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Mauro Sampaio
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ABANDONO
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Dedicado ao
povo da rua!
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Habitantes de um “não-lugar” “O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro.”
(Manoel de Barros)
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O abandono provoca um “não-lugar”, porque há um “não-lugar”, entre nós, aqui mesmo no espaço urbano, para onde algumas pessoas são levadas. Carregadas, empurradas, por vontade própria... São muitas as formas como se entra neste “não-lugar”, compreensíveis ou não. Acontece com homens, mulheres, crianças e velhos, que deixaram de circular no mesmo espaço em que circulamos, para ocupar o mundo em outra dimensão. A dimensão do abandono. Eles, pessoas que não mais existem no nosso mundo, não sabem direito explicar como ali chegaram. Se escorregaram ou foram empurrados, se fugiram desse mundo onde estamos, o fato é que se tornaram errantes e, no entreato, aconteceu de chegarem a este “não-lugar”, nessa dimensão vazia, que não poderia ser ocupada por ninguém. Nós ali não estamos porque não queremos ver e é preferível não reconhecer esse “não lugar”. Mas eles estão ali e moram seus dramas. A criança abusada na própria casa, uma desilusão que fez um buraco em uma vida, a procura, nas drogas, de um enchimento para ocupar algum vazio. Homens e mulheres que não conseguiram um lugar exigido pelas convenções, mulheres empurradas com os filhos para fora do espaço que não mais as cabe, o velho que perdeu o lugar que tinha para uma desimportância doída fora de suas memórias. E há que perderam a razão, geralmente no processo de caminhar para o “não-lugar”. A esses insanos quiçá seja o “não-lugar” menos doído, talvez porque a construção delirante apareça como mais natural do que aquela construída pelo abandono real. Por vezes, vemo-los andando nas ruas à procura desse “não-lugar”. Ou largados, cansados da caminhada para o vazio. Alguns ainda pedem a moeda do barqueiro que os levará ao “não-lugar”. Certo que não estarão ainda mortos, aonde o Caronte moderno – saído da mitologia grega para simbolizar a nossa indiferença – os levará. Mas é como se já estivessem. Em algum momento da travessia desaparecerão diante de nossas vistas. Enquanto isso arrastam seus poucos pertences em velhos sacos de tralhas que parecem inúteis, mas de significado inalcançável; quase sempre seguidos por cães fiéis, melhores amigos que jamais os abandonam, o que costumamos fazer. Alguns bebem cachaça para suportar a dor. Meninos cheiram cola para ter a ilusão de que já cresceram. Velhos carregam pesados sacos das lembranças de um passado que os abandonou. Catam nas sobras do lixo o que pode sustentar o corpo alquebrado. Domem sob marquises, ao relento, num improvável recanto até não serem mais incomodados com o nosso olhar. Eles são muitos. Acordados de um pesadelo de sonhos desfeitos. E como não os queremos ver, nós os tornamos invisíveis. Esse “não-lugar”, que também ajudamos a construir com a nossa indiferença, é uma outra dimensão do espaço para aonde essas pessoas são tragadas. Como um buraco negro feito do vazio, onde as palavras quedaram velhas de significado e ficaram desamparadas de sentido ou algumas dessas palavras foram abandonadas com ninguém dentro, como bem imaginou o poeta. E esse “não lugar” já não significa. Um nada.
