Barricada

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BARRICADA

no final da praça de frente ao banco cresol dobramos à direita e um pouco depois começou uma estrada de chão que seguimos por alguns quilômetros até o mirante que Cátia disse que encontraríamos e que valia a pena parar e desfrutar da bela vista

continuamos a estrada desviando de motoqueiros e caminhonetes que derrapavam na contramão apenas alguns centímetros à nossa frente deixando uma nuvem laranja que cobria tudo ao nosso redor

vimos um bar de janelas azuis e uma igreja pintada de azul pegamos a estrada à direita depois de um campo de futebol onde descobri o que era o mata-burro que ela na mensagem dizia que passaríamos e que logo depois haveria outro e uma placa indicando o nome do sítio

a subida era bastante inclinada e tivemos que retornar para tentar de novo subindo como disseram que deveríamos subir com calma sem acelerar demais na primeira marcha com o carro derrapando e jogando pedrinhas para todos os lados

no texto na placa junto ao portão ainda que desbotado lia-se o nome do sítio junto às palavras agroecologia artesanato e poesia

Daphné nos recebeu ao lado das cachorras Honey e Véia nos mostrou a casa onde ficaríamos e começou a contar um pouco da história dela e de Cátia e do sítio que nos apresentaria de verdade no dia seguinte

naquela noite Honey dormiu na varanda da casa em que estávamos como uma guardiã mas muito provavelmente como a anfitriã que espera seus amigos acordarem para mostrar seu lar

Quando Dona Helga morreu, Cátia escreveu um poema, após ouvir sua avó ser chamada de “do lar” em seu enterro.

Cátia não chegou a conhecê-la no tempo em que morava no campo, pois seu avô estava doente, e Dona Helga e ele se mudaram para a cidade. Mesmo ali, a avó de Cátia continuou sendo agricultora, mantendo, no quintal de sua casa, o que para a neta era uma forma intuitiva de agrofloresta, que continuou cultivando até seus últimos anos de vida e de onde tirava grande parte de sua alimentação. Ao falar da forma como sua avó lidava com o cultivo de alimentos e as árvores, Cátia conta de um vídeo que mostra a relação de Dona Helga com um

araçá que havia em seu quintal. Como não queria cortá-lo, ela aparece podando, puxando e amarrando o araçá, mas mantendo-o ali, sem que fizesse sombra para as outras plantas.

Após sua morte, por algum motivo, incomodados com a floresta de Dona Helga, alguns vizinhos inventaram uma denúncia de que ali poderia haver focos de dengue, que os agentes sanitários nunca encontraram e apontaram o absurdo da queixa. Não satisfeitos, fizeram uma nova denúncia, alegando que a floresta de Dona Helga prejudicava o meio urbano. Apesar de soar ainda mais incoerente e irônica, dessa vez, a prefeitura aceitou a reclamação e sua família foi obrigada a

cortar as árvores que eram de Dona Helga. Cátia diz que ver a destruição da sua floresta talvez teria matado sua avó de tristeza, se ainda estivesse viva.

Mesmo aposentada como agricultora e tendo feito agricultura toda sua vida, no dia do seu enterro, até mesmo seus filhos preferiram dizer que era “do lar”, talvez, acredita Cátia, por repetirem um discurso imposto pela sociedade, que diz que ser agricultor é algo vergonhoso. Cátia se sentiu ferida ao ouvir sua avó, que acabara de morrer, ser chamada assim e sua forma de responder à tristeza foi escrever um poema.

Dona Helga não chegou a conhecer o sítio de sua neta, onde hoje,

foram plantadas algumas árvores que eram de seu quintal, e Cátia se pergunta se, ao conhecê-lo, também ela reproduziria um discurso imposto pela sociedade e, como tantas outras pessoas, diria que ali só há mato. Ou talvez, se, ao ver a agrofloresta que sua neta e Daphné fazem juntas, reconheceria ali uma continuação do que ela mesma havia feito antes em seu quintal.

