Pedro Pereira/ A Ilha
Pedro Pereira/ A Ilha
Ilustrações por Zdzistaw Beksínski
Texto de Pedro Pereira Revisão de Diogo Barreto Formatação e Edição Catarina Araújo e Francisco Fidalgo
Pedro Pereira/ A Ilha Durante as últimas noites tenho sonhado. O sonho é sempre o mesmo. As imagens repetem-se sem qualquer mudança como uma melodia aperfeiçoada, repetindo-se até ao primeiro raiar do sol.
Nas últimas noites tenho sonhado com uma ilha. Inicialmente vejo apenas a lamparina a óleo na proa da barca de madeira negra, a luz pálida e doentia que se debate contra o espesso nevoeiro, de tons febris cruzando o mar e mantendo-me companhia contudo aos poucos toda a cena se vai compondo.
O
céu
vestido
de
cinza
e
laranja,
de
esbatido
escarlate e linhas de negro como se um fogo tivesse consumido todos os cantos do paraíso, funde-se na linha do horizonte escura
com
perscrutadas
as
águas
até
corajoso,
pintando
falta
um
de
fundas
pelos
melhores
assim
qualquer
e
som
um
baças
impossíveis
olhos
ou
quadro
que
não
ser
o
coração
e
tenebroso,
sombrio as
de
ondas
calmas
mais a
apenas
ampliando a solidão. Por fim surge a ilha. Primeiro um borrão negro na linha do horizonte, depois os sinais de uma praia, de uma montanha, as luzes de uma vila e as copas negras de uma floresta. O nevoeiro levanta para permitir o olhar da imponente paisagem. No meio peito sinto o instinto primordial de admiração e medo. Vejo os contornos de um castelo de pedra negra esculpido e rasgado das rochas que compõe o pico mais alto da ilha. Até daquela distância, preso no meio de um mar falsamente calmo
Pedro Pereira/ A Ilha podia sentir a escuridão que emanava do interior dos salões daquele castelo, os dedos gelados alcançando a pequena barcaça e envolvendo todos os meus sentidos. Quando me encontro diante da ilha, na sua plenitude não a vejo como um local mas sim como uma criatura viva e milenar, detentora
de
uma
portadora
de
almas,
lentamente
e
infinidade
de
colosso
pesadamente,
e a
segredos titã sua
de
e
de
histórias,
lendas
respirando
antiguidade
e
terror
contagiando o ar, infectando-o. Temo que a qualquer momento se erga e me consuma, que o meu espírito mortal ceda perante o seu
espírito
primordial,
uma
aura
para
além
da
descrição,
pertencente a uma idade mais antiga deste mundo, antes de haver alguém que lhe pudesse dar um nome. Da mais alta torre do castelo, até às suas praias, sinto a sua ténue vida, abraçando-me com investidas suaves, não por falta de fraqueza, mas por omnipresença, demasiado grande e complexa
para
os
meus
sentimentos
compreenderem,
demasiado
antiga para a poder descrever, a sua essência muda o próprio ar,
as
próprias
regras,
o
mundo
à
sua
volta,
torce
com
silêncios o manto do que é real e introduz-se na minha mente, apoderando-se.
Apenas
me
consigo
aperceber
do
perigo
por
instinto, um reflexo que sobrevive àquela descarga emocional, vejo o perigo daquelas águas, daquelas encostas, do som do vento nas florestas, da espuma branca na água, do fumo das chaminés
da
vila.
Pôr
um
pé
naquela
ilha,
sob
o
céu
de
labaredas e diante do mar de sombras seria um erro que poderia
Pedro Pereira/ A Ilha pagar demasiado caro. A barcaça atravessa as ondas enquanto chuva fria começa a cair das nuvens de cinza, frias e interminåveis. Caem como navalhas na minha roupa, ensopando-a, apenas desejo chegar a terra, por momentos, esquecendo-me da sua aura tenebrosa e antiga, a tempestade que se levanta obriga-me a escolher o menor de dois males e a encontrar refúgio.
Pedro Pereira/ A Ilha
Pedro Pereira/ A Ilha
Um barulho seco assinala o travar da barca contra um banco de areia. Olho para o mar e continuo sem ver o seu fundo,
a
água
escura
move-se
como
uma
entidade
viva,
arrastando-se, emulando ondas e correntes, procurando puxar o mais incauto aventureiro para as suas profundeza. Agarro na candeia e respiro fundo, olho para o horizonte atrás de mim, contudo, o nevoeiro cobre tudo a uma distância de cinco metros do meu nariz, o silêncio uma mentira que esconde os terrores da noite que se começa a abater na ilha, uma noite fria e negra desprovida de luar. Salto para a água e sinto-me aliviado ao sentir os meus pés baterem no chão, ajusto o meu corpo de forma a enfrentar a corrente
e
avanço
a
passo
firme
tentando
escapar
da
água
gelada. Ao
chegar
à
areia
apercebo-me
da
severidade
da
minha
situação. Diante de mim a floresta não parece oferecer abrigo, as suas árvores intransponíveis e os seus habitantes pouco dotados na arte de anfitriões. Não precisava de pensar muito para
concluir
que
aquela
não
era
a
melhor
escolha
para
pernoitar. Na
distância
vejo
as
luzes
doentias
das
candeias
do
vilarejo, também estas me parecem uma mentira, uma criatura sob o disfarce de humanidade, pronta a adicionar-me ás trevas da ilha, mais um detalhe, uma marca no corpo milenar daquele
Pedro Pereira/ A Ilha lugar. Porém face à escolha entre o mal desconhecido e o mal humano, escolho o humano, pois esse raramente se esconde e é ainda imaturo face aos seus companheiros ancestrais, mais vale recear o conhecido do que irar o incompreensível e magnânimo desconhecido. A caminhada não demora mais do que alguns minutos. Após abandonar o areal cinzento reparei num trilho de cabras que serpenteava da praia em direcção à vila, olhando para trás já nem o meu barco consigo ver pois tanto a noite como o nevoeiro rapidamente
se
apressam
a
engolir
a
ilha
e
levá-la
deste
mundo. O ar parece-me pesado, a chuva cai sobre os meus ombros e gela-me os ossos, deixando-me deprimido e drenando as minhas forças. O ambiente à minha volta atacando sem nunca arredar, uma
contínua
corrente
de
investidas
a
tentar
fazer-me
desistir, a ser levado pela ilha, tentando adaptar-me a si, limando as arestas do meu ser que contrastam com a sua ordem. Chego por fim à vila, vendo diante de mim nada mais do que
um
lugar
esquecido
e
abandonado,
deixado
à
mercê
dos
deuses naquele lugar que provavelmente não constava em nenhum mapa. Pouco
mais
do
que
duas
filas
de
casas
ladeando
uma
pequena praça central de cada lado formavam aquela área. A maioria das casas não tinha aspecto de ter mais do que uma sala e um quarto, todas em madeira, candeia à entrada para iluminar os alpendres sujos, porém havia uma habitação maior
Pedro Pereira/ A Ilha como se várias daquelas casas se tivessem fundido numa só, infectadas por aquele espírito doentio que dominava a vila, tentando tirar a cor e vida de tudo e pintando o mundo de cinzento, uniformizando todo aquele local. Por mais que me quisesse afastar daquele lugar lúgubre, bastava-me
olhar
de
relance
para
as
copas
das
árvores
da
floresta que se agitavam furiosamente com o vento para ser dissuadido de me afastar muito do único contacto que tinha com a civilização. Refugio-me debaixo de um dos alpendres de madeira, que chiou em sofrimento com cada passada e procurei a luz da candeia, uma pequena réstia de conforto num quadro cada vez mais tenebroso. Retirei a candeia do seu suporte de metal e caminhei de porta em porta à procura de uma estalagem de alguma espécie. A lama começava a abrandar os meus movimentos e a apegar-se às minhas roupas ensopadas, a própria terra querendo afundar-me naquele lugar triste, o mais importante era não ficar quieto, tinha que permanecer em movimento. Após alguma procura deparei-me com uma tabuleta onde um brasão meio apagado parecia anunciar uma estalagem de alguma espécie. O edifício que assinalava era ligeiramente maior que os outros, e duas portadas rangiam assinalando que estavam destrancadas. Aproximei-me cautelosamente, à procura de uma voz humana que viesse do interior. O
som
incessante
da
chuva
fria
e
miúda
aliava-se
ao
Pedro Pereira/ A Ilha ranger das tábuas de madeira para tornar a minha tarefa o mais difícil possível, porém pareceu-me ouvir um som. Perguntei-me se estaria a imaginar o som de uma voz por desespero ou se aquilo seria uma armadilha daquele lugar, a simples ideia de que
aquele
lugar
fosse
apenas
uma
estalagem
normal
era
o
pensamento menos credível que tinha. Pousei a candeia num dos corrimões e aqueci o peito. Cada minuto
que
passava
na
rua
deixava-me
mais
inquieto.