____________________ Edmar Oliveira, psiquiatra, aprendiz de escritor, comunista utópico, socialista desejante.
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Eu vejo o abandono
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Nas calçadas do Brasil, solitários moradores de rua. Não há mais sorte, nem azar, nem acaso, coisa alguma que os livre de tanto abandono. Abandonados. Abandonaram-se. A miséria social convivendo com inimagináveis tecnologias e vasta produção de bens de consumo, do alimento à “nuvem” de armazenamento de dados. Nada disso bem distribuído. Muito mal distribuído. O que mais virá de extraordinário dessa humanidade que cria e devasta? A imortalidade, para alguns? Uma mudança para outro planeta habitável, para os mesmos alguns? Aos outros, salve-se quem puder aqui na Terra? Aos que “fracassaram” e estão prostrados no chão sujo dessas ruas de um vai e vem cego, nada além de desprezo, ou ódio por existirem, ainda que invisibilizados. É possível mudar essa situação? Minha teleobjetiva não alcançou uma resposta clara. São imagens de abandono num presente desolador. O futuro está desfocado. Este solo, infelizmente, não tem sido Mãe Gentil para milhares de cidadãos sem bens, que terminam sem lar, sem família, sem amigos, sem qualquer afeto, sem dignidade, sem respostas para a sua própria situação. Abandono é para você ver e se sentir minimamente solidário com os moradores de rua. Eles existem. Eles são gente. Eles estão entre nós. Eles poderiam não estar nas ruas se o artigo terceiro da Constituição desta nação não sofresse, também, de abandono. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
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Por onde andei para ver tanto abandono:
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Os registros aconteceram entre 2017 e 2019
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RUPTURAS E 16
Padre Julio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, da Igreja Católica, caracteriza a situação de morador de rua como uma sucessão de perdas: da sanidade, dos laços familiares e profissionais. Na dissertação de mestrado em Antropologia Social de Tomás Henrique de Azevedo Melo, A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a luta por reconhecimento da população em situação de rua, apresentada em 2011 na Universidade Federal do Paraná (disponível no Google), o autor, que entrevistou vários moradores de rua em Curitiba, sintetiza: a “entrada” na rua é uma ruptura dos vínculos da pessoa com o seu círculo social, “que colaboravam em seu autorreconhecimento enquanto sujeito”. Esse sujeito sofreu perdas e perdas. A rua é o amparo de seus fracassos, ou melhor, do rígido sentimento de que fracassou na vida. Há riscos para todos nesse abandono em que se encontram milhares de brasileiros. No artigo A barbárie que se anuncia, o psiquiatra e escritor Edmar Oliveira discorre sobre o homicídio de duas pessoas na região da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, no dia 28 de julho de 2019, cometido por um morador de rua enfurecido em sua loucura.
RECOMEÇOS 17
OLIVEIRA FAZ A DISTINÇÃO ENTRE DIVERSOS TIPOS DE PESSOAS QUE “ENTRAM” NESSE LAR A CÉU ABERTO: Quem trabalha com moradores de rua sabe que não se pode tratar da questão como um grupo homogêneo. Encontramos quem tem residência muito longe, mas que não pode ir para casa todos os dias pelo preço exorbitante do transporte público. Out ros, muitos menores, fugiram de uma vida de opressão e abusos de toda espécie para fazer da rua a liberdade que não tinham. Há os pedintes, mendigos profissionais, vendedores de bugigangas e lanches ligeiros, viradores inventivos da falta do emprego formal, aplicadores de pequenos golpes, furtos encomendados, guardadores de pedaços de rua conquistados bravamente etc. Ainda outros têm na droga talvez o último refúgio de uma situação desesperadora, ou/e negociam pequenas quantidades de drogas para a necessária sobrevivência. Muitos foram para as ruas despejados de uma vida que não puderam sustentar e podem diluir-se em outros agrupamentos ou sofrer enormemente com a perda da dignidade. Alguns se refugiam na loucura porque estão equipados com um potencial constitutivo disparado pela situação de abandono. Aqui apenas alguns exemplos de uma diversidade espantosa. Os moradores de rua são seres vulneráveis, que o estado deve conhecer com vagar e aproximações responsáveis para cuidados que cada grupo venha a requerer. O que vivemos hoje é um abandono irresponsável desses seres humanos em situação de vulnerabilidade extrema... Os governos estão abandonando essas pessoas à própria sorte. Cowboy já tinha dado sinais de um acometimento mental – que o médico que prestou socorro às vítimas tentou diagnosticar. Os serviços de saúde mental vêm sofrendo uma desmontagem absurda. Com ações desastradas o governo evitou o encontro de Cowboy com um serviço que pudesse ajudá-lo. E ele foi acumulando nas ruas influências delirantes materializadas no abandono e a paranoia que uma cidade arredia e com medo pode provocar. Ele também é vítima de sua loucura. E sua loucura é fruto da barbárie na construção que estamos fazendo de nossa sociedade. (publicado no blog de Edmar Oliveira)
E QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS CAUSAS DO ABANDONO, APRESENTADAS PELOS PRÓPRIOS MORADORES DE RUA? Pesquisa realizada em 2008 pelo extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome indicam “problemas com álcool ou drogas” (35,5%), “desemprego” (29,8%) e “desavenças com parentes” (29,1%) como as razões mais comuns para a “entrada” na rua. Cerca de 50% tem o primeiro grau incompleto. Outros 15% nunca estudaram. Pouco mais de 3% completaram o ensino médio. Menos de 2% tem nível superior completo ou incompleto. Foram entrevistados 31,9 mil moradores de rua adultos em 71 cidades, 48 com mais de 300 mil habitantes, entre elas, 23 capitais.
