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2008 Bruno Baptistelli Paulo Miyada


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2013


Sobre capacitores de fluxo

O artista entra pela primeira vez em uma residência que sabe estar em processo de demolição. Daqui a alguns dias, as últimas paredes serão derrubadas, abrindo espaço para a ampliação da galeria de arte que funciona na casa adjacente. Por isso, ele possui salvo-conduto para ir e vir como quiser, mexendo em todos os objetos, materiais e elementos construtivos. Marretas são permitidas; elas apenas acelerarão um processo já iniciado pelos trabalhadores. Bruno Baptistelli, o artista em questão, não está lá por acaso. Ele é um dos convidados a intervir no espaço como bem entender para a inauguração de uma mostra temporária brevíssima, que terminará algumas horas após sua abertura com a continuidade dos esforços da demolição. É provável que ele tenha sido convidado para essa exposição por conta das fotografias de arranjo de elementos urbanos que fez anteriormente. Imagens de contextos da cidade ou de edificações em distintos estados de abandono, nas quais destacam-se certos empilhamentos, alinhamentos ou cores incongruentes com a desordem ao redor. Em alguns casos, essas fotos pregressas vinham em duplas, espécie de “antes e depois” entre ordem e desordem, ou entre desordem e ordem. Em todo caso, Bruno Baptistelli levou sua câmera para a casa em demolição e deixou-se deambular por entre seus cômodos, procurando objetos que pudessem ser organizados (ou desorganizados) com agilidade. Ao contrário dos trabalhos já mencionados, entretanto, preferiu enfatizar a ambivalência entre composições encontradas e cenas montadas – ao invés de dípticos ou fotografias únicas, realizou uma extensa sequência de imagens em que era impossível distinguir quais alinhamentos guardavam os gestos do artista e quais haviam sido simplesmente fotografados. Justamente quando poderia intervir sem restrições, derrubar paredes, abrir buracos, em suma, afirmar sua capacidade de acelerar a inexorável destruição do invólucro arquitetônico, Baptistelli escolheu refrear a soberania de seus gestos artísticos sobre o espaço preexistente, concentrando suas ações em torno dos limites do


e outras metáforas energéticas Lua de Oliveira

enquadramento fotográfico. Pela escolha de pontos de vista e recortes, o artista experimentou uma velha lição da fenomenologia e da história da pintura de paisagens: o olhar do observador constrói em tempo real a legibilidade do lugar ao emprestar-lhe as estruturas do seu próprio processo cognitivo. Dependendo do leitor, essa pode parecer uma ideia excessivamente ampla ou demasiado hermética. Trata-se, também, de um campo minado, pois dentre os grandes heróis a enfrentar a reflexividade do observador no espaço observado estão Cézanne e Picasso, cuja sombra seria suficiente para deixar no escuro gerações inteiras de artistas. Não obstante, o que está em jogo na decisão de Baptistelli não é exclusivamente a investigação dos modos de representação do espaço – nesse caso estaria pisando em um solo muitas e muitas vezes repisado. Evocando o modo como a percepção do espaço é contaminada pela cognição do artista, Baptistelli abre caminho para refletir sobre as múltiplas maneiras como um gesto e, por extensão de sentido, um corpo, pode atuar sobre os lugares e moldar seus vestígios sem deixar pegadas. Quer dizer, pensar como é possível interferir na organização dos elementos constituintes de um lugar sem deixar rastros evidentes. Vale lembrar, para pensar esse problema, que os lugares não equivalem necessariamente à morfologia dos objetos e sua disposição espacial. Todo lugar resulta de seus limites físicos e do posicionamento dos objetos dentro dele, mas envolve também o fluxo das pessoas, os usos e as práticas que abriga e a duração dos processos que o contextualizam. Há toda uma genealogia própria de obras dedicadas a esse entendimento específico dos lugares, desde “Vivo-Dito” (c. 1954 - 1965) de Alberto Greco, até “Island within an Island” (1993) de Gabriel Orozco, passando pelos “Espaços Imantados” (1968) de Lygia Pape. Menos espaço – no sentido estritamente arquitetônico do termo – e mais lugar – no sentido utilizado pelo geógrafo Milton Santos, por exemplo. Como na formulação do crítico britânico Guy Brett, esse é o entendimento favorecido pelas atitudes dotadas de light touch (toque leve), incisões


pontuais que se relacionam com o espaço cotidiano sem esmagar o que ele tem de espontâneo e vivencial. Na sequência de composições fotográficas que destacam diagonais, pontuações, montes e outros fragmentos quase escultóricos, Bruno Baptistelli conta com esse toque leve para mesurar os lugares evidenciando seus índices e rearranjá-los por meio de deslocamentos e alinhamentos que ora são factuais, ora decorrem da paralaxe. A paralaxe é um termo da ótica que designa a diferença na posição aparente de um objeto visto por observadores em locais distintos. No caso das fotografias de Baptistelli, é sobretudo este deslocamento que está em jogo, a escolha do ponto de vista de onde, por exemplo, duas peças metálicas distintas aparecem alinhadas como diagonais perfeitamente paralelas. Elas não têm o mesmo tamanho nem são feitas do mesmo material e, a rigor, não têm nada em comum – o que as aproxima é a delicada convergência de suas inclinações, reforçada pelo contraste com uma sequência de formas retangulares em perspectiva, repetidas por toda a extensão da parede. O artista pode ou não ter ajustado a posição das peças metálicas para conseguir essa rima visual. Em todo caso, o que é certo que ele escolheu o enquadramento que sublinharia o paralelismo de suas angulações. Posicionamento como intervenção, portanto. Em cada foto do conjunto isso fica mais e menos evidente. Durante a breve exposição de seis dessas fotos, o efeito de paralaxe duplicava-se. Expostas no mesmo edifício em que foram produzidas, as imagens funcionavam como registros de um técnico forense em uma cena de crime de seriado americano: instantâneos da ação latente testemunhada pelo espaço. Se alguém reconhecesse esse espelhamento, poderia sair à procura das vistas recortadas: dificilmente as encontraria tal como guardadas nas fotos, mas poderia encontrar tantas outras. Pelo seu caráter, cada foto carrega consigo todas as outras que podiam ter sido tiradas um passo atrás, uma hora depois, dez centímetros para cima. Cada objeto e composição organizados pelo artista trazem, no mínimo, o seu contrário. Existe certa energia potencial guardada em cada imagem preparada no encontro entre o corpo do artista, o dispositivo fotográfico, os lugares e os objetos interpretados. A fotografia, então, é como aquele capacitor de fluxo dos filmes da série


“De volta para o futuro”: sem sabermos exatamente como, ela acumula energia suficiente para gerar saltos entre tempos e posições. Além de falar do estado passado das coisas, ela faz alusão ao futuro que poderiam ter e ao presente congelado em que estão representadas. Mas, assim como no filme, o dispositivo se consome quando é utilizado. A mesma descarga de energia necessária para carregá-lo pode sobrecarregar sua sintaxe. O corpo perde o estranhamento com o lugar que era necessário para reinventá-lo. A beleza das fotografias começa a sobrepujar sua tensão compositiva. A banalidade indiferente dos objetos reduz-se a uma aparência previsível. As mesmas características que ativam a série de Baptistelli exigem que ela termine. É preciso então começar de novo: outro toque, outro lugar, com maior ou menor leveza. Setembro de 2014














Sobre cul-de-sacs

Lua Andrade, crítica de arte, entra pela primeira vez em uma residência que sabe estar em processo de demolição. Em um ou dois dias, as últimas paredes serão derrubadas, abrindo espaço para a ampliação da galeria de arte que funciona na casa adjacente. Por isso, ela possui salvo-conduto para ir e vir como quiser, mexendo em todos os objetos, materiais e elementos construtivos. As obras não possuem seguro, a maior parte delas não existirá mais amanhã. Ela encontra algumas, seis, das fotos que Bruno Baptistelli enviara ao seu email. As fotos não têm moldura, apenas uma pequena margem branca perfurada nos cantos superiores por pequenos pregos. Estão em uma curta proeminência da lateral da sala, uma saliência que parece ter sido feita para melhor receber a grande janela voltada para a rua. Como seria de se esperar, parede e janela encontram-se em péssimo estado de conservação – vidros faltando, manchas e desníveis diversos, tudo sobre um já irregular rodapé de madeira. Pouco à esquerda, um grande buraco foi aberto à marretada por outro artista e seus detritos sobre o solo. Engraçado, eu tinha visto as fotos desse buraco – ela pensou – tem até duas fotos dele aqui na parede, mas nos registros da montagem das fotografias de Bruno essa vizinhança não estava tão evidente. Em compensação, notou que havia dois ou mais objetos que só existiam nos registros do artista, como a corrente em forma de escada disposta sobre o solo. Parece um jogo de sete erros, mas o que importa são


e outras imagens circulares Paulo Miyada

os acertos, concluiu. Pensou então que não seria tão fácil escrever o texto que lhe fora solicitado. O trabalho exposto era apenas um momento de uma cadeia de decisões feitas pelo artista, uma pontuação numa frase que começava antes e terminava bem depois da noite de exposição. Ela tinha que abrir mão daquela citação de Gordon Matta-Clark que lhe veio à mente ao olhar as fotos pela primeira vez. Matta-Clark não precisava de Baptistelli e, mais importante, Baptistelli não precisava de MattaClark. Seria tolice reiterar uma relação que era tão evidente pelo próprio contexto expositivo. Não dava para tratar o nome desses heróis da arte contemporânea como uma citação obrigatória, uma catraca para o campo das ideias iluminadas. Além disso, as intervenções de MattaClark eram muito mais ácidas que todos os trabalhos ali reunidos, mesmo no entorno do Centre Georges Pompidou, em que diversas casas foram demolidas para dar lugar a uma ambiência cultural, o norte-americano profundamente cético acerca dos processos de renovação urbana que possibilitavam a realização de suas obras, cortes e demolições. Em vez disso, seria preciso prestar atenção no modo como o olhar fotográfico de Baptistelli é capaz de organizar o lugar em que opera, como sua intervenção espacial já se dá na escolha do enquadramento. Por esse viés, seria possível chegar em outras referências, cuja discussão parece ter-se tornado novamente urgente: a ideia de light


touch consagrada pela arte conceitual pós-guerra e pós-Duchamp, sobretudo na América Latina. Apesar da institucionalidade do museu não ser hoje um aspecto tão diretamente combatido, o isolamento do circuito da arte parece ainda demandar gestos que possam, delicadamente, trazer algo da poética do espaço cotidiano para perto de si. Muito bem, isso poderia servir. Ela tinha certeza que a sutileza do toque leve consistia em um aspecto estruturante do trabalho e que, ademais, o assunto a interessava para seus próprios estudos. Talvez fosse possível até mesmo explicitar o limite desse tipo de prática que, quando demasiado repetida, perde a simpatia e o afeto para provocar repúdio. O light touch é leve por conta da ideia de que há algum frescor no espaço cotidiano que pode renovar o lugar da arte, usualmente associado à ideia de mausoléu. O problema é que essa operação é viciante – a energia trazida do cotidiano costuma estimular novos gestos similares e estes, quando repetidos, podem perder sua leveza, como um doce que cozido em excesso torna-se enjoativo. Falar disso era um aviso: para a cena da arte contemporânea, que insiste em se deslumbrar com gestos de precariedade e leveza como se estes não tivessem uma genealogia própria; para o artista, que logo poderá perceber um popular aspecto de sua produção como um viciado; e para a própria crítica, que de vez em quando ainda se sente tentada a tratar obras dotadas de light touch como sinônimo de


descontração e espontaneidade. O toque leve é um recurso compositivo como qualquer outro. Mas o ponto de esgotamento desse dispositivo parece ainda não ter chegado na série de fotos enviadas por Bruno Baptistelli, a qual irá compor o livro que integrará o texto de Lua Andrade. Ela deve apenas mencionar essa possibilidade, criando uma chave de leitura bastante ampla, aberta ao julgo do leitor do texto e das imagens. Antes de terminar o texto, ela o relê e pensa se faltam adjetivos. Ela não disse que o trabalho é “bom”, tampouco “ruim” ou, pior, “brilhante”. Acha esses juízos desnecessários, mas não é isso que se espera do crítico? Não, pensando bem, não é mesmo. O tempo dos críticosjuízes terminou, o seu trabalho é de outra ordem. Não mais dominar a história da arte, apreender dela conceitos e então determinar se tal ou qual obra é digna de ser associada a esses conceitos – este é um ciclo completo em que, a bem da verdade, artista e público estão de fora, é o exercício retórico girando sobre o próprio eixo como um veículo numa cidade repleta de cul-de-sacs. O que ela gostaria de fazer é diferente. Um convite para pensar junto, em voz alta, assim como as obras muitas vezes pretendem.
























Sobre fogueiras

Paulo Miyada não entrou na residência em processo de demolição. No final da semana em que as últimas paredes foram derrubadas para abrir espaço para a ampliação da casa adjacente, estava ocupado ou em viagem, não lembra bem. Mas tinha conversado algumas vezes com Bruno Baptistelli sobre seu trabalho, em particular sobre suas fotografias feitas em espaços semi-abandonados. Por isso recebeu as imagens para ver em casa e, depois, o convite para colaborar com esta publicação. Uma oportunidade interessante. Escrever sem limites rígidos de espaço ou formato sobre um trabalho que estava acompanhando a média


e outras fontes de calor Paulo Miyada

distância. “É para ser algo que faça sentido para as suas pesquisas”, disse Bruno. Ótimo, mas o que fazer então? Naqueles dias, um filme quase bom – The Words (As Palavras, 2012) – estava em sua cabeça, reverberação recente de ideias já muito pisadas pelos heróis da literatura argentina. Uma história dentro de outra dentro de outra, todas interdeterminadas por raciocínios metalinguísticos e por associações narrativas. Estrutura de boneca russa que condiz com a própria estrutura do trabalho de Baptistelli, em especial na sequência de fotos que fez para registrar a montagem de seu trabalho na casa em demolição. Fotografias de fotografias presas na parede, tensionadas


pela proporção do espaço e pela posição de outros objetos prostrados sobre o solo: cenas de um lugar enquadradas, impressas e posicionadas neste mesmo lugar, enquadradas novamente, refotografadas e impressas agora nesta publicação. Por que não replicar então essa estrutura para o seu próprio texto? Bastaria criar uma leitura critica, a leitura desta leitura e o comentário de ambas. Talvez também inventar um heterônimo para iniciar o jogo e dar sentido narrativo à sobreposição de camadas discursivas. Conversando com o artista, a ideia pareceu fazer sentido e, assim, poucos dias depois, a primeira camada do texto estava quase


finalizada, assinada por Lua Andrade. O problema foi ter certeza que o dispositivo era mesmo necessário e não se mostraria como maneirismo ou afetação. Nas semanas que se seguiram, foi preciso recapitular o que seriam as tarefas mais urgentes para a atuação crítica no campo da arte atual, pelo menos na cidade de São Paulo. A primeira lembrança foi a escassez de práticas estritamente críticas. Pensar nessas práticas passa, necessariamente, pela ponderação da crítica como uso público, ponderado e desinteressado da razão – um ideal herdado do pensamento iluminista. Nesse sentido, a crítica seria o discurso daquele


que considera ser fundamental expressar claramente sua posição para seus pares, sobretudo no que tange a assuntos que extravasam seus interesses particulares. Para esse gesto poder efetivar-se é necessário que, ao menos, exista um fórum público de debates e que os interessados estejam produzindo textos e discursos que o preencham. Salvo exceções pontuais, isso hoje não existe. A maior parte da mídia trata a arte estritamente como agenda e cobertura social, enquanto a maioria dos profissionais do meio dedicam a maior parte do seu tempo de escrita e fala para abastecer os projetos, obras e exposições em que estão diretamente implicados. Evidentemente, essa produção


profissionalmente comprometida com curadorias e colaborações com artistas não prescinde dos saberes e recursos do trabalho crítico, mas é bom lembrar que, do ponto de vista de sua fatura e recepção, o texto curatorial não é, a rigor, uma crítica – ele carece de distanciamento e desinteresse, mesmo munido de conteúdos críticos. A dúvida é se esse aspecto carece verdadeiramente de uma solução. Seria nostalgia lamentar a perda de um modelo crítico iluminista, cujas premissas de base tornaram-se política e esteticamente distantes? O que parece fundamental nesse padrão da crítica é sua imprevisibilidade: a possibilidade de que qualquer um se posicione perante o trabalho do


outro sem partir de convites, movido pela necessidade de reflexão e debate público. Sem essa possibilidade, o campo da arte perde tônus. Assim, a crítica faz falta menos por ser portadora de alguma autenticidade essencial e mais por sua prática impregnar de riscos o trabalho artístico em geral, da curadoria às obras de arte, passando pela produção, educação e programação visual. Quer dizer, a plataforma discursiva da crítica interessa na medida em que pode funcionar como uma fogueira, um marco de encontro para trocas de calor entre pessoas que não precisam necessariamente conhecer-se previamente.


O improviso de um heterônimo em um texto tripartido apostou justamente nessa possibilidade, na ficção de um encontro franco com o trabalho e especulação em voz alta que poderia provocar outras tantas respostas. Para produzir, os artistas precisam escolher o que e como fazer sem contar com demandas específicas predeterminadas – ninguém pediu para o artista fazer o que faz, ninguém sabe ainda que precisa dessa ou daquela obra futura. Mesmo assim, ao contrário de tantos profissionais, o artista segue produzindo e criando suas próprias demandas. Faz o que acredita ser o melhor que pode entregar ao mundo sem garantias


de resposta. Apesar da solidão fundante do ato artístico, o artista é, ao mesmo tempo, um ser social, que alimenta-se de encontros e conversas com toda sorte de interlocutores. Conversas entre artistas, curadores e críticos não resolvem a incerteza do processo artístico, mas em muitos casos fortalecem as perguntas centrais de cada produção, seja por afinação, seja por embate. As fogueiras no meio do caminho não dizem aonde a estrada deve chegar, mas ajudam os viajantes a entenderem de onde vieram. Além disso, aquecem o espírito e o fortalecem para que a jornada possa ser mais longa e constante.









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