“‘Do lar’ ė o lugar que querem nos colocar / Mas eu sou mesmo ė da terra / Filha do êxodo / Neta de Dona Helga”, Cátia repete algumas vezes no poema que escreveu.

No período em que Cátia e Daphné se mudaram para o terreno onde hoje vivem, o solo, bastante danificado, começava a se regenerar. Na área, desmatada sucessivas vezes para a produção de carvão, não havia casa ou eletricidade, nem uma rua que levasse ao terreno.

Deram ao sítio o nome Aimotuá e construíram a casa elas mesmas, com a ajuda de alguns amigos. Depois, fizeram um outro chalé, onde recebem hóspedes através de uma associação que promove o agroturismo, no qual nos hospedamos por algumas noites.

No dia seguinte à nossa chegada, Daphné veio nos buscar para apresentar o sítio e mostrou uma foto do tempo que construíam a casa e moraram por alguns meses em uma barraca. Nesse período, iniciaram a horta, próxima à moradia que estavam construindo. Alguns meses depois, começaram uma agrofloresta.

Mantendo árvores que já existiam no terreno, passaram a plantar diversos tipos de verduras, legumes, ervas aromáticas e medicinais, PANCs, frutas e grãos. Plantaram também outras árvores, que protegem os diferentes cultivos do vento, trazem umidade e, além de terem o fruto como alimento, são utilizadas como matéria orgânica.

Enquanto Daphné falava da importância da poda das árvores, para deixar a luz entrar e mandar a mensagem de crescimento para as outras plantas, escutei de longe um barulho contínuo parecido ao de um motor e imaginei que Cátia poderia estar cortando galhos com alguma ferramenta elétrica. A sensação que tenho é de que, durante o dia, estão sempre trabalhando e parecem se multiplicar num revezamento contínuo de atividades em diferentes partes do sítio.

Junto com Daphné, nos acompanhavam Véia, Honey e a cachorra mais nova, Milpa. Seu nome é o mesmo do sistema milenar de policultivo realizado por povos da Mesoamérica, um consórcio que reúne o milho, a abóbora, o feijão

e, em alguns casos, a pimenta, uma tradição agrícola que reverbera na agroecologia.

Em um sistema agroflorestal, roça e mata coexistem. Imitando as condições e o funcionamento de uma floresta, o solo, coberto com folhas, armazena água mesmo em períodos de seca, e os diferentes tipos de plantas em consórcio, como na milpa, cooperam entre si, fornecendo nutrientes e protegendo o outro cultivo de pragas e doenças.

Não se utilizam agrotóxicos ou fertilizantes químicos e, ao explicar que passam uma calda caseira nas plantas apenas nas raras ocasiões em que acontece um desequilíbrio, Cátia compara o pensamento que acha ser sempre necessário aplicar-lhes algo — mesmo que biológico — para evitar doenças e insetos, a acreditar que, para não ficarmos doentes, precisamos tomar antibióticos diariamente.

Ao nos mostrar os canteiros e fileiras de plantações, Daphné parecia entusiasmada ao falar sobre alimentos muitas vezes desvalorizados, como o tomate de árvore, a taioba e o maxixe, e interessada nas formas de prepará-los, pois, de outra maneira, as pessoas podem parar de cultivá-los. Ao passarmos pela ponte sobre a nascente que atravessa o terreno, havia um cacho de jerivá, que haviam deixado na água. Ainda testavam formas de consumi-lo, e alguns dias depois, me deram para provar alguns pedaços e senti um sabor que me lembrou um pouco o do coco, mas também o de nozes.

Seu entusiasmo com alimentos muitas vezes desvalorizados me lembrou de alguns textos que li, algumas semanas antes de nossa viagem começar, sobre o huitlacoche. Também chamado de carvão-do-milho, no Brasil, o fungo é considerado uma praga, mas, no México, ele é comido e apreciado como iguaria, cujo gosto, eu lia em vários lugares, se aproximava ao de trufas negras.

Em uma de nossas conversas, perguntei a elas sobre o fungo do mi-

lho, e me disseram que gostam de prepará-lo quando o encontram em algum dos milhos que plantam. Há, ao todo, quatro variedades de milho crioulo no sítio: o branco comercializam in natura, fazem fubá e usam para nixtamalizar; o arco-íris, cujos grãos coloridos são muito duros, usam apenas para o fubá; o negrito, uma variedade que ganharam em El Salvador, mais mole e fácil de moer, usam no cuscuz, em tortilhas e outros pratos com influência mexicana; e há, ainda, uma variedade boliviana, com grãos escuros, que utilizam para fazer chicha morada, bebida tradicional naquele país. Algumas das sementes, Cátia me disse, tomam muito cuidado a quem dão, para protegê-las.

Em uma das tardes, quando estávamos próximos a uma das plantações, ela percebeu algo diferente em uma das espigas ainda no pé e, ao mexer, encontrou um huitlacoche, que arrancou e nos deu de presente, me fazendo sentir que acabara de ganhar um pequeno tesouro.

Além da foto da barraca em que viveram enquanto construíam a casa, Daphné nos mostrou uma outra fotografia, de uma vista aérea do sítio. Na imagem, capturada por um drone, é possível ver as fileiras de canteiros bastante organizados, mas, enquanto caminhamos, muitas vezes, parece que os diferentes cultivos sempre estiveram ali, como parte de uma floresta da região. Uma goiabeira e uma ameixeira estão ao lado de um limoeiro. A parreira de uvas, próxima do milho, que tem abóboras e berinjelas crescendo entre os pés, e, um pouco antes, a cúrcuma é vizinha do tomate, do quiabo, da ora-pro-nóbis e de algumas ervas.

Os canteiros seguem assim, misturando-se, sempre parecendo haver alguma palmeira ou bananeira por perto.

Não há um cultivo ali que se destaca, disse Daphné. Pelo contrário o que vemos é a grande diversidade de produções, mas também os

variados usos que fazem do que produzem, buscando maneiras de consumi-los. Uma diversidade alimentar conquistada pela vontade da autonomia em produzir o próprio alimento e, depois, poder compartilhá-lo.

Enquanto andávamos, vimos espalhadas pelo sítio, colocadas em algumas árvores e coqueiros, pequenas placas de madeira com versos e aforismos pintados à mão. Uma delas, em francês, dizia que, se amamos as borboletas, então temos que aceitar as lagartas. Outra falava que as árvores são como os cabelos crespos da terra que um discurso imposto pela sociedade insiste em alisar. Em uma, mais adiante, estava escrito que uma revolução só acontece através do afeto.

Frases que dialogam com textos que li em uma rede social do sítio, onde escrevem sobre o que fazem e a forma como entendem seu trabalho, e que reverberam em muito do que nos disseram em nossas conversas. Textos e falas que se misturam à maneira como fazem as diferentes atividades no sítio e à forma como decidiram viver, em uma conciliação que parece bastante profunda entre discurso e prática. Nessa conciliação, parecem organizar a maioria dos aspectos da vida numa relação mútua com o lugar que escolheram morar. De certa forma, como mais um elemento da agrofloresta que iniciaram ali, que segue em construção permanente.

Quando explica que o nome do sítio, Aimotuá, refere-se a cuidado e autonomia, Cátia fala que, ao buscarem o local onde hoje vivem, tinham o sonho de construir algo que fosse verdadeiramente autônomo. Assim que a escuto contar desse sonho, penso que, como quase todos nós, antes de encontrarem aquele lugar, imaginavam que existisse a possibilidade de uma outra maneira de viver. Até que, juntas, decidiram encontrá-la.

O bezerro cinza, ao nosso lado, brinca com os três cachorros da família de uma forma que me faz pensar que acha que é um deles, embora somente ele dê pulinhos de alegria e cabeçadas em seus companheiros, quase derrubando, em um momento, a senhora Catarina Gelsleuchter, que me conta os motivos pelos quais diversos engenhos acabaram, mas quando Celso Gelsleuchter, seu marido, que estava agorinha mesmo ao nosso lado, sem dizer uma palavra começa a se afastar, o bezerro abandona seus companheiros caninos e vai em sua direção. No momento em que Catarina responde algo que perguntei sobre sua produção de orgânicos, comentando a dificuldade que vê das pessoas se juntarem em cooperativas, o border collie Aquiles, único dos cães da família que aprendi o nome, decide também seguir na direção de Celso e do bezerro, sentando-se próximo aos dois, para observar Celso arquear as costas, deixando seu rosto mais próximo dos olhos do animal, que o observa atentamente e, por um breve momento, parece finalmente sentir-se como um touro, e Celso, que o encara, me faz lembrar um toureiro, mas quando o bezerro vem em sua direção, novamente dando seus pulinhos de alegria, Celso

o abraça e acaricia o pescoço do bezerro, me fazendo novamente pensar que se sente mais um dos cachorros da família Gelsleuchter. De repente, Catarina fica pensativa por alguns segundos e, aparentemente interrompendo o assunto, diz que ali, naquela cidade onde sempre viveu, se sente um pouco como um patinho feio, sente que não se encaixa muito bem e sente que suas ideias e seu estilo de vida combinam mais com as pessoas que acaba conhecendo através do seu trabalho com o engenho e com a agroecologia, que, diferente das pessoas dali, gostam das coisas mais naturais Neste momento, se aproximam de nós, Ricardo Gelsleuchter, seu filho, e Raizza Coelho, a nora, que há alguns anos, depois de terem vivido um tempo em outra cidade, decidiram voltar para ajudar Catarina e Celso com o trabalho no engenho e na lavoura, e Ricardo menciona que, por muitos anos, eram só seus pais produzindo orgânicos ali, e Catarina, complementando seu filho, diz que eles eram os dois velhos tolos que pensam que conseguem produzir sem veneno e, após fazer uma breve pausa, aponta com a cabeça para o filho e a nora e, completa: mas agora tem outros dois bobos que também acham

Quando estávamos indo embora, Catarina avisou que já havia colocado mais água no feijão e, enquanto almoçávamos com eles, lembrei que, naquela manhã, me apresentaram o engenho que o pai de Celso construiu nos anos 1940, onde até hoje os Gelsleuchter continuam fazendo a farinha de mandioca que agora comíamos no pirão.

Na maioria dos textos que li sobre engenhos de farinha de mandioca, fala-se sobre seu funcionamento, explicando desde o cultivo e a colheita aos diferentes processos que as raízes passam pelo engenho até transformar-se em farinha. Quando vou escrever sobre os Gelsleuchter, decido fazer o mesmo, e ao tentar recordar como Catarina, Celso, Raizza e Ricardo me mostraram que funciona seu engenho, lembro que, quando estava conversando com Catarina, ao nosso lado, um bezerro cinza brincava com os três cachorros da família de uma forma que me faz pensar que acha que é um deles, e começo a escrever.

Assim que começa a contar que nasceu e cresceu naquela região e que pescou naquelas águas por mais de seis décadas, o barqueiro retira o chapéu de palha da cabeça e o segura apoiado sobre o joelho direito. Há uma linha, marcada pelo tempo, que atravessa cada lado de seu rosto, descendo das laterais dos olhos até o queixo levemente quadrado, que me faz pensar no rosto de atores de filmes antigos de faroeste. Ele usa uma camiseta azul com o símbolo da reserva no peito. Filho de pescador, durante anos, seguiu a atividade do pai, mas, agora, ele é o barqueiro. Enquanto nos conta que não tem medo de navegar e que não precisa de GPS, pois conhece muito bem aquelas águas, divido meu olhar entre a imensa área formada pelo aterro que vejo às suas costas e seu rosto, que assume uma expressão de tristeza quando diz que a construção do aterro dragou o coração da reserva. Na época, seu pai, pescador antigo, avisou para não mexerem naquela área, pois o impacto alteraria o curso das águas, podendo levar ao fim de alguma pesca na região. Este foi o acordo da associação de moradores com quem construiria o aterro, não seria retirado material da reserva, mas, sim, de outra parte, alguns quilômetros à frente. Contudo, no meio da construção, o barqueiro nos conta, quem fez o aterro decidiu que era mais fácil, rápido e certamente mais lucrativo retirar areia dali mesmo, do meio da reserva, ou como ele diz,

do seu coração, e isso, como seu pai havia previsto, afetou todo o ecossistema da região. Enquanto fala, o barqueiro movimenta o chapéu entre as mãos e nos conta que as pessoas que viviam da pesca tiveram que procurar outras profissões, pois precisavam sustentar suas famílias e com a pesca já não tinha como. Um virou pedreiro, outro foi ser pintor, e ele, naquele período, conseguiu uma vaga como motorista. Quando isso aconteceu, foi muito duro para a comunidade. Se fossem pessoas ricas que morassem ali, aquilo não aconteceria, diz o barqueiro. Após a construção do aterro, veio a quase extinção dos crustáceos e dos moluscos na reserva. Com os anos, os primeiros voltaram aos poucos, mas os moluscos seguiram cada vez mais escassos. Antes do aterro, a reserva chegou a ser uma das maiores produtoras de moluscos bivalves do país. Por isso estamos aqui. Passamos a última semana visitando a região à procura de famílias que continuam extraindo os bivalves das águas que agora iremos navegar. A única que encontramos, cujo telefone aparecia pintado na porta de um rancho, optou por não conversar conosco quando entramos em contato. Disseram que passaram por tempos muito difíceis e, hoje, preferem não falar. Há ainda um ou outro extrativista que continua seu trabalho, o barqueiro nos diz, mas são muito poucos. Depois, seu filho nos dirá que foram os próprios extrativistas que fizeram a preservação dos bivalves, fazen-

do com que sua aparição comece a retomar, mas ainda em escala muito pequena. O som do motor do barco começa a funcionar, soltando um barulho alto que vai, aos poucos, tornando-se contínuo e, misturando-se à voz do barqueiro, faz com que algumas de suas palavras tornem-se inaudíveis. Antes que o barco comece a se movimentar, ele nos avisa que mais para frente, falará sobre a draga e mostrará o que ela fez, o buraco que ela deixou no coração da reserva. Depois, quando o barco seguir e estivermos no baixio, ele nos contará, enquanto faz com o braço o movimento de um saca-rolhas, do dia em que quase foi engolido pela draga. O barqueiro nos pede desculpas, diz que chega uma hora em que é obrigado a desabafar, pois um grande crime ambiental ocorreu na forma como aquilo foi feito e, agora, ele fala apontando para o aterro, o esgoto jorra nas águas sem que ninguém tome uma providência. Diz que depois vai mostrar a área de onde foi retirada a areia e acredita que ainda acabarão retirando o que resta, pois querem fazer uma outra beira-mar ali. O barco começa a se movimentar, enquanto ele diz que sua história é muito longa e que daria para escrever um livro com tudo o que viu acontecer na região. Quando seu filho se dirige para assumir seu lugar, sentado à nossa frente, ele se levanta, e diz que precisa ir para a proa, afinal, agora ele é o barqueiro.

A pequena floresta que vemos, com centenas de colmeias no meio das árvores, contrasta com a paisagem de eucaliptos e lavouras de milho e fumo, que vimos ao longo da estrada de chão que nos levou até ali, assim como sua roupa difere da imagem que geralmente imaginamos de alguém trabalhando com abelhas. Em vez de luvas, botas e do traje branco que cobre dos pés à cabeça e esconde o rosto atrás de uma tela, quando nos mostra o interior de uma colmeia de bugias e nos pede que coloquemos o dedo para provarmos seu mel, o guardião de abelhas veste apenas uma bermuda jeans, camiseta polo e chinelos. Não é necessário nenhuma proteção, ele nos diz, pois as bugias, como as outras espécies de abelhas nativas, não têm ferrão. Assim que provamos o mel, nos explica que o leve amargor que sentimos não é comum e deve-se, provavelmente, a flores da fumicultura e que, há anos, as bugias haviam deixado de ser comuns na região, mas agora, com o trabalho que vem fazendo de reintroduzi-las na natureza, é possível encontrá-las novamente.

Ali, onde nasceu e foi criado, no mesmo terreno onde antes viviam seus pais e avós, o guardião de abelhas cria hoje dezesseis espécies do inseto. Apresenta cada uma por seu nome popular e também científico, mostrando suas colmeias e nos oferecendo para provar o mel de cada uma delas. Seu interesse em relação às abelhas nativas e ao meio ambiente não é comercial. Embora comercialize abelhas e própolis, seu objetivo é o resgate e preservação dessas espécies.

Após as bugias, conhecemos as mandaçaias, as guaraipos, as mirim saiquis, emerinas, droryanas, entre outras. O mel da emerina é ácido, com sabor avinagrado — e um chef de cozinha, uma vez, lhe procurou pois queria usá-lo como molho para saladas. O da droryana é mais líquido que os outros e levemente cítrico. O mel da saiqui que provamos era doce, mas pode chegar a ser ainda mais ácido do que o da emerina. Quando me pergunta de qual gosto mais, digo que o das mandaçaias, que era delicioso, mas não tenho certeza, pois o que mais me surpreende são as nuances que sinto a cada novo mel que provo. Seus diversos sabores, nos explica, se devem tanto às diferentes espécies quanto às variadas flores que polinizam. Não só o mel é diferente a cada nova colmeia que nos mostra, também as próprias abelhas têm características que variam umas das outras. As guaraipos podem ter mais de uma rainha por colmeia, cuja estrutura, em discos, cresce em forma de pirâmide. Uma mandaçaia pode produzir tanto mel quanto uma abelha com ferrão, mas como a população de suas colmeias é pequena, no total acaba produzindo uma quantidade muito menor. O reduzido tamanho das tubunas — que, ao passarmos em frente a sua colmeia, decidiram se enroscar em nossos cabelos — permite que polinizem flores que outras não poderiam. As iraís parecem formigas com asas, de tão pequenas, ainda menores que as tubunas. Os méis das espécies que o guardião de abelhas cria têm, em sua maioria, mais nutrientes e propriedades medicinais do que

o mel convencional, mas como produzem pouco ou como seus sabores diferem da doçura que muitos conhecem do mel tradicional, muitas das espécies são deixadas de lado pelos agricultores, que dão prioridade para a criação de abelhas com ferrão, que produzem mel em quantidade, porém, não polinizam nossas plantas tão bem quanto as abelhas nativas.

Foi ao acompanhar o trabalho de seu pai, que era madeireiro, que, aproximadamente 45 anos atrás, encontrou sua primeira colmeia, que guarda até hoje. Com os anos, foi juntando outras, até que fez um curso básico com um especialista em abelhas, que diz ter sido muito importante para sua formação, mas seu maior aprendizado, nos diz, se dá no dia-a-dia, aprendendo com as abelhas e com a natureza.

Ao passar a realmente se interessar pela meliponicultura, percebeu a importância do ambiente ao seu redor, e seu cuidado com as abelhas estendeu-se às florestas e aos rios. Os agrotóxicos, ele diz, não contaminam apenas os alimentos, mas também os rios, que viraram transportadores do esgoto, do lixo e dos agrotóxicos que a sociedade produz.

Até alguns anos atrás, seu terreno era basicamente pasto. Hoje, há ali uma verdadeira floresta de mata ciliar com aproximadamente 320 caixas de abelhas espalhadas entre as árvores. As abelhas não fazem nada se as florestas não existem, ele nos diz. Por isso, defende a obrigação, por lei, de que apicultores e meliponicultores deveriam ter florestas para alimentá-las, pois alguns não se importam em desmatar seu ter-

reno, já que as abelhas podem visitar as áreas ao seu redor que ainda estão preservadas. Quando pergunto se há alguma movimentação política nesse sentido, diz que acha que se disser isso para algum político irão chamá-lo de louco e que o próprio governo é a favor da destruição da natureza e deixou isso claro, desde o começo, criticando todos que dizem que é preciso preservá-la.