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A única estimativa oficial sobre pessoas residentes nas ruas no Brasil é do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados do
Censo do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) de 1.924 municípios: havia 102 mil pessoas “abandonadas” em 2016. O número se agrava diante de crises econômicas e da fragilidade de políticas públicas de acolhimento, promoção da dignidade e de estímulo à retomada de planos para a vida. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) deverá assumir a contagem dos moradores de rua em todo o País a partir de 2020. Instituições religiosas (apoio e acolhimento, não se tratando aqui de “internação compulsória” em clínica mantida por igreja para tratamento de dependência química), organizações governamentais e não governamentais, movimentos populares e mesmo projetos sociais de empresas privadas procuram contornar o problema do abandono. A Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude do Governo do Estado de Pernambuco desenvolve o Programa Vida Nova, para “garantir os direitos humanos das pessoas com vulnerabilidade social extrema, como as que vivem em situação de rua”. Os vendedores da revista cultural Traços, em Brasília, são moradores de rua acompanhados psicossocialmente para levantar a cabeça e dar a volta por cima. A ideia de utilizar essa população vulnerável como “porta-vozes da cultura” é inspirada em modelos semelhantes praticados em vários países. (Fonte das estatísticas: edição 669, especial Cidadania, do Senado Federal: Invisível nas estatísticas, população de rua demanda políticas públicas integradas. 28 de março de 2019, assinada pelos jornalistas Cintia Sasse e Nelson Oliveira. Disponível no Google.) O Movimento Nacional de População de Rua (MNPR) está presente em 18 Estados. Organizado a partir de uma tragédia, o assassinato de sete moradores de rua no dia 19 de agosto de 2004 que dormiam na Praça da Sé, em São Paulo (SP), o MNPR luta pelo “resgate da cidadania por meio de trabalho digno, salários suficientes para o sustento, moradia digna e atendimento à saúde”. A marcante data se tornou o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua.
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UM DECRETO EM ESTADO DE ABANDONO DECRETO Nº 7.053 DE 23 DE DEZEMBRO DE 2009.
Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VI, alínea “a”, da Constituição,
DECRETA:
Art. 1º Fica instituída a Política Nacional para a População em Situação de Rua, a ser implementada de acordo com os princípios, diretrizes e objetivos previstos neste Decreto. Parágrafo único. Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. Art. 2º A Política Nacional para a População em Situação de Rua será implementada de forma descentralizada e articulada entre a União e os demais entes federativos que a ela aderirem por meio de instrumento próprio. Parágrafo único. O instrumento de adesão definirá as atribuições e as responsabilidades a serem compartilhadas.
