Rodrigo Braga

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Rodrigo Braga



Rodrigo Braga

curadoria de Gilberto Habib Oliveira

20 de março a 30 de abril de 2006

Instituto Cultural Bandepe Av. Rio Branco, 23 – 2º andar Recife – PE



A ATUAÇÃO DE MARCANTONIO VILAÇA

como colecionador e galerista foi marcada pela

rejeição ao que já estivesse estabelecido ou classificado e, portanto, pela vontade de correr os riscos de apostar no que ainda não se havia provado como seguro ou certo. Ao promover ativamente a internacionalização da arte contemporânea brasileira, esquivou-se de lançar mão dos apelos fáceis das idéias de diferença ou de exotismo que por tanto tempo informaram a recepção dessa produção no exterior. Buscou, ao contrário, enfatizar a articulação original que diversos artistas brasileiros fazem entre elementos de tradição – os que trazem as marcas da história e da formação de um lugar – e elementos de ruptura – os que expõem, o tempo inteiro, a natureza contingente dos primeiros. A escolha dos artistas que colecionava ou expunha não se regia cegamente, portanto, por convenções ou por critérios de legitimação institucional ou de mercado. Resultava, ao contrário, do desejo de alargar ou criticar os limites da conformidade. Fundado nesse espírito, adquiriu e expôs, ao lado da produção de criadores consagrados, trabalhos de artistas então desconhecidos e jovens, posteriormente reconhecidos como destaques de sua geração. Com o objetivo de manter-se fiel ao perfil de seu patrono, a Galeria Marcantonio Vilaça desenvolve, em 2006, um projeto que busca instaurar um espaço de encontro com o que ainda não se conhece – tanto para os artistas que nela apresentem seus trabalhos, como para o público que a freqüente. O projeto se constitui de quatro


exposições de jovens artistas pernambucanos que, embora já tenham esboçado o que singulariza suas poéticas em trabalhos anteriores, ainda não haviam tido a oportunidade de exibir suas produções individualmente e com as condições que permitam o aprofundamento das questões que as animam. Entre tais condições, destaca-se o fato de os quatro artistas convidados terem o acompanhamento crítico, ao longo da preparação de suas mostras, de jovens curadores que, até então, não haviam se detido, com vagar, sobre seus trabalhos. Além de se constituir em experiências de reflexão sobre o processo criativo – poucas vezes contemplado em atuações institucionais no setor –, há, nesse encontro entre artista e crítico, a abertura para o que desaloja certezas e promove conhecimento novo.

Moacir dos Anjos e Cristiana Tejo conselho curatorial


“ O conceito de identidade é tão esquivo quanto o é o senso que toda pessoa tem de sua própria identidade pessoal. Mas, seja o que for, a identidade está associada às avaliações decisivas feitas de nós mesmos – por nós mesmos ou pelos outros. Toda pessoa se apresenta aos outros e a si mesma, e se vê nos espelhos dos julgamentos que eles fazem dela. As máscaras que ela exibe então, e depois ao mundo e a seus habitantes, são moldadas de acordo com o que ela consegue antecipar desses julgamentos. Os outros se apresentam também; usam as suas próprias marcas de máscaras e, por sua vez, são avaliados. Tudo isso é mais ou menos parecido com a experiência de um garotinho que se vê pela primeira vez (tranqüilo e posudo) nos múltiplos espelhos da barbearia ou nos tríplices espelhos do alfaiate.”

– STRAUSS , Anselm L. (Espelhos e máscaras: a busca de identidade)


De espelhos e máscaras

SE HAMLET TORNOU - SE um personagem marcante da literatura universal representando um mito da inquietação humana perante seu destino, é porque Shakespeare soube transmitir esta inquietação magistralmente no monólogo ventríloquo da caveira em punho. Desta maneira, na arte como na vida, o artista se reserva o dom de encenar, como em uma performance exorcizante, aquilo que sente em profundidade. Se para isso serviram (e servem ainda) alguns dos mitos construídos ao longo da história da humanidade, desde os tempos antigos, por que não haveríamos de criá-los também, hoje? Talvez seja disso que se ocupem alguns artistas contemporâneos. Talvez também assim, mergulhando profundamente no estudo da obra de Rodrigo Braga, respeitosamente, escolhi vê-la. Nascido na cidade de Manaus, no Amazonas, e filho de um casal de biólogos pernambucanos que “nunca viram a arte como uma ameaça”, Rodrigo Braga despertou cedo sua vocação artística quando, já morando no Recife, aos 3 anos de idade começou a pintar por influência da avó. Dos 10 aos 14 anos estudou e trabalhou no ateliê do escultor e desenhista pernambucano Cavani Rosas, quando iria adquirir a experiência de estar próximo de um artista maduro, consolidando a partir dali uma dedicada trajetória de formação que o levaria ao Curso de Educação Artística da Universidade Federal de Pernambuco e conquistando, aos 23 anos de idade, o Prêmio Aquisição Pernambuco de Artes Plásticas – Novos Talentos 1999. Tímido, pacato e de porte físico franzino, Rodrigo teve uma infância e adolescência conturbadas. Tido como fracote, era constantemente humilhado pelos colegas de escola, sendo vítima de tapas e gritos, sem, contudo, poder reagir. Com isso, a rua passou a


ser um lugar de conflito que não dava ao garoto, em sua incapacidade peculiar de reação, nem chances de defesa nem condições de enfrentamento. A angústia e o constrangimento vivenciados neste período o levaram a manifestar sintomas diagnosticados como “síndrome do pânico”. Uma espécie de fobia social que o impedia de se relacionar com outras pessoas, mantendo-o distanciado do convívio em grupo: “Eu vivia no meu mundo. Era incapaz de me ver na sociedade. Achava que as pessoas não me viam, não sabiam o meu nome... Era como se eu não existisse!”, diz ele. A causa da fobia nunca ficou clara. Ele próprio, Rodrigo, atribui ao fato uma predisposição inata. Aos 17 anos, porém, um acontecimento desencadearia um novo processo: indo para o colégio, viu na rua um cachorro magro, doente, prestes a morrer. Olhando para ele, Rodrigo pára e começa a chorar. A visão gera o pânico e a troca de olhares desperta um sentimento misto de pena e identificação. O jovem então se conscientiza de estar profundamente doente e, buscando ajuda, inicia um processo de reversão destes sintomas. Três anos consecutivos de terapia o ajudaram a estruturar um caminho mais equilibrado. Entretanto, as estratégias que lhe possibilitaram construir uma personalidade um pouco mais expansiva fizeram-no escolher a arte como o canal mais favorável para, atravessando definitivamente a fase difícil dos sintomas da fobia, poder distanciar-se definitivamente dela, a ponto de seu trabalho constituir também um discurso sobre os problemas da agressão e da violência, e sobre as dificuldades de relacionamento e comunicação entre os indivíduos. A dificuldade de relacionamento, a impotência e a incomunicabilidade – “entre vizinhos de porta ou entre povos”, como diz Rodrigo –, bem como a dor e sofrimento que esses infligem ao corpo, são temas alçados à condição de metáfora na extensa série de trabalhos Cartas ao Vizinho (2000-2001), escolhida para abrir o percurso desta exposição. Não sem razão ela é quase inteiramente composta de imagens de partes do corpo atadas a artefatos estranhos como pregos e cordas. Um corpo que fala o discurso que é grito.


O sentido de performance, tornado mais evidente nas séries subseqüentes da obra de Rodrigo Braga, já é aqui apresentado na situação circunstancial em que o corpo “atua” um drama angustiante de aprisionamento e incapacidade de movimento e de auto-sustentação. Outras partes do corpo irão também atuar espetáculos ora similares ora distintos. São eles que compõem esta exposição, cujas séries escolhidas para serem apresentadas, além da já mencionada, são: Risco de Desassossego (2004), Fantasia de Compensação (2004), Sem Título (2005), Negativo (2005), Do Prazer Solene (2005) e Da Alegoria Perecível (2005). Estas séries formam uma reiterada estrutura de registros performáticos variantes em torno do mesmo tema, na quais veremos este corpo tornar-se um mesmo signo circunstanciado inúmeras vezes e de modo singular. Antes ainda, faz-se notar que, na transição da série Cartas ao Vizinho às demais séries, há uma mudança de suporte técnico com que o artista passa a executar seus trabalhos, utilizando agora recursos da linguagem fotográfica e da manipulação digital de imagens. Um pouco além da simples transposição técnica, sua proposta artística se sofistica, fazendo do registro fotográfico algo mais complexo e fiel ao sentido de performance como significante de uma estrutura semiológica, passível de ser/ter significado a cada contexto específico, por meio de um signo (o corpo) circunstanciado. Se, como diz Roland Barthes, “a semiologia é uma ciência das formas, visto que estuda as significações independentemente do seu conteúdo”, vemos aqui um passo dado adiante, em termos da complexidade técnica que se apropria da linguagem fotográfica: se ela não faz do artista um simples fotógrafo, tampouco o enquadra nas técnicas puras do ator de teatro. Mais complicado ainda será ver isso tudo enveredar por searas outras, como a da psicanálise, quando a atuação performática toma ares de actingout ou, mais adequadamente, de “passagem ao ato”. Ainda que performance, acting-out e passagem ao ato sejam termos aplicados em situações bastante distintas, possuem a característica comum da “ação enfática e reiterada”. A performance, porém, ocorre dentro dos parâmetros da estruturação simbólica,


carregada de sentido, sendo por isto mais afeita aos desígnios estéticos familiares a campos de estudos como a Arte e a Antropologia. O acting-out, no sentido psicanalítico dado ao termo por Freud, é o “ato inibido” ou “ato fora do discurso”, cujo sentido é desconhecido pelo sujeito, algo como uma expressão vazia, um paradoxo em ato. Contudo, para Lacan, há duas modalidades de “agir”: o acting-out (então estabelecido tal como Freud) e a passagem ao ato. No sentido lacaniano, a passagem ao ato é da ordem da comunicação, da escritura; uma forma de dizer algo, ainda que não endereçado a ninguém em particular. Mesmo tratando de referências pouco usuais do campo da Arte, ademais de evidentemente complexas (senão exaustivas), a necessidade de discorrer sobre elas serve para enfatizar que, mesmo participantes da ação artística, não devem ser com ela confundidas. Outro motivo é o de quase não haver forma mais familiar, nem tampouco mais sintética, para tratar de assuntos que, se complicados, nem por isso deixam de nos dizer respeito, uma vez que são referências para se compreender os quadros das psicopatias (individuais e coletivas) que aumentam estatisticamente a cada dia, multiplicando focos de violência que já se estendem por múltiplos aspectos da vida social: econômicos, políticos, religiosos etc. Se as sociopsicopatologias são o “mal da era pós-moderna”, seria no mínimo coerente lembrar, ao longo desta exposição, o papel do artista em interação com seu meio e “antena de seu tempo”, em termos do espelho que reflete o panorama histórico do entorno. O psicólogo social da corrente interacionista Anselm Strauss usa o termo “coreografias temporais” para falar das “interações que acontecem entre indivíduos, entre o indivíduo e o grupo e entre grupos diferentes. Por conseguinte, a estrutura social e a interação estão intimamente associadas e também afetam reciprocamente uma à outra (novamente) no tempo. Trata-se de uma concepção temporal não só da interação, mas também da própria estrutura, sendo esta última moldada pelos atores por meio da interação.”


Se, como pregam os interacionistas, não há possibilidade de compreender as identidades individuais sem compreender a atividade coletiva, a performance “rodriguiana” atua como a encenação da perversidade sofrida no plano individual, advinda como paralelo do plano coletivo. Similar ao que faziam os romanos no Coliseu, grande palco “circense” de encenação do terror e da crueldade sui generis daqueles tempos. Quando em algum momento da exposição somos levados a crer que estamos em uma arena romana, é porque em certo sentido o artista, com suas obras de maior contundência e terror, faz do espaço em que se encontra um portentoso e espetacular “circo”. Não se trata, porém, do circo de cavalinhos, o adorável circo da infância, mas do proto-circo, o sanguinário circo romano adormecido na memória de nossa herança cultural. Contudo, ele aqui é prova de que da cultura romana não herdamos apenas o Direito e o Latim, mas o gosto pela tragédia, o deleite pela espetacularização do horror, o grito atávico do delírio pela carnificina, que ecoa retumbante e cria pesadelos em plena luz do dia. O mesmo ruído indissociado ou idêntico ao das torcidas de futebol, do clamor dos fanáticos religiosos, do choro dos que estão envolvidos (civis ou militares) nas guerras contemporâneas. Concomitantemente ao uso enfático da fotografia, Rodrigo passa a compor suas cenas de desconforto e sofrimento como quem desenha um storyboard, ou seja, por seqüências de imagens que são como frames subtraídos de um filme. Ou ainda, como se montasse uma fábula quadro a quadro; como se fossem um “Disney às avessas”: construído que é por ingredientes da realidade e da ficção (como Disney fazia para conferir verossimilhança aos seus desenhos de animação), desta vez no sentido de desestabilizar o espectador, provocando nele algo desagradável, um mal-estar e até mesmo pavor. Vale destacar que, se o motivo do seu registro fotográfico é um conceito aplicado de performance – mesmo quando observada do ponto de vista da relação com o outro, da interação – esta tem como ponto de partida a função primordial de significar algo para quem a executa. Ou seja, Rodrigo se preocupa menos com a reação


desencadeada no espectador do que com seu significado subjetivo, uma vez que o faz para exorcizar algo em si, como repulsa à agressão sofrida na infância e adolescência, fazendo de si mesmo uma resposta retroativa e “em ato” (ou, mais especificamente, no registro fotográfico da representação simbólica dele) ao mal que lhe fora infligido de distintas maneiras, reiteradas vezes; como um super-herói de história em quadrinhos que, quando visto da perspectiva de sua psicologia individual, defende o bem por uma necessidade sua, pessoal, muitas vezes narrada em passagens de sua história de infância; como, por exemplo, Homem-aranha e Batman que, por seu hibridismo homemanimal, são (mal) interpretados por alguns outros personagens de suas próprias histórias, que os vêm como criaturas repugnantes ou simples bandidos. Para estes, também, a máscara já não é apenas atributo de super poderes, mas a ênfase da necessidade de esconder sua imagem pública “real” por trás de um disfarce que os proteja dos demais. Tendo compreendido que, para Rodrigo Braga, a vivência processual e performática é uma coisa e para o público é outra, não poderíamos deixar de considerar que o resultado fotográfico associado à manipulação digital é uma coisa fixa, feita para ser vista. Se o ato de “ver” tem vários sentidos, ele, aqui, de qualquer maneira, indica a presença de um sujeito/observador. Tendo sido feito para ser visto, comunicado, há também um sentido de “fala”, que denota um terceiro elemento: existe o sujeito inserido no processo (artista), existe o trabalho e existe o espectador. Foi por meio deste raciocínio que muitos artistas, a partir do Renascimento, projetaram em sua pintura a ilusão de perspectiva, estendendo a obra para um espaço fora dela. Assim o fez Diego Velásquez quando pintou Las Meninas. Levando em consideração este sujeito, projetando linhas que convergem para o fundo do quadro, mas que virtualmente se estendem para a frente, e mais ainda, figurando personagens (dos quais o próprio pintor) que olham para fora do quadro, Velásquez concebeu uma obra inquietante e enigmática, posto que lhe dá o sentido ardiloso de observar quem a está observando.


Quando, em minhas entrevistas com Rodrigo, assinalei em sua obra algo de natureza ardilosa como no referido Las Meninas, ele, surpreendentemente, me disse ter mesmo tratado deste assunto em um de seus trabalhos: “Pintei o Velásquez igual a como ele está em Las Meninas; ele com paleta como é visto ali, em uma tela em proporção real. Aí, eu pendurei a tela livre no espaço (e não na parede), de modo que fosse visto o verso; na frente, coloquei um espelho a mais ou menos 5 cm de distância entre Velásquez e o espelho. O fundo do espelho era preto e do outro era a tela. No meio estava a imagem do Velásquez olhando para si mesmo, e o espectador de fora, revertendo a idéia original do quadro. Enquanto o quadro originalmente colocava o espectador para dentro da situação, eu o coloquei (de novo) para fora. A relação fica ali, o quadro olhando a si próprio, ou seja, Velásquez olhando a si mesmo.” Sem dúvida, todo processo de mergulho interno é um processo-chave para se compreender questões difíceis de nossa personalidade ou, neste caso, decifrar certas astúcias do ser humano. Velásquez foi um sujeito excepcional na criação de um ardil. Ele revelou a façanha de criar uma obra que seria eternamente renovada a cada novo espectador, por um, dois ou três séculos. Isto porque, em sua lógica, quem estivesse na frente da tela seria eternamente passível de ser “o retratado”. A única coisa que Velásquez talvez não esperasse é que, passados quase cinco séculos, fosse ele quem voltasse a estar na frente da tela, voltando a estar pintando a si próprio. Temos aqui algo da mesma natureza simbólica que a da imagem mítica da Medusa, petrificada ao ver seu próprio olhar refletido no escudo de Perseu. Isto mostra que alguns ardis psíquicos que criamos para sabotar nossas atitudes, se vistos como aspectos da loucura e insanidade, podem ser revertidos quando, uma vez identificados, passam a ser subvertidos. Trata-se de não apenas desmascará-los, mas antes fazê-los destruir-se por se voltarem contra si mesmos, libertando nossa psique de seus efeitos nocivos ou aqueles sob seu jugo. A partir daqui, a análise ainda mais aprofundada da obra de Rodrigo – novamente


Cartas ao Vizinho, 2000 crayon e pastel sobre papel


do ponto de vista da Semiologia, ou seja, de uma ciência dos significados, dos valores e das equivalências – nos aponta um segundo sistema de significações. Desta vez na direção da fala constitutiva do mito, ou, mais precisamente, de sua construção imagética: a imagem do mito heróico de si para si mesmo. Ainda de acordo com Barthes: “o mito é um sistema particular, visto que ele se constrói a partir de uma cadeia semiológica que existe já antes dele: é um sistema semiológico segundo. O que é signo (isto é, totalidade associativa de um conceito e de uma imagem) no primeiro sistema, transforma-se em simples significante no segundo [...] já não se trata aqui de um modo teórico de representação; trata-se desta imagem realizada em vista desta significação.” Como paralelo deste raciocínio na arte, temos a imagem que Marcel Duchamp criou para sua Mona Lisa de Bigodes, na qual a conhecida obra de Da Vinci deixa de ser a obra de Da Vinci para ser subvertida como signo na obra de Duchamp. Ou a famosa pintura de René Magritte Ceci ne pas une Pipe! que tenta se justificar inscrevendo na tela em que está pintado um cachimbo, “Isto não é um cachimbo!”. Coincidentemente ou não, ambas foram criadas na arte no mesmo contexto histórico em que os estudiosos da semiologia como Saussurre, e pouco depois Barthes, o faziam na teoria. Mas, se em Duchamp e Magritte o raciocínio é algo divertido e jocoso, em Rodrigo Braga a brincadeira é mais séria, ainda que guardando a mesma natureza sintáxica. Exemplos disso são os trabalhos presentes nesta exposição nas séries Risco de Desassossego, Fantasia de Compensação, Sem Título e Negativo. Em Risco de Desassossego, vemos partes do corpo (preponderantemente a cabeça) sendo molestadas pelo fósforo fincado sob a pele até o instante de ser aceso. Vê-se também aqui a impossibilidade mesma de retirá-lo, pois no enquadramento da foto não há mãos; nem mesmo há a possibilidade de soprá-lo quando aceso, pois foram fincados em regiões inatingíveis pelo sopro. São de certa forma imagens literais daquele que “sente na pele”. Sensação esta de “estar na eminência de...”. Sendo o porvir algo que fere, dele espera-se poder defender-se, mas não há como.


Fantasia de Compensação trata de um tema similar, mas com novos ingredientes. É a obra mais polêmica da exposição, sem dúvida alguma por sugerir a crueldade com os animais. Para que fossem garantidos os devidos procedimentos éticos, o trabalho teve de ser desenvolvido com o apoio institucional da Secretaria de Educação e Cultura e Universidade Federal de Pernambuco que, entre outras coisas, ajudaram a localizar a carcaça do animal que já havia sido eutanasiado pelo Centro de Vigilância Ambiental da Prefeitura do Recife, antes que fosse incinerada. Além disso, Rodrigo foi enfático em reivindicar, ao longo do desenvolvimento do trabalho, a orientação teórico/filosófica da Profa. Maria do Carmo Nino, com quem dialogava sobre as intrincadas questões de um processo criativo profundamente auto-referenciado e polêmico. O trabalho contou ainda com professores de modelagem da Universidade Federal de Pernambuco, de um cirurgião veterinário e um experiente fotógrafo, além do conhecimento e da exaustiva dedicação técnica de Rodrigo na manipulação digital das imagens. O resultado é que, se em Cartas ao Vizinho e Risco de Desassossego o artista está tratando da dificuldade de comunicação e da incapacidade de reagir à violência – em certo sentido, desejos reprimidos ao longo da infância e adolescência – em Fantasia de Compensação ele tenta compensar o que lhe faltava, incorporando características físicas e psíquicas de um cão da raça Rotweiler, distintas porém complementares às suas. Anselm Strauss diz que “a ‘fantasia’ é fácil e popularmente equiparada ao irreal, ao jocoso, à simulação, ao fantasmagórico. Alguns psiquiatras e psicólogos consideram úteis o devaneio, a fantasia, o sonhar-acordado principalmente porque são mecanismos de ajuste; satisfazem os desejos e são mecanismos compensatórios, ou permitem a liberação de tensão, ou a fuga momentânea da realidade.” Há em Fantasia de Compensação uma fala que traduz o embate de um ser coletivo e social. Por trás desta (ou em sua origem?) vemos os embates e conflitos internos, a tentativa da fala de um sofrimento interno, ou melhor, um “sofrido”, alguém molestado, ou, em certo sentido, assassinado, e que tenta nos dizer algo – como em Hamlet. Que mortos são estes com os quais se


dialoga; que pretendemos vingar e com eles estarmos quites? Seriam talvez os inocentes tombados na arena romana, ou as crianças que sofreram abusos? Seja qual for o espectro, quase sempre ele se projetará sobre nós, a ponto de já não distinguirmos muito bem quem ele é. O fato é que a criação de Rodrigo permanece entre o ser e o não-ser, entre o homem e o monstro, entre o eu e o outro; performance dinâmica do jogo da similitude. Restaria, talvez, falar um pouco do aspecto horroroso que permanece em nossa retina, mas já não creio que isso, para Rodrigo, seja um fator importante. Barthes, entre outras coisas, fala de uma “linguagem tradicional de espetacularização do horror” com a qual estaremos sempre mais ou menos familiarizados (como o circo/coliseu ou a morbidez da caveira da cena de Hamlet) e que Umberto Eco irá chamar de “mau gosto” quando caracterizada como “pré-fabricação e imposição do efeito” ou “vontade de provocar um efeito sentimental, oferecendo-o já provocado e comentado”. Eco irá dizer ainda que o gesto de guarnecer exacerbadamente estas expressões de outras acessórias é a técnica de reiteração do estímulo, que redundará no kitsch. Se em Fantasia de Compensação o limite não tange o exagero, não é kitsch, é porque a técnica do frame quadro a quadro isola uma imagem real de outra manipulada digitalmente. Justapondo as imagens fortes com outras mais amenas, ele dosa a percepção do conteúdo objetivo e do conteúdo acessório. Intercalando-os, é o observador que completa gestalticamente o todo, sendo nele, ou mais precisamente no ardil de seu imaginário, que se constrói, quase que automaticamente, a “mentira do terror”. Mas se os mitos que conhecemos foram em sua maior parte fundados no passado ou, para além dele, estão fora da história, como é possível para Rodrigo construir “seus” mitos? Bem, neste caso, poderemos ver que na sua biografia, tal como por ele narrada (e justamente por isso), há momentos de “passagens” ora imediatas (como na visão aos 17 anos do cachorro doente), ora distendidas (como nos processos terapêuticos). Passagens estas que são momentos de transformação, ou seja, há “história” na história (narrativa) de Rodrigo. Um tempo que, no contexto dos processos introspectivos, é visto


de uma outra forma, mas não deixa de ser transformação ou história. Novamente Barthes diz que “é a história que transforma o real em discurso”, e que “o mito é uma fala escolhida pela história”; não existe, portanto, “nenhuma rigidez nos conceitos míticos: podem construir-se, alterar-se, desfazer-se, desaparecer completamente. E é precisamente porque são históricos, que a história pode facilmente suprimi-los. [...] É preciso insistir neste caráter aberto do conceito mítico; não é absolutamente uma essência abstrata, purificada, mas sim uma condensação informal, instável, nebulosa, cuja unidade e coerência provêm sobretudo de sua função. Esta instabilidade obriga o mitólogo a ter uma terminologia adaptada, a criar um neologismo para o conceito que é um elemento constituinte do mito.” O neologismo inevitável, enquanto necessidade de associar conceitos efêmeros a contingências limitadas, será criado para Fantasia de Compensação a partir de um impulso que não é necessariamente nem agressão nem reação por parte do sujeito “tímido e fracote”. Por tratar-se de uma fala, ela está dirigida a alguém, mas que já não é seus agressores, nem sou eu ou você, nem o artista tal como ele é hoje. Reclamada que é por um fantasma do passado, parece-me mais adequado vê-la dirigida àquele situado em seu mundo, em seu tempo: um tempo sucedido entre a agressão sofrida e a resposta aos seus agressores. Instante e lugar que, por estarem fora do momento presente, dispersam a ação, permanecendo como expectativa de alívio para alguma instância do inconsciente. Como resposta dirigida ao inconsciente, na construção de um pretenso “vingador”, ela se torna então referência de atributo associado ao personagem híbrido de força e agressividade rotweileriana, formando o retrato de um “herói da contraviolência”, uma “imagem mítica da contra-agressão”, mais do que da agressão propriamente dita. Parece-nos, assim, que este mundo de onde emergem fantasmas não seja necessariamente um mundo dos mortos. Creio poder simplesmente atribuir-lhe, enquanto linguagem, uma função simbólica: imagem de um tempo e de um espaço que difere


destes nos quais estamos. Porém, é presumível que neste lugar de onde “eles” falam, o chamado “mundo dos mortos”, não haja somente mortos; ou talvez haja um lugar mais além do mundo dos mortos que, ofuscado por ele, com ele se confunda. Um mundo acima e além, que volta a ser um lugar e um tempo da origem, um ponto de renascimento, um momento da (re)criação. Esta dimensão espacio-temporal é, antes de mais nada, interna e subjetiva. Da mesma forma como a vimos em Fantasia de Compensação ela se encontra implícita também nas séries Risco de Desassossego e Cartas ao Vizinho, sendo nesta última mais evidente na intrínseca alusão a “remetente” e “destinatário”; trabalhos quase todos reativos ou retro-ativos, sempre em dois tempos: o daqui e o distante, o do ódio e o da vingança, o da falta e o da compensação. Porém, nos trabalhos Sem Título e Negativo, cujo suporte é uma performance em tempo e espaços reais, isso começa a se modificar, a ponto de, na série Do Prazer Solene, não existir mais nenhum traço de cisão entre tempo e espaço reais e virtuais. Estes teriam sido suspensos junto com a suspensão do sofrimento e da dor interna, permanecidos como seqüelas da agressão, do referencial interno negativo. Eliminado o fantasma, desfez-se seu mundo. Restou aqui o substrato da performance enquanto rito, quase mágico por seu efeito transformador. Como se cada uma das três imagens da série tivesse sido tomada durante o transe extático e regenerador do contato com a natureza. Três representações de um estado de espírito, de prazer e deleite. Em contraste com os demais trabalhos da exposição, Do Prazer Solene explicita o prazer na qualidade do improviso, a satisfação da espontaneidade, o sabor inigualável do tempo exato da criação. Nesta série temos assim um Rodrigo “compensado”, realizado no duplo sentido: (re)inserido na realidade do tempo e espaços reais, e na realidade que não é fantasia, máscara ou disfarce. O último trabalho no percurso desta mostra é a série Da Alegoria Perecível. Com ela, Rodrigo reinstaura um sistema de representação das performances como alter-egos ou heterônimos; como se em cada uma delas perguntasse a si próprio qual delas ele é. Se


o mito é “uma fala”, nosso artista está dizendo algo que se vale de um ingrediente contido nas Confissões de Santo Agostinho, quando, perguntando a Deus “Quem sou?”, obtém como a resposta “ És um homem – seja lá o que isso for”. A resposta que (in)determina este homem é a estratégia que o faz (homem) personagem do próprio homem. Em outras palavras, homem personagem de si mesmo, logo, máscara – persona – que o apresenta ao escondê-lo, ou ninguém – personne – como na resposta ardilosa de Ulissses na caverna do ciclope. A única chance de não nos determos neste vazio tautológico é acreditar que este homem seja tomado como um ser em múltiplas instâncias: sua fisicalidade, seus papéis sociais, suas máscaras, seus espelhos, o id, ego e superego do seu incosnciente, seus heterônimos, seus alter-egos. Se esta fala é um sistema de comunicação que contém uma mensagem questionadora, Rodrigo não se atém a uma resposta, mas à construção da imagem de um instante de sua representação. Se esta, por sua vez, não é única, mas multifacetada, tomo aqui, de novo, a liberdade de ver Rodrigo como “espelho de sua geração”, já não homogeneizada por um ideal de sonho e norma de comportamento, mas dispersa em um coletivo de índoles que, seguramente, em outras épocas o identificaria como um ser da liminaridade, alheio aos padrões de comportamento sociais vigentes, talvez um elemento de atitudes radicais, um vanguardista ou, quem sabe, um degenerado. Neste caso, eu faria minhas as palavras suscitadas por Michel Foucault: “Só a estes que são excluídos do jogo social ocorre a idéia de perguntar sobre quais são os limites da natureza humana.” Gilberto Habib Oliveira Março de 2006


Risco de Desassossego, 2004 manipulação em imagem digital









Fantasia de Compensação, 2004 manipulação em imagem digital











sem título, 2005 manipulação em imagem digital





Negativo, 2005 performance com carne moĂ­da



Do Prazer Solene, 2005 fotografia





Da Alegoria PerecĂ­vel, 2005 fotografia









Rodrigo Braga Manaus – AM , 1976. Vive em Recife – PE

[ www.rodrigobraga.com.br ]

É formado em Educação Artística/Artes Plásticas, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE ), 2002. Desde 1987, freqüentou diversos cursos: história da arte, desenho, pintura, escultura, mídias digitais e montagem e

produção de exposições. Integrou a equipe de produção da Semana de Artes Visuais do Recife (SPA-2002 e 2003), e atualmente é gerente de Artes Visuais e Design da Prefeitura do Recife, onde coordena o evento. Fez parte do Atelier Brecha, entre 2000 e 2004. Em 1999, recebeu o prêmio aquisição no Salão Pernambuco de Artes Plásticas/Novos Talentos (MAC , Olinda); e, mais recentemente, foi contemplado com o prêmio/bolsa do 45º Salão Pernambucano de Artes Plásticas (2004), desenvolvendo a pesquisa “A manipulação digital da fotografia

como meio de expressão artística”. Integra o projeto Rede Nacional de Artes Visuais, da Funarte, e ministra workshops no Brasil e no exterior. Realizou as individuais Risk of Disturbance, Galeria Clairefontaine (Luxemburgo, Alemanha, 2005); Compensation Fantasy, Galeria Susini (Aix-en-Provence, França, 2005); Ornamentos para o Corpo, Galeria Archidy Picado (João Pessoa, 2004); e Cartas ao Vizinho, Centro Cultural de São Francisco (João Pessoa, 2002). Das exposições coletivas destacam-se: Rumos Itaú Cultural de Artes Visuais (São Paulo, 2006); Paris Photo, Carrousel du Louvre (França, 2005); Art Cologne (Alemanha, 2005); Photomeetings Luxemburg (Luxemburgo, Alemanha, 2005); San Sebastian Fair (Espanha, 2005); O Corpo na Arte Contemporânea Brasileira, Itaú Cultural (São Paulo, 2005); Projéteis de Arte Contemporânea, Galerias da Funarte (Rio de Janeiro, 2005); Projeto Prima Obra, Galeria Fayga Ostrower/Funarte (Brasília, 2004); Experimental, MAC Ceará, Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (Fortaleza, 2003); Intervenção na Base (Grupo Transição Listrada) na I Bienal Ceará América (Fortaleza, 2003); Umbigo, Galeria Amparo 60 (Recife, 2002); Salão Arte Pará (Belém, 2002) e Projeto 3X, Instituto de Arte Contemporânea/ IAC (Recife, 2002).

Gilberto Habib Oliveira é curador, pesquisador e especialista em Museologia. Bacharel em Artes Plásticas pela Faculdade Santa Marcelina, São Paulo e Especialista em Museologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, desenvolveu também estudos de gestão de museus, pesquisa e curadoria na Argentina por dois anos. Trabalhou por dez anos no Setor de Pesquisa do Setor de Museologia da Pinacoteca do Estado de São Paulo organizando a exposição de longa duração do acervo e a curadoria de mostras temporárias. Em seguida foi responsável pelo Núcleo de Museologia do Museu Afro Brasil de São Paulo durante seu período de implantação. Atualmente desenvolve curadoria de exposições de artistas contemporâneos em São Paulo, assistência de produção para projetos de exposição em São Paulo e Recife, além de implantar cursos de formação de pessoal para a área de museus.


Instituto Cultural Bandepe

Galeria Marcantonio Vilaça

PRESIDÊNCIA

CONSELHO CURATORIAL

Fabio Colletti Barbosa

Cristiana Tejo e Moacir dos Anjos

DIRETORIA EXECUTIVA

EXPOSIÇÃO

Fernando B. E. Martins Michiel Kerbert

Rodrigo Braga CURADORIA

C O N S E L H O C O N S U LT I V O

Gilberto Habib Oliveira

Emanoel Araújo Raul Henry Ricardo Braga

COORDENAÇÃO GERAL

CONSELHO FISCAL

DESIGN GRÁFICO

Aparecida do Ceu Arriaga Pedro Paulo Longuini

Fernando Leite

Maria Clara Rodrigues

FOTOS COORDENAÇÃO

Rodrigo Braga

Carlos Trevi REVISÃO DE TEXTO

Sonia Cardoso ASSISTENTE ADMINISTRATIVO

André Meira de Medeiros IMPRESSÃO

MCE PR O D U Ç Ã O

Agradecimentos Marcos Vinicios Vilaça Maria do Carmo Vilaça Maria Lucia Montes Marina Barbedo


Patrocínio

Apoio

Realização


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