Aos
poucos, o som da chuva tornava-se ensurdecedor, estática que encobria qualquer raciocínio que podia ter. O frio que me enregelava as pontas dos dedos, do nariz e dos pés empurravamme para a segurança aparente da estalagem e o local desolado inspirava em mim uma enorme vontade de fugir. Respirei fundo e tomei a decisão de entrar na estalagem. Se algo me fosse acontecer, que ao menos fosse dentro de quatro paredes e não num lamaçal triste. Olhei em redor, retirando o casaco ensopado e pendurandoo num cabide que se encontrava na entrada, analisando todo o interior daquele sítio. Do pequeno vestíbulo via-se directamente à frente umas escadas de madeira de degraus tortos que levavam a um andar de cima de onde nenhuma luz vinha assinalando a falta de vivalma. Do outro lado, uma pequena entrada levava para uma sala maior onde se podiam ver algumas mesas, um balcão de madeira, e ao fundo
duas
janelas
abertas
por
onde
entrar deixando poças em partes do chão.
a
chuva
continuava
a
Pedro Pereira/ A Ilha Avancei para o interior da sala que era iluminada por múltiplas velas em cima das mesas. O leve crepitar das chamas quebrava o som contínuo da chuva, dando-me algum sentimento de segurança,
apaziguando
algumas
das
minhas
inseguranças.
Contudo algo naquela situação não batia certo. Tudo aparentava uma banalidade forçada, como se o real se tivesse tornado na ficção naquele lugar. Não era suposto haver algo familiar e seguro, pois ia contra tudo o que havia levado àquele momento, uma incongruência numa narrativa que tinha premido apenas pelo perigo e o desconhecido. Um arrepio percorreu-me todo o corpo, impedindo-me
de
relaxar.
Os
meus
sentidos
cada
vez
mais
alerta, esperando que algo acontecesse. Permaneci de pé no meio
da
sala
reviravolta esperava
vazia
qualquer
que
surpreender.
a
ilha
Todo
o
por
vários
que
suportasse
fizesse meu
minutos,
a
corpo
sua
as
minhas
jogada
estava
esperando
e
hirto,
uma
suspeitas, me
tentasse
expectante
e
preparando-se para alguma coisa. Nada. Apenas o som da chuva e das ténues chamas. Mais nada se ouvia. Suspirei, baixando levemente a guarda. Haviam já passado largos minutos, ou assim julgava, desde que atravessara as portadas e me tinha refugiado dentro daquele lugar e, em todo esse tempo, ninguém tinha aparecido. Onde estava o dono daquele lugar, os clientes, alguém? Podia
ser
que
o
vilarejo,
e
a
estalagem
por
consequência
estivessem abandonados, porém isso deixava por explicar as
Pedro Pereira/ A Ilha velas acesas e as portadas abertas. O próprio lugar não tinha qualquer sinal de estar abandonado: As mesas limpas, o chão bem
tratado,
nenhum
sinal
de
confusão
ou
de
pestes
que
normalmente teriam tomado conta de um local como aquele em caso de abandono e todavia nada, nem uma única alma. Dei
alguns
passos
em
direcção
ao
balcão
onde
uma
campainha de ferro se encontrava junto a uma das velas acesas. Olhei
por
detrás
do
balcão
e
vi
uma
porta
entreaberta.
Estiraçando-me sobre o balcão tento ver o que se encontra no interior mas também este esforço torna-se infrutífero. Por momentos considero passar por detrás do balcão e investigar, mas o medo e a insegurança não permitem que o faça. Olho para a
campainha
de
metal.
Ferrugenta
e
sem
qualquer
detalhe
especial, não devia ter qualquer motivo para me deixar nervoso e
no
entanto
algo
nela
criava
em
mim
uma
sensação
de
premonição, como o abrir de uma porta para o desconhecido, o alterar das circunstâncias e das regras daquele lugar, talvez tocar naquele botão de metal poria fim ao descanso que havia adquirido. Que estivesse
era
aquele
seguro
descanso
naquele
senão
momento,
um
limbo?
teria
que
Mesmo sair
que dali
eventualmente e ficar exposto às sombras da ilha. Algo me fazia pensar que não estava senão a evitar o inevitável. Não podia ficar naquela situação para sempre, e sem dúvida que não podia voltar atrás. Apenas me restava ir em frente. Respirei fundo, ergui a mão. Expirei, baixei a mão.
Pedro Pereira/ A Ilha O som metálico, seco e agudo da campainha ressoaram pela sala, sobrepondo-se à chuva, às chamas e à minha respiração. Nenhuma resposta se fez ouvir. A minha mão pairava ainda sobre a campainha esperando que algo acontecesse, que alguém se revelasse, pelo menos uma causa e consequência que fizessem sentido, todavia tudo permanecia da mesma maneira, como um quadro,
inalterável
parecia-me
menos
e
permanente.
imponente
portanto
A
atmosfera
tentei
sinistra
descontrair
e
tentar decidir o que fazer a seguir visto que não poderia ficar ali para sempre. Servi-me de uma das várias bebidas por detrás do balcão. Vinham em diversas formas e feitios, cores e brilhos. Percorri com o dedo o vidro poeirento tentando decifrar alguns dos rótulos mais antigos que na sua grande maioria estavam
já
esbatidos ou apagados. Apenas em alguns casos se apercebia um título ou um semblante de um brasão o que também não serviu de ajuda porque não reconhecia nenhum daqueles licores. Segui-me coloração
pelas
âmbar,
diversas
pálido
e
cores
turvo
que
parando me
num
parecia,
com na
uma minha
opinião pouco experiente, um licor de malte ou um whiskey, duas coisas que naquele instante eram bastante apetecíveis. Servi-me num copo que não tardei a encontrar - debaixo do balcão - e fui-me sentar numa das mesas juntas às janelas de onde a chuva continuava a entrar. Olhei para a paisagem exterior: O vento agitava com raiva as
copas
das
árvores
que
se
juntavam
em
coro
num
rufar
Pedro Pereira/ A Ilha omnisciente e premonitório, som capaz de gelar o coração, o céu cinzento carregado não dava sinais de estar para terminar. A natureza em toda a sua fúria mostrava-se hostil a mim, como se de intruso me tratasse. Dei um trago do líquido âmbar e senti um arrepio correrme toda a espinha. Era forte, mais do que estava habituado, o ténue sabor era apagado por completo pelo trago de álcool puro. Lá fora algo me chamou a atenção. Longe, onde a montanha se levantava, com o castelo esculpido na sua encosta, como se um tumor negro que envenenava a montanha, conseguia avistar uma luz
brilhante no ponto mais alto desta, na sua parte
desnuda de árvores onde apenas a terra vermelha reluzia. Era uma luz forte e constante, como aquela de uma estrela, que se mantinha pousada no mais alto pico da ilha e a sua luz chamava por mim. Não conseguia discernir se a natureza daquela luz era benevolente ou assustadora, não conseguia de facto compreendêla, reflectir sobre toda a sua natureza, brilho ou o que provocava em mim resultava num zumbido e névoa que me impediam de juntar as peças mentais, de realizar qualquer raciocínio ou ideia. Tinha que ir lá. Pensei que fosse apenas um desejo criado pela minha mente, um plano de acção que talvez me pudesse levar a sair daquele lugar, contudo sabia no meu âmago que estava compelido a lá ir, sem qualquer outra razão que não ter sido atraído pela ilha.
Pedro Pereira/ A Ilha -Sai daqui! Sai daqui criatura que nos amaldiçoas a todos! Sai! Sai! Saltei
da
minha
cadeira,
caindo
desamparado
no
chão.
Diante de mim um homem velho gritava incessantemente. - Sai, sai! Sai! Sai desta ilha imediatamente! Tentei
raciocinar
com
a
pessoa,
mas
esta
mostrou-se
adamante na sua posição, empurrando-me e agarrando-me pelo colarinho à medida que me arrastava. - Pare, por favor, estou só a tentar...! - Cala-te e sai! Sai! Depois de me conseguir apoiar no chão com ambos os pés, agarrei-me à armação da porta e deixei-me sair com empurrões, voltando-me para trás para tentar conversar com o homem. Fui recebido com o som e a imagem da porta de madeira a fechar-se, deixando apenas uns segundos para vislumbrar o meu anfitrião. A
sua
pele
era
pálida
como
a
neve,
os
olhos
de
um
azul
esbatido e frio, os cabelos grisalhos e molhados, bochechas ossudas e pescoço rijo e delgado, demasiado até, pouca vida mais do que um esqueleto ou um espectro. Bati à porta uma e outra vez explicando a minha situação, com cada pedido ia ficando mais enfurecido e batia com mais força, frustrado com a falta de compreensão do homem. De nada adiantou, pois a porta permaneceu imóvel e sem qualquer sinal de se pretender mover. A estalagem voltara ao silêncio no qual a encontrara. Amaldiçoei o homem uma última vez em desespero, mas mais
Pedro Pereira/ A Ilha uma vez de nada adiantou. Olhei para a chuva que não parava de cair e amaldiçoei aquele lugar. Aquele lugar nefasto não iria tomar
conta
de
mim,
amaldiçoei
a
minha
sorte
e
pus-me
a
caminho do ponto mais alto da ilha, talvez aí pelo menos não chovesse. Agarrei
noutra
candeia no
estalagem
e
pus-me
principal
e
procurando
que
caminho
se de
o caminho
encontrava lama,
para
o
à
porta
da
passando
a
praça
castelo.