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Art. 3º Os entes da Federação que aderirem à Política Nacional para a População em Situação de Rua deverão instituir comitês gestores intersetoriais, integrados por representantes das áreas relacionadas ao atendimento da população em situação de rua, com a participação de fóruns, movimentos e entidades representativas desse segmento da população. Art. 4º O Poder Executivo Federal poderá firmar convênios com entidades públicas e privadas, sem fins lucrativos, para o desenvolvimento e a execução de projetos que beneficiem a população em situação de rua e estejam de acordo com os princípios, diretrizes e objetivos que orientam a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Art. 5º São princípios da Política Nacional para a População em Situação de Rua, além da igualdade e equidade:
I - respeito à dignidade da pessoa humana; II - direito à convivência familiar e comunitária; III - valorização e respeito à vida e à cidadania; IV - atendimento humanizado e universalizado; e V - respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência. Seguem mais 11 artigos, do 9º ao 14º, revogados. Uma tentativa de fazer o decreto produzir resultados está na criação, em agosto de 2019, da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da População em Situação de Rua. Sob a coordenação inicial da deputada Erika Kokay (PT-DF), o colegiado tem o objetivo de dar “visibilidade para esse segmento social e lutar por ações governamentais efetivas para a superação da situação de rua”.
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Com crise, cresce população em situação de rua em SP Abordagens feitas pela prefeitura detectam aumento de 66% em dois anos (Chamada de primeira página do jornal Folha de S. Paulo do dia 22 de junho de 2019)
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Crise transforma trabalhadores da classe média em moradores de rua
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Crise econômica empurra pessoas que tinham boa inserção social, algumas até com formação superior, para o desamparo. Sem emprego e abandonadas pelas famílias, elas lutam para sobreviver em meio à indiferença da sociedade (Correio Braziliense, 22 de julho de 2019)
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Com políticas sociais insuficientes, população de rua só cresce no País Estimativa é que o Brasil tenha mais de 400 mil pessoas vivendo em condições subumanas (Claudia Collucci. Colunista do jornal Folha de S. Paulo. 8 de janeiro de 2019)
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moradores de rua contam suas experiências em projeto de reinserção social Vídeo do Especial Cidadania, sobre a Revista Traços, publicado pela Agência Senado no YouTube, 24 de março de 2019
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Número de pessoas em situação de rua no DF cresce 20% em um ano Segundo pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), mais de 70% das pessoas em situação de rua no DF têm entre 4 e 8 anos de estudo. Crise econômica e problemas estruturais são a principal causa do aumento do número de pessoas perambulando nas vias, segundo especialistas. (Correio Braziliense, 25 de maio de 2018)
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Esquecidos, moradores de rua sofrem com a falta de políticas públicas no Centro de Manaus Forçadas a deixar o convívio familiar por diferentes motivos, aproximadamente 560 pessoas moram nas ruas da região central
(A Crítica, 23 de outubro de 2018)
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Homem em carro de luxo executa morador de rua em Santo André Uma câmera de segurança registrou o momento em que o autor do crime desceu do automóvel e disparou contra Sebastião Lopes dos Santos (Veja, 13 de maio de 2019)
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Dificuldades e depressão levam professor a morar nas ruas da Tijuca (O Globo, 17 de julho de 2019)
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Morador de rua em Porto Alegre impede desfrute do espaço público, diz secretária Nádia Gerhard (MDB)
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Desigualdade e abandono Morador de rua não é um fenômeno social atual e, tampouco, apenas brasileiro. O abandono no século passado, nas últimas duas décadas, pode ser espiado na leitura do clássico Era dos extremos - o breve século XX - 1914-1991, do historiador egípcio Eric Hobsbawm (1917-2012). A “Era de Ouro” pós-guerra no mundo capitalista foi sucedida pelas “décadas de crise”, quando pobreza, miséria e desemprego em massa reapareceram em países ricos da Europa e nos Estados Unidos da América. A injustiça social cresceu na América Latina, África e Ásia. As ruas se encheram de moradores: Quanto à pobreza e miséria, na década de 1980 muitos dos países mais ricos e desenvolvidos se viram outra vez acostumando-se com a visão diária de mendigos nas ruas, e mesmo com o espetáculo mais chocante de desabrigados protegendo-se em vãos de portas e caixas de papelão, quando não eram recolhidos pela polícia. Em qualquer noite de 1993 em Nova York, 23 mil homens e mulheres dormiam na rua ou em abrigos públicos, uma pequena parte dos 3% da população da cidade que não tinha tido, num ou noutro momento dos últimos cincos anos, um teto sobre a cabeça (New York Times, 16/11/93). No Reino Unido (1989), 400 mil pessoas foram oficialmente classificadas como “sem teto” (Human Development, 1992, p. 31). Quem, na década de 1950, ou mesmo no início da de 1970, teria esperado isso?
