A FILOSOFIA NO DIVÃ (Consulta filosófica em análise)

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Consulta filosófica em análise

A FILOSOFIA NO DIVÃ Achegas para o advento do novo paradigma especulativo e da sua utilização em contexto de consulta

A complexificação da sociedade actual A sociedade actual é muito diferente daquela que nos habituamos a considerar. Aliás, pouco tem a ver com ela. A vida colectiva mudou, complexificou-se, tornou-se difícil de perceber e de prever. As próprias pessoas estão diferentes: na sua maioria têm objectivos difusos, formas de estar intermitentes, percursos de vida aleatórios, numa clara contradição em relação à maior consciência cultural entretanto adquirida por via da massificação do ensino. Claro que muitos poderão contestar estas afirmações argumentando que a fugacidade dos comportamentos e dos ideários sempre se manifestou desta forma, apenas variando o modo como as gerações perspectivavam as anteriores. Mas a verdade é que as alterações de hoje caracterizam-se pela profundidade, alcance e rapidez das suas materializações. Veja-se, por exemplo, o caso da desvalorização da política enquanto centro inquestionável do poder organizacional ou da ontologia enquanto vértice teórico da nossa segurança existencial. Há, pois, uma complexidade nova que se inaugura, em termos simbólicos, com manifestações de grande envergadura como o 11 de Setembro de 2001 ou a crise financeira de 2008, sendo que estas não são, contudo, as que mais contribuíram em termos individuais para a redefinição das metas e das perplexidades do homem actual. O ponto de partida é anterior e mais difuso em termos de extensão e gravidade das suas consequências. Os efeitos, esses, estão à vista. Parece faltar a certeza de tudo e de qualquer coisa a cada um; a relativização moral, a crise identitária dos arquétipos, a indefinição ideológica, a dúvida da fé religiosa, a supremacia da economia face às outras actividades humanas, constituem exemplos disso mesmo.

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Perante isto, a ciência e os intelectuais em geral tardam em responder. Publicam-se livros de auto-ajuda avidamente procurados pelos leitores, os meios de comunicação difundem todos os dias propostas de actuação, os líderes de opinião falam a propósito de todas as coisas e, para espanto de alguns, ninguém se sente esclarecido, a indefinição e a perplexidade aumentam e os indivíduos continuam à procura de um consenso interpretativo sistematicamente adiado. A busca de um novo paradigma civilizacional para o século XXI é demonstrativa desta realidade, porventura em resultado da “preferência radicalmente anti-metafísica e antiontológica do discurso pós-moderno” (Pires, 2004, p. 9), carente conforme se reconhece de fundamentação especulativa de âmbito eminentemente universal. É verdade que o tempo actual se cumpre através de percursos sistémicos, em que cada realidade se auto-regula e se alimenta a partir de si mesmo, num processo identitário não partilhado, acrescentando complexidade à estrutura social. Por isso é que a economia percorre caminhos muitas vezes diferentes dos reivindicados pela política, o mesmo acontecendo com a saúde e a educação, a cultura e a comunicação social, o feminismo e o amor, a ciência e a verdade, por exemplo. Deste modo se explica a crescente necessidade de ser implementada uma observação do real que se distinga pela capacidade de relacionação e de envolvimento interdisciplinar. Ou, por outras palavras, que seja capaz de ultrapassar o aparente fechamento a que, numa fase primeira de análise, os sistemas autopoiéticos normalmente conduzem. É essa a função reclamada da filosofia. A de ser maior que as partes em confronto. Mas para a “efectivação desta tarefa há que remover obstáculos que provêm de uma cultura filosófica decadente, voltada para si mesma, desinteressada do real e baseada quase exclusivamente em técnicas de investigação próprias do conhecimento históricofilológico” (Pires, 2004, p. 7). Quer isto significar que da mesma forma que a sociedade também a filosofia necessita de se repensar nos seus pressupostos interpretativos e nas suas práticas de âmbito público. O lugar da filosofia Herdeira de uma tradição secular, a filosofia actual vive uma encruzilhada de percursos possíveis. Recolhida habitualmente na atmosfera discreta dos gabinetes universitários, a sua divulgação processa-se de modo quase exclusivo nos livros destinados a especialistas das matérias em análise. Vive, assim, a solidão escolhida do diálogo impresso em tese académica, transformado à custa da não condescendência democrática, em solilóquio de efeito circular. A filosofia que o público conhece dos bancos da escola é mais ou menos esta. Destina-se a um grupo relativamente restrito de iniciados no saber contemplativo, ciosos da altivez própria daqueles que professam a verdade não profanada pela partilha popular. 2


