Ludus

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Ludus































Paisagem, objeto transitório Eder Ribeiro

No nascimento da fotografia a paisagem ocupou um lugar privilegiado, quando então foram destacadas as possibilidades estéticas e práticas do novo meio, sendo lhe assignada uma função eminentemente documental. Ela rapidamente foi associada a uma tradição de vistas topográficas de natureza artística, no Brasil Marc Ferrez é o principal representante dessa produção, intimamente ligada à construção de uma imagem do país ainda em formação. Durante todo o século vinte a fotografia de paisagem ficou em segundo plano, em favor de uma fotografia documental e fotojornalística, sendo retomada a partir dos anos 60 e 70, principalmente através dos artistas reunidos na exposição New Topographics: Photographs of a Man-Altered Landscape.1 Eles reinventaram o gênero, no contexto de uma paisagem pós-industrial. Na série Ludus, Ale Ruaro estrutura sua narrativa visual através de duas abordagens da representação da paisagem: por um lado, ele retoma as vistas topográficas e, por outro, ele aborda a paisagem alterada pelo homem. O filósofo Jean Marc Besse2 evoca as várias acepções contemporâneas que a paisagem pode assumir: ela pode ser pensada como uma representação cultural e social, ou seja uma realidade mental, expressa em modelos pictóricos e influenciada pelas concepções que a sociedade tem sobre ela mesmo. A paisagem também pode ser entendida como um território fabricado e habitado, o trabalho coletivo das sociedades que a moldam e a organizam. Ela também pode ser vista como o ambiente material e humano das coletividades e finalmente pelo prisma da fenomenologia, que se interessa pelas experiências que participam na percepção da paisagem. A paisagem assim não é mais entendida como o lugar mítico da contemplação, mas o território fabricado e transformado em continuidade pelo homem, onde está inscrita a sua presença. Essa noção moderna de paisagem incorpora o caráter coletivo de sua representação. De acordo com o filósofo Gilles A. Tiberghien: Quando evocamos a paisagem hoje, falamos de percepções individuais, mas também de representações coletivas, da natureza mas também da sociedade, de contemplação estética e domínio do território, psicologia e


política,3 ou seja, uma construção cultural e estética. A sua representação não se limita, portanto, ao registro do real, tal como o percebemos, mas é sobretudo uma representação proposta por uma dada cultura e é dentro dessa chave que podemos compreender o trabalho de Ruaro. Em geral esperamos que as representações de paisagens sejam harmoniosas, pitorescas, sublimes. Tradicionalmente, elas foram produzidas para suscitar admiração pelo caráter transcendente da natureza, além de evocar sua atemporalidade em contraponto à finitude e insignificância da condição humana. Nesse sentido a paisagem se reveste de um significado claramente moralizante, elevado. Nesse fundo neutro, indeterminado, o espectador poderia projetar suas interrogações. Ale Ruaro se serve dessas referências clássicas para trazer o deserto, paisagem ancestral, intangível, a partir de uma observação do alto, uma janela para o mundo. Interessante notar que na história da representação da paisagem existe, ao longo do tempo, a descoberta e a exploração de uma sequência de “motivos”, começando pelos horizontes bucólicos das zonas rurais, sucedidos pelas “invenções” da montanha, do mar, das ilhas distantes e, finalmente, do deserto. Em contraponto a essas imagens surge, em Ludus, uma paisagem dialética, que estabelece um tipo muito diferente de relação com o espectador. Relação de frontalidade, onde ele é instalado no meio mesmo desse território em abandono, ou antes em transformação. Agora a paisagem não é o veículo de transcendência para um outro mundo, mas na verdade é o próprio sujeito,4 antítese de uma imagem idealizada da natureza. Se a princípio Ruaro vê a paisagem como um ente exterior, algo que se projeta diante dos olhos, é somente para em um segundo momento trazer o olhar para uma aproximação direta com as coisas e o território. No primeiro caso podemos falar de um espectador, no outro de um partícipe, ele não observa a paisagem, ele está na paisagem. Difícil não associarmos as imagens de Ludus com toda uma tradição cinematográfica, que vai de Paris Texas a Mad Max, o primeiro gira em torno de busca existencial no meio do deserto, das cidades abandonadas, e o outro recria um mundo distópico. Para além do efeito documental das suas imagens, Ludus estrutura um território do imaginário, onde a paisagem sugere o inicio de narrativas múltiplas a partir dessa paisagem / cenário.

A potência do projeto está em se afastar da representação de uma pretensa objetividade, ou seja do paradigma da fotografia como espelho do mundo. Nas suas imagens a realidade é fluida, em suspensão. As coisas gravitam em torno de um não-lugar, espécie de miragem no deserto, entre o sonho e a ficção. Todos os elementos levam a crer que o olhar que vê esse lugar é o olhar do viajante, não por acaso o corpo humano surge apenas como aparição que se instala, não na paisagem propriamente dita, mas na imagem fotográfica, apenas de passagem. Não é de individualidade que se trata, mas de alegoria, uma representação que participa da construção ficcional e habita esse lugar temporariamente. Essas aparições, longe de estruturar certezas, tornam a narrativa ainda mais ambígua e o espaço ainda mais enigmático. Ale Ruaro, um exímio retratista, em Ludus evoca a paisagem em sua dimensão temporal, assim não estamos diante de uma representação das coisas, mas da sua temporalidade. Ele nos coloca frente à escala de tempo dessa paisagem, onde os rastros da presença humana se instalam de forma precária, como miragens. Claramente insignificâncias, quando colocadas em perspectiva ao estrato imemorial que as recebe. Suas imagens sugerem esse lugar transitório, sensação de um presente em suspenso, onde a ruína apenas sugere um antes, e onde já antevemos a reapropriação desse território pela natureza, questão de tempo.

1.  Exposição realizada em 1975 na George Eastman House em Rochester, New York. Dentre os artistas participantes estavam por exemplo: Bernd and Hilla Becher; Lewis Baltz; Robert Adams; Stephen Shore. 2.  besse, Jean Marc, Le gout du monde, Exercises de paysage, Arles, Actes Sud, ensp, 2009. 3.  tiberghien, Gilles A., Nature, Art, Paysage, Arles, Actes Sud, École Nationale Supérieure du Paysage, Centre du Paysage, 2001. 4.  higbee, Lauren, Reinventing the Genre: New Topographics and the Landscape, December, 2011. https://www.academia edu/1947419/ Reinventing the_Genre_New_Topographics_and_the_Landscape, consultado em 14/04/2020.



fotografia Ale Ruaro; edição Fernando Costa Netto; projeto gráfico Bloco Gráfico; impressão Ipsis; tiragem 300. Dados internacionais de catalogação na publicação (cip) (Câmara Brasileira do livro, sp, Brasil); Ruaro, Ale; Ludus / Ale Ruaro; Juiz de Fora, mg: Bodoque Artes e Ofícios, 2021. isbn 978-65-992397-1-7; 1. fotografias i. título; 20-45402 / cdd-779.9. índices para catálogo sistemático: 1. fotografias 779.9; Cibele Maria Dias, bibliotecária, crb-8/9427.


Ale Ruaro

isbn 978-65-992397-1-7


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