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FOTOGRAFIAS NOS DOMÍNIOS DAS MEMÓRIAS FAMILIARES
from Offereço meu original como lembrança: circuito social da fotografia nos sertões da Bahia (1900-1950)
Quando a fotografa foi inventada, logo passou a ser considerada por muitos como registro realista e objetivo do mundo visível. Havia certo encanto em possuir uma fotografa como se preservasse com ela a imagem fel da realidade em um instante congelado do tempo. Seus usos passaram a ser cada vez mais constantes nos grupos sociais em momentos alegres, tristes ou trágicos. Na primeira metade dos novecentos, muitas pessoas em várias partes do mundo participaram de uma busca cada vez maior pela fotografa para fns documentais, de cobertura de guerras, cidades, monumentos e eventos sociais, mas também para funções na legitimação de famílias (FABRIS, 1998; LEITE, 2000). A fotografa faz parte do domínio das memórias familiares desde seu surgimento. Se num primeiro momento eram objetos luxuosos, reservados às classes mais abastadas, com a popularização através do formato cartão de visita outras também tiveram acesso. No interior daqueles grupos, a fotografa teve papel signifcativo nas construções das memórias coletivas e nos espaços das lembranças individuais. Entretanto, poderia se perguntar: consiste a fotografa também numa memória?
Certamente que sim. Le Gof (1996) considerou que na época contemporânea dois fenômenos foram importantes ou signifcativos para a memória coletiva: a construção de monumentos aos mortos e o surgimento da fotografa. Enquanto o primeiro promoveu o desenvolvimento da comemoração funerária, o segundo revolucionou a memória coletiva, expandindo-a e democratizando-a para várias partes do mundo e classes sociais como jamais visto em épocas anteriores. A fotografa permitiu que se guardasse a memória da passagem do tempo e das pessoas. De fato, nunca se vira tanta produção, consumo e difusão de retratos e lugares quanto após a fotografa. Para Freund (1976), sua importância política se deve ao fato de entrar por igual na casa do trabalhador e do artesão e por atender ao funcionário e ao industrial indistintamente. Leite (2000) percebeu a presença de inadequações em grande parte das legendas existentes nas fotos em álbuns de famílias em São Paulo no início dos novecentos. Em muitos casos, a memória da imagem não só diferia da memória da palavra como chegava a substituir a própria memória do indivíduo. Muitas pessoas entrevistadas não se lembravam mais do que tinha acontecido, mas apenas dos retratos dos acontecimentos. Quantas vezes não fomos confrontados em nossas lembranças pelas memórias fotográfcas? A fotografa foi bastante utilizada pelas famílias como um importante bem simbólico de identifcação social e constituição de sentidos. Em meados dos oitocentos, as práticas de
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colecionar fotografas estavam particularmente reservadas às famílias mais ricas e era um importante fator de distinção social. No fnal do século, já se verifca quase que uma epidemia no colecionismo de fotografas, tendo ampliado também seus públicos consumidores. Na primeira metade dos novecentos, produzir, colecionar e ver fotografas havia se tornado quase um habitus50na vida de muitos brasileiros, contribuindo nas maneiras de olhar e ser olhado na sociedade. Verifca-se isso nos sertões baianos também. Apesar da existência de padrões universalizados para os estilos de fotografas, a exemplo dos postais, vistas ou retratos, esses códigos de identifcação não são estanques no tempo e no espaço. Suas abordagens sofrem modifcações a depender das condições efetivas da época e do lugar. Em se tratando de fotografas de família, pode-se observar uma tendência abrangente, tanto no Brasil como em outros países, de seus usos como registros de casamentos, crescimento dos flhos, rituais de passagens, reuniões familiares, lembranças dos mortos etc. Apesar das variações dos suportes ou números de artefatos, sua presença se verifca principalmente nas camadas mais altas e médias. Nos sertões baianos da virada dos oitocentos, as raras passagens dos fotógrafos itinerantes pelas diversas regiões e visitas aos estúdios da capital geravam excelentes
50 O conceito de habitus aqui é entendido conforme desenvolvido por Pierre
Bourdieu, ou seja, como sistemas de estruturas interiorizadas. O habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido ou também uma postura ou comportamento. A esse respeito, ver BOURDIEU (2012).