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O reaparecimento dos miseráveis sem teto era parte do impressionante aumento da desigualdade social e econômica da nova era. Pelos padrões mundiais, as ricas “economias de mercado desenvolvidas” não eram — ou ainda não eram — particularmente injustas na distribuição de sua renda. Nas mais desigualitárias entre elas — Austrália, Nova Zelândia, EUA, Suíça — os 20% de famílias do topo recebiam, em média, entre oito e dez vezes mais que o quinto de base, e os 10% de cima em geral levavam para casa entre 20% e 25% da renda total do país; somente os suíços, os neozelandeses do topo e os ricos de Cingapura e Hong Kong levavam muito mais para casa. Isso não era nada comparado com a desigualdade de países como Filipinas, Malásia, Peru, Jamaica ou Venezuela, ondes eles ficavam com mais de um terço da renda total do país, e muito menos com Guatemala, México, Sri Lanka e Botsuana, onde levavam mais de 40%, para não falar do candidato a campeão mundial de desigualdade econômica, o Brasil. (Era dos Extremos, capítulo 14 - As décadas de crise, páginas 396 e 397) Hobsbawm manifestou na sua obra a crença na igualdade e na justiça social, sem abrir mão, como marxista, de apontar as graves e criminosas violações dos direitos humanos ocorridas na extinta União Soviética (1922-1991), especialmente sob o comando do “cruel” Josef Stalin (1878-1953). Para ele, foi a partir do livre mercado que surgiu o sem-teto no mundo.
Desigualdade racial Há uma particularidade na sombria desigualdade: o racismo. Negros e pardos são a maioria nas estatísticas sobre moradores de rua (67%, segundo a pesquisa do extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome). O advogado e filósofo Sílvio Luiz de
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Almeida desvenda a “desigualdade racial” no livro Racismo estrutural: (...) eu, mesmo sendo um homem negro, só fui “despertado” para a desigualdade racial ao meu redor pela atividade política e pelos estudos. O que me impedia de perceber essa realidade? O que me levava a “naturalizar” a ausência de pessoas negras em escritórios de advocacia, tribunais, parlamentos, cursos de medicina e bancadas de telejornalismo? O que nos leva — ainda que negros e brancos não racistas — a “normalizar” que pessoas negras sejam a grande maioria em trabalhos precários e insalubres, presídios e morando sob marquises e em calçadas? Por que nos causa a impressão de que as coisas estão “fora do lugar” ou “invertidas” quando avistamos um morador de rua branco, loiro e de olhos azuis ou nos deparamos com um médico negro? Todas essas questões só podem ser respondidas se compreendermos que o racismo, enquanto processo político e histórico, é também um processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja consciência e afetos estão de algum modo conectados com as práticas sociais. Em outras palavras, o racismo só consegue se perpetuar se for capaz de: 1.
produzir um sistema de ideias que forneça uma explicação “racional” para a desigualdade racial;
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constituir sujeitos cujos sentimentos não sejam profundamente abalados diante da discriminação e da violência racial e que
consideram “normal” que no mundo haja “brancos” e “não brancos”. (Racismo estrutural, capítulo Como naturalizamos o racismo?, páginas 62 e 63) Não há como desassociar desigualdade e abandono. São unha e carne, ainda que cada morador de rua tenha uma história particular de perdas e desvinculações sociais para contar e sofrer.
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Defensor da União faz alerta: redução de políticas de saúde leva pessoas com problemas mentais às ruas O Dia, 30 de julho de 2019 53
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Rede de solidariedade ajuda a aquecer e alimentar moradores de rua no Rio De madrugada grupos distribuem quentinhas e agasalhos
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(O Globo, 7 de julho de 2019)
O julgamento
1-Acusação Preguiçosos Indolentes Inúteis Viciados Doidos Ladrões Sujos
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O julgamento
2 - Sentença Coitados, mas culpados Fracos São fracassados. Quem quer não vive na rua, não faz do chão a cama Da lata de lixo, o restaurante. Os fortes, os vitoriosos, não temos nada a ver com isso. Pagamos impostos!
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O julgamento
3 - PENA Para ti, pobre coitado, o abandono Apenas alguma caridade, para que não morra de fome nessa rua Quieto! Invisível!
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Seis brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade da população mais pobre.
Estudo da Oxfam revela que os 5% mais ricos detêm mesma fatia de renda que outros 95% Mulheres ganharão como homens só em 2047, e os negros como os brancos em 2089 (El País, 25 de setembro de 2017)
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Dois moradores de rua são encontrados mortos na Grande SP Levantamento da TV Globo aponta que nove pessoas em situação de rua foram encontradas desde junho na Grande SP (Portal G1, 5 de agosto de 2019)
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Crescimento do número de moradores de rua em Fortaleza se agrava com a crise financeira Tribuna do Ceará, 5 de novembro de 2018 69
Cresce a percepção de desigualdade entre ricos e pobres no Brasil
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Agressão a moradores de rua cresce 130% em Belo Horizonte 72
Hoje em Dia, 04 de julho de 2019
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Após ataque na Lagoa, população de rua vira alvo de debate no Rio Defensor da União faz alerta: redução de políticas de saúde leva pessoas com problemas mentais às ruas (O Dia, 30 de julho de 2019)
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Crise transforma trabalhadores da classe média em moradores de rua Crise econômica empurra pessoas que tinham boa inserção social, algumas até com formação superior, para o desamparo. Sem emprego e abandonadas pelas famílias, elas lutam para sobreviver em meio à indiferença da sociedade (Correio Braziliense, 22 de julho de 2019)
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Brasil registra mais de 17 mil casos de violência contra moradores de rua em 3 anos 92
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Rio edita decreto sobre internação compulsória de morador de rua
Texto prevê que pessoa em situação de rua possa ser internada a pedido de familiar, responsável legal ou servidor público da área de saúde ou assistência social (Portal G1, 3 de agosto de 2019)
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Ex-moradores de rua em tratamento rechaçam internação forçada proposta por Witzel
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Citações “A realidade social não é visível nem compreensível a olho nu. Pode-se ver a pobreza e a miséria de muitos e desconhecer as causas que produzem esse estado.” (Jessé Souza - Subcidadania brasileira / para entender o País além do jeitinho brasileiro)
“Mas, um dia, temos que enxergar que uma edificação que produz mendigos precisa ser reestruturada. Isso significa que precisamos fazer questionamentos. Então, meus amigos, quando lidamos com isso, começamos a perguntar: Quem é o dono do petróleo? E passamos a questionar: Quem é o dono do minério de ferro?” (Martin Luther King Jr. em 1967, discursando para sua plateia. O pastor protestante lutou contra apartheid norte-americano adotando a política da não-violência. Assim mesmo, foi assassinado no dia 4 de abril de 1968)
“A gente reivindica o respeito das pessoas, porque morador de rua não é bandido. Queremos mais políticas em defesa dos moradores de rua. Começando com o auxílio aluguel, trabalho, saúde. Mas eu entendo que não vai ser fácil sensibilizar a sociedade e o governo.” (Gladson Ubirajara Ferreira, nascido em Brasília (DF) em 1976, mudou-se para o Maranhão aos 4 anos de idade. Tornou-se morador de rua. Voltou a Brasília no dia 21 de agosto de 2019 para participar da Semana Nacional de Luta da População em Situação de Rua. Em entrevista concedida ao autor no dia 21 de agosto de 2019)
“Sufoca-me saber que isso não mudou, que isso está aumentando. Gente sendo despejada, mais crianças indo para a rua. Eu nem me preocupo mais comigo, mas com as crianças que estão vindo para a rua. Tem que haver alguma mudança para que essas crianças não cheguem na minha idade em situação de rua.” (Sebastião Nicomedes de Oliveira, nascido em Assis (SP) em 1968, sobrevivente do Massacre da Sé, ocorrido no dia 19 de agosto de 2004, fundador e militante do Movimento Nacional da População de Rua. Em entrevista concedida ao autor no dia 22 de agosto de 2019)
“O que te sufoca?” (Pergunta provocadora feita pelo ator Rafael Machado na peça do grupo teatral Gigante da Rua, do Movimento Nacional da População de Rua de Alagoas. Apresentação em Brasília, no dia 23 de agosto de 2019, como parte da programação da Semana Nacional de Luta da População em Situação de Rua)
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Conclusão Brasil, curso intensivo de injustiça Não se “entra” na rua sem a degradação dos laços familiares e afetivos e da autoestima. Morar na rua é estar marginalizado e excluído em grau máximo, pode-se dizer. É um fenômeno socioeconômico: a pobreza que desaba para a miséria. O Brasil está entre os piores países do mundo em distribuição de renda e promoção da justiça social. Desigualdade escandalosa, perversa e cínica. Seríamos, inclusive, muito menos violentos se não houvesse essa violenta desigualdade. O registro fotográfico documental dessa “explosão demográfica” de moradores de rua e a pesquisa sobre suas causas denunciam que cada ser humano abandonado é algo muito além do fracasso individual, é o fracasso do Estado frente ao seu papel. É rasgar a Constituição da República Federativa do Brasil, dotada de preâmbulo auspicioso. O Estado democrático “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” torna-se uma fantasia nesse capitalismo neoliberal do “cada um por si” (com vantagem flagrante aos que estão nos andares de cima). A continuar letra abandonada, mais justo que os representantes do povo revoguem totalmente a “Constituição Cidadã” e promulguem uma constituição qualquer, sem pretensões civilizatórias. Curso básico de injustiça A propaganda manda consumir e a economia proíbe. As ordens de consumo, obrigatórias para todos, mas impossíveis para a maioria, são convites ao delito. Sobre as contradições de nosso tempo, as páginas policiais dos jornais ensinam mais do que as páginas de informação política e econômica. Este mundo, que oferece o banquete a todos e fecha a porta no nariz de tantos, é ao mesmo tempo igualador e desigual: igualador nas ideias e nos costumes que impõe e desigual nas oportunidades que proporciona. Eduardo Galeano (1940-2015)
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Biografia Mauro Sampaio é piauiense, torcedor do River Atlético Clube de Teresina, morador de Brasília, servidor público federal, jornalista, fotógrafo de rua, autor dos livros Mas, pai, é sério!; Guia turisticamente incompleto da Europa; O país da felicidade - outro guia turisticamente incompleto da Europa; Nem anjos Nem demônios - o Congresso Nacional; De ônibus. Participou da Exposição Coletiva Quadrantes 2, promovida pelo Centro Cultural Câmara dos Deputados, em 2017, com o ensaio “De ônibus”. Participou da feira do Festival Internacional de Fotografia de Belo Horizonte de 2017 com o livro De ônibus (FIF BH 2017). Pré-selecionado para o 15º Paraty em Foco — Festival Internacional de Fotografia (PEF 2019) com o ensaio “Na rodoviária, o abandono”.
Revisora: Keula Araújo Editora: Nova Aliança Projeto Gráfico e editoração: Estúdio Buraqueira Textos e fotografias de Mauro Sampaio, exceto a fotografia da capa (de Maurício Sampaio), o poema “Flagrante na tarde úmida de Manaus” (gentilmente cedido pelo jornalista Paulo José Cunha), as citações, o decreto presidencial e títulos e subtítulos de notícias.
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Se não houvesse desigualdade extrema, este livro não existiria. Ou seria uma ficção assustadora. Feito com tristeza e indignação, este é um livro que gostaria de se tornar antiquado e ser abandonado, por ausência da realidade chamada “morador de rua”.
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