DES USO
Selma Parreira
DES USO
Selma Parreira
Galeria da Faculdade de Artes Visuais Universidade Federal de Goiรกs โ ข 2015
Em um conjunto de galpões abandonados no interior de Goiás, ao abrir as grandes portas de metal, rasgos de claridade cortam o chão iluminando o espaço e os objetos dentro dele. Naquele momento, tudo se carrega de uma força singular, imediatamente impregnando-se de um magnetismo memorial, próprio de um lugar que viveu o protagonismo de um tempo não muito distante. A força e o tom grave de cada ambiente são reforçados pelos objetos que foram preteridos ao longo do tempo em que houve o desmonte da história. Antonio Ambrosio Bandeira
Fotografia: Antonio Ambrosio Bandeira. 2015
DES USO
poética e memória do espaço e do objeto
Localizados na cidade de Anápolis, Goiás, a cerealista Arrozeira Boa Safra e o prédio do extinto Armazém Feliz, de secos e molhados, pertencem à família da artista plástica Selma Parreira. Há dois anos os locais recebem dela constantes visitas, ocasiões em que busca ressignificá-los com anotações gráficas nas paredes dos galpões abandonados, retendo as memórias de décadas de vivências que a marcaram profundamente. O que vemos nas pinturas, em várias técnicas - Selma chama a série de “Desuso” - são metáforas de uma poética de desocupação, de esvaziamento
de significados do espaço, quando o galpão lentamente ganha uma nova função comercial. Selma registra, fotograficamente e também em obras pintadas, todo esse processo de translado e transmutação do material para o imaterial de sua memória afetiva, como se pelo processo criativo ocorresse uma cura do apego a toda uma longa história familiar que lhe alimentou o imaginário por décadas. Mas também é muito mais do que isso, como Selma fala: “Nas minhas lembranças de infância, a MÁQUINA é o espaço de trabalho dos homens, para onde se dirigiam, todos os dias
e por cinco décadas, meu avô e seus dois filhos, e, nos últimos anos, meu pai e meu irmão. Essa antiga área central da cidade ostentou por muitos anos um concentrado de armazéns cerealistas e o comércio de secos e molhados, mas hoje quase todos os galpões estão desativados de suas funções originais. Alguns foram demolidos, mas a maioria está destinada a diversas ocupações e automaticamente sujeita ao apagamento de sua história. Numa ação sem sentido contrário e mediante os recursos da arte, recolho resíduos e busco registrar, com fotografias, desenhos, pinturas e vídeo, o que encontro de história do lugar, quase sempre impregnado de memória e poesia”. E é dessa poesia de memória, e viceversa, que se estabelece, pelo uso e pela ação do tempo, uma grande força gráfica vinda de todos os pormenores e detalhes desse galpão: quando vaza, acima, um céu de intenso azul do cerrado emoldurado/marcado pelas vigas de teto
escuras de fuligem em que Selma viu a “geometria da luz”; portas cerradas ou vedadas para lugar nenhum que incitam nossa imagética; restos de maquinários, agora mais que obsoletos e pertencentes à dimensão do não objeto; anotações comerciais e achados de identificações funcionais ou fissuras de parede. Tudo constituindo um vasto inventário do passado que se faz presente na reinvenção do olhar fotográfico e do recorte espacial que passa a ressignificar o poético no espaço sagrado da pintura. Selma potencializa suas visões simbólicas desse espaço não mais efetivo da memória familiar, mas vastamente afetivo em sua memória de artista. Agora tudo é transcriado em seu “transver”, em um cromatismo rico e essencial, desenhando, como ela diz, “paredes sujas e marcadas, as estruturas de madeira dos grandes telhados, soluções da construção popular com vazados e gambiarras que sabiamente refrescam e iluminam os espaços. Esses detalhes estão presentes
nas pinturas”. Mas estão mais que presentes: o substrato poético de tudo isso abre em cada tela/parede outros espaços de vazar, ocultar, encher o olhar de ligamentos que, de tão pessoais da artista, nos fisgam para seu universo tão particular e nos ressignificam intimamente com o que há de mais imenso em nossas emoções.
Técnica mista sobre lona, 47 x 54 cm. 2015
Selma está a conviver, no meio de toda a transformação do armazém e da cerealista, com o que ela chama de “processo de apagamento”. Mas a borracha sobre a memória do tempo jamais pode apagar o que a arte eterniza. As obras desta mostra põem em uso de poesia todo o desuso de gesto da impermanência da vida. “Desuso” apresenta-nos uma bela forma de transcriar a morte aparente e sempre passageira de um lugar que nunca vai deixar de ser um armazém de arroz numa cerealista feliz.
Técnica mista sobre lona, 48 x 52 cm. 2015
Bené Fonteles
TĂŠcnica mista sobre tela, 100 x 200 cm. 2015
Encáustica e acrílico sobre lona, 51 x 48 cm. 2015
Encรกustica sobre lona, 49 x 52 cm. 2015
Encรกustica sobre lona, 48 x 45 cm. 2015
Encรกustica sobre lona, 52 x 49 cm. 2015
Encรกustica sobre lona, 52 x 48 cm. 2015
Encáustica sobre lona 49 x 52 cm. 2015
“O simbolismo de um objeto pode ser mais ou menos explícito, mas existe sempre. Podemos dizer que numa narrativa o objeto é sempre um objeto mágico” Italo Calvino
Acrílico sobre tela 100 x 150 cm. 2015
Acrílico sobre tela 90 x 200 cm. 2015
“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo.” José Saramago
www.selmaparreira.com
REITOR DA UFG Prof. Orlando Afonso Valle do Amaral PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO E CULTURA Profª Giselle Ferreira Ottoni Candido DIRETOR DA FAV Prof. Raimundo Martins
CURADORIA COMPARTILHADA Bené Fonteles Antonio Ambrosio Bandeira Irene Tourinho TEXTO Bené Fonteles
COORDENAÇÃO DA GALERIA Profª. Ciça Fittipaldi
DESIGN GRÁFICO Mariana Bandeira
SECRETÁRIA ADMINISTRATIVA DA GALERIA Joanna Penna
FOTOGRAFIA DAS OBRAS Paulo Rezende
Galeria da Faculdade de Artes Visuais. Campus II. CP 131 - CEP 74001970. Goiânia-GO Tel: +55 62 3521-1445
www.fav.ufg.br/galeriadafav
UFG UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS