Para Brahim, meu pai, que teve alguma culpa nisso, mesmo que de forma inocente, para Renata, minha irmã, que em um certo momento compartilhou essa viagem, e para Marisa, que compartilha agora.
A efemeridade, tema da segunda exposição a ocupar o Espaço Cultural Banco da Amazônia no ano de 2009, permite repensar a vivência instantânea da realidade. Só este motivo já seria o bastante para a satisfação do Banco da Amazônia na seleção do Edital de Pautas deste exercício. “Efêmera Paisagem”, exposição do fotógrafo Alberto Bitar, mostra um vídeo ainda inédito em Belém, mas já apreciado em outros centros culturais. Além do vídeo, encontraremos uma série de fotografias da série homônima. São paisagens pessoais, delicadas imagens, impregnadas de afeto que lembram viagens do autor, feitas quando criança, à Ilha de Mosqueiro, próxima a cidade de Belém. Estes momentos marcaram a formação do seu olhar e lhe influenciaram a fotografar de dentro de veículos, cuja diferença de movimento entre observador e cena capturada resulta em imagens fluidas, percebidas à distância. O fotógrafo Alberto Bitar é formado em Administração de empresas pela Universidade da Amazônia – UNAMA. Começou suas aparições em mostras fotográficas a partir de 1992, posteriormente revelou-se com a mesma qualidade expressando-se através do vídeo e possui uma das mais sólidas carreiras com constantes premiações: seis prêmios no Salão Arte Pará, nos últimos 11 anos, além de cinco premiações em outros eventos no mesmo período. Já realizou três individuais, cujos percursos, principalmente da exposição “Passageiro”, fazem jus ao título, circulando por quase todo o país. Entre as coletivas, vale ressaltar sua participação em exposições dentro e fora do Brasil como MAM60 em São Paulo e “Une Certaine Amazonie – Paysages Silencieux”, em Paris. Aqui, em “Efêmera Paisagem”, está acompanhado da cuidadosa, delicada e respeitada curadoria de Marisa Mokarzel. Preterindo o ambiente específico em função da sensação aludida pela imagem, Bitar amplia o discurso da obra e consente seu vislumbre, independente do lugar, carregado de um sentimento universalizado. Banco da Amazônia
Efêmera Paisagem
A paisagem na fotografia é intermediada por um instrumento, é produto de regras estabelecidas, forma-se a partir de um cenário percebido, captado, recortado, submetido ao olhar. Nesta série, no entanto, Alberto Bitar expande a paisagem, ora torna-a quase invisível, ora nítida, bem delineada. São paisagens íntimas, impregnadas de solidão, de ausências, tecidas a partir de um território, visto de relance, no locomover do carro. O olhar silencioso e perspicaz transfere para a imagem o que é temporário, passageiro. No vídeo e nas fotografias prevalecem a melancolia e a saudade – indizível sentimento de incompletude.
Efêmera Paisagem é constituída de delicadas cenas, recobertas de afeto em que se sobressai uma estética concebida com sutileza e sensibilidade. Os passeios a Mosqueiro, na infância, pontuados pelo carinho materno e paterno, pelas imagens embaçadas percebidas à distância, modificadas com a velocidade, transformam-se em preciosas lembranças que o artista traduz em arte. Nada é o mesmo e, no entanto, a sensação do que foi aloja-se no imaginário que reconduz a paisagem em um tear poético no qual dores e prazeres formam-se além da percepção multidimensional de um lugar específico, do mundo.
O que ocorre na imensidão interior? Difícil responder. O que pode ser dito é que, cedo, um olhar se formou junto ao hábito de fotografar de dentro do carro. O que se vê, todavia, é o resultado de deslocamentos, a imagem fixa que, junto a outra, pode transformar-se em imagem em movimento. A série fotográfica, nascida após o vídeo, traz a cor, alterada com uso de diversos filtros durante a captura da imagem. Esta jamais possibilita flagrar o homem, apenas o lugar. Somente os índices de sua passagem pontuam a casa, o veículo, permitem a presença ausência na paisagem. A imensidão interior conjuga-se ao enredo imaginário construído a partir do enredo vivido que a memória embaça e transforma em lembranças. A imensidão íntima é a imensidão poética encontrada na imagem individual, no díptico, político ou vídeo. Mesmo que imagens se completem, cada uma mantém uma significação própria e expande-se além do real. A visualidade do transitório desmaterializa a nitidez do que está fora e reverte o que os olhos veem, tornando visível um campo imaginário que não mais pertence ao fotógrafo. Evanesce o que está diante dos olhos, seja a paisagem que se apresentou no instante da fotografia, seja esta que, traduzida em imagem, traz a cor e a luz atribuída pelo fotógrafo.
