data? se só valem na história oficial das letras falecidas das lápides mandantes?
luto pan-negado nação sem pranto na praça sem velas acesas sem procissão
de memórias soluçadas de saudades em desabafos frente às tensões não se vê multidão em prece nem clamor que sussurre trégua às pandemortes
inquietas às súplicas que gritam
não! ao luto roubado à dor esquecida reprimida ao luto desqualificado
pelo contexto pandemalígno da fome do mercado e da necropolítica indissimulável na recusa da dor geral
tempo de luto povo calado
mundo em descompasso corpos isolados e bússolas imploram socorros crendice subterfúgios de horror
negação emboscadas de fake news no outro lado blocos, escolas de samba e tals
a potência irmanada dos pan-menosprezados é gatilho que dispara vontades que se abraçam para “sacudir a poeira”
arar corações no deserto de esperanças terra seca de acolhimento adubada com a cólera brotamento de afronta a germinar depressõe
guerra! guerra da morte/vida!
a morte atesta o placar busca de sensatez perdem os que se foram perdidos os que ficaram pandemiasfixiados à procura de ar sobrevivência
é preciso encorpar vozerios interromper desmandos juntar
vontades combativas
que arejem olhares e reclamem a humanidade desejada defendida, conquistada perdida
e bocados de vida para espantar a sina “dos humilhados e ofendidos” que se erguem, então, para honrar vidas perdidas escancarar a desrazão mostrar a ânsia rentista o poder e o descarte da classe social “marcada para morrer” das vidas “desaparecidas” que atrapalham, lentificam poluem a marcha dinâmica da cadência feroz da sociedade do capital
“... pra ver o jardim florescer”
é preciso “abrir as janelas para que o sol possa vir”
mas povo com povo em pé, gingado dançará sobre os trapos mentirosos do negacionismo que jazerá nas avenidas da justiça restabelecimento, reconstrução luto e comoção luto público luta gente luto político luta-devires
revolução!
as utopias teimam erguidas sempre insepultas