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Cartões-postais: uma coleção particular

enquadramento efetuado pelos fotógrafos, ao modelo do álbum e principalmente à maneira como os guardiões das fotografas das famílias disponibilizam as imagens nas suas páginas.52 Schapochnik (1998) assemelha a fgura do guardião a um dublê de arquivista, visto ser quem organiza e dá uma ordem ao acervo; do curador, pois decide quais imagens devem ser expostas na sala e quais outras devem ir para os álbuns; do marchand, determinando a distribuição e circulação do espólio da memória fotográfca familiar; e do guia de visitas de exposições, pois é quem insere as legendas e constitui narrativa à coleção de imagens. Como as famílias nos sertões baianos construíram suas autoimagens através da fotografa? Em que contexto aqueles artefatos estavam inseridos nos espaços físicos e mentais dos grupos? Adentrar esses universos particulares das memórias fotográfcas familiares dos sertões se apresenta como uma janela que possibilita visualizar certos aspectos da cultura fotográfca no Brasil, os mecanismos de distinção dos grupos, suas autoapresentações, bem como as práticas de coleções de fotografas familiares na Bahia. Visualizemos esses planos.

Cartões-postais: uma coleção particular

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O cartão-postal é uma viagem. Para que seja objeto de fruição, já demanda um deslocamento do remetente ao destinatário. No início do século XX, através dos correios ou por

52 A respeito da estética da fotografa, ver LISSOVSKY (2008) e SOULANGES (2010).

vias particulares, percorria uma trajetória desconhecida por muitos até que fnalmente chegasse às mãos do destinatário. Enviá-lo não era garantia de que seria recebido. Os inúmeros extravios pelos serviços dos correios deixavam sempre as incertezas quanto à sua chegada. Ao enviar um cartão-postal do Rio de Janeiro para sua irmã Lili Gonçalves, na Fazenda Piabas, Senhor do Bonfm, Raul escreve: “Não mando pelo correio para que tenha mais valôr, devido não confar nesse nosso serviço público. É uma coisa original e elles poderiam extravial-o”.53 Lili Gonçalves, como conhecida, era uma garota quando recebeu essas e outras mensagens através dos cartões-postais carinhosamente colecionados nas primeiras décadas daquele novo século, quando vivia na Fazenda Piabas. Filha mais nova de José Gonçalves, ex-governador baiano, e de Emiliana Torres Gonçalves, sua segunda esposa. A coleção de postais de Lili traduz valores da Belle Époque como novidade, exotismo, beleza, elegância, civilidade, em um mundo particular daquela jovem sertaneja. Normalmente, os cartões chegavam para ela através dos serviços postais dos correios pela estrada férrea Bahia-São Francisco, aportando na Estação de Jaguarari. O transporte ferroviário, além de seu papel modernizante naquela região do Nordeste baiano, foi um importante veículo de ligações entre pessoas e ideias. Um cartão-postal pode signifcar uma representação do ausente. Uma imagem de uma bela paisagem do Rio de Janeiro

53 Essa e as demais anotações foram extraídas dos cartões-postais da coleção presente no álbum de Lili Gonçalves. Acervo particular da família Gonçalves, em Jaguarari.

possivelmente traduzisse, para quem recebia notícias de um parente ou amigo distante, uma sensação de conforto e de proximidade. Sempre que a saudade apertasse, era possível dar uma olhada para o cartão e ler sua mensagem: “Á minha querida irmãsinha do coração, envio o meu retrato e um beijo sincero e saudoso” ou “Á brilhante luz do sol de hoje, 21 de agosto de 1906, [...] Aji Baptista, envia sinceras e respeitosas saudações à Mademoiselle Emiliana Torres Gonçalves e Silva”. O cartão-postal foi também um importante instrumento de pedagogia do olhar para aquelas populações dos sertões. Através desse formato, imagens de cidades, paisagens e pessoas do mundo eram usadas como forma de educação dos sentidos, dentro dos princípios do progresso e da civilização, típicos do período. Construções urbanas; arquiteturas exuberantes; paisagens bucólicas; fauna e fora de países tropicais ou tipos exóticos eram alguns dos temas explorados pelos cartões -postais do princípio do século. Um exemplar exibindo uma garota de 13 anos, 127 quilos e 1,69 cm de altura foi modelo de uma série sobre o tema (Figura 40). Admirado, Raul envia do Rio de Janeiro para sua irmã Lili: “Envio-te este cartão por achal-o, para uma colecção, de muita originalidade. Eu a vi no palco do ‘Cinema Central’”.

Figura 40 ‒ Cartão-postal, c. 1905

Fonte: álbum particular da família de José Gonçalves, Jaguarari.

A cartoflia foi uma prática cultural que virou moda entre os círculos de letrados em todo o mundo. O advento do cartão-postal ilustrado coincide também com o das revistas ilustradas e representou uma revolução para as mídias da época. Embora tenha surgido na década de 1870, foi em princípio do século XX que apareceram edições mais sofsticadas com reproduções dos meios tons fotográfcos. Os anos entre 1900 e 1925 foram considerados a “era de ouro dos cartões” (KOSSOY, 2002, p. 65). Somente a França, que liderava esse mercado na época, produziu, em 1910, 123 milhões de postais para atender ao público cada vez mais fascinado com o consumo desse produto de coleção. O Brasil acompanhou bem de perto essa epidemia das imagens postais. Ainda no fnal do Império, a “carta-postal” ou “bilhete-postal” foi usado como padrão de correspondência simplifcada submetida à gestão do estado, que distinguia os preços de acordo com a circulação, dentro das cidades, entre as províncias e internacionalmente. Posteriormente, livre do monopólio do Estado, os cartões-postais ganharam novos aspectos e associaram mensagens verbais e ilustrações. Com o desenvolvimento técnico de reproduções de imagens derivados da fotografa, os cartões ganharam em qualidade gráfca. Durante as primeiras décadas do novo século, o produto passou a ser utilizado por grande público, difundindo-se entre diversas idades e gêneros da população brasileira, sobretudo entre as classes letradas (SCHAPOCHNIK, 1998).

Através do colecionismo de cartões, Lili Gonçalves vivia em sintonia com os requintes de educação e elegância defendidos pelas elites de seu tempo. Ainda que residindo em uma fazenda, portanto distante dos centros urbanos onde a agitação da vida moderna era mais pulsante, não deixava de manter-se informada e identifcada com aqueles valores. A coleção de cartões-postais de Lili Gonçalves atualmente encontra-se em posse dos descendentes de seu irmão Raul, na cidade de Jaguarari. Lili não se casou nem teve flhos. A coleção está reunida em um álbum com 110 páginas agrupadas com dois ou três cartões em cada uma. Havia 291 cartões, todos diferentes. O álbum tem suas páginas adornadas em estilo art nouveau, com desenhos de temas angelicais e de fores. Em alguns momentos, dá para perceber uma preocupação em sequenciar as imagens de uma mesma série ou com temas parecidos, o que denota o zelo da colecionadora na organização do álbum. Aos olhos de um observador, separado um século no tempo, os cartões exalam uma atmosfera da época e do universo cultural de Lili. Não podemos apreender o tempo, mas parece que sim. Afnal, não seria esse um dos desejos alimentados na época com a fotografa? Congelar as imagens nas frações do tempo parecia representar uma forma de perenizá-lo.

Figura 41 ‒ Páginas do álbum de cartões-postais de Lili Gonçalves, c. 1905

Fonte: Álbum particular da família de José Gonçalves, Jaguarari.

Quase nada se pode notar através dos cartões sobre o seu modo de vida naquela fazenda. Isso porque entre os postais guardados estão apenas aqueles que Lili recebera de seus correspondentes, portanto, noticiando sobre os mesmos. Por sua vez, as imagens emitidas pelos seus correspondentes constituíram ícones da modernidade que foram paulatinamente invadindo aquele ambiente rural. Os temas dos cartões oscilam entre imagens de cidades; paisagens bucólicas europeias; diversos tipos de flores e variados retratos de crianças, mulheres e casais compostos em cenários artificiais em estúdios, no Brasil e na Europa. A respeito dos estúdios, há um predomínio para diversas agências francesas, mas também se nota outras alemãs, portuguesas e brasileiras. O francês fora o idioma usado para emitir mensagens de felicitações entre ela e sua amiga, Alice Sá. Havia uma conjunção entre texto e imagens nos cartões de Lili. O apelo visual possibilitava uma ligação que se poderia chamar de uma comunicação visualizada (Figuras 42 e 43).

Figura 42 ‒ Cartão Postal, 1907

Fonte: Álbum particular da família de José Gonçalves, Jaguarari. Anotação no verso: “Lili, esta vai abraçar-te em meu lugar. Nathália”.

As anotações e mensagens constituem pistas deixadas dos circuitos sociais que permeiam os cartões. Lili se correspondia com pessoas de cidades próximas ou distantes: Campo Formoso, Amargosa, Juazeiro, Pouso Alegre, Nazaré, Salvador ou Rio de Janeiro. Em geral eram amigas, familiares ou conhecidos que, com gestos de cordialidade e polidez, emitiam votos de amizades e desejos de felicidades. “Abraço-te desejando-te mil venturas e felicidades. Se pudesse transpor o espaço voar

como vôa o pensamento iria pessoalmente dar-te meus sinceros parabéns. Amiga Nathalia”. Apesar da distância dos centros agitados, Lili não vivia isolada e suas lembranças sugerem isso.

Figura 43 ‒ Cartão-postal, c. 1908

Fonte: álbum particular da família de José Gonçalves, Jaguarari. Anotação do verso: “Lili, estes dois brejeiros vão abraçar-te e levar minhas saudades. Sempre amiga, Nathália”.

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