oportunidades de acompanhamentos regulares das fases em família, particularmente entre os setores mais ricos. De outra forma, com a presença de profissionais vivendo nas próprias localidades, o barateamento do custo de produção e a popularização da técnica com o surgimento das câmeras portáteis, fotografar passou a ser um rito mais constante na vida de diversos grupos familiares. Especialmente a partir de 1888, quando a Eastman Kodak Company lançou nos Estados Unidos o primeiro equipamento fotográfco portátil com o lema “aperte o botão e nós faremos o resto”, a câmera fotográfca passou a fazer parte dos pertences existentes nas residências de algumas famílias. Com o tempo, surgiu a necessidade de reunir aqueles retratos da família, ou ligados ao círculo familiar, dos momentos solenes e descontraídos da mesma. Foi a era dos álbuns fotográfcos. A circulação de fotografas e o seu consumo em forma de postais, retratos ou vistas promoveram no Brasil o surgimento de empresas ligadas ao mercado fotográfco, como Grabher & Bratke e Cartona, que passaram a produzir vários modelos de álbuns cartonados atendendo a esse flão de colecionadores de imagens em todo o país. A Grabher & Bratke Ltda foi fundada em 1914, em São Paulo, se especializando na fabricação de álbuns e discos. A Cartona Cartão Photo Nacional Ltda foi fundada em 1927, sete anos depois da fundação da Kodak no Brasil, contribuindo para a popularização do consumo de álbuns de família. Mais tarde surgiram ou-
tras, como a Leofer, em 1966, em São Paulo, se tornando uma das mais populares no país.51 O álbum fotográfco surgiu como uma das invenções do crescente mercado industrial. Até meados do século XX, era uma forma de registro e coleção característicos da classe média (LEITE, 2000), enquanto entre famílias de rendas mais baixas era bastante comum fotografar apenas os momentos signifcativos, como casamento, batizado ou morte, e as fotografas eram comumente guardadas em caixas de sapato. Os álbuns de família possuem dinâmicas próprias de vida. Imaginemos que nasçam mediante a adição das primeiras fotografas, cresçam e desenvolvam-se com a incorporação de novas aquisições, adoeçam com a retirada de fotografas ou esfacelamento de suas páginas, envelheçam com o amarelecimento ou o enrugamento de suas imagens e páginas e, às vezes, cheguem a morrer com sua dissolução, restando-lhes apenas imagens avulsas. As memórias fotográfcas ligadas às famílias estão presentes também nessas imagens avulsas. Nesses casos se buscou consultar fotografas familiares que estivessem avulsas ou fora dos álbuns. No universo das práticas em torno das coleções, há que se notar os diversos usos possíveis das fotografas. Percebeu-se que, em alguns casos, as coleções eram guardadas em ambientes reservados; em outros, estavam
51 Dados obtidos em: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fotografco_ docs/photo.php?lid=30840. http://www2.espm.br/sites/default/fles/cartona.pdf.
Acesso em: 12 mar. 2014.
expostas em cômodos das casas, como paredes ou móveis. Portanto, ao lado dos álbuns ou do que sobrou deles, haviam também aqueles retratos ostentados nas paredes, seja do casal, seja de algum membro ilustre da família, e ainda aqueles que, por não serem exibidos, eram apreciados apenas em ocasiões especiais pelos membros ou amigos das famílias. Historiadores que pesquisam imagens devem atentar para a contextualização dos documentos. Para tratar das fotografias nas famílias, podem ocupar-se não somente das imagens-objetos como produtos de uma época, como também dos lugares onde as mesmas foram inseridas no contexto da casa. Na parede, sobre o piano da sala, na escrivaninha do escritório ou no álbum, cada lugar envolve uma experiência particular de recepção da imagem-objeto. Em se tratando do álbum de família, representa um contexto específico em que a imagem está inserida. Ali, deixa de ser singular e passa a ser plural, uma parte dentro de uma composição narrativa da família. Os álbuns de famílias constituem universos visuais narrativos ligados às memórias particulares de grupos. Suas páginas de lembranças estão repletas de imagens que mesclam valores de culto e de exposição. Benjamin (1985) afrma que com o nascimento da fotografa, o valor de culto na arte aos poucos cedeu espaço para o valor de exposição, mas manteve no retrato sua última trincheira de resistência. Caberia, então, a pergunta pela consistência desses valores.
A arte de culto existe como instrumento de magia ou relicário de rituais específcos. Benjamin diz que como objeto de culto o que importa é que exista e não que seja vista por todos, a exemplo das pinturas nas cavernas. Com a arte de exposição, ocorre o oposto, fazendo-se necessário que seja amplamente vista para atingir seu propósito, como é o caso do cinema. Nos acervos familiares, os retratos de parentes falecidos, por exemplo, encontram-se mais associados ao valor de culto, como reserva de foro íntimo, ainda que alguns retratos dessa natureza fossem expostos nas paredes; por outro lado, aquelas lembranças de viagens realizadas, como postais, cumprem fnalidades de divulgação das maravilhas do mundo. De outra forma, o álbum de família (e aqui também a imagem-objeto) consiste no que Le Gof (1996, p. 548) chama de documento/monumento, visto que também resulta do “esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprios”. O álbum é uma representação possível da família, ou parte dela, que fca gravada na memória individual e coletiva. Até que chegassem ao presente na sua atual confguração, as coleções de fotografas de famílias ultrapassaram diversos confitos, dentro e fora dos próprios grupos, como vestígio dessas experiências. Na sua montagem, o álbum de família é sempre resultado de experiência estética, pois envolve as ações de diversas pessoas, desde as formas como os indivíduos foram fotografados ao