Precisamos da natureza, ele nos fala, mas ela não precisa de nós e ficaria grata se parássemos de existir. Para o guardião de abelhas, todo mundo tem direito a ter água pura, os animais têm esse direito, as próximas gerações têm o direito de ter uma vida saudável e, sem as abelhas, isso seria impossível.

Mesmo com tudo o que realiza, o guardião de abelhas nos diz que considera seu trabalho algo muito pequeno, com alcance quase insignificante. Porém, acredita que, se algumas pessoas virem o que faz como um exemplo, talvez, poderá fazer alguma diferença, pois ele tenta preservar o que muitos querem destruir.

O auxiliar de pedreiro e morador de favela que desapareceu ao ser levado pela polícia virou nome da comuna cuja origem é ocupação por centenas de famílias dum terreno improdutivo que teria sido grilado lateral de rodovia latifúndio urbano em capital onde ex-deputado queria fazer campo de golfe. De centenas agora sete famílias que ao chegarem além do trabalho pela frente e adaptação para alguns foram quatro anos sem luz e outros tantos de espera da garantia de que não há mais risco de serem mandados embora de que aquilo é deles de que as sete famílias agora é comuna. há um capítulo do livro do C.I. que fala da comuna e diz:

um território habitado de maneira intensiva acaba por se tornar ele próprio uma afirmação uma explicitação do que ali se vive, é através do território que a comuna ganha corpo encontra sua voz se torna presença, a comuna habita seu território o que significa que ela o molda da mesma forma que este lhe oferece uma morada e um abrigo, o território é para a comuna aquilo que a palavra é para o sentido.

o auxiliar de pedreiro e morador de favela que desapareceu ao ser levado pela polícia virou nome da comuna que na entrada com tinta vermelha em pneus está escrito bem-vindo acampamento Amarildo.

BARRICADA

As imagens e relatos deste trabalho surgiram das visitas, realizadas entre fevereiro e março de 2022, a Cátia Cristina Rommel e Daphné Arenou (Sítio Aimotuá - Anitápolis - SC), Catarina Gelsleuchter, Celso Gelsleuchter, Ricardo Gelsleuchter e Raizza Coelho (Engenho da Família Gelsleuchter - Angelina - SC), Lindomar Spredemann (Recanto das Abelhas - Presidente Getúlio - SC), Bárbara Ventura, Carlos Eduardo, Daltro Sousa, Fabio Ferraz, Vitor Pomar, Luzia Cabreira, Raimundo Pereira dos Santos, Renato Longar Pereira dos Santos, Ronaldo José da Silva, Valdemir dos Reis, Maria Erivania dos Santos, Thallyson Silvério dos Santos e Kaique Felipe dos Santos (Assentamento Comuna Amarildo de Souza - Águas Mornas - SC) e Assis Fermino Martins e Alcir Albano Martins (Turismo Comunitário Belezas de Pirajubaé - Florianópolis - SC), aos quais agradecemos imensamente pela generosidade e gentileza em como nos receberam e pelo trabalho que realizam.

Esta publicação, cujos exemplares são distribuídos gratuitamente, foi impressa em abril do mesmo ano e seu conteúdo também pode ser acessado no site www.projetobarricada.com

Projeto selecionado pelo Edital Aldir Blanc 2021 – executado com recursos do Governo Federal e Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural, por meio da Fundação Catarinense da Cultura.

fotografias

Barricada: barreira construída, sobretudo em revoltas populares, como elemento de defesa e proteção ou como obstáculo para impedir a passagem de algo que se considera hostil.

distribuição gratuita

CÉLINE LEVAIN & PEDRO
FRANZ

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