Enquanto
percorria as fileiras de casas homogéneas conseguia ouvir um pequeno
burburinho.
Por
entre
as
frechas
das
portas
e
as
janelas que escondiam o interior das casas, via toda a gente daquele vilarejo a olhar-me. Talvez pessoas não fosse a melhor palavra para descrevê-las. Caras sulcadas, quase sem vida, olhos encovados, reluzindo em caras ossudas e marcadas pela escuridão das suas olheiras, todos fantasmas, como se nunca tivessem visto a luz do sol. Afastei-me
daquele
lugar
o
mais
depressa
possível,
a
passada o mais larga quanto a chuva e a lama me permitiam, debaixo do meu fôlego ia amaldiçoando aquele lugar, o meu coração ainda palpitando do meu encontro com o que eu deduzi ser o estalajadeiro. Depois
de
longos
minutos
perdido
no
meio
da
lama,
encontrei um caminho que penetrava por parte da floresta e subia o monte, o trilho era todo ele coberto por pedras lisas o que me parecia convincente como um caminho para o castelo, um ponto mais alto onde depois poderia descobrir como subir a
Pedro Pereira/ A Ilha montanha. Mesmo movido com a adrenalina do susto que havia apanhado estava consciente dos olhos da ilha, da sua presença antediluviana, a sua consciência antiga e milenar, para além da minha compreensão e sobretudo da sua maldade. O caminho diante de mim era só uma falsa segurança, dada como isco pela ilha,
apelando
desconhecido
ao
das
meu
árvores
raciocínio
humano
de
negras
folhas
que que
temia se
o
moviam
incessantemente. Engoli em seco e pus-me a caminho, empunhando a candeia alto para me revelar o caminho. Inicialmente dei passos sem medo ou temor, decidido a chegar ao outro lado no menor
tempo
floresta
possível.
rodeando-me
O e
chão
pareceu
abatendo-se
ficar sobre
mais mim
negro,
a
deixava-me
claustrofóbico, tento apertar toda a vida de mim, comecei a encurtar os passos sentido objectos nas minhas pernas no qual podia
tropeçar
e
mesmo
sabendo
que
não
eram
mais
do
que
truques da minha mente receava cair neles mesmo assim. Por fim fiquei completamente quieto, a ouvir só o som do meu coração, tambor incessante que fazia todo o meu corpo vibrar. A escuridão à minha volta adensava-se. O barulho das folhas
nas
árvores
pareciam
sussurros,
pedindo-me
que
relaxasse, que parasse. Suores frios corriam-me pela testa. Baixei a candeia e vi-me só na escuridão. Era de dia? De noite? Já não fazia qualquer
ideia,
queria
desistir.
Talvez
tudo
parasse
se
desistisse de vez. Debati-me vezes e vezes contra mim mesmo, o desejo de pôr fim a tudo a morder-me a consciência enquanto a
Pedro Pereira/ A Ilha vontade
de
auto
perseverança
dizia-me
para
continuar,
que
podia sair vivo daquela situação toda. A escuridão, contudo, permanecia sem qualquer sinal de arredar pé. A decisão teria que ser só minha e de mais ninguém. Se quereria sair dali, a Ilha em nada me iria ajudar. Fechei os olhos, e pus a mão no peito. Sussurrei suavemente para mim mesmo tentando acalmarme. Ia ficar tudo bem, ia chegar ao fim daquele lugar, não podia deixar-me levar pela vontade daquele lugar fúnebre. Voltei a caminhar. Inicialmente, um passo de cada vez, cuidadosamente e com medo, depois vendo que nada acontecia fui caminhando mais confiantemente. Os meus olhos habituaram-se à escuridão. O meu corpo focado em seguir o caminho de pedras negras iluminado pela fraca luz da candeia. Não
sei
quanto
tempo
fiquei
naquele
limbo,
a
minha
consciência focada apenas em andar, os meus olhos presos na luz da candeia e nas pedras. Eventualmente cheguei ao outro lado, sentido um alívio e um peso sair-me das costas.
Pedro Pereira/ A Ilha
Pedro Pereira/ A Ilha
Diante de mim estava o castelo. Lúgubre e negro, opulente e
distorcido,
o
vento
passando
as
suas
torres
e
frechas
provocavam um sibilar constante como se em agonia, uma quimera em
sofrimento
por
ser
meio-montanha,
meio
castelo,
meio-
humana, meio divina, parte da ilha. Senti o meu sangue esfriar novamente e o meu coração a enregelar
com
o
pensamento
que
teria
de
atravessar
aquele
lugar para chegar ao topo da montanha. Procurei, em vão, por um caminho alternativo. Porém a montanha era demasiado íngreme para subir, sem rochas ou sulcos por onde me agarrar, e do outro lado havia apenas um desfiladeiro, onde debaixo de si as árvores uivavam pedindo que regressasse. Diante de mim apenas o portão em metal negro e retorcido, enferrujado com a chuva contínua me esperava, um monstro que se ria com dentes tortos e disformes. Tinha que passar por aquele sítio? Quantos mais lugares envenenados e odiosos teria que atravessar, onde acabava a sombra da ilha, estaria eu condenado a ser corrompido da mesma forma? Estava entre a espada
e
a
parede.
Voltar
atrás
significaria
atravessar
a
floresta mais uma vez, algo que eu temia não ser feito a ser repetido, ir em frente seria prosseguir o jogo e lançar-me ainda mais no desconhecido. Não havia forma de ganhar o jogo. Olhei o céu negro e triste. A chuva
começava
a deixar-me
Pedro Pereira/ A Ilha louco. Odiava tudo nela. O som, a forma como caía, como me desgastava e me cansava todos os músculos, como me atrasava. Estava farto, farto daquilo. Só queria que se calasse. Pelo menos no castelo não choveria. Parece ridículo tomar decisões baseado
em
coisas
tão
pequenas
porém,
naquele
momento,
qualquer razão ajudava a tomar uma decisão que pouco mais do que uma ilusão era. Não tendo encontrado nenhuma porta de criados ou uma fenda nas paredes resolvi entrar por entre as grades. Senti a brisa e o vento passarem dos corredores e contra mim como uma rajada de vento. As grades pressionando contra o meu corpo, cortando a circulação às minhas pernas e ao peito. A
chuva
tornava
qualquer movimento
mais
complicado
não
me
deixando agarrar em segurança às barras metálicas, fazendo-me raspar a pele e cortar-me. Quando finalmente caí do outro lado senti
todo
o
meu
corpo
batendo
no
chão,
deixando-me
entorpecido. Levantei-me sob a forte chuvada que ainda caía e procurei de novo uma porta para o interior do castelo. Uma porta solitária rangia para a frente e para trás, de resto não havia outro sinal de vida. As muralhas interiores levantavamse alto porém sem quaisquer guardas, os estábulos vazios, os celeiros
trancados.
Não
me
parecia
que
ninguém
estivesse
estado naquele castelo há já algum tempo. Sem qualquer outra alternativa decidi entrar pela porta. Precisava de fugir da chuva antes que ela desse comigo em louco.
Pedro Pereira/ A Ilha Tinha entrado na cozinha. Isso era claro. Por todo o lado mesas largas, e utensílios de cozinha permaneciam abandonados, juntamente com uma grande lareira de pedra onde uma velha panela de cobre permanecia inutilizada. Ao fundo uma pequena porta
de
madeira
permanecia
aberta
levando
ao
coração
do
castelo. Tal como a cozinha também este estava abandonado. Salões de baile e jantar encontravam-se vazios fora um ou outro candelabro, outras salas estavam cobertas por toalhas brancas que tapavam todos e quaisquer móveis que houvesse. Nenhuma luz lá restava, apenas uma escuridão permanente que me acusava de intruso. Caminhei com cuidado, tendo apenas o som dos meus passos a fazer-me companhia. O pior naquele castelo não era o abandono ou a falta de vida, isso já eu tinha pressentido na hora de chegar. O que realmente me assustava era o frio desumano que parecia querer matar qualquer vida naquele
lugar.
Como
uma
faca
das
sombras
atravessava
os
corredores e parecia focar-se em mim. Nunca sentira um frio tão debilitante ou aterrador. A candeia tremia nas minhas mãos, o metal queimava-me as mãos do quão frio estava. Senti-me ficar mais pálido, à medida que o corpo tremia, esvaindo-me de vida enquanto percorria aqueles corredores gelados. Abri uma grande porta. Não sei à quanto andava ou quanto faltava
ainda,
mas
naquele
momento
só
tinha
forças
para
continuar a andar e abrir toda e qualquer porta. Dei por mim num largo e alto corredor. Do lado direito, janelas altas,
Pedro Pereira/ A Ilha algumas abertas, outras partidas, mostravam o céu cinzento e a chuva incessante, do outro lado quadros. O meu coração parou mais uma vez. Aqueles não eram quadros normais. Neles surgiam a figura de pessoas em trajes nobres e reais, porém não tinham caras. Não
queria
dizer
que
estas
haviam
desaparecido,
cobertas,
rasgadas ou pintadas por cima, eram simplesmente dezenas e dezenas de pessoas sem caras. Os pescoços e as poses eram naturais, porém tudo o resto estava ausente deixando só um vazio. Todas pareciam olhar para mim, mesmo sem olhos, as suas atenções
viravam-se
correram
o
meu
para
corpo.
mim.
Nada
Arrepios
daquilo
era
atrás
de
natural,
arrepios não
eram
humanos. Como se algo tivesse tentando emular a humanidade da pintura e falhado devido a fazer parte de outra realidade retorcida, como se algo me tentasse convencer que estava em território acelerou.
humano, Atrás
de
apenas mim
para
uma
me
enganar.
escuridão
O
meu
engolira
o
coração resto
do
castelo. Havia somente o caminho diante de mim, debaixo do olhar
de
todos
os
quadros.
Os
seus
olhares
fixos
em
mim
pareciam perscrutar-me, tentando falar comigo, as suas vozes pareciam
humanas,
mas
eram
completamente
desprovidas
de
naturalidade ou humanidade, como ruídos. Aproximavam-se cada vez mais, tomavam cada vez mais conta de mim. Respirei fundo e corri. O pânico tomava conta de mim, a adrenalina controlava o meu corpo, se parasse estava perdido. O vento silvou à medida
Pedro Pereira/ A Ilha que atravessava os corredores, o que me fez apressar ainda mais o passo. As vozes continuavam, cada vez mais perto. Fechei os olhos. Continuei a correr. As vozes aumentaram. Fechei-os com mais força. Corri o máximo que pude. Um grito ressoou na minha cabeça em sofrimento. Centenas de vozes em agonia num só instante. O susto abriu-me os olhos e estava diante de uma outra porta. Pontapeei-a para sair. Uma luz banhou-me assim que os meus pés sentiram a terra vermelha debaixo delas. Caí no chão exausto, a candeia batendo com força no chão. Tinha conseguido fugir daquele lugar. Estava longe daquele monstro. Olhei para trás e vi as paredes do castelo. Pareciam diminutas, como se a maldade as tivesse abandonado e agora mirrassem
sem
uma
vida
para
capturar.
Senti
um
misto
de
orgulho e sucesso enquanto lançava um olhar de vitória na sua direcção. Percebi aí que a chuva tinha terminado. Estava livre daquele lugar de vez. O silêncio nos meus ouvidos dava-me conforto. Levantei-me vitorioso. Pegando na candeia. A luz tinha-me salvo,
a
luz
protegera-me
e
dava-me
refúgio
da
ilha,
ali
naquele ponto, acima da chuva e do miasma do seu ar a Ilha parecia não ter qualquer influência.
Pedro Pereira/ A Ilha Caminhei com calma e sem medo. O pior já parecia ter passado. A paisagem não tinha nada de relevante, apenas pedras e terra vermelha ladeavam um caminho que serpenteava monte acima. Comecei a questionar-me sobre onde estava, sobre aquele lugar,
e
comecei
a
pensar
como
haveria
de
sair
dali.
