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IMAGENS DOS SERTÕES BAIANOS
from Offereço meu original como lembrança: circuito social da fotografia nos sertões da Bahia (1900-1950)
O episódio de Canudos foi sintomático no que concerne à revelação de um “Brasil desconhecido” . 33 Às vésperas do alvorecer do século XX, quando da implantação do regime republicano, o país se chocou diante de uma realidade social que muitos brasileiros não conheciam ou não se preocuparam em enxergar. O confito bélico travado pelos governos estadual e federal contra uma população miserável de sertanejos resultou, dentre outras coisas, no lançamento de Os sertões, um dos principais livros que marcou a fase de autodescoberta do Brasil. A obra máxima de Euclides da Cunha é uma profunda análise do país a partir dos sertões baianos, seu povo e a guerra. O autor desenvolveu suas refexões a partir da sua presença in loco na fase fnal do confito, quando ali esteve como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, em 1897. Em paralelo à narrativa do escritor, um conjunto de fotografas produzido pelo fotógrafo baiano Flávio de Barros apresenta imagens surpreendentes do cenário da guerra. Tendo sido o único fotógrafo autorizado pelo Exército a cobrir a guerra, seus registros cumpriram a função de dar visibilidade ao olhar
33 Expressão do jornal Correio do Bomfm com referência às viagens do presidente Getúlio Vargas a Goiás e Amazonas e sua provável visita a Canudos em 1940.
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do vencedor, ou da civilização sobre a barbárie, e do poderio da República, representado pela infantaria militar. Na primeira edição de Os sertões, em 1902, algumas daquelas fotografas foram veiculadas, contribuindo de maneira signifcativa para a formação do imaginário social do brasileiro sobre aquela terra e seu povo. Foi com essa obra que uma pequena intelectualidade sertaneja na Bahia estabeleceu um constante diálogo ao longo das décadas seguintes, quando do desenvolvimento das suas autoimagens nas cidades no início dos novecentos. Mauad (1997) afrma que durante o século XIX foi o olhar do estrangeiro que nos enquadrou, ao tempo em que educava nosso olhar fazendo com que a mira estivesse voltada para a cultura importada de seus países. Na fotografa oitocentista, os sertões baianos foram abordados por esses olhares “estrangeiros”. Nessa confguração, é possível notar dois tipos: o da exuberância e o da barbárie. Viajantes estrangeiros, como Augusto Stahl e Augusto Riedel, e depois brasileiros, como Marc Ferrez e Ignácio Mendo, focalizaram suas lentes na ostentosa paisagem da Cachoeira de Paulo Afonso. Esses artistas produziram fotografas de forte apelo estético, característico da tradição pictorialista,34 predominante na época.
34 Através do pictorialismo, no século XIX, muitos fotógrafos aproximaramse dos temas e estética explorados pela pintura na busca de um estatuto de obra de arte para fotografa. Temas como paisagem e retratos foram largamente explorados pelos adeptos dessa estética. A respeito do pictorialismo, ver COSTA e SILVA (2004) e KRAUSS (2014).
A implantação da República no Brasil levou junto o sonho da construção de uma nação moderna e civilizada. O gigante adormecido precisava se erguer para receber o promissor novo século que se anunciava e a República prometia a realização desse desejo acalentado por muitos brasileiros (NEVES, 2010). O episódio de Canudos pôs em xeque o projeto republicano, mostrando a muitos brasileiros uma triste confguração no interior do país, uma vez que suas elites estiveram por muito tempo acostumadas a olhar o mundo a partir do litoral. Apesar do choque inicial, Canudos não apagou dos sertões a imagem de um futuro promissor, como deixam entender alguns escritos veiculados nas páginas dos jornais sertanejos baianos ou nos livros, ensaios e memórias de alguns autores na aurora daquele novo século. “Civilização” e “progresso” eram palavras de ordem naquele contexto em que ainda se viam as formas como as elites dominantes de diversas regiões buscavam se identifcar com o Velho Mundo. Para elas, de maneira geral, o passado era compreendido com certo desprezo, visto lembrar quase sempre aquilo que se queria apagar da memória nacional, como a escravidão, a violência e o atraso. Se as imagens construídas do sertão no século XIX foram notadamente marcadas pelo olhar do “estrangeiro”, no qual, na maioria das vezes, prevaleceu a lógica do outro, com o advento das novas transformações ocorridas nas pequenas cidades sertanejas na primeira metade do século XX, elas passaram a ter oportunidades de produzir suas autoimagens, através de fotógrafos, jornalistas ou escritores radicados nas próprias localidades.