Como se isto bastasse à filosofia do século XXI. Para agravar o estado das coisas, recusa-se a responder às questões - algumas de natureza imperiosa - uma vez que a função declarada desta disciplina é, ao invés, fazer perguntas. Alienando desta forma a vocação maior da filosofia: a de esclarecer convicções, fundamentar modos de existir, dirimir argumentos, numa só palavra, dizer. E aqui reside, então, o moderno dilema da filosofia. Ela tem que optar pelo engajamento das suas opções, pelo empenhamento participativo dos seus personagens mais relevantes, ou, então, pela passividade costumeira que o público contemporâneo não compreende mais. Caso escolha a primeira das hipóteses, a filosofia deve integrar as infinitas possibilidades do mundo da comunicação. Só assim “o saber dos saberes” deixará a penumbra dos gabinetes e sairá à rua. Participará nos programas de debate televisivos, ocupará espaço de opinião nos jornais, integrará as novas plataformas de conhecimento presentes na blogosfera, ao mesmo tempo que continuará a patrocinar conferências, colóquios, congressos, etc.

Deste modo, a filosofia poderá finalmente responder aos anseios das pessoas, àquilo que segundo Ortega Y Gasset elas continuam a procurar: “uma ideologia orientadora para as suas vidas” (Dias & Rastrojo, 2009, p. 116). Simultaneamente, tornará mais visível a produção filosófica e o labor dos seus agentes. Nessa altura os filósofos serão tratados como tal pelos meios de comunicação social, e não, como acontece hoje - fruto da ignorância colectiva sobre a disciplina - pela designação de pensadores, antropólogos, sociólogos, historiadores e tudo mais que a imaginação dos profissionais dos mass media quiser. Só assim a ciência filosófica estará apta a recuperar o seu estado original, praticado há muitos séculos atrás nas ruas de Atenas, por todos aqueles que, sempre que solicitados para tal, discorriam sobre os modos de estar e de ser na vida de cada um. O eu e os outros

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A propósito do que acabou de ser dito, importa sublinhar o facto de a filosofia não se debruçar em termos exclusivos acerca das realidades de índole colectiva. Pensar assim constituiria um enorme erro. O indivíduo que é único nas suas singularidades físicas, mentais, culturais, vivenciais, também é tema de análise desta ciência, de forma directa ou não. Nem de outra forma poderia ser: sem se conhecer as particularidades da pessoa em concreto que ama, sofre, tem objectivos, gosta e não gosta, é vilipendiado e mau, e vive entre nós, não é possível elaborar o retrato necessário de cada um e de todos em abstracto. A filosofia é a ciência dos universais desde que essas entidades abstractas integrem mesmo que apenas do ponto de vista hipotético - as particularidades irrepetíveis do indivíduo que se resolve na vivência com os outros. A metafísica, por exemplo, parte do retrato do homem concreto, igual e diferente da realidade social envolvente - porque pecador e, ao mesmo tempo, possivelmente bom - para finalmente encontrar o ser dos seres que é representativo de todos nós. Por esse motivo é que o interesse pela especificidade do eu, enquanto realidade próxima e ao mesmo tempo sistémica, esteve desde sempre presente na história da filosofia, confirmando-se assim ter a filosofia nascido para resolver os problemas das pessoas, para as ajudar a escolher, para definir caminhos, para lhes descobrir uma identidade.

Descartes reconheceu essa singularidade de ser no cogito, Levinas no eu que se descobre no rosto do outro, Habermas no sujeito comunicacional, Luhmann na identidade que resulta da auto-observação da consciência pela consciência. A própria psicologia nasceu da filosofia, conforme é sabido; derivou mais tarde para caminhos de actuação diferente, mas a tentativa de racionalização do fenómeno mental e comportamental nunca desapareceu de vez daquela ciência. Repare-se, a propósito, que todos os primeiros grandes psicólogos foram inicialmente filósofos. A acrescentar a isto importa referir um tema que desde sempre tem integrado a reflexão filosófica, mesmo quando perspectivado a partir das idiossincrasias de tipo individual: a questão da felicidade. Os filósofos gregos detiveram-se arduamente na sua definição e na actualidade o tema volta a ser alvo de análise conceptual e prática. Nesta temática, com particular ênfase na felicidade de âmbito pessoal, a filosofia aplicada e, mais concretamente a consultoria filosófica, têm obtido progressos consideráveis. A consulta filosófica O indivíduo que pretenda resolver-se a si próprio, ao nível das lacunas de sentido que o inquietam, tem hoje ao seu dispor perfis novos de ajuda profissional. Uma dessas 4