Na
verdade como é que eu tinha chegado ali? Por que razão tinha eu ido para o mar? Porquê? Na minha mente havia apenas uma escuridão permanente. Como se não tivesse tido uma vida antes daquele barco, antes do momento em que chegara à Ilha. Antes que me pudesse prender por
estes
pensamentos
Encontrava-me
na
base
deparei-me de
um
com
enorme
uma
visão
tenebrosa.
desfiladeiro,
as
suas
paredes elevando-se cerca de vinte ou trinta metros acima de mim. Um longo e aberto caminho continuava em frente contudo o mais assustador eram as estátuas. Enormes estátuas corriam a montanha. Estátuas de figuras esqueléticas olhavam na minha direcção. De longos mantos vermelhos, as caveiras apontavam todas na minha direcção. Foi aí que percebi de novo que o céu funesto de vermelho e negro, cinza e fogo tinha voltado e substituído a chuva e céu negro. Não havia vento, não havia o som de pássaros ou o ruído de árvores. Apenas silêncio. Caminhei vagarosamente enquanto as caras das estátuas me olhavam. As covas dos olhos presas em cada passo meu. Levantei a candeia para melhor as ver. Pareciam vivas, como se das covas esculpidas dos seus olhos houvesse uma intenção em olhar
Pedro Pereira/ A Ilha para
mim.
Sustive
a
respiração
enquanto
atravessei
aquele
desfiladeiro. Sentia-me como se fosse parte de um ritual, como se atravessasse uma corte real em direcção ao trono. Quando cheguei ao fim do caminho deparei-me só com uma larga rocha que se erguia como o pico mais alto da ilha, ao fundo dessa rocha erguia-se a luz. Deixei de conseguir pensar. O meu corpo sentia-se leve, os pensamentos abandonavam-me e as memórias abandonavam o meu corpo, só existia a luz. Aos poucos parei de sentir frio, aos poucos deixei de pensar, não me lembro de quando deixei cair a candeia, não sei quando
parei
de
ter
medo
ou
preocupar-me,
não
sei
quando
deixei de ser humano, de ser complexo. Tentei agarrar a luz, os meus dedos aproximaram-se dela, estava prestes a alcançá-la quando num ápice desapareceu. Pisquei duas vezes os olhos para confirmar aquilo que tinha visto. Ao abrir os olhos de novo percebi que havia apenas escuridão. Abrir ou fechar os olhos era redundante. Apenas via negro. Procurei a candeia, mas foi em vão. Mesmo que quisesse voltar atrás, lembrei-me do quão estreita era a pedra onde tinha caminhado para chegar à luz, um passo em falso e caía. Senti-me nu e vulnerável. Os meus olhos permaneciam sem se habituar. Aos poucos perdi noção das minhas extremidades, do meu
corpo.
O
silêncio
puro
destabilizava
a
minha
audição,
senti que ia endoidecer com o somo do meu coração. Comecei a ficar mais ofegante, cada vez mais em pânico.
Pedro Pereira/ A Ilha O meu coração batia com força. O meu coração batia diante de mim. O meu coração tinha saído do meu corpo. Não sei como é que isto pode ser possível, mas sinto-o diante
de
mim
a
bater,
fora
do
meu
peito,
sinto
os
seus
contornos na escuridão e o seu bater. Tenho medo. Quero alcançar o meu coração. Quero agarrá-lo. Estico a mão na escuridão. Ele bate cada vez mais. O medo aumenta. Estou quase a recuperá-lo. A terra treme. Um rugido engole o mundo e sinto diante de mim
algo
eterno,
de
enorme
ancestral,
a
contorcer-se
algo
para
além
nas
trevas,
magnânimo,
minha
compreensão
da
levanta-se. Sinto-me uma formiga diante de si. Tento alcançar o meu coração antes que
aquilo
perceba que eu ali estou.
Aquilo contudo sabe muito bem que estou ali. Deus velho, monstro, ilha, universo. Sinto o meu coração cada vez mais longe. Ele rosna e ruge fazendo-me
estremecer,
todo
o
meu
ser
fica
à
beira
da
destruição pela simples pressão da sua presença. Imagino duas mandíbulas enormes abrirem-se. E num só movimento engolem o meu coração. Deixo de o sentir bater. O terror corre-me o corpo,
sinto-me
indefeso,
aterrorizado.
desespero. E até isso deixo de compreender.
Apenas
resta
o
Pedro Pereira/ A Ilha Deixo de ser.
É este o sonho que tenho todos os dias. Poucas vezes muda, apenas fica mais nítido, a ilha, o terror, o medo. E cada dia, depois de ter acordado numa cama banhada em suor, e onde antes de acordar me fazia sentir seguro e de volta ao mundo, agora a diferença começa a ser pouca. O terror começa a passar para o mundo real. Cada vez que fico sem coração, a Ilha torna-se cada vez mais o meu mundo. Um dia não vou poder sair da Ilha. Um dia Ele acordará.
Pedro Pereira/ A Ilha