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O corpo
Assim como o punctumnão é o ponto, o corpo não é o corpus. Essa segunda distinção surge no capítulo 2 e repercute em todo o livro. Ela desloca a concepção convencional que temos do objeto da pesquisa, que dispõe de um lado uma teoria e um método e do outro um material que nos habituamos a chamar corpus empírico. Para Barthes, o corpus, a empiria, está do mesmo lado da teoria, da metodologia, das categorias etc. (PINNEY, 2012). A Fotografia que lhe interessa não é a do corpus, mas a inclassificável. Ao corpuspertence tudo que nela é reprodução, conforme nosso interesse e a nosso serviço. O que se opõe ao corpusnão é a teoria (porque aquele já lhe pertence de antemão), mas o corpo, que vai recebendo uma sucessão de nomes ao longo do livro, alguns diretamente extraídos do ensino de Lacan: “o Particular absoluto, a Contingência soberana impenetrável e quase animal”, a Ocasião, o Encontro, o Real, na sua “infatigável expressão”, a Tyché8 . (17) O corpo é essa introjeção do Real que perturba o corpus. Para reforçar seu argumento, Barthes coloca em movimento uma de suas etimologias "selvagens". A designação da realidade vazia no budismo como Tathata (ser isso, ser assim), proveniente do sânscrito tat(isso), é remetida ao gesto da criança que aponta (ta, da, ça). Assim, somos conduzidos do Real fora da cultura a uma língua
8 A referência, claro, é ao Seminário XI, de 1964. O automaton, a repetição, está do lado do simbólico, é uma rede de significantes onde não existe acaso. Tychéé uma intromissão do Real na ordem simbólica e só ele é inteiramente arbitrário (LACAN, 1973, p. 53-62).
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antiquíssima, o sânscrito, e à criança que ainda não sabe falar e então aponta (17). Esse apontar mudo, que não admite conceito, e que ocorre no vazio, antes que o mundo ganhe consistência pela repetição, é o que cada fotografia “envelopa”. Tal como a Polaroidde Boudinet, ela é um véu, um tecido transparente que recobre o trauma da contingência do Real, favorecendo discurso do reconhecimento e da realidade. Ao contrário, porém, do que ocorre com os signos linguísticos e com as representações pictóricas, a fotografia não consegue separar-se de seu referente a não ser por um esforço profissional ou muito estudioso. Carrega-o consigo pois foram ambos atingidos “pela mesma imobilidade amorosa e fúnebre”. A fotografia estaria colada ao referente “como o condenado acorrentado a um cadáver”, ou como casais de peixes que navegam juntos em um “coito eterno” (19). Nessa hora o leitor deveria perguntar-se de onde vieram essas estranhas analogias. Mas a perturbação que nos causam é necessária para estranhemos também essa união da qual a fotografia extrai seu sentido. Nas teorias mais antigas dos signos, as relações entre nomes e coisas não são binárias, mas ternárias: há o nome, a coisa, e algo que liga os dois, geralmente concebido como um decalque, algo que permite um encaixe. Uma concepção similar retornará na segunda metade do século XX com a noção de significância em Émile Benveniste (AGAMBEN, 2009, p. 80-90). Mas na fotografia, afirma Barthes, não encontramos essa marca. Isto é, ser reconhecida como fotografia já é ser reconhecida como fotografia de algo. A fotografia é ela própria aderida ao referente (ou decalcadapor ele), sem necessidade da intervenção de uma marca exterior, isto é, sem a marca impressa pela Língua nos signos propriamente linguísticos. Essa premissa, condenada por vários críticos da fenomenologia barthesiana, foi desde cedo objeto de interpretações diferentes. Para alguns, era necessário estabelecer que o referente não é a coisa: em uma fotografia de sapo, obviamente, não poderia ser o sapo gosmento que adere. Mas é preciso considerar, como prescrevem Cadava e Cortés-Rocca (2006), que Barthes tira a fotografia de sua zona de
conforto, uma vez que não respeita a "santíssima trindade" assunto, referência e imagem (7). De fato, em Barthes, a fotografia não testemunha a existência da coisa, mas sua inevitabilidade, uma vez que fotógrafo esteve "lá" (73-74). Esse corpo que posa é um corpo fotográfico, algo que não existe antes da sua representação, mas que se constitui no ato de posar diante da câmera. Ao contrário da "semiótica clássica", para a qual "o processo de representação começa e acaba na estabilidade do 'referente'", o caráter indexical da fotografia encena o ser fantásmico: "o índice é um signo ligado ao luto e à melancolia, e nunca à verdade e ao testemunho". Esses últimos dizem respeito ao uso policial da fotografia (CADAVA; CORTÉS-ROCCA, 2006, p. 17-18). A relação do índice fotográfico com a verdade seria da ordem do discurso, das instituições e dos dispositivos. Mas na ordem da verdade, tudo já é corpus, repetição, automaton. A indicialidade fotográfica estaria vinculada antes ao corpo. Limita-se a assinalar, por meio de um furinho imprevisto, o vestígio de seu desaparecimento (19). É desse ponto que parte Jacques Derrida (2001) em seu necrológio "As Mortes de Roland Barthes", indicando CCe a "A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", de Walter Benjamin, como os “dois textos mais relevantes sobre a dita questão do Referente na era tecnológica moderna” (39). Na interpretação de Derrida, "a fotografia não serve como evidência do Referente – se tal coisa existisse – mas de uma estrutura de referência que assinala a absoluta singularidade do outro" (SAGHAFI, 2000, p. 101). Uma “estrutura de referência” da qual a fotografia não seria incapaz de se desvencilhar. Por isso, Derrida vai insistir no termo referencial, algo que não é nem referente, nem referência. A forma desse “referencial” seria o “ter estado aí”. O referente fotográfico nunca seria idêntico a si mesmo, mas já separado de si, já fantasmático. Essa autodivergência, constitutiva de qualquer ente, é a espectralidade que tornaria possível a fotografia (SAGHAFI, 2000, p. 104).
A fotografa seria, desde sempre, o espectro da coisa, não a coisa. O “Isso foi”, jamais o “Isso”. A natureza espectral do referente é expressamente admitida por Barthes (1979): “aquilo que é fotografado é o alvo, o referente, uma espécie de pequeno simulacro, de eidolon, emitido pelo objeto, a que poderia muito bem chamar-se Spectrum” (23). Nos termos de Derrida (2001), é o referente que, em sua própria imagem, não posso suspender, mesmo que sua “presença” sempre me escape (39). Uma vez que o referente se esvai no passado único do seu acontecimento, o que adere na fotografia é a referência (DERRIDA, 2001, p. 57). Para alguns críticos, Derrida levou sua interpretação da referência fotográfica longe demais, tendo tornado o referente praticamente inatingível. Para Cadava e Cortés-Rocca (2006), o referente poderia ser alcançado por meio do amor:
Se, à primeira vista, pareceria que a força do amor, particularmente do “extremo amor”, permite que ele atravesse a superfície fotográfica para atingir o referente, exceder os limites do medium fotográfico de modo a ver sua amada, Barthes logo torna claro que não pode haver amor sem fotografia nem fotografia sem amor (5).
O delírio e o perigo que atravessam a CC seriam decorrentes da experiência desse amor “extremo amor” que possui também valor epistemológico, pois insere a Fotografia no campo de uma "ciência nova", uma Mathesis singularis. (p. 23). Em oposição à Mathesis universalis, de Descartes, ao sonho de uma linguagem e uma matemática que desse conta de todos os fenômenos do universo, a Mathesis singularisseria a postulação de “uma ciência para cada objeto”. Ela descartaria o corpus em favor do corpo: “Resolvi tomar como ponto de partida da minha investigação apenas algumas fotos, aquelas que eu estava certo de existirem para mim. Nada de corpus. Apenas alguns corpos” (22). Mas esse descarte não convém só a Barthes, mas à própria fotografia como problema: “a Fotografia é uma arte pouco segura, tal como seria, se decidíssemos estabelecê-lo, uma ciência dos corpos desejáveis ou detestáveis” (34). Se “não pode haver amor sem
fotografia nem fotografia sem amor”, até onde nos levaria essa ciência do singular, a não ser ao conhecimento do único ser amado? Mas algo nos impede de prosseguir inteiramente nessa linha, pois há o corpo. Ocultar a fotografia da mãe pode ser análogo ao seu desaparecimento, uma vez que está morta, mas os corpos que Barthes deseja ainda circulam pelo mundo. A CC não é uma “teologia negativa” – uma regressão até a inextricável divindade a respeito da qual nada pode ser dito ou mesmo conhecido. Não é uma regressão até onde reside o infinito amor materno, até o inefável fotográfico onde o referente adere. Elissa Marder, pensando essa questão, formulou a proposição mais interessante acerca da relação entre a fotografia e o corpo materno. Para ela, "a fotografia opera no corpo antes da linguagem (no lugar da linguagem)” e, por isso, “ela tanto convoca como apaga nossos laços primordiais com o corpo materno" (MARDER, 2000, p. 25) Assim, Barthes teria concebido a fotografia como uma mãe mecânica que mima, distorce e rompe a função materna (MARDER, 2000, p. 26). Derrida teria optado por "corrigir" Barthes, substituindo o referente por "referência ao referente", elidindo a questão do corpo. Em consequência, teria negado a natureza confessadamente parva, estúpida, da metafísica da CC. A "metafísica estúpida é a metafísica que não sabe falar: só pode apontar e tocar", como o infante. A fotografia, para Barthes, seria tão impensável quanto nosso próprio nascimento (MARDER, 2000, p. 28). A formulação de Marder inspira-se em outra das metáforas estranhas a que Barthes recorre para designar o vínculo entre o olhar do espectador e o "corpo da coisa fotografada": uma “ligação umbilical”, que converte a luz em um "meio carnal" (114). Dessa criança que ainda não sabe falar e então aponta, teria derivado a terminologia técnica do fenômeno moderno da fotografia, isto é, do Latim, de uma língua que “morreu muito antes de ele ter nascido”: "se Barthes precisa do latim para definir a fotografia, isso se deve em parte à suposição de mortalidade comum tanto ao latim como à fotografia" (MARDER, 2000, p. 29). As definições latinas tanto suturam como dividem
antiguidade e modernidade – e, nesse sentido, são como Φ. Elas permitem, sugere Marder, que Barthes imagine um tempo pré-histórico no qual a fotografia seria capaz de imortalizar o "corpo amado": CCé "pensamento mágico", conclui (30). Tal como Benjamin, e de modo ainda mais que radical, talvez, Barthes afirma que só realistas como ele reconhecem o fato de que a Fotografia é "uma magia, não uma arte” (124-125). Imortaliza o corpo amado pela mediação de um "metal precioso, a prata" que, assim como os metais da alquimia, "está vivo" (115). Por esse motivo, o tema da maternidade na CCnão está apenas relacionado à morte (da mãe), mas também ao nascimento (do filho), pois a Fotografia, alquimicamente, transforma luz em carne:
Nessa transformação, a fotografia se torna o meio maternal que magicamente reconecta o corpo do sujeito que vê com o corpo do referente por um cordão umbilical. O cordão umbilical, por sua vez, cria um novo corpus que envelopa tanto o sujeito que vê como o objeto fotografado por uma pele comum, a fotografia transubstancia o corpo do referente e transporta-o através do tempo e do espaço. Como um meio maternal mecânico, a fotografia tem a habilidade de reproduzir um novo corpo coletivo que desestabiliza a separação entre passado e presente, sujeito e objeto9 (MARDER, 2000, p. 32).
É exatamente como um parto – associado às incertezas do nascituro – que Barthes descreve o ato de posar para uma fotografia: “vivo-a na angústia de uma experiência incerta: uma imagem, a minha imagem – vai nascer: irei ser parido como um indivíduo antipático ou como um ‘tipo fixe’?" (26). Só o amor poderia "salvar o sujeito moderno", conclui Marder (2000):
A mãe mecânica destrói a vida do sujeito vivo envolvendo o corpo com um excesso de sentido [...] Diferentemente da mãe biológica que paradoxalmente protege o sujeito do mundo, como uma mãe protética que usurpa a função maternal substituindo identidade por subjetividade, a fotografia molda o sujeito moderno em um novo corpo que está condenado a já nascer morto (34).
9 No estúdio que manteve acima do apartamento da mãe, havia uma ligação para alçar a refeição. Assim não precisava sair do escritório para se alimentar (CALVET, 1993, p. 137). Henriette o alimentou por décadas – o elevador de comida manteve o cordão umbilical em permanente operação.