Para o poeta Rainer Maria Rilke “o mundo é grande, mas para nós ele é profundo como o mar”. Imensidões de translúcidos e irreconhecíveis sentimentos se aglomeram sem que se consiga decifrar todos os sentidos. No estado de devaneio o fotógrafo distancia-se do mundo próximo para reconhecer-se no infinito do mundo. Entre o próximo e o distante Bitar contempla a grandeza das imagens que se formam em um fluxo infindo. Gaston Bachelard considera que “a imensidão é o movimento do homem imóvel”. No interior do carro que se movimenta, estático, Alberto recolhe a paisagem e em um urdir de luzes e formas disponibiliza aquilo que foi vivido.
Neste instante não mais se vê o que, visto por outro, ficou impresso no papel, na tela. Um estado de passagem, indefinível, alocou-se entre a obra e o espectador, enquanto um tempo fluído e não captável inscreveu-se na relação que se estabeleceu no ato da percepção. Doravante, há uma rara oportunidade de compartilhar com o artista a estética de uma subjetividade plena, que pertence àquele que criou as imagens e ao outro que se percebe na Efêmera Paisagem.
Mais uma vez não posso deixar de escutar a voz de Bachelard: “embora pareça paradoxal, muitas vezes é essa imensidão interior que dá seu verdadeiro significado a certas expressões referentes ao mundo que vemos”1. Ao pensar no ato fotográfico, Bitar via-se no mesmo lugar, sentado no banco de trás do carro, quando, menino, viajava observando a paisagem que “passava”. Passou o tempo do instante, iniciou-se outro, no qual a estrada não é mais a mesma, a paisagem transformouse, apesar de mantidas as semelhanças. Os borrões de cores, vistos da janela, desvaneceram-se, tornaram-se cinzas na tela do vídeo.
Marisa Mokarzel
1. Todas as citações, a de Rainer Maria Rilke e as de Gaston Bachelard encontram-se no livro A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.189, 190 e 191. Alberto Bitar, em conversa, confidenciou-me o prazer da leitura do livro de Bachelard, o que remeteu-me ao texto e à associação com Efêmera Paisagem.
Algum Silêncio, 2008.
Efêmera Paisagem (Vídeo . PeB . 4’ . PA . 2007) Lembro, quando ainda criança, das viagens que fazia com a família para Mosqueiro, uma ilha banhada pelas baías do Guajará e do Marajó, afastada 70 km de Belém, e para onde ainda tínhamos que atravessar de balsa. Como demoravam aquelas viagens! Pra criança, sempre demora. Meu lugar no carro era sempre o mesmo, sentava do lado direito atrás de minha mãe, e tenho a lembrança de ficar a maior parte da viagem observando a paisagem que “passava”; a aparente diferença de velocidade da vegetação de acordo com a distância do veículo, a faixa branca tracejada que parecia contínua e as pessoas e bicicletas que passavam à margem da estrada e pareciam borrões. Esse vídeo é isso: uma saudade. Na captação dessas imagens a estrada é outra e a distância é maior, mas o tempo já não parece tão lento e a paisagem tem semelhanças com a de antes. Minha mãe já não está no seu lugar, eu o estava ocupando ao lado do meu pai, que dirigia. Esse trabalho tem ainda a finalidade de prestar uma homenagem tanto a ele, meu pai, que também já não está no seu lugar, como aquela Efêmera Paisagem que passou naquela antiga janela, mas ficou fixa na minha memória. Alberto Bitar
Horizonte Intermitente, 2008
Todas as coisas aparentemente estáticas estão, na verdade, sorrateiramente em movimento. Na fotografia, o estático, o instante congelado, invoca a contemplação como os olhos não são capazes de perceber na realidade. Por sua vez, o movimento, a justaposição do fluxo temporal que desliza sobre a superfície fotossensível, gera imagens em convulsão que os olhos tampouco podem apreender daquela forma. Estancando ou acumulando o fluxo temporal, portanto, a fotografia sempre nos oferece uma visão a partir da realidade visível que, invariavelmente, escapa à percepção humana.
Fotografar pode implicar num gesto brutal e paralisante de renúncia e rebeldia ao inexorável movimento contínuo do fluxo do tempo. Um golpe e tudo se petrifica. Imagem estática. Muitas vezes, porém, Bitar opta por golpear a luz de forma mais lenta, recolhendo dentro de sua câmera uma porção mais alongada do tempo - o tempo da viagem -, justapondo uma sucessão de ocorrências com aporte de uma boa medida de acaso. O acaso do movimento que convulsiona a imagem final é a metáfora precisa e poética do aporte da imaginação nas suas memórias de menino.
Muitas coisas, aliás, escapam ao sentido da visão. O que retemos de fato daquilo que foi visto agora pouco, ontem, há dez, trinta anos? O rosto da primeira namorada, o nosso próprio rosto quando crianças... escapam, se tornam difusos, tendem ao apagamento. As imagens arquivadas mentalmente não têm a objetividade de uma fotografia. Porque, invariavelmente, do tempo que escorre guardamos mais as sensações do que as visões. Memória e imaginação, assim, se fundem. Se o olho não consegue captar o visível na sua quietude ou em sua velocidade, e a memória não retém de forma precisa as imagens, como fixar uma ocorrência no espaço-tempo?
Aquela lembrança da infância aos poucos vai adquirindo uma névoa de nostalgia, a idealização de um passado que tende, ele também, a ganhar contornos ficcionais. Fragmento temporal bêbado, trôpego, autossuficiente em sua felicidade de falso paraíso longínquo com os contratempos que a cercavam sabiamente expurgados.
A obra de Alberto Bitar tem como um de seus principais eixos a problematização dessa dicotomia entre o tempo e a memória mediados pela fotografia. Além de expor o quão débil e redutor é a apreensão que o olho humano realiza do cotidiano, o artista, com a série “Efêmera Paisagem” busca desestabilizar nossas frágeis certezas. “Ver para crer”, a máxima de São Tomé, aqui ganha nova configuração: é preciso ver para transfigurar e, assim, enxergar para além da superfície do entorno.
A fotografia pensou um dia agir contra essa tendência da memória pegar a estrada da imaginação. Tola... Ao dar um golpe, fragmentar o tempo e congelar nossas histórias num álbum qualquer, pensou que preservaria o dado de realidade, que seria o link inquebrantável a nos conectar com o passado sem a intermediação da ficção. Mas quando nos vemos nas imagens que documentam nossa infância, quem olhamos afinal? Que outro eu anunciam esses velhos álbuns? Memórias precisas são falsas memórias. As fotografias pontuam uma narrativa cheia de lacunas que devem, obrigatoriamente, ser preenchidas pela memória afetiva, traumática, lúdica, amnésica do tempo não fotografado, parcamente memorizado.
Qual é a forma do sonho? Imagens bem definidas? Difusas? E a memória? Qual é a cor, a textura, a nitidez das memoráveis lembranças que acumulamos ao longo de uma vida? Elas são mutantes no tempo? Sim. O tempo segue, diariamente, reeditando e esculpindo as imagens da nossa memória. A massa bruta da memória paulatinamente vai ganhando aportes da imaginação, até termos uma biografia inevitavelmente ficcional...
“Efêmera Paisagem”, esse novo ensaio de Alberto Bitar, transgride o código fotográfico ao utilizar a fotografia no seu avesso. Aqui a linguagem não se preocupa em pontuar a memória, mas em restaurá-la com todo o poder de magia, imaginação, mistério e assombro que assolava o artista ainda menino quando viajava com seus pais. Fotografias das lacunas temporais. O mundo girando lá fora, o menino a girar dentro do carro. Fotografia trôpega de tempos difusos. Efêmera só não é a paisagem da memória afetiva.
Um menino no banco de trás do carro da família olha avidamente a paisagem que passa pela janela. O movimento dentro do movimento. O estático em velocidade. A Terra gira. Gira o mundo. Gira o carro e gira o menino que de tanto girar se tornou fotógrafo para preservar seus olhos pregados naquela janela. Agora com um olho artificial, gira em velocidade dissonante ao universo e fixa o célere rastro de seu deslocamento rumo ao futuro.
Eder Chiodetto
Alberto Bitar Nasceu em Belém (PA) em 1970. Começou a fotografar em 1991, ano em que participou das oficinas da Fotoativa, e desde 1992 vem desenvolvendo ensaios pessoais. Tem participado de mostras coletivas no Brasil e exterior, como o Salão da Bahia, Prêmio Porto Seguro Fotografia, Prêmio Fundação Conrado Wessel, Salão Internacional de Fotografia Abelardo Rodrigues Antes - Havana/Cuba, e Desidentidad, no Instituto Valenciano de Arte Moderno, na Espanha. Em 1996 participou do projeto ANTARCTICA ARTES COM A FOLHA, sobre o panorama da produção de jovens artistas emergentes do Brasil, e em 2008 foi selecionado pelo programa RUMOS Artes Visuais, promovido pelo Instituto Itaú Cultural.
DIRETORIA EXECUTIVA DO BANCO DA AMAZÔNIA
EFÊMERA PAISAGEM
Abidias José De Sousa Junior
Alberto Bitar
Presidente
Fotografias
Augusto Afonso Monteiro De Barros
Alberto Bitar
Diretor de Infra-Estrutura do Negócio (DINEG)
Vídeo - Direção, edição e fotografia
Eduardo José De Lima Cunha
Leo Bitar
Diretor de Análise e Reestruturação (DIARE)
Vídeo - Desenho de som
Evandro Bessa De Lima Filho
Marisa Mokarzel
Diretor de Controle e Risco (DICOR)
Curadoria
Gilvandro Negrão Silva
Marisa Mokarzel, Eder Chiodetto e Alberto Bitar
Diretor Comercial e de Distribuição (DICOM)
Textos
Luiz Lousrenço De Souza Neto
Alberto Bitar e Marisa Mokarzel
Gerente de Imagem e Comunicação (GICOM)
Edição
Ruth Helena Lima
Ednaldo Britto, Elaine Arruda e Alberto Bitar
Coordenadora de Publicidade, Propaganda e Patrocínio
Montagem
Gerência de Imagem e Produção
Fabíola Bitar e Makiko Akao
Responsabilidade Técnica
Produção
Gerência de Suprimentos e Patrimônio
Melissa Barbery
Apoio Técnico
Projeto gráfico
Rui Mário Albuquerque - Ruma
Valéria Andrade
Coordenador do Espaço Cultural
Revisão de texto
Amanda Aguiar Assessoria de comunicação
Agradecimentos Eder Chiodetto, Ruma, Ednaldo Britto, Elaine Arruda, Valéria Andrade, Regina Fonseca, Andrea Kellermann, Fabíola Bitar, Makiko Akao, Leo Bitar, Melissa Barbery, Amanda Aguiar, Christine Mello, Rosely Nakagawa, Paulo Sergio Duarte, Alexandre Sequeira, Paulo Reis, Marília Panitz, Armando Queiroz, Mariano Klautau Filho, Ismail Xavier, Jaime Bibas, Aldrin Figueiredo, Armando Sobral, Nando Lima, Michel Pinho, Carlos Dadoorian, Gabriel Boieras, Luciana Cattani, Josias Cruz, Fernanda Silva.
Realizou as exposições individuais Solitude (1994), Hecate (1997) e Passageiro (2005) - esta última integrou a programação oficial do 7° Mês Internacional da Fotografia de São Paulo. Em 2002 ganhou o prêmio especial do Salão Arte Pará pelo vídeo Doris, realizado em conjunto com os artistas Paulo Almeida e Leo Bitar. Em 2003 realiza, com a co-direção de Paulo Almeida, o vídeo Enquanto Chove, resultado da bolsa de criação do Instituto de Artes do Pará. Em 2005, o trabalho recebe o prêmio de melhor vídeo no 2° Festival de Belém do Cinema Brasileiro e Prêmio Capô (linguagem) no IV Festival Cineamazônia, em Porto Velho/RO. Tem trabalhos nos acervos do Museu de Arte Moderna de São Paulo, MAM da Bahia, Fundação Biblioteca Nacional, Sistema Integrado de Museus (SIM/PA), Fundação Rômulo Maiorana, MABEU – Museu de Artes Brasil Estados Unidos (Belém), entre outros.
Espaço Cultural Banco da Amazônia Av. Presidente Vargas, 800 - Térreo CEP: 66017-000, Belém – Pará – Brasil Tel.: (55 - 91) 4008-3670 www.bancoamazonia.com.br espacocultural@bancoamazonia.com.br
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