possibilidades é-lhe proporcionada pela filosofia prática (ou aplicada, conforme se quiser dizer). Utilizada no resto do mundo desde os anos 1980, a consultoria filosófica é um método de trabalho recente em Portugal, sendo, por esse motivo, ainda alvo de muita curiosidade e de igual susceptibilidade, o que até certo ponto se compreende, tal é o grau de desconhecimento da natureza e dos objectivos desta alternativa de análise individual. Mas afinal o que é a consulta filosófica? Se pensarmos que a vida de cada um de nós deveria corresponder a um percurso mais ou menos consciente, escolhido ou rejeitado em função de uma decisão pessoal, começaremos a entender o alcance do método de consulta em questão. E se juntarmos a este processo de decisão, o exercício de racionalidade necessário à estruturação do projecto de felicidade e de bem-estar intelectual de cada um, então mais nos aproximamos da essência da entrevista filosófica. A utilidade desta alternativa de consulta profissional está na capacidade para promover no interlocutor a necessidade “de pensar sobre a sua vida, as suas acções, os conceitos, sentimentos, crenças, projectos e tantos outros aspectos significativos” (Dias & Rastrojo, 2009, p. 114), proporcionando-lhe a oportunidade de se olhar como se fosse a primeira vez. Neste processo de diálogo, o consultante envolve-se num percurso não linear de racionalização, a partir do qual procura obter uma perspectiva fundamentada de si mesmo e das necessidades que o afectam. Ora é exactamente neste patamar de inteligibilidade que se pode alcançar a diferença entre este método e os outros, em particular o psicanalítico. Enquanto neste último, a viagem que traduz o percurso de vida toma o sentido eminentemente retrospectivo, a fim de nele serem descobertas mazelas por sarar, no filosófico a viagem é preferencialmente prospectiva, quer dizer, é direccionada para um objectivo, para um querer modelado em termos o mais possível racionais. Para além disso, deve ser realçada a especificidade do comportamento pró-activo do consultante, num índice mais elevado do que é requerido noutros métodos de análise, uma vez que o objectivo tentado se refere a uma opção pessoal. Obviamente que essa escolha encontrada em contexto de entrevista individual é resultante de um trabalho colaborativo entre consultor e consultante. Apenas desse modo se pode reconhecer a mais-valia da assessoria filosófica, enquanto processo maiêutico de auto-descoberta partilhada.

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E é aqui que se integram alguns dos factores mais importantes para o sucesso da consulta: a capacidade intelectual e científica, a personalidade, a experiência de vida, a vocação conciliatória, o bom senso, o modo de estar, a posição corporal, a bonomia da expressão facial, a capacidade de sedução cultural do assessor filosófico. É mesmo nossa convicção que na consulta filosófica, mais importante que o método que não pode deixar de ser considerado -, se deve reconhecer a capacidade do consultor em abrir o baú onde o interlocutor guarda aquilo que não previa alguma vez dizer ou conceptualizar. Claro que se poderá dizer: mas isso acontece em todos os diálogos de procura hermenêutica. Só que a diferença reside no grau de exigência com que tanto consultor como consultante envolvem aquele momento de partilha, talvez em razão de serem trabalhadas ideias, projectos, mais do que estados de alma. Por isso é que mantemos a convicção de que um escritor, um poeta, um realizador cinematográfico, com conhecimentos medianos de ordem especulativa, poderia eventualmente ser consultor filosófico, tendo em conta a enorme experiência de vida que o tempo e a inteligência se encarregaram de modelar neles. Não é por acaso que “mais do que o seu carácter instrumental, o aconselhamento filosófico pretende oferecer ao consultante um trabalho original de produção filosófica, como se a consulta fosse uma autêntica obra de arte, motivada pela liberdade individual que, com a utilização de metodologias próprias da disciplina, contribui para a autonomia e para a felicidade do consultante” (Dias & Rastrojo, 2009, p. 137). De facto, em nenhuma outra entrevista de alcance sistematizador, nem mesmo naquela que é protagonizada pelo psicólogo, se reconhece a necessidade tão imperiosa da utilização de um sem número de qualidades pessoais por parte do profissional em exercício. Só assim o assessor filosófico será capaz de junto do consultante, proporcionar-lhe marcos de orientação na viagem muitas vezes atribulada, que a pessoa sentada na sua frente, mãos suadas de tanto serem esfregadas sem razão, quer fazer em direcção ao mais desejado dos destinos: o da felicidade. Francisco Sérgio de Barros e Barros 6


Bibliografia DIAS, J. H., & RASTROJO, J. B. (2009). Felicidad o Conocimiento - La Filosofía Aplicada como la Búsqueda de la Felicidad y del Conocimiento. Sevilha: Doss Ediciones. GIDDENS, A., BAUMAN, Z., LUHMANN, N., & BECK, U. (2007). Las Consecuencias Perversas de la Modernidad. Barcelona: Anthropos. HABERMAS, J. (2001). Teoria de la Acción Comunicativa, Racionalidad de la acción y racionalización social, volumes I e II. s/l: Taurus Humanidades. LUHMANN, N. (1998). Sistemas Sociales, Lineamentos para una teoria general. Barcelona: Anthropos. MARCOS, M. L. (2001). Sujeito e Comunicação - Perspectiva tensional da alteridade. Porto: Campo das Letras. PIRES, E. B. (2004). A Sociedade Sem Centro. Azeitão: Autonomia 27.

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