6 minute read

Saber vender o seu peixe

Na década de 1970, ocorreu o boom moderno da fotografa, que deu ensejo ao surgimento de galerias e museus especializados, dos primeiros festivais e encontros, assim como a criação de departamentos de fotografa em importantes museus de arte mundo afora. Nesta ocasião, era corrente entre os fotógrafos a alegação de que não sabiam ou não se interessavam em explicar suas imagens, pois haviam escolhido justamente se expressar pela fotografa por não terem vocação para a expressão escrita ou verbal. Tal postura era aceita de forma tácita, como um axioma perfeitamente lógico e irrefutável. Na década de 1990 teve início um novo boom da fotografa, ou, mais precisamente, da imagem técnica, que começou a conquistar um espaço crescente no âmbito do circuito de arte até chegar à atual situação de preponderância. Já não se tratava então da fotografa feita por fotógrafos, mas da fotografa utilizada pelos artistas plásticos que, inclusive, em muitos casos, se preocupavam em ressaltar o fato de não serem fotógrafos, mas “artistas”  reiterando, assim, um tipo de visão elitista que circunscrevia o fotógrafo e sua produção a um patamar inferior. Não vale a pena se estender aqui a respeito desse tipo de visão equivocada que, na verdade, mascara uma estratégia de mercado bastante clara, pois se a mesma foto for veiculada como produto de um mero fotógrafo, terá valor de venda bastante inferior ao obtido caso seja anunciada como obra de um artista. Até mesmo porque Man Ray  que se expressava por meio da fotografa, do cinema, da pintura e da escultura  já havia equacionado a questão em 1937, ao publicar o livro La photographie n’est pas l’art, e ao afrmar que não importava saber se a fotografa era arte ou não, pois a arte estava morta e urgia fazer algo novo. Mantendo o foco no fulcro da questão em pauta, o que interessa ressaltar é que, a partir da citada inserção da

fotografa no circuito de arte, nunca mais se ouviu a desculpa do “fotografo porque não gosto de falar ou de escrever”. A situação se inverteu completamente, de tal forma que existem hoje grandes discursos a respeito de pequenos trabalhos, pois o conceito se sobrepôs inteiramente à obra, que, com frequência, não consegue ser tão expressiva quanto a teoria que a ampara e justifca. Espetadelas à parte, o que é verdadeiramente importante reter é que hoje em dia a existência do fotógrafo silencioso ou arredio é inviável, a menos que ele se benefcie da intermediação de um curador, que se encarregará de estabelecer sua mediação com o mercado e com o mundo institucional. Colocando a coisa em termos crus, “é preciso saber vender o seu peixe”. E isso é verdade para o fotógrafo, para o artista plástico, e muito mais verdade ainda para os destinatários deste livro: curadores, conservadores, administradores culturais e promotores de eventos dedicados à fotografa. Até a década de 1970, ainda era relativamente fácil se conseguir espaço para expor ou publicar fotografas, pois tudo se dava ainda de forma amigável e, por vezes, até mesmo doméstica. A Photogalerie, por exemplo, uma das primeiras galerias modernas de fotografa da França, fcava no térreo do mesmo prédio em que se localizava a célebre agência Magnum. E como a galeria também vendia livros e revistas e dispunha de um simpático café, era corriqueiro para os fotógrafos da agência acertarem seus encontros profssionais na galeria, ou simplesmente passarem por lá para tomar uma taça de vinho ou uma cerveja com os amigos. Assim, a Photogalerie de Georges Bardawill expôs diversos fotógrafos que chegaram até ela graças às indicações oriundas da agência vizinha. Foi o caso do mestre Manuel Alvarez Bravo, que lá realizou uma exposição individual em abril de 1976, graças certamente à intermediação de seu amigo de longa data, Henri Cartier-Bresson, com quem havia feito uma seminal exposição no Palacio de Bellas Artes da Cidade do México em 1935. Hoje em dia, esse tipo de história poderia se reproduzir com dois fotógrafos de renome, mas, de modo geral, o acesso só é mais fácil no que diz respeito às galerias comerciais, pois, no âmbito institucional e museal, quase tudo se dá por meio de editais. As grandes instituições culturais brasileiras  sejam elas públicas ou particulares  costumam trabalhar por meio de editais abertos e veiculados pela internet em épocas predeterminadas. A própria Funarte, que oferece uma ampla gama de possibilidades, trabalha por meio de editais, assim como também o fazem a Caixa Cultural, o Centro Cultural Correios, o Centro Cultural Banco do Brasil, o Itaú Cultural e diversas secretarias estaduais ou municipais de cultura. Isso signifca que, cada vez mais, o produtor cultural (incluindo aí tanto os criadores quanto os curadores e os produtores propriamente ditos) é obrigado a saber “vender seu peixe” de forma clara, sedutora, irresistível e inquestionável, até mesmo porque o resultado de todo e qualquer edital público pode ser questionado pelos demais postulantes, tanto no que diz respeito ao seu valor cultural quanto no que diz respeito às verbas solicitadas para cada uma das suas rubricas. Em resumo: o mundo institucional e museal, bem como o mercado de arte se sofsticaram e se profssionalizaram enormemente, de modo que não há mais espaço para amadorismo

Advertisement

e improvisações, sobretudo para o curador ou o conservador. Ainda persistem alguns espécimes de artistas arredios e antissociais, mas eles pertencem a uma raça em rápida extinção. Contudo, o que certamente não existe é o curador, o conservador ou o administrador cultural que não sabe descrever e defender claramente suas propostas, tanto por escrito quanto pessoalmente  habilidade que se torna cada vez mais necessária à medida que se popularizam as visitas guiadas às exposições, as mesas-redondas ou os encontros com os curadores.

Como aprender a vender seu peixe

Existem hoje, em diversos pontos do Brasil, cursos a respeito do desenvolvimento de projetos culturais, de modo que o caminho mais óbvio e natural é procurar aquele mais perto de você. Mas, para o fotógrafo desejoso de “aprender com quem faz”, existe uma recomendação básica: assista às entrevistas gravadas de Sebastião Salgado e de sua mulher e parceira (como curadora e editora), Lélia Salgado. Existem algumas entrevistas disponíveis na rede que são muitíssimo interessantes e que, caso sejam assistidas com a devida atenção e de lápis e papel na mão, têm tanto valor quanto um workshop ou uma aula magna. Consagrado desde fns do século passado como um dos mais importantes fotógrafos documentais de todos os tempos, Sebastião Salgado teve, no entanto, formação universitária no campo da economia, exercendo a profssão com sucesso antes de abandoná-la pela fotografa na década de 1970. Economista do Instituto Nacional do Café sediado em Paris, ele aprendeu a defender as políticas públicas brasileiras do setor frente aos organismos congêneres internacionais, desenvolvendo, assim, uma habilidade verbal invulgar, semelhante à dos grandes advogados ou diplomatas experientes, de tal forma que seu exemplo constitui um excelente estudo de caso para o fotógrafo desejoso de adquirir traquejo na exposição e defesa de seus projetos e ideias. Há que se lembrar que Salgado apresenta um componente interessantíssimo, pois não é uma unanimidade entronizada no olimpo da fotografa, mas alguém forçado a se explicar e a defender constantemente seus pontos de vista por ser acusado de “explorar a miséria em benefício próprio, enriquecendo graças ao sofrimento alheio”.

Quanto à minha opinião, limitar-me-ei apenas a lembrar algo que é impossível esconder, posto que está em evidência no site da Funarte: foi na época em que eu era coordenador do então Núcleo de Fotografa da Funarte que realizamos a primeira exposição individual de Sebastião Salgado no Brasil, na Galeria de Fotografa da instituição, então sediada no prédio do Museu Nacional de Belas Artes.

This article is from: