: : Revista do Curso Superior de Tecnologia em Fotorafia da UNICAP - #11, Agosto 2018 : :
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Editorial
Escaneie o código QR ao lado, através de aplicativo no smartphone, e acesse todas as edições da
Expediente Coordenação: Renata Victor Edição: Carolina Monteiro Coordenação Editorial: Carolina Monteiro Programação Visual: Candeeiro Audiovisual Diagramação: Alícia Cohim Textos: Julianna Torezani, Filipe Falcão, Germana Soares, Bethânia Correia, Marina Santos Lucas Alves, Rebeca Soares Patrício de Araújo, Elizabeth de Carvalho, Jefferson Coriolano, Rafael Lemos, Catarina Penycook e Ruth Luna, Douglas Fagner, Niedja Dias, João Guilherme Peixoto e Liliana Tavares. Ensaios: Filipe Falcão, Catarina Pennycook e Ruth Luna, Douglas Fagner, Gil Vicente, Larissa Alves e Vitória Aranha. Foto da capa: Ana Lira.
A UnicaPhoto é uma publicação semestral do Curso Superior de Tecnologia em Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco. (ISSN 2357 8793)
Foto Renata Victor
na web
Feliz aniversário, Fotografia. É com enorme alegria que comemoramos o dia mundial da Fotografia com o lançamento da 11ª edição da UNICAPHOTO. Temos como objetivos centrais agregar, fortalecer e compartilhar conhecimentos imagéticos. No momento atual, as concepções de ensino e as formas de construção do saber vêm se modificando em decorrência das transformações sociais, sobretudo ligadas ao desenvolvimento tecnológico e aos meios de comunicação. Isso resulta na necessidade de ofertarmos aos nossos alunos uma formação efetiva, alinhando ensino, pesquisa e extensão. Concatenados com esses pensamentos, criamos o Núcleo de Ações de Extensão Social. O Núcleo conta com a participação de professores e alunos do curso Superior de Tecnologia em Fotografia e da especialização As Narrativas Contemporâneas da Fotografia e do Audiovisual, mas também com demais cursos da UNICAP. A meta é
realizar cursos, seminários e ações referentes aos princípios humanista e inclusivo. Buscar parcerias com empresas públicas ou privadas que possuam posturas, comportamentos e ações de responsabilidade social e com o terceiro setor. Acreditamos que a fotografia tem muito a contribuir com o aprendizado do saber-conviver, na construção dos valores éticos, nas relações com a sociedade e a prática da inclusão social. A Fotografia surpreende e se reinventa. Ela muda de suporte, amplia as suas funções sociais e se afirma como importante instrumento para história, memória e cultura mundial. Ela também tem o poder de agregar pessoas, aumentar autoestima e ser um forte instrumento de inclusão social. A seleção temática desta edição contém estudos e ensaios fotográficos desenvolvidos por alunos do Curso Superior de Tecnologia em Fotografia e da especialização As Narrativas Contemporâneas da Fotografia e do Audiovisual, entrevista feita por Márcia Laranjeira com a fotógrafa Ana Lira, agraciada com o prêmio Alcir Lacerda 2018, juntamente com o legendário fotógrafo Edmond Dansot. Trazemos as tradicionais colunas e seções, mas temos novidade: a coluna de Liliana Tavares com audiodescrição de uma imagem de minha autoria. Por fim, desejo uma boa leitura e agradeço aos alunos, professores, colaboradores que contribuem para a existência da 11ª edição UNICAPHOTO, em especial a professora/ editora Carolina Monteiro e a fotógrafa e diagramadora Alícia Cohim.
Renata Victor Coordenadora do Curso Superior de Tecnologia em Fotografia da Unicap
Clique aqui para assistir ao vídeo sobre Edmond Dansot.
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sumário
A Câmera de Pandora Entrevista com Ana Lira
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Verde concreto
Projeto diários de bordo
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Aconteceu 2018.1
06 Pós-graduação em Fotografia e Audiovisual chega à terceira turma
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Sagrado e profano sobrepostos Silêncio e solidão em Chernobyl
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66
Os ciclos da história em exposição multimídia Lula Cardoso Ayres pelas lentes da fotografia
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Fotografia nortuna
Gabriela
Quando a educação inclusiva ensina a voar
20
Releituras fotográficas
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Duas garotas em Brixton
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140
A filosofia da caixa preta e Cláudia Andujar
138
Audiodescrição de um clikc e o som que vem do entorno
130
O “Kiosque” de Wilson
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A representação da mulher no cinema sul-coreano
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Termo de autorização de imagem
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aconteceu
2018.1
Março Abril
- Alunos do Curso de Fotografia visitam o Acervo Fotográfico da UNICAP; - Alunos do Ganhando Asas Através da Comunicação e da Arte visitam Museu da Cidade do Recife; - Alunos da graduação de Fotografia recebem Rafael Medeiros para um bate-papo; - Alunos da graduação de Fotografia recebem Simone Silvério e Jaiel Prado para um bate-papo sobre Fotografia & Negócios; - Inclusão de pessoas com deficiência no ambiente socioeducacional é tema de videoconferência entre UNICAP e UNC;
Junho
- Alunos prestigiam exposição de Helia Shepa na galeria Arte Plural; - Lançamento dos cursos de Extensão para as Férias de 2018.1; - Exposição Interdisciplinar 2018.1; - Palestra com o colorista Paulo Nóbrega;
- Palestra do professor Marcelo Costa para os alunos da especialização As Narrativas Contemporâneas da Fotografia e do Audiovisual; - Professora Renata Victor faz aula de campo para os alunos do primeiro módulo; - Alunos da graduação de Fotografia recebem Mateus Asfora, Victor Muzzi e Tato Rocha para um bate-papo; - Evento Mulheres em Foco; - Firmada parceria do Curso de Fotografia com a ONG Eficientes Deficientes;
“A releitura fotográfica de Thomaz Farkas”, dos alunos Natália Albuquerque e Luan Mateus, recebeu o primeiro lugar na modalidade “Fotografia Artística” e o ex-aluno Douglas Fagner levou o prêmio pelo trabalho “Retratos Vida e Poesia”, na modalidade “Filme de não ficção/Documentário/Docudrama”. http://portalintercom.org.br/anais/nordeste2018/expocom/EX62-1247-1.html
Maio
- Terceira Gincana do Saber Fotográfico; - Alunos da graduação de Fotografia recebem Pedro Pereira para um bate-papo; - Alunos da graduação de Fotografia recebem Marcos Fraresso, Pedro Pereira e Luiz Netto para um bate-papo; - Fotógrafo Evandro Veiga oferece Workshop de retratos no Ciclo Master Class; - Oficina de Light Painting no V Encontro Nordeste de História da Mídia; - Palestra Recife em Imagens; - Saída fotográfica para Tracunhaém - PE; - Visita ao Portomídia.
Julho
Clique aqui para assistir ao vídeo de Douglas Fagner, vencedor do prêmio Expocom Nordeste.
- Alunos do Curso de Fotografia ganham prêmio Expocom Nordeste; - Colação de grau 2018.1; - Saída Fotográfica promovida pelo Diretório Acadêmico do Curso de Fotografia; - Turma da Especialização tem bate-papo com o ex-aluno Douglas Fagner, vencedor do prêmio Expocom Nordeste; - Vestibular UNICAP 2018.2; - Visita ao Portomídia.
Agosto
- Abertura do semestre 2018.2 - Aula inaugural da terceira turma da Especialização As Narrativas Contemporâneas da Fotografia e do Audiovisual; - Curso de extensão de Fotocolagem X Fotomontagem com Flora Romanelli; - Prêmio Alcir Lacerda
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UnicaPhoto – Ana, muito obrigada pela disposição em compartilhar sua experiência. Vamos começar por sua formação, como se deu o início do teu trabalho com a fotografia?
entrevista
Ana Lira – Minha formação em fotografia tem se dado, basicamente, em cursos livres e workshops no Brasil e no exterior. O início se deu em 2006, no Recife, e desde então passei a produzir minhas próprias oficinas e cursos também. Em 2010, na Turquia, participei da iniciativa de um coletivo de fotógrafos que a cada ano escolhe um país para desenvolver um trabalho documental: trata-se do Projeto Foundry, que assim constitui um circuito de workshops de fotografia documental. Mas a minha formação profissional começou em engenharia civil. Só que nos últimos períodos, troquei o curso pelo de jornalismo, tendo me graduado pela Unicap, em 2006.
Clique aqui para assistir ao vídeo.
Entrevista com
Ana Lira
Por Márcia Larangeira | Fotos Renata Victor
Fotógrafa e artista visual que vive e trabalha no Recife, Ana Lira é a homenageada da edição 2018 do Prêmio Alcir Lacerda, concedido pelo curso de Fotografia da Unicap a nomes importantes da fotografia pernambucana. Seus trabalhos se debruçam sobre relações de poder e implicações nas dinâmicas de comunicação em projetos que articulam narrativas visuais, material de imprensa, mídias impressas, publicações independentes, intervenções urbanas, textos e projetos educacionais especiais. Esta entrevista foi realizada pela jornalista Márcia Larangeira, aluna da pós-graduação As Narrativas Contemporâneas da Fotografia e do Audiovisual, no âmbito da disciplina Gestão de Projetos Criativos, orientada pela jornalista Carol Monteiro. O encontro com Ana resultou em uma longa, densa, inquietante e agradável conversa, dando a perceber que as questões, análises e reflexões e – porque não – provocações dialogam com a proposta do curso de estimular o debate sobre potencialidades e desafios no campo da produção fotográfica na contemporaneidade.
Naquele mesmo ano, participei do Projeto Templo Sagrado, realização conjunta de três coletivos: o Canal Zero3, formado por Matheus Sá, Luca Barreto, Beto Figueiroa e Elenilson Soares, em parceria com a Agência Ensaio, da Paraíba, formada por Ricardo Peixoto, um núcleo de fotógrafos que rodavam em torno da agência, e Henrique José, que era da Agência Zoom, do RN, uma agência de imagens que integrou ao seu trabalho a formação para a juventude popular urbana e rural, pensando a fotografia a partir de dinâmicas participativas. Todos esses coletivos têm essa “pegada” com formação em comunidades, bairros populares e tal. Eram tempos de Copa do Mundo e eles fizeram um projeto que enfocava o futebol a partir dessa dinâmica mais popular e livre das comunidades populares nas cidades. Então, começaram a fotografar, por exemplo, o futebol de várzea, dos campinhos comunitários... daí o nome Templo Sagrado. Quando o projeto terminou, eles precisavam fazer oficinas em três cidades: Recife, João Pessoa e Natal. U – Quais diferenciais emergiram nesse aprendizado? AL - No Recife, eles trabalharam questões relacionadas ao processo criativo como um todo: Ricardo trabalhou a percepção corporal na sua relação
com o mundo e sua transformação em imagem; a equipe do Canal Zero Três enfocou processos de documentação e formação de acervo, com ênfase na fotografia humanitária. A ideia básica de todas essas formações é a construção de relações de alteridade com o Outro e não vê-lo como objeto. Não partir do princípio de que o que você está fotografando é simplesmente um material sobre o qual você se debruça e que depois de te dar alguma coisa, você vaza e vai fazer outra coisa. Não. É a proposta de você estabelecer uma comunicação, um processo de empatia e entender como é que esse aprendizado se faz junto com o Outro no momento em que você está produzindo a imagem. E eles trouxeram para as oficinas uma série de ferramentas que até hoje utilizo no meu trabalho, como por exemplo, observar a cidade a partir de perspectivas que não são as tradicionais. Porque sempre temos a ideia de construir um discurso sobre a cidade que parte de uma visão hegemônica sobre quem são os personagens da cidade. Então, era sempre aquela coisa de primeiro, sempre tratar quem a gente fotografa como o Outro e que, na verdade, o tal Outro somos nós: nós é que estamos ali em relação. U – A alteridade se estabelece numa via de mão dupla... AL – Exato. E mais: reconhecer que você não dá voz a ninguém. Na real, todos nós temos vozes. E o que a gente necessita, na verdade, para que esse processo se encaminhe da maneira mais honesta possível, é que haja um exercício de escuta mútua. Nunca partir do princípio, por exemplo, de que trabalhar com a juventude popular urbana significa fazer um favor. É preciso pensar como é possível partilhar conhecimento para potencializar esse contexto e reconhecer como esse contexto também nos potencializa, ou seja, entrar na dinâmica de trocas. Essa experiência é muito importante quando te faz deixar de pensar a fotografia como imagem técnica para utilizar uma perspectiva mais vinculada ao sentir – o que leva o teu trabalho para outro lugar. Você deixa de se preocupar com foco, cor ou P&B para começar a pensar de onde vem sua trajetória; como essa trajetória influencia o que você está produzindo em termos de imagem U NICAPHO T O
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e o que a sua imagem está comunicando. E eu descobri uma série de coisas a respeito da minha própria pessoa, olhando as imagens que eu produzia e mostrando-as para os meus amigos. Então, isso me levou a procurar entender, principalmente, por onde essas temáticas estavam caminhando e, de certa forma, a uma ruptura com o circuito fotográfico majoritário, que parte do princípio de que você tem que inventar alguma coisa para fotografar e que, de preferência, essa coisa esteja sintonizada com o que esse circuito está interessado em apoiar naquele momento. E com isso, o que você cria é uma gama de fotógrafos desesperados para encontrar a senha de acesso a esse circuito ao invés de eles olharem para si, atentarem para essa experiência e se perguntar: o que significa o ato de fotografar? O que essa experiência me traz de importante? Porque eu coloco uma câmera na bolsa?
U – Você também adota a linha? AL – Eu não estava adotando essa linha; eu vivia nessa angústia até essa palestra do Eustáquio. Porque havia fases da minha vida em que eu achava que não seria fotografando que eu iria resolver as questões que eu estava necessário resolver, e eu me sentia pressionada pelo circuito fotográfico a produzir uma resposta. Quando ouvi Eustáquio dizer isso, eu rompi com a ideia do circuito fotográfico e retornei à minha formação inicial, que era muito abrangente e que me deu liberdade para escolher, a cada fase da minha vida, como eu iria querer responder às questões que estavam me chegando.
U – Depois dessa iniciativa, você prosseguiu só, tocando seus próprios projetos? E como fluem as parcerias? AL- Quando a gente fala em parceria é pelo fato de serem pessoas com quem mantenho um diálogo constante, nunca deixamos de colaborar uns com os outros. Com o tempo, eles também nos colocaram em contato com pessoas importantes, como o Eustáquio Neves, que mora em Diamantina (MG), e Miguel Chikaoka, do Pará, duas grandes referências na fotografia. Na primeira edição do Pequeno Encontro de Fotografia, em Olinda, o Eustáquio falou que quando a gente está estabelecendo um processo de dinâmica de trabalho, o mercado nos força a dar respostas o tempo inteiro. E isso, pra gente, é uma dinâmica extremamente violento, porque há temáticas que não se conectam com você. Então, se isso ocorre ou se há temáticas sobre as quais você não se sente confortável de falar, você não tem que se sentir obrigado em dar respostas ao mercado. Ele contou que ao entender isso, passou a respeitar os períodos dele de silêncio. Quando ele não tem o que dizer, ele se cala; e só produz trabalhos quando percebe que dentro dele há uma maturação e um desejo de falar sobre uma determinada temática. Aí, ele faz uma produção e a coloca no mundo.
balhos que ainda estão em processo. Como você articula isso com o trabalho fotográfico como fonte de renda, considerando um dilema que você apontou: viver na angústia de ter que dar respostas ao mercado, conseguir dar prosseguimento a um trabalho autoral, com pesquisa de linguagem e, ainda, fazer do ato fotográfico algo que tenha sentido pra você? Como é possível equacionar U – Nesse caso, você percebe que o texto teria o papel de tudo isso? complementaridade ou seria outra linguagem que entra AL – Quando eu me formei fotógrafa, trabalhando em diálogo com a linguagem da fotografia? profissionalmente, existia um dilema muito comum AL – Sim, é isso. Talvez eu tenha usado o termo com- entre fotógrafos do Recife: a divisão entre trabalho plementaridade porque o meu primeiro trabalho veio autoral e trabalho comercial. Eu entendia que isso não do fotojornalismo, onde o texto é a peça principal e ia dar pra mim, porque eu sou muito fiel às minhas a imagem apenas ilustra o texto. Quando penso em convicções emocionais e filosóficas para poder fazer complementação quero dizer que, na verdade, texto um trabalho para (num exemplo pragmático) uma e imagem têm a mesma importância e estão ali num empresa de construção civil e conseguir fazer meu processo de interlocução, onde uma não se sobrepõe trabalho autoral. Então, o que eu fiz? Passei a olhar à outra. Usar a legenda de fotos, por exemplo, para para a minha trajetória (levei um ano ano fazendo fazer uma descrição literal da cena, só tem sentido se isso), identificar as potencialidades que eu tinha está dirigida a quem tem deficiência visual. Agora, se para começar a criar um mercado, em que todos você considera que o público não tem condições de os trabalhos que eu fizesse alimentassem a minha ler uma fotografia, é preciso trazer informações que pesquisa; mesmo naqueles em que eu não estacomplementem aquilo ali; do contrário, haverá uma va fotografando. Por exemplo: eu dou aula, faço perda de espaço de comunicação. Então, eu voltei a escrever e a desenhar, passei a formatar o meu trabalho em outras linguagens que, de alguma maneira se relacionam com as imagens, mas que não é apenas imagem. Voltei a fazer pesquisa de acervo e a utilizar imagens de jornais, a pensar em outras possibilidades, a fazer muito carimbo...
curadoria, escrevo textos, trabalho com acervos e fotografo. Uma das coisas que logo percebi é que U – Seu portfólio e a história que você me conta apon- as relações de poder dentro da área social me intam para um trabalho de cunho ensaístico. E tem tra- teressavam. U NICAPHO T O
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O primeiro caminho foi montar um portfólio e procurar as organizações que trabalhavam com esse temário - organizações não governamentais, organizações sociais – e com as quais me interessava fotografar. E comecei a fazer pequenos trabalhos, que iam me sustentando e me permitiam construir um acervo importante para minhas pesquisas. Num segundo caminho, pensei que se as organizações não têm grana para pagar por ensaios fotográficos, como ocorre agora, eu escrevo para editais, visando projetos conjuntos, ou dou cursos, dentro dos quais busco levar algo interessante para quem está participando, mas que também alimente a minha pesquisa.
AL – Outras regiões também. Há dois anos venho fazendo articulação com a Associação Foto Ativa, localizada em Belém do Pará. E muito por causa de Miguel Chikaoka. Eu também passei por um processo que, inicialmente, foi de formação pessoal e que me ajudou a diagnosticar lacunas no mercado fotográfico: entre 2008 e 2013, eu fui para todos os festivais de fotografia do país. Eu estava trabalhando e estagiando e usava esse dinheiro para pagar as contas do mês e planejar essas viagens. À medida que eu fui circulando, fui entendendo, que havia um problema nas leituras de portfólio. U – Como assim?
U – Então você faz um diagnóstico de cada situação? AL – Vou fazer críticas bem sérias: existe um problema no circuito da fotografia documental; AL – Exatamente: eu traço um diagnóstico que a ideia de que você precisa fazer um determiname leva a pensar um programa e propor meios do tipo de imagem e ter um determinado tipo de para resolver esses problemas, estimulando as or- comportamento para ser aceito no mercado. Isso ganizar a buscar financiamento. E aí, a gente vai é muito alimentado pela indústria de prêmios de negociando, fazendo as adaptações de modo a fotografia, extremamente meritocrática. Por esse que eu consiga ajudar a resolver uma questão de- motivo, a linguagem dela é: participe, que você les e me sustentar e a produzir a minha pesquisa. pode se tornar um importante nome da fotografia Às vezes, quando me dizem que não podem pagar documental mundialmente. o valor total da oficina, eu proponho alternativas, Então, havia fotógrafos que faziam de tudo para tipo: ok, então vocês me pagam 70% do valor total e caso eu precise realizar alguma produção na tua região, vocês me garantem hospedagem e alimentação? U – Ou seja, há uma resiliência aí. E isso é de ambas as partes? Tem funcionado? AL – Sim, isso tem funcionado. E uma das coisas super importantes para mim é poder dar retorno do meu trabalho. Se eu fotografo uma família no semiárido, quero voltar lá para entregar as imagens. Às vezes, eu tenho como ir, mas os custos mais altos de um deslocamento feito esse são hospedagem e alimentação; mas muitas vezes as organizações já têm isso dentro de seus programas. É isso ou, se eles têm hotel garantido, vejo se posso ficar no hotel, ou se me conseguem a casa de um agricultor para ficar... U – Então, o mercado que você construiu integra Pernambuco, estados do entorno e onde mais?
“Existe um problema no circuito da fotografia documental; a ideia de que você precisa fazer um determinado tipo de imagem e ter um determinado tipo de comportamento para ser aceito no mercado.” U NICAPHO T O
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tos dos festivais, das premiações e da meritocracia. Dentre esses, você destaca um dilema ético. AL – É. Porque se criou uma ideia de que no momento em que você chega ao que eles chamam de “topo da carreira” (que topo seria esse?) você vai ficar em evidência. Na verdade, essa é uma busca por uma autoimagem. No momento em que o circuito constrói essa meritocracia - o que eu chamo de “política dos eleitos” -, cria-se dentro desse contexto a ideia de que é preciso exercitar um vale-tudo para chegar a esse lugar. Por outro lado, cria-se também a ideia de que quem não passa por esse filtro dos eleitos, está condenado no mundo da fotografia. E à medida que as imagens referenciadas por essa política de eleitos são divulgadas, elas vão gerando uma fórmula. U – E estabelecendo um cânone de como você deve fotografar.
criar uma grande imagem. Há caso na África em que o cara ia cobrir guerra, as pessoas morriam e usavam o corpo morto para fazer um tripé... Ou como o rapaz que participou do projeto em Istambul, onde falou do trabalho dele no Haiti. E no momento em que as pessoas perguntaram: você ficou duas semanas no Haiti? E porque foi embora? E ele: Ah, eu tinha pouco dinheiro e não podia ficar pedindo dinheiro aos meus pais só porque gostava de fotografar. Daí, outra fotógrafa, que vinha da área documental com uma perspectiva humanista, disse: você não pode ir pro Haiti só pra fotografar. O Haiti está em uma situação onde as pessoas disputam comida, que a água está racionalizada, existem poucos lugares seguros para dormir. E as pessoas que estão lá e as que estão ajudando não podem disputar com você água e espaço, só porque você quer satisfazer seu hobby pessoal. Então, ou você vai para um lugar desses porque tem um interesse de construir uma narrativa que ajude aquelas pessoas ou é melhor você não ir. U – Você disse que há alguns problemas dos circui-
AL – Exato. Então, fotógrafos que olham para aquele cânone, para essa política de eleitos e querem chegar nesse lugar, mesmo que a sua trajetória não tenha nada a ver com aquilo, vão perseguir esse formato. O que acontece muitas vezes? O trabalho chega lá esvaziado; perde a alma. E aí, quando vamos dar cursos para pessoas com essa preocupação, o que encontramos são meninos, meninas e até adultos num estado gritante de ansiedade para aprender como fazer imagens para chegar àquele lugar almejado. Já encontramos fotógrafos em crise gigante, porque olham para seu próprio trabalho, veem suas imagens com aquele nível de potência, mas acham que eles não estão ali. E começam a se desvalorizar e autodestruir. O que comecei a fazer foi desenvolver um processo de cursos que fizessem um caminho in verso. A partir das respostas à pergunta inicial porque você está fotografando tal tema? Quando eu via que as pessoas estão fotografando pela linha linhagem dessa “política de eleitos”, tentava ver se o tipo de fotografia feita tinha a ver com a trajetória da figura. A partir daí passamos a tentar pesquisar sobre a seguinte questão: se o circuito tem essa política dos eleitos e domina no Brasil, onde vamos publicar nossas imagens? A primeira saída era criar nosso próprio circuito e a segunda
era procurar circuitos paralelos na América Latina. Então, é um eterno processo de busca de saídas. E isso foi super importante para construir esses caminhos. É um trabalho de muita pesquisa, onde a gente fica mapeando, tentando entender como funciona... Entender que nem todos esses trabalhos conseguem circular no circuito Rio São Paulo, que há trabalhos que só vão circular bem no circuito de Belém ou no circuito de Porto Alegre...
nho que estou trabalhando. Não se pode partir do princípio, hoje em dia, de que só nós fotografamos: todo mundo está fotografando. O que falta é a galera saber editar, saber curar e saber, principalmente, que narrativa você está construindo sobre você.
U – Ana, você tem uma larga trajetória profissional com fotografia e no campo das artes visuais, enfrentou barreiras e consolidou sua obra, que tem um sentido político muito denso. Nesse caminho, U – O que você diz me sugere pensar que o circuito como você percebe e analisa a dinâmica racial? De de premiação pode dar uma impressão inicial ao que maneira isso impacta o seu trabalho? fotógrafo de que ele ou ela poderá ter uma avaliação crítica do seu trabalho. Mas na verdade, o tipo AL – O circuito da arte neutraliza e não aceita as de avaliação vai se enquadrar dentro de um cânone temáticas negras, as técnicas negras... A maioria pautado pelo que o mercado exige e que muda ao dos artista s negros está nas ruas, na arte urbalongo do tempo, ainda que a indústria não perma- na, nos grafites, nas várias formas de produção neça... do artesanato, nos maracatus, são os mestres de maracatus, é a galera da sambada... E esse circuito AL – Sim, é isso. E isso é que é perigoso. Eles mu- não entra nos espaços institucionalizados da arte dam os cânones. Vou dar um exemplo de uma contemporânea. E quando eu entendi isso, pensei: conversa que tenho tido com pessoas aqui no Bra- como é que a gente vai trabalhar então? Qual era sil: os grupos querem, agora, trabalhar com ne- o meu papel nesse processo? Essa percepção me gros, mulheres e indígenas. A gente precisa enten- motivou todas as outras pesquisas que eu venho der o que é estrutura e o que é fetiche. Como é que fazendo. a gente transforma fetiche em estrutura ou como é que a gente alimenta o fetiche e não alimenta a U - De que maneira? estrutura? Porque o que é construir estrutura? É AL - Em termos práticos, hoje em dia, para se faconstruir uma forma de atuação para que, depois da moda passar, que isso permaneça; que essas vozes não deixem de ser escutadas... U – Esses corpos não deixem de ser vistos... AL – Pois é. Porque novos corpos vão precisar emergir. Construir isso é construir espaços de respiro para além do que a indústria te oferece como solução. U – Viver de fotografia é diferente de viver a fotografia? AL – Sim. Viver da fotografia não é só fazer o clique. Há outras formas de trabalho como fazer curadoria, por exemplo. Mas eu não vou criar uma narrativa sozinha: é preciso conversar, escutar quem fez as fotos, olhar junto para as imagens e pensar no que é esse diálogo. Esse é um camiU NICAPHO T O
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zer uma exposição de arte, é preciso pagar curadoria, a montagem, as obras, o transporte das obras, o buffet de abertura... Quantos artistas negros no Recife têm condições de fazer isso? Essa é uma questão que a gente tem que pensar. Artistas produzindo há; mas artistas com condições de circular essa produção é outra negociação. Porque, historicamente - até pela maneira como o mercado se conduziu no processo escravista - se esperava que os negros descendentes se virassem sem qualquer tipo de estrutura. Isso se refletia no tipo de trabalho que se dava a essas pessoas, o tipo de formação... Eu tenho tentado sistematizar um conhecimento e um debate sobre isso.
aniquilar, se não fisicamente, moralmente, socialmente, porque esses corpos estão aí levando fumo todo os dias, como aviõezinhos de tráficos de drogas ou na convivência. Porque eu me incluo também nesses corpos. A partir do momento em que eu tenho que sair da Várzea para o centro da cidade, pegando de quatro a oito ônibus por dia, carregando equipamento nas costas, e escolhendo o melhor trajeto para evitar ser assaltada, enfrentando processo de a polícia olhar sua mochila e perguntar: de quem é essa câmera? Porque isso é uma coisa que a galera não presta a atenção... Eu não posso comprar equipamento sem nota fiscal. Imagina: você é uma figura formada, pós-graduada, que falo inglês, tenho um currículo gigante, atuo há 20 anos e por quê? Para evitar situações como ocorreu no aeroporto de Belo Horizonte, onde eu tive que provar para o cara da Polícia Federal que eu não era uma mula de alguém que estava tentando transportar dólar dentro de equipamento fotográfico. Quando a gente entra nesse Hoje, temos um campo artístico que, primeiro, micro-debate é que a gente entende que essas dinão tem dinheiro, não apóia o trabalho desses ar- ferenças são gritantes e que a moçada não aborda tistas... Quantos museus abrem as portas para ar- isso. tistas negros; quantas exposições de artistas visuais negros – individuais ou coletivas – ou quantos U – A sua trajetória de trabalho e pesquisa se misartistas negros são convidados a expor; quantas tura e vai se forjando na experiência cotidiana. obras desses artistas são compradas para compor o acervo? Nunca se olhou para isso. Na fotogra- AL - O tempo inteiro as catracas vão fechando. fia, menos ainda. Há fotógrafos negros brilhan- E enquanto isso vai acontecendo, eu tenho que tes aqui em Pernambuco, mas eles estão todos encontrar brechas, se não, eu vou seguir a mesnos jornais ou em coletivos periféricos, que são ma trajetória das minhas avós, das minhas bisaos meninos do Coletivo Força Tururu, do MAB vós: ser maltratada na cozinha dos outros. E isso no Coque, de Brasília Teimosa... E é uma moçada não faz sentido para mim. Mas hoje eu também que está trabalhando em casamentos, batizados, faço outro raciocínio. Ao mesmo tempo em que é ainda que tenham capacidade de produzir traba- importante quebrar com uma linha ancestral deslhos autorais. E ainda que venham numa trajetó- se lugar de servidão, é preciso fazer isso de dois ria de afirmação de um discurso no mundo, não modos: tanto ocupando outros espaços quanto valorizando esses espaços que foram ocupados têm apoio financeiro. Em São Paulo, participei de uma exposição inti- por nossas avós. Se for para assumir um lugar de tulada Agora somos todxs negrxs?, no Vídeo Bra- intelectual a partir do parâmetro de dominar as sil, que parte dessa questão levantada pelo Daniel ferramentas de quem dominou a gente, eu não esLima para levantar discussões. Realizei dois tra- tou a fim, não. E isso é para tudo. Hoje, para mim, balhos: pintei a frase Que bocas alimentam fé em é uma filosofia de vida desmanchar a construção consumir corpos que levam fumo (foto), e outro da “política dos eleitos”. E com isso, dar oportubaseado no caso dos cinco meninos assassinados nidade para fazer emergir outras narrativas que na Costa Barros pelo mesmo batalhão que matou estão aí e permitir às pessoas respirar nesse lugar Marielle. Eu quis propor um trabalho forte para de existência. Dentro e fora da imagem. Meu trafalar desses discursos que são feitos para matar, balho está todo focado nessa construção.
“Viver da fotografia não é só fazer o clique.”
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reportagem
Pós-graduação em Fotografia e Audiovisual chega à terceira turma Fotos Adelson Alves
A fotografia mudou. A prática de congelar o instante em uma imagem estática não condiz mais com as demandas de um campo que se renovou com a revolução digital e continua mudando a cada nova tecnologia, criando interfaces com outras linguagens. Com o objetivo de refletir sobre a imagem no século 21, a Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) lançou a pós-graduação As Narrativas Contemporâneas da Fotografia e do
Audiovisual, que chega à terceira turma neste segundo semestre de 2018. O curso tem duração de 15 meses (360 horas/ aula) e público-alvo formado por profissionais de Fotografia, Audiovisual, Comunicação, Artes, Design, Moda, Ciências Humanas e Ciências Sociais. As aulas são realizadas às segundas e quartas, das 18h às 22h, e o curso tem coordenação da professora e fotógrafa Renata Victor. Entre as disciplinas oferecidas estão conteúdos das áreas de Direção de Fotografia, Edição de Vídeo e Finalização, Fotografia: Crítica e Curadoria, Gêneros do Audiovisual, História e Estética da Fotografia e do Audiovisual, Literatura, Fotografia e Audiovisual, Metodologia da Pesquisa, Narrativas Poéticas e contemporâneas da Fotografia, Processos Criativos e Gestão de Projetos em Fotografia e Audiovisual e Produção do Audiovisual. No corpo docente, professores e pesquisadores da Unicap, realizadores (entre produtores e diretores
“Quem trabalha com fotografia e audiovisual deve estar sempre procurando ver coisas novas, se atualizar, principalmente porque os avanços tecnológicos acontecem muito rápido.”
cem muito rápido. E, tanto eles quanto a pesquisa requerem atualização frequente. Esta é a dinâmica da nossa área, da comunicação e do entretenimento como um todo”, comenta o fotógrafo Gil Vicente, concluinte da segunda turma da pós-graduação, apontando ainda importância de aliar teoria e prática no campo da imagem. “A academia é um espaço de troca de ideias muito interessante. Foi muito gratificante para mim e despertou a vontade de continuar pesquisando na área, agora aplicando tudo o que aprendi”, completou. Para Amanda Oliveira, graduada em Fotografia pela Unicap e aluna da terceira turma, o clima é de expectativa. “Decidi fazer o curso porque já tinha confiança tanto na instituição quanto nos professores que conheci na graduação. Gostei também da grade curricular, que é muito contemporânea e achei importante aprender mais, principalmente sobre parte de audiovisual”, comenta.
de cinema) e convidados, como a jornalista, fotógrafa, crítica e professora também da Faculdade Cásper Líbero, Simonetta Persichetti. “Pensei em fazer o curso porque quem trabalha Para saber mais sobre a pós-graduação As Narrativas Contemporâneas da Fotografia e do Audiovisual acesse: http:// com fotografia e audiovisual deve estar sempre www.unicap.br/galeria/pages/?page_id=13860. procurando ver coisas novas, se atualizar, principalmente porque os avanços tecnológicos aconteU NICAPHO T O
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reportagem
Quando a educação inclusiva ensina a voar
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Fotos Adelson Alves
A Universidade Católica de Pernambuco é pioneira em um curso de extensão para jovens com Síndrome de Down e Deficiência Intelectual, que chegou neste semestre à segunda turma com muito aprendizado, para alunos e professores, não apenas sobre os conteúdos oferecidos nas aulas mas ainda sobre como buscar a inclusão, estimular a capacidade cognitiva e ampliar a identificação pessoal nas atividades desenvolvidas. A segunda turma do curso de extensão Ganhando Asas Através da Comunicação e da Arte foi composta pelas disciplinas de Fotografia e Vídeo (professores Renata Victor e Filipe Falção); Produção em Telejornalismo (Aline Grego), Produção de Conteúdo para Rádio Web (Andréa Trigueiro), Jogos Digitais (Juliana Miranda), Desenho (Humberto Montenegro) e Artes Cênicas (Vicente Monteiro). A proposta era oferecer uma grande variedade de temas desde percepção dos sentidos,
vocalização, movimento do corpo, reciclagem, identidade, imaginação, planejamento e desenvolvimento de projetos. “Na segunda turma, os alunos demonstraram familiaridade com o projeto por terem construído fortes laços de amizade e de companheirismo no primeiro semestre do curso. Eles pareciam estar mais seguros com o espaço e com a proposta do projeto”, comentou Larissa Alves, auxiliar de ensino do projeto. Nessa segunda turma, continuamos a conduzir rodas de diálogos no início das aulas a fim de estimular a fala e a empatia dos alunos, trabalhar a autonomia e para melhor conhecer seus pontos de vista sobre os assuntos abordados e suas experiências nas aulas”, completou, apontando o crescimento em relação à comunicação dos alunos, uma vontade de ser escutado e de compartilhar suas histórias. Para Larissa, toda pessoa com Autismo, Síndrome
de Down ou com outra deficiência têm o mesmo direito e precisa educar-se como pessoas consideradas normais. A iniciativa da Unicap, com apoio da Ebrasil, de inserir um curso de extensão na área de comunicação e de arte para jovens com deficiência no âmbito universitário é de extrema importância. O Ganhando Asas torna-se uma oportunidade não só para os alunos, mas para os professores que participam da iniciativa e, também, dos alunos de vários cursos da Unicap, que atuam como voluntários. “A presença de jovens universitários no projeto é de bastante importância, pois o convívio é a melhor maneira de quebrar preconceitos e estigmas fazendo com que a pessoa com deficiência ganhe mais visibilidade e respeito na sociedade. Portanto, gostaríamos de deixar o convite para que esses jovens venham nos visitar”, comenta. Para a professora Aline Grego, participar do curso foi uma experiência transformadora. “É uma experiência riquíssima em conhecimento, apren-
dizagem e, sobretudo, em trocas que são estabelecidas entre alunos, oficineiros/professores e com toda a equipe do projeto. Quem participa é contaminado pela alegria, dedicação, garra e amor dos jovens que estão no projeto”, afirmou. “É uma atividade de extensão do curso de Fotografia que merece todo nosso apoio, respeito e carinho. Confesso que aprendi muito mais com os desafios enfrentados pelos jovens do Ganhando Asas na oficina do telejornalismo, do que eles por ventura tenham apendido algo comigo. Foi simplesmente maravilhoso fazer parte dessa história”, completou. A terceira turma começou no dia 16 de agosto com as seguintes disciplinas: Conteúdo Audiovisual com Smartphone (Kety Marinho); Desenho (Humberto Montenegro); Desenvolvendo as Habilidades de Destreza Manual (Sérgio Ricardo Lira Vasco); Fotocolagem e Fotomontagem (Flora Assumpção); Organizando Nossas Tarefas (Antônio de Oliveira Cavalcanti Junior) e Vivências em Artes Cênicas (Júlio César de Araújo). U NICAPHO T O
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Projeto diário de bordo Práticas inovadoras para o ensino de Linguagem Fotográfica Por João Guilherme Peixoto
“A essência da criatividade é descobrir como utilizar aquilo que você já sabe para ir além do que você já pensa”. Por meio desta frase, proferida pelo psicólogo e professor norte-americano Jerome Bruner (falecido em 2016), podemos nos questionar até que ponto o binômio inovação-criatividade necessariamente está conectado aos projetos com abundante disponibilidade tecnológica e de recursos, sejam eles financeiros ou de outra natureza. Com esse desafio em mente, procuro, desde 2016, desenvolver junto aos/as estudantes do curso de fotografia da Universidade Católica de Pernambuco novos formatos de produção, edição e construção narrativa voltadas para os trabalhos desenvolvidos nas disciplinas Linguagem Fotográfica I e II. Fazer com que as imagens criadas durante os exercícios do semestre passem, necessariamente, por um processo de “despertar criativo”, o qual aponte para novos desafios e outras lógicas/ processos de trabalho. A propósito: as disciplinas
abordam aspectos teóricos e práticos sobre: fotojornalismo, fotografia de publicidade, fotografia autoral, fotografia de moda, fotografia social e gastronômica (ou de comida). Por meio da utilização de técnicas que envolvem conceitos de Design Thinking, Aprendizagem Baseada em Problemas (Problem Solving Learning), processo criativo e metodologias ativas de ensino, a ideia inicial do “Projeto Diário de Bordo” tem como objetivo conduzir um experimento, no qual os/as estudantes devem construir um ensaio composto por 15 imagens fotográficas e um “Diário de Bordo”, que consiste e um caderno de anotações com registros de inquietações, referências, dinâmicas de trabalho entre outras informações relevantes. Abaixo descrevo com mais detalhes o passo a passo da dinâmica.
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Estudantes anotam aspectos que acreditam serem relevantes para a compreensão do macro-tema. Foto João Guilherme Peixoto
Para auxiliar no desenvolvimento do projeto, cada participante recebe, durante o semestre, três sessões de mentoria, nas quais é debatido o andamento do projeto por meio de imagens apresentadas pelo/a estudante, além de novas referências por ele “garimpadas”. Tais encontros auxiliam a monitorar o estado do projeto em várias fases, o que conduz a um apoio mais próximo e a uma relação entre estudante-professor mais aberta. relação entre estudante-professor mais aberta.
Resultado Desenvolvimento A primeira etapa do processo consiste em expor para os/as estudantes o formato da atividade. Uma ficha com os principais atributos que serão avaliados é entregue para que as regras do desafio estejam elencadas e compreendidas de maneira clara e objetiva. São elas: criatividade, originalidade, desenvolvimento técnico e referências. Ademais, algumas referências bibliográficas sobre os temas “processo criativo”, “criatividade” e “fotografia criativa” também são apresentadas com o objetivo de despertar interesse e curiosidade na sala de aula. Além destas duas etapas, também é apresentada a macro-temática que funcionará como uma referência conceitual para os temas dos ensaios desenvolvidos. Após esse primeiro momento, os/as estudantes são convidados/as a estabelecer uma relação de maior proximidade com a macro-temática apresentada como ponto de referência para a construção dos trabalhos. A sala é dividida em equipes de até cinco integrantes para que, com o auxílio de notas adesivas, os/as participantes anotem aspectos que acreditam serem relevantes para a compreensão do macro-tema exibido (Foto 01). Tal atividade contribui para aprofundar e fomentar a empatia com o projeto / desafio, como também para estimular o diálogo em equipe. Em seguida, os/as estudantes discutem sobre os pontos destacados e procuram estabelecer conexões entre as ideias apresentadas. O propósito desta etapa é que sejam criadas categorizações das ideias com o intuito de auxiliar na “construção
das pontes” necessárias para forjar uma percepção mais complexa do trabalho a ser realizado. O processo é dividido da seguinte forma: os grupos precisam, ao final de 45 minutos, apresentar um conjunto de categorias, nas quais estejam presentes aspectos anotados e debatidos pelo grupo. Com as categorias elencadas e compreendidas pela equipe, a etapa subsequente tem por finalidade levar os/as participantes a analisarem como a busca por referências pode amplificar de forma definitiva os limites do projeto a ser desenvolvido. Na prática, tal operação é realizada da seguinte forma: por meio de pesquisa em bancos de dados (biblioteca da universidade, livrarias, internet), além de outras fontes. Atrelado a este trabalho, os/as estudantes também precisam desenvolver um pequeno questionário para realizar entrevistas tanto com outros/as colegas de sala que fazem parte de equipes distintas, como também dentro da própria universidade. Ao final desta etapa, devem apresentar, pelo menos, três referências bibliográficas que tenham conexão com as categorias levantadas anteriormente, além de três questionários preenchidos durantes as entrevistas realizadas. Finalizada essa etapa do processo, cada estudante, agora em posse de uma boa quantidade de material a ser analisado, parte para um trabalho solo: deverá escolher o tema central de seu trabalho, além de dar início ao processo de produção das imagens que vão compor o ensaio final, além do próprio Diário de Bordo.
Em 2017, optei pela realização de trabalhos com a temática “Fotografia e Revolução”. Os/as estudantes partiam de debates mais estruturais ( “como podemos correlacionar tais temas?”, “que significa uma fotografia ser revolucionária?”) para outros, de ordem mais prática. Já em 2018, o processo desenvolvido apresentou como macro-temática: “Fotografia e Memória”. Após o cumprimento das etapas, os trabalhos foram apresentados durante três aulas (50 minutos cada), visto que cada estudante deveria falar um pouco sobre o processo criativo desenvolvido, referências utilizadas, principais adversidades encontradas, entre outros pontos de interesse. Apresento a seguir alguns dos resultados obtidos.
foto Projeto “3 Terezas”, de Bruno Queiroz, Érica França e Paulo Henrique (2017)
Foto Angela Grangeiro (2018)
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Foto Projeto “Isso não é nada”, de Mandy Oliver (2017)
Foto Raquel Valentim (2018)
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Foto Projeto “Heroínas de Hoje”, de Douglas Fagner e Frederico Barros (2017)
Conclusões Concluo que o desenvolvimento do “Projeto Diário de Bordo” resultou em debates construtivos e imagens com nível de planejamento e elaboração criativa bastante interessantes. Com a adesão da turma, o desafio cumpriu seus objetivos e atingiu resultados satisfatórios. Contudo, algumas críticas sobre o processo devem ser analisadas. Primeiramente, é importante destacar que o tempo para cada etapa deve ser calculado e cumprido de maneira bastante precisa, visto que o descumpri-
mento poderá acarretar em atrasos substâncias na entrega final. Ë importante que os encontros de mentoria dos/ das estudantes sejam bem planejados para otimizar o processo criativo de construção dos trabalhos. Todavia, mesmo com alguns ajustes a serem executados nas próximas edições, a experiência mostrou-se demasiadamente proveitosa para todas as partes envolvidas.
Foto Projeto “Mercado de São José”, de Thalyta Tavares (2018)
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Releituras fotográficas Por Julianna Nascimento Torezani
Ao longo da disciplina de História da Fotografia no Curso Superior Tecnológico de Fotografia da UNICAP estudamos a vida e a obra de grandes fotógrafos estrangeiros e brasileiros. Além de pesquisar sobre sua composição, linguagem e temas que os fotógrafos desenvolveram ao longo da carreira, os alunos devem escolher uma fotografia para fazer uma releitura. É um exercício de criatividade a partir da interpretação de uma obra, ou seja, alguns elementos da fotografia original deve compor esse novo trabalho. Assim, os alunos devem expressar a partir da sua própria linguagem uma nova forma de olhar para um tema que já fora tratado antes e serve de inspiração para esse momento de elaboração fotográfica. Para o fotógrafo e advogado Marcelo Pretto (2017), “a releitura de uma obra de arte é a criação de uma nova obra, tendo como referência uma obra anterior para dar a essa nova obra outro sentido, acrescentando a ela um toque pessoal, de acordo com as próprias experiências”. Neste sentido, o autor aponta a importância de conhecer a vida do artista, bem como suas técnicas para poder criar um elemento que tenha um elo com a obra anterior, assim como deve mencionar o nome do artista e da obra na apresentação dessa nova composição. As releituras na fotografia são um movimento constante, visto que inúmeras obras são criadas à luz de imagens já feitas anteriormente e a cada nova imagem criada observa-se o estilo e a linguagem do fotógrafo. A literatura é um dos elementos que permitem serem apropriados pela linguagem fotográfica, assim os textos são relidos para uma outra concepção, traduzindo imageticamente a essência do que se elaborou em texto. A exemplo da série Lusco-fusco (1998-2202) do fotógrafo americano Gregory Crewdson, que tem a imagem Sem título (Ofélia), inspirada na personagem Ofélia da peça Hamlet (c.1599-1601) de Shakespeare. Outra bra de releitura foi produzida pelo fotógrafo camaronês Samuel Fosso, na série African Spirits (2008), em que interpreta Muhammad Ali como uma reminiscência de São Sebastião, um mártir cristão assassinado pelos romanos, a imagem é uma mistura de elementos do boxeador, como o calção, com as flechas no tórax e na perna como na imagem do santo. A fotografia original foi capa da revista Esquire Magazine, imagem feita pelo fotógrafo Goerge Lois, para a edição de abril de 1968. O objetivo de Lois era retratar Ali para servir como uma imagem icônica antiguerra do Vietnã. Assim, entre as várias formas de apresentar uma nova leitura da obra, muitos trabalhos são elaborados com quase os mesmos temas, mas com técnicas diferenciadas. Como exemplo, temos a obra Álbum (2015) Foto Untitled from the series African Spirits, de Samuel Fosso (2008)
feita pelos fotógrafos Rafael Jacinto e João Kehl e o músico GUAB, através do processo da daguerreotipia (imagem feita com placa de cobre e nitrato de prata no século XIX desenvolvido por Daguerre). Esta obra trata-se de coleção de retratos feita com câmera digital em que as pessoas ficaram paradas por alguns minutos sob intensa luz. Os artistas explicam como elaboraram a instalação: “Codificamos esses retratos em um disco de vinil. Esculpimos sinais sonoros que guardam as imagens e as transformam em sons. Como o suporte é antigo, sua limitação faz com que as imagens fiquem pequenas e em preto e branco. A leitura que decodifica essas vibrações é feita pixel por pixel, nos permitindo ver e ouvir a imagem sendo formada enquanto a agulha percorre o disco. Para cada pixel, um som”. Esse trabalho é inspirado na ténica da fotografia química e no entanto é produzida com tecnologia digital, as imagens feitas com ISO alto apresenta ruídos o que gera a sensação de está vendo retratos oitocentistas e podem ser observados no site da Revista Zum: https://revistazum.com.br/radar/album/ Ao abordar a releitura diante das tecnologias digitais vale a pena considerar o conceito de pós-fotografia a partir do fotógrafo e professor espanhol Joan Fontcuberta (2014), Por um manifesto pós-fotográfico, quando trata sobre autoria e apropriação: “Sobre o papel do artista: já não se trata de produzir obras, mas sim de prescrever sentidos. Sobre a atuação do artista: o artista se confunde com o curador, com o colecionista, o docente, o historiador da arte, o teórico... (qualquer faceta na arte é camaleonicamente autoral). [...] Na filosofia da arte: se deslegitimam os discursos de originalidade e se normalizam as práticas apropriacionistas”. Nesta reflexão sobre releitura, coloca-se no patamar também de uma apropriação, seja esta da ideia, da temática ou da técnica do autor da obra, uma vez que para recriar um trabalho é necessário se apropriar de algo dele, mas longe de ser plágio do que já fora elaborado. Nessa mesma linha de abordagem temos o posicionamente do crítico de arte francês François Soulages (2017), quando diz que “há artistas que pegam uma imagem de saída, uma imagem-matriz, para fazer variações sobre ela. Há também os que trabalham sobre suas próprias imagens, efetuando releituras. Eles dão um novo destino e uma nova história a imagens que eles mesmo fizeram. E há ainda os que se apropriam de imagens feitas por outros”. Desse modo, temos diversas possibilidades de releitura de uma obra, tendo em vista que tais obras ampliam o imaginário e o conhecimento dos fotógrafos, entrelaçando com suas concepções pessoais. Soulages ainda afirma que existem gerações de imagens e que cada imagem sugere U NICAPHO T O
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uma nova prática da arte, pois uma está ligada a outra, uma vez que entendemos que muitos trabalhos tem como referências outras obras, para além das imagéticas, como as textuais, gráficas e sonoras. A fotógrafa Alícia Cohim Lucena pesquisou a vida e obra do americano Edward Weston (1886-1958). Ao mergulhar sobre suas composições observou como o fotógrafo abordava as formas em suas imagens, bem como sua linguagem em preto e branco. Ele escolhia elementos aparentemente simples como vegetais e conchas e transformava em fotografias peculiares no jogo de sombra e luz que criava, haja vista seu Pimentão n. 30, feita em 1930. Sobre seu processo criativo Lucena (2018) indica que “durante uma hora, permaneci ensaiando formas frente à câmera, na tentativa de executar um autorretrato que, de alguma forma, pudesse reler a fotografia de Weston. Ensaiei essa mesma posição de diversas formas, até achar esse ângulo que contribuiu para a abstração da figura. O preto e branco, o fundo escuro, a figura curvada sobre si mesma e a aparência cíclica da forma trazem à tona a concha da qual peguei inspiração. Da mesma forma, o objeto fotografado nu e cru, sem remeter a qualquer pensamento vulgarizado da nudez, e apresentando, unicamente, a forma ao espectador remete aos inúmeros e puros retratos de nus que Weston produziu”. Outro importante trabalho foi produzido pela fotógrafa Carla Siqueira ao estudar o trabalho fotográfico do francês Robert Doisneau (1912-1994) que registrou por décadas a cidade de Paris, tendo como temas
as pessoas, as praças, o Sena, os monumentos, as feiras, os mercados, os cabarés, as festas, a vida noturna. Famoso pela imagem O Beijo do Hotel de Ville, feita em 1950, Doisneau mostrou através de suas lentes todas as faces da cidade, dos pontos turísticos principais até o subúrbio parisiense, inclusive cobriu a Segunda Guerra Mundial (da ocupação alemã à resistência francesa). Siqueira (2018) escolheu uma imagem de Les Les Halles para criar sua releitura, trata-se de um mercado em que trabalhavam cerca de cinco mil pessoas durante décadas e foi demolido nos anos 1970: “A foto foi feita com uma lente 27mm, tentando se aproximar ao máximo da distância focal que Doisneau deve ter usado na época, uma 35 mm. Em preto branco, e branco, como a maioria das fotos feitas por Doisneau para esta série, são poucas as coloridas. A dificuldade encontrada se deu por conta de espaços estreitos do Mercado de São José e, também, da distância focal escolhida”. A fotógrafa Catarina Luíza de Macêdo Pennycook escolheu abordar a obra do fotógrafo Edward Steichen, nascido em Luxemburgo (1879-1973), que teve diversas fases da sua carreira. Integrou o grupo Photo Secession, criado por Alfred Stieglitz, para elevar a fotoque aos olhos também. Já a aparência e pose da personagem foi propositalmente modificada, deixando a fotografia com um aspecto mais atual, porém sem perder sua essência”. A obra do fotógrafo húngaro Brassai (1899-1984) foi abordada pela fotógrafa Elizabeth de Carvalho Simplício, conhecido como o olho
Foto Barraca de carne de porco,
Foto Vendedor de carne de porco no
Les Halles, Paris, de Robert Doisneau (1963)
Mercado de São José, de Carla Siqueira (2018)
fotografia ao patamar de arte, no qual produziu interessantes trabalhos artísticos. Participou como fotógrafo da Primeira Guerra Mundial, após a guerra fez fotografias de moda e publicidade e foi o curador de uma importante exposição intitulada The Family of Man (1955) que tratava de temas das fases da vida de uma pessoa, ou seja, do nascimento à morte, para pontuar um tipo de fotografia humanista após a Segunda Guerra Mundial. Com isso, possui uma vasta experiência fotográfica em temas diversos, que vai da Foto Acendedor de luz de poste, de Brassai.
Foto Shell, de Edward Weston (1927)
publicidade à guerra. Pennycook (2018) escolheu a foto da atriz Gloria Swanson para sua composição em autorretrato: “A icônica fotografia de Gloria Swanson apresentava os pontos buscados para a representação: personalidade marcante, o fundamento recôndito feminino e a força da mulher, tudo isso refletido no olhar da modelo. A releitura realizada se caracteriza pela junção da estética e conceito de Steichen com o estilo da autora de tal releitura. Algumas figuras físicas, como a renda florida, foram mantidas, e o desta Foto Vendedor de amendoim, de Elizabeth de Carvalho (2018).
Foto Nu, de Alícia Cohim (2018)
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de Paris, fez fotos dos lugares e da vida noturna parisiense, mostrando a cidade de forma diferenciada. Para releitura, a fotógrafa escolheu criar imagens no bairro do Recife Antigo por apresentar similaridades com alguns lugares de Paris à noite, interpretando a linguagem de Brassai de acordo com seu estilo pessoal. Carvalho (2018) indica que “o objetivo foi imprimir nas fotos feitas no Recife Antigo a atmosfera misteriosa da noite dando destaques a personagens populares, que na grande maioria das vezes não são percebidos pela sociedade. [...] As fotos foram realizadas à noite, aproveitando que havia chovido. Buscou-se como personagens os trabalhadores ambulantes e na composição respeitou-se a regra dos terços juntamente com a utilização de curvas e diagonais”. Observamos pelas obras de Alícia Lucena, Carla Siqueira, Catarina Pennycook e Elizabeth Carvalho, através de seus corpos e lugares escolhidos da cidade de Recife para criação de suas imagens, que as releituras permitem ampla liberdade e criatividade. Da imagem da concha ao autorretrato nu, em que a fotógrafa elabora as formas inspirada pelo foto de Weston, observamos as tonalidades e a iluminação comum com
Foto Gloria Swanson, de Edward Steichen (1924)
a foto dele, fruto de várias tentativas. Do mercado parisiense de Doisneau ao mercado pernambucano encontramos vários elos de inspiração, numa imagem de forte contraste, em que os elementos estão expostos de várias formas para dar melhor visibilidade aos compradores. No expressivo olhar da atriz à um olhar menos aparente, o segundo autorretrato nos captura, faz com que queiramos ver além da renda preta, assim como na composição de Steichen. Da cena noturna de Brassai à noite de Recife temos uma iluminação e enquadramento que entrelaça os tempos em que as imagens foram feitas. Entre similaridades e diferenças, as fotógrafas buscaram trazer os aspectos de temas e técnicas específicas de cada fotógrafo escolhido, mas com elementos de sua própria linguagem fotográfica, nos permitindo mais uma interpretação ao ver tais imagens e sugerindo mais uma possibilidade de criação. Para Georges Didi-Huberman (2012, p. 216), “uma imagem bem olhada seria, portanto, uma imagem que soube desconcertar, depois renovar nossa linguagem, e portanto nosso pensamento”. Assim, acreditamos que essas releituras trouxeram tais sensações.
Foto Autorretrato, de Catarina Pennycook (2018)
Referências DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. In: Pós - Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da EBA/UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204 - 219, nov. 2012. Disponível em: https://www.eba.ufmg.br/revistapos/index.php/pos/article/view/60/62 Acesso em: 16 jul. 2018. FONTCUBERTA, Joan. Por um manifesto pós-fotográfico. In: Revista Studium. N. 36, julho de 2014, UNICAMP. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/36/7/index.html Acesso em: 16 jul. 2018. PRETTO, Marcelo. O que é releitura e o que é plágio em arte e fotografia? In: iPhoto Channel. 2017. Disponível em: http://iphotochannel.com.br/ colunistas-de-fotografia/o-que-e-releitura-e-o-que-e-plagio-em-arte-e-fotografia Acesso em: 16 jul. 2018. RADAR. Trio de artistas faz releitura digital de daguerreotipia, com a série “Álbum”. In: Revista de Fotografia Zum. 2015. Disponível em: https:// revistazum.com.br/radar/album/ Acesso em: 16 jul. 2018. SOULAGES, François. Entrevista: o filósofo François Soulages e a estética da fotografia na era digital [Bruno Zorzal e Gabriel Menotti]. In: Revista de Fotografia Zum. 2017. Disponível em: https://revistazum.com.br/entrevistas/entrevista-francois-soulages-2/ Acesso em: 16 jul. 2018.
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Silêncio e solidão em Chernobyl Texto e Fotos por Filipe Falcão
Quando a usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, foi construída, a cidade de Pripyat foi planejada para servir de moraria para os funcionários da usina. O ponto onde iniciamos o “passeio” é a área na qual ficam os prédios residenciais de Pripyat. A sensação que tive foi de estar em uma cidade fantasma. O mato e a vegetação tornam inclusive difícil ver todos os prédios. Todos os prédios residenciais possuem muitas janelas e ás vezes parece que estamos sendo observados. Pripyat é antes de qualquer coisa um local silencioso. Os guias dizem que não existem pássaros na área. Ali eu percebia apenas o barulho dos passos das pessoas da excursão. Fiquei imaginando que com a saída do grupo aquele lugar deve ser totalmente silencioso e solitário. Decidi fazer as minhas fotos com esta ideia de silêncio e solidão além da ausência do elemento humano. Não queria que pessoas da excursão aparecessem nas minhas fotos. Tentei preservar a sensação que Chernobyl me passou. Fiz apenas uma foto minha em uma placa da entrada, mas não a publiquei nem postei em nenhum lugar. Somos alertados de que não devemos tocar em absolutamente nada. Recebemos emails alguns dias antes explicando que devemos ir de calças e camisas com mangas longas. Além dos prédios residenciais, fomos em escolas, teatros, prédios públicos e o famoso parque de diversões que nunca chegou a ser usado. A mesma sensação de solidão e de silêncio de todo o dia se intensificou ainda mais em um lugar que é sinônimo de alegria e diversão. No parque, a sensação se potencializa. Segue neste ensaio uma seleção deste dia em Pripyat. Tentei prioritariamente captar a solidão e o silêncio do lugar.
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Gabriela
Texto e Fotos por Catarina Penycook e Ruth Luna
Gabriela, Cravo e Canela, é um dos mais célebres romances de Jorge Amado. Conta a história de amor entre a morena Gabriela, e o árabe Nacib, em meados de 1920. Buscando interpretar a protagonista de forma moderna e inesperada, o principal aspecto focado da personagem foi sua personalidade e sua sede por liberdade, retratada pela alegria e espontaneidade. Trazendo isso para os tempos atuais, concluímos que o principal resultado do nosso ensaio seria demonstrar, através de momentos congelados, a força e liberdade de Gabriela. Para isso, o ensaio foi dividido em algumas partes chaves, sendo as principais: trazer imagens amplas mostrando a imensidão de seu ser, representada pela praia, pelo oceano; o vento batendo nos seus cabelos e vestido, remetendo à liberdade buscada por ela; e desesteriotipando sua imagem de jovem do interior. As imagens captadas também levam o público a reagirem com sentimentos e sensações, ao olharem as imagens, tão intensas, que tem como reação muitas vezes surpresa e estranhamento pelo que foi já foi retratado pela pensanagem tempos atrás em comparação com a nossa adaptação. O ensaio foi desenvolvido para a disciplina de Processos Fotográficos e Anatomia da Câmera Fotográfica, lecionada pela professora Renata Victor, com o objetivo de fazer releituras de grandes clássicos da literatura brasileira.
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Sagrado e profano sobrepostos Texto e Fotos por Douglas Fagner
O projeto Morro Sobreposto foi desenvolvido para a disciplina de Mídias Digitais, ministrada pela professora Carol Monteiro no curso superior de Fotografia da Unicap. Sempre achei a festa do morro uma grande oportunidade de fazer belas imagens, mas muita gente já vinha fotografando e fazendo seus registros. Até então não sabia o que poderia construir com as imagens que comecei a fazer. Lembrei de uma brincadeira que tinha feito na aula do professor Ricardo sobre edição e tratamento. Então, porque não juntar e sobrepor as imagens? Tentei fazer uma mistura do sagrado com o profano, pois a festa é uma grande diversidade, existe um comércio enorme, uma população de pedintes maior ainda e bares e fiéis. Tentei usar tudo isso na criação das imagens num passeio entre o sagrado e o profano. A simbiose desta experiência pôde criar uma percepção alternativa da realidade e resultados realmente únicos para quem se dispõe a analisá-los. Usando da técnica de sobre exposição fiz um registro da festa mais popular e conhecida da região metropolitana do Recife, a Festa do Morro da Conceição, realizada no dia 8 de dezembro, no morro de mesmo nome que fica no bairro de Casa Amarela. A sobreposição é uma das características mais criativas da fotografia e o resultado inesperado cria algo verdadeiramente único através da justaposição de duas imagens.
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Duas garotas em Brixton Texto por Niedja Dias Fotos Larissa Alves e Vitória Aranha
Quem chega à última estação sul da Victoria line, chamada de linha azul, se depara a um bairro efervescente, de essência jamaicana e caribenha, onde ficam peixarias, açougues, antiguidade, boutiques de roupas, restaurantes familiares e pubs onde se ouve um jazz charmosamente despretensioso ao vivo, encontram-se barracas de verduras e frutas vindas de todas as parte do mundo convivem na mais plena harmonia atraindo pessoas descoladas e imigrantes de toda parte. Mas nem sempre foi assim. Quem vê o status atual de trendy, não imagina que Brixton não tinha muito do que se orgulhar. Situado ao sul de Londres, o bairro tem um passado de violência, muito racismo e descaso por parte do governo. Os imigrantes ajudaram a reconstruí-lo com sua força de trabalho, mostrando seu potencial econômico. Hoje circulam pessoas das mais diversas origens, desde as que residem no local há gerações, até recém-chegados, atraídos por novos projetos de reurbanização. Brixton tem um quê de Brasil, seja através da receptividade calorosa de toda a gente – que nada se parece com o jeito aristocrático e sisudo dos londrinos, seja no burburinho do entorno do Brixton Village – o mercado principal, onde se concentra o núcleo comercial – ou ainda na diversidade dos artigos vendidos. Foi nesse cenário que uma pernambucana e uma baiana encontraram um ponto de convergência para o desenvolvimento de um projeto fotográfico.
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Larissa Alves e Vitória Aranha se conheceram em Londres, num curso de Fotografia. Elas perceberam que tinham mais coisas em comum do que a fotografia, capoeira e região de origem: a paixão por Brixton. Descobriram que enxergavam naquele lugar um organismo vivo, com uma afinidade tão familiar que amenizava a saudade do Brasil. Através da ótica de Larissa, que se considera uma antropóloga visual, e de Vitória, fotógrafa documental, Brixton surge como a fonte energética e inspiradora que precisavam para retratar o quanto aquele lugar era pulsante e rico, culturalmente. À princípio, o foco do projeto era, além da afinidade com o local, o gosto pelas imagens urbanas. Os encontros aconteciam sempre aos sábados e foi assim durante seis ou oito meses. Munidas de um material gigantesco capturado e da bagagem de experiências, decidiram direcionar os trabalhos para a diversidade de pessoas que circulava no mercado e entorno, bem como os personagens que viviam por lá. Essa mudança no direcionamento se deu pelas diversas histórias que foram sendo desenroladas no período. Nesse mergulho em Brixton, as fotógrafas perceberam uma imersão que transpôs a esfera dos recortes imagéticos e provocou a necessidade de criação de um livro com imagens e relatos, que ainda está em fase inicial de edição. A UNICAPHOTO, em primeira mão, traz para o leitor, um ensaio fotográfico, uma pequena parte dessa experiência tão intensa.
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Verde concreto Texto e Fotos por Gil Vicente
Pesquisa vencedora do Edital do Funcultura 2015 na categoria Produção fotográfica para desenvolvimento de projetos autorais com abordagens contemporâneas, o projeto Verde Concreto resulta no site https://www.verdeconcreto.com.br onde mostro, através de uma documentação fotográfica autoral, as relações entre a vegetação (árvores, folhagens, troncos, grama etc.) e as ocupações urbanas (ruas, avenidas, muros, edifícios, monumentos, praças, parques, etc), originais e nas realizadas pelo homem, durante os processos de urbanização da cidade do Recife. No site estão expostas as mais de 50 imagens e 5 filmes em timelapse, processo fotográfico de compressão do tempo através de tomadas de longa duração, e que estão dispostas em galerias temáticas. Estas fotos são por vezes acompanhadas de notas e descrições, criando uma espécie de diário que dialoga e conduz a narrativa com o espectador sobre as situações retratadas formando uma memória de locais onde as árvores e vegetações do Recife estão colocadas e seus ciclos de vida e tratando de como o homem “racional” vê sua “interferência” no progresso da cidade. No site, esta leitura visual está acompanhada de uma trilha com sons, entrevistas e ruídos captados durante a produção das imagens com o objetivo de proporcionar uma fruição mais completa do tema.
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fotossíntese
Fotografia noturna Texto e Fotos por Rafael Lemos
Quando fotografamos a noite nos deparamos com outro tipo de luz, o que altera velocidade, diafragma e ISO, o que nos força a olhar de outra forma o local onde estamos. Fotografar à noite também nos mostra outro modo de enxergar o lugar com muita iluminação, com pouca iluminação ou sem luz nenhuma.
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fotossíntese
Lula Cardoso Ayres pelas lentes da fotografia Texto por Elizabeth de Carvalho e Jefferson Cariolano Fotos Elizabeth de Carvalho
O Edifício Juscelino Kubitschek (JK) está situado na Avenida Dantas Barreto, no centro do Recife. Foi construído em 1951 para ser a sede do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI). Atualmente, o prédio chama a atenção porque, embora seja imponente com seus vinte pavimentos, há o contraste com seu aspecto decadente, devido ao abandono que sofre ao longo dos anos.
A princípio, o edifício fazia parte dos bens da União, tendo sido sede do INSS e da SUDENE. Posteriormente, passou a ser propriedade privada, tendo alguns de seus pavimentos locados para uma universidade. Na esquina da Avenida Dantas Barreto com a Rua Marquês do Recife, o térreo é ocupado por uma lanchonete. Já na esquina da Avenida Dantas Barreto com Rua Siqueira Campos, o térreo
é utilizado como um depósito de entulhos, onde há carros velhos e o painel de Lula Cardoso Ayres. O painel foi pintado pelo pernambucano Luiz Gonzaga Cardoso Ayres (1910-1987) para adornar o hall de entrada da sede do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), criado em 1954 pela Lei 367, de 31 de dezembro de 1936. Lula Cardoso Ayres era
um multiartista. Foi ilustrador cartazista, cenógrafo, pintor, fotógrafo, artista gráfico, caricaturista e ceramista. Essa versatilidade, talvez tenha sido uma das razões que o levou a ser um dos primeiros artistas nordestinos a viver de sua obra, que, diga-se de passagem, está presente no cotidiano do Recife através de marcas e murais, a exemplo dos painéis no hall de entrada do Cinema São
Luiz, do Aeroporto dos Guararapes, do metrô e da marca da margarina Bem-te-vi. A pintura foi seu suporte mais conhecido, se preocupando não só com a estética, mas também com a técnica (ele fazia, por exemplo, as próprias tintas). Entre outras coisas, Lula Cardoso retratava as manifestações culturais regionais, como o bumba-meu-boi e o maracatu, e o cotidiano do trabalho rural, re-
fletindo a sua vivência com os trabalhadores da Usina Cucaú. O painel dialoga com a concepção artística dos muralistas mexicanos que através de obras grandiosas homenageavam o povo mexicano com suas lutas e história. O painel do JK é de grandes dimensões, com personagens que fazem parte do povo, em suas atividades laborais.
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coluna
Traduzir imagens estáticas exige concisão. Como colocar todo o potencial de uma imagem em poucas frases? Deve-se priorizar a forma ou o conteúdo? De que maneira uma pessoa que não enxerga, ou que tem baixa visão, pode perceber a subjetividade das imagens? Essas são algumas dúvidas frequentes que surgem durante o trabalho de um audiodescritor roteirista e de um audiodescritor consultor. Segundo Agnieska Szarkowska e Pilar Orero, a audiodescrição é uma tradução multisemiótica porque durante a elaboração do roteiro há a conversão de um canal “não verbal visual”, a imagem, para um canal “verbal auditivo”, a fala (exceto quando o roteiro é lido em braile); bem como, às vezes, existe a necessidade de transferir informações do canal “visual verbal”, texto na imagem, para o canal “verbal auditivo”, fala. Percebemos que muitas vezes há também a conversão de um canal “sonoro não verbal”, ruídos, foley etc., para um canal “verbal
auditivo”, fala, no caso de descrições de sons em imagens dinâmicas, como em um filme, por exemplo. Nosso trabalho prioriza o campo sonoro por considerarmos que estamos envolvidos pelo som todo o tempo. Até no silêncio. Esses sons nos informam sobre vários aspectos do ambiente e do contexto imagético a ser traduzido. Para a pessoa com deficiência visual, o sentido da audição se apresenta potencializado: deixa de ser apenas um decodificador sonoro e desencadeia experiências multissensoriais. A nossa prática nos mostra que a audiodescrição acompanhada de sons proporciona, além do engajamento cognitivo, a construção e o reconhecimento de associações afetivas. Contrariando a crença de que o tato seria a forma primordial de as pessoas com deficiência visual verem o mundo, percebemos que esse sentido, por si só, não consegue traduzir nem forma nem conteúdo. Ele até pode am-
Audiodescrição de um click e o som que vem do entorno Fotos Renata Victor Texto por Liliana Tavares
pliar a compressão da imagem, mas desde que acompanhado da audiodescrição. Acreditamos que quando olhamos uma imagem nos conectamos também com som em que ela aparenta estar imersa. A composição sonora apresentada no QR Code abaixo é um exemplo da maneira como uma pessoa com deficiência visual é estimulada a participar do mundo visual e do universo da fotografia.
Clique aqui para ouvir o áudio.
SZARKOWSKA, Agnieszka. ORERO, Pilar. The importance of sound for audio description. In. MASZEROWSKA, Anna. MATAMALA, Anna. ORERO, Pilar. Audio description: new perspective illustrated. John Benjamin Publishing Company. Amsterdam/Philadephia, 2014.
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reportagem
Os ciclos da história em exposição multimídia Texto por Germana Soares Foto Postcards From Brazil, de Gilvan Barreto
Por vezes é necessário surpreender e utilizar instrumentos muitas vezes inusitados para trazer à tona debates de cunho sociológico. É quando a arte rompe o aspecto do belo e traz à tona mensagens questionadoras e críticas, quando se tornar instrumento de reflexão, algo que vai além de ser “apenas” observado. Com esse propósito maior surge “Voragem”, exposição coletiva idealizada pelo curador Eder Chiodetto, aberta ao público na galeria Amparo 60 Califórnia. O título remete à ideia de redemoinhos de água que levam para o fundo tudo que estiver ao seu redor, aos ciclos que vivemos na história da humanidade e a mostra traz para
debate a temática dos marginalizados, dos esquecidos pela sociedade, daqueles que se tentam ocultar. “O nome vem justamente desses ciclos de movimentos à direita, à esquerda, instantes de maior liberdade civil e tolerância racial, religiosa, comportamental e outros momentos que levam parte dessas conquistas para trás sob a sombra do obscurantismo”, explica Chiodetto. Participam da exposição 10 grandes artistas, sendo eles os pernambucanos: Barbara Wagner, Benjamin de Burca, Gilvan Barreto, José Paulo, Lourival Cuquinha, Paulo Bruscky e Isabela Stampanoni que compõem casting da galeria, além de três convidados: André Hauck, Ivan Grilo e Jona-
thas de Andrade. Para as obras foram utilizados diversos suportes como: fotografia, audiovisual, esculturas e instalações. O start para a concepção da exposição se deu através do trabalho “Post Cards from Brasil” de Gilvan Barreto, vencedor do prêmio Pierre Verger. Gilvan se apropria de imagens da Embratur, órgão criado para desenvolver o turismo brasileiro, fazendo recortes nas imagens para representar o vazio deixado pelos corpos desaparecidos das vítimas do regime militar durante o período de ditadura. Observando esse aspecto, o curador buscou diversos artistas cujos trabalhos colaborassem para
esse debate social político. A ideia é fazer o visitante se questionar sobre vários aspectos que “É um projeto que fala muito do Brasil atual. O cruzamento dessas obras mostra como o apagamento das parcelas menos assistidas da sociedade continua acontecendo até hoje”, pontua Eder. A exposição ocorre até o dia 03 de setembro de 2017, na Galeria Amparo 60 Califórnia - Rua Artur Muniz, 82, Edf. Califórnia, Salas 13 e 14, Boa Viagem - de terça a sexta-feira, das 10h às 19h, e, aos sábados, das 11h às 17h, com entrada gratuita.
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crítica
A Coreia do Sul sofreu uma história turbulenta de opressão sociocultural, desde a invasão japonesa em 1910 até a separação do país ao fim da Segunda Guerra Mundial. Uma maneira pela qual essa opressão manifestou-se foi através do tratamento das mulheres coreanas dentro da sociedade. O país desde então foi governado por ideologias confucionistas e, historicamente, as mulheres estiveram em uma posição submissa, restrita aos papéis da domesticidade. Ditadas para se manterem em um padrão de beleza muito específico (onde a magreza e a pele de porcelana são regras da moda), somando à sua quase não representação no mercado de trabalho ou representação política, observa-se que ainda há opressão do patriarcado para com as mulheres sul-coreanas. O país, segundo dados da WEF (World Economic Forum, 2017 ), tem um dos maiores índices de disparidades em igualdade de 1 gênero, estando na 118a posição, em um total de 144 países avaliados. Da mesma forma, a falta de avanço no ideais feministas pode ser notado na pouca (ou quase inexistente) representatividade da mulher dentro da indústria cinematográfica sul-coreana, esta que teve seu “boom” nos anos 1990, na conhecida “Onda
Fotos material oficial de divulgação do filme The Handmaiden (2016)
A representação da mulher no cinema sul-coreano Texto por Rebeca Soares Patrício de Araújo
Hallyu ”. A prática do cinema feito por mulheres (feministas) na Coreia do Sul é considerada emergente desta década, e tem-se a percepção de que tais práticas cinematográficas eram quase inexistentes antes dessa época. Elas buscavam subverter em seus filmes as ideologias centradas nos homens, buscando novas posições para as mulheres. Em oposição à visão patriarcal machista, que reina até os dias atuais, o cinema feminino sul-coreano, com intenção feminista, é contemporâneo do cinema feminista ocidental. Porém, tal cinema só foi desenvolvido no setor de cinema independente não comercial, dificultando o acesso a esse acervo. Observa-se que as mulheres continuam oprimidas na frente e por trás das câmeras. Contudo, a evolução da sua representatividade pode ser constatada através de cineastas do sexo masculino, que estão manifestando ideais feministas através dos seus filmes mais recentes. Como é o caso do diretor Park Chan Wook, do aclamado filme
Oldboy (2003). O seu filme mais recente, The Handmaiden (아가씨 - Ahgashi, título em coreano; A criada, tradução em português; 2016), é o filme analisado neste trabalho, que tem como objetivo explorar se o diretor masculino ainda é orientado por ideologias patriarcais ou se é de fato progressista, como o próprio revelou durante uma entrevista recente É pertinente abordar sobre os testes de Bechdel, Mako Mori e Sexy Lamp, usados como parâmetros para analisar se uma obra (cinematográfica, literária etc) se enquadra ou não nos requisitos de representação feminina. Apesar de serem testes considerados não acadêmicos, é oportuno usá-los, não para avaliar a qualidade de uma obra ser feminista ou não, mas para medir se tal obra possui personagens, diálogos e histórias relevantes que retratam a mulher com profundidade e não como um objeto do fetiche masculino. Os testes de Bechdel e Sexy Lamp medem diferentes elementos da representação femiU NICAPHO T O 135
nina: o primeiro mede a presença de mulheres e a possibilidade de relação entre elas (que não se centra nos homens) dentro de uma narrativa simples; o segundo mede o impacto de uma mulher individual dentro de uma narrativa, e se sua presença se faz importante ou não, ao ser substituída por uma “lâmpada sexy”. Já o teste de Mako Mori, semelhante ao Sexy Lamp, exige que uma mulher não simplesmente contribua para a trama, como também tenha seu próprio arco na história, e que não exista para apoiar um homem. Ambos são baixos parâmetros de avaliação para determinar se uma obra pode ser considerada feminista, porém são parâmetros simples que deveriam ser empregados a fim de se obter uma obra que esteja dentro dos critérios de representatividade feminina. À princípio, o filme de Park Chan Wook é, em sua essência, uma adaptação do livro da escritora britânica Sarah Water, Fingersmith, um romance que se passa na era vitoriana, sobre a relação entre duas mulheres. A história do filme, diferentemente do livro, se passa na Coréia de 1930, sob ocupação japonesa. A premissa do filme é basicamente sobre uma jovem criada chamada Sook Hee, contratada para servir a inocente e bela Lady Hideko, mantida em cativeiro desde sua infância, dentro de sua própria mansão, por seu tio sádico, que ganha a vida forçando-a a realizar leituras de sua coleção erótica para satisfazer a luxúria de aristocratas bem sucedidos. Com a pretensão de casar-se com Hideko e, portanto, obter acesso à sua herança, um
estelionatário, que se autointitulou Conde Fujiwara, aparece para “socorrer” a ingênua sobrinha do sádico tio. Dividido em três atos, inicialmente o filme foge aos requisitos que poderíamos classificar como um filme feminista. Até a primeira parte da história nos deparamos com a suposta inocência da jovem Hideko e sua relação com a criada Sook Hee. Esta, logo no começo da trama, nos revela ser parceira do golpe que o Conde Fujiwara planejou, tendo sido contratada para persuadir a Lady Hideko a casar-se com ele, e assim receber parte da herança da patroa. A relação entre as duas mulheres se aprofunda ao longo do filme, a ponto de se envolverem sexualmente, revelando cenas explícitas de sexo, colocando em questionamento se de fato o filme é um objeto do fetiche masculino, para simplesmente satisfazer o público masculino (heteronormativo), ou se haverá uma profundidade das personagens ao longo do desenvolvimento do enredo. A partir do segundo ato há vários “plots twists ”, que caracterizam o estilo de direção de Park Chan Wook. E é a partir deste ato no filme que se descobre o empoderamento feminino e a verdadeira personalidade (forte e determinada) que a Lady Hideko escondia no primeiro ato. Educada desde criança para satisfazer os desejos repugnantes do tio sádico, nos deparamos com uma personagem que, apesar de presa dentro da sua própria mansão, possui uma personalidade própria, que contradiz com a inocência e ingenuidade
feminina, característica do padrão da aristocracia da época abordada. Observa-se que o filme faz uma crítica, entre outras coisas, ao consumo excessivo da pornografia, um tema importante na era moderna. Esse excesso pode ser considerado um perigo tanto para os homens quanto para as mulheres. É perigoso para o homens, visto que muitos tomam como exemplo os atos pornográficos que assistem, inerentemente violentos, e passam a acreditar que essas práticas são normais. Assim, esses atos contribuem como mais outro tipo de violência contra a mulher. Ao colocar esse tema em voga, e abordar duas mulheres homosexuais, que se satisfazem, tanto sexualmente quanto intelectualmente, entre si; Park Chan
Wook revela sua verdadeira intenção com o filme. Uma cena marcante e libertadora, em minha opinião, é a da destruição da biblioteca particular do tio sádico, que acontece no terceiro ato do filme. Revoltada ao descobrir os conteúdos sórdidos dos livros que Lady Hideko era obrigada a ler desde pequena, Sook Hee começa a destruir as obras que o tio colecionou durante anos. Esse ato de revolta ocorre em um momento em que as duas, unidas, libertam-se das amarras opressoras que as aprisionavam. É possível, então, notar a sororidade entre as duas, que ao se ajudarem, descobrem que unidas conseguirão se salvar das atrocidades que passaram por causa dos homens em sua vida. Numa sociedade machista que
consome pornografia e trata a mulher como objeto sexual, no filme de Park Chan Wook temos várias reviravoltas. O uso do teatralismo e a melodramática seduz o espectador a compadecer da personagem principal que, diferentemente do que foi exposto a princípio, não é nada ingênua e indeterminada em conseguir o que quer. Previsibilidade é algo que não se aplica ao filme. A repetição das cenas de sexo entre as duas mulheres só reforça quem realmente comanda a história: as personagens femininas. O uso da perspectiva alternada pelos atos do filme prova ser um golpe de mestre de Park Chan Wook. Ele cria o terceiro e último ato para refletir a fusão dos mundos individuais das personagens, e na ausência de qualquer intromis-
são conduzida pela mente masculina, mostra como essa mente pode ser defeituosa, mesquinha e pervertidamente suja. Crucialmente, enquanto as mulheres usam o ato sexual para alcançar um apogeu de libertação desinibida, os homens são mantidos em cativeiro por sua luxúria. Do ponto de vista cinematográfico, The Handmaiden é uma obra de arte. Conhecido por suas cenas de longa duração e zoom in/out (técnica de filmagem considerada ultrapassada, porém marca registrada do diretor), Park Chan Wook consegue captar talentosamente um suspense/thriller, auxiliado de belas imagens, uma boa mixagem de som e performances aclamadas.
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Foto Claudia Andujar
crítica Em um debate em sala de aula sobre as fotografias dos indígenas Yanomami feitas por Claudia Andujar, uma colega que via as imagens pela primeira vez comentou que elas não recorriam apenas ao sentido visual do espectador, mas evocavam outros sentidos, como audição e olfato, como se Andujar conseguisse passar para o receptor da imagem um pouco da experiência que vivia naqueles momentos em meio aos Yanomami. Vilém Flusser, em seu livro “Filosofia da Caixa Preta” (1983), define imagem técnica como uma mediação entre homem e mundo que busca representar a vida real através da abstração de algumas das quatro dimensões, dando espaço para que estas pudessem ser recriadas pelo receptor. Assim, a evocação de outros sentidos observada pela colega seria justamente a reconstituição das dimensões abstraídas da qual Flusser se referia. Na imagem abaixo, uma criança da tribo indígena dos Yanomami posa para a foto embaixo de um dos vários feixes de luz que entram pelo telhado da grande malo-
ca comunitária. E é através dessa reconstituição pela imaginação que outros sentidos também me são evocados ao observar a fotografia, como o barulho de pássaros, o barulho do vento e também uma sensação de tranquilidade que se assemelha a um sonho. Essa percepção onírica pode ser explicada pelo fato de que os pontos de luz são tão claros que chegam a estourar na imagem e, além disso, pelo fato de as partes mais iluminadas e o pequeno Yanomami estarem levemente embaçados — efeito que pode ter sido obtido pelo uso da vaselina líquida na lente, recurso que Andujar costumava utilizar. Esse forte jogo de luz e sombra e o embaçamento trazem algo de fantástico à imagem e levam a percepção do observador a um universo diferente do universo fotográfico descrito por Flusser em “Filosofia da Caixa Preta” (1983). O filósofo afirma que o aparelho fotográfico, assim como todos os aparelhos, é feito com base no modelo cartesiano, em que “o pensamento é um colar de pérolas cla-
A filosofia da Caixa Preta e Cláudia Andujar Texto por Marina Santos Lucas Alves
Foto Claudia Andujar
ras e distintas. Tais pérolas são os conceitos e pensar é permutar conceitos segundo as regras do fio.” (1983, p. 35) Tal estrutura lógica do aparelho funcionaria a partir da produção de conceitos claros e distintos pelo fotógrafo, conceitos simplificados do mundo, para que estes pudessem ser trabalhados a partir das virtualidades inscritas dentro do seu programa. Ainda de acordo com “Filosofia da Caixa Preta”, os aparelhos teriam criado uma autonomia com relação ao homem, e o fotógrafo que pensa cartesianamente estaria à serviço do aparelho, pois este se utilizaria do feedback do fotógrafo para ser continuamente aprimorado. Nesse universo fotográfico automático, os fotógrafos estariam sendo controlados pelo aparelho, e as suas imagens não exerceriam sua função de repre-
sentar o mundo para o homem. Seriam, na verdade, apenas imagens que representam o universo binário do aparelho fotográfico. Para além disso, Flusser afirma que essa estrutura lógica permeia todas as áreas, pois os aparelhos estariam programando uns aos outros. O aparelho fotográfico é produto do aparelho da indústria fotográfica, que é produto do aparelho do parque industrial, que é produto do aparelho sócio-econômico e assim por diante. Através de toda essa hierarquia de aparelhos, corre uma única e gigantesca intenção, que se manifesta no output do aparelho fotográfico: fazer com que os aparelhos programem a sociedade para um comportamento propício ao constante aperfeiçoamento dos aparelhos. (1983, p. 24) Por estarmos cercados por au-
tomação, Flusser afirma que a questão da filosofia hoje seria a seguinte: “Se tudo é produto do acaso cego e tudo leva necessariamente a nada, onde há espaço para a liberdade?”. O dever da filosofia da fotografia, para Flusser, seria o de desmascarar esse jogo em que os aparelhos programam de forma automática os homens. E é por esses olhos que vejo essa imagem de Andujar: um trabalho filosófico que acredito conseguir jogar contra o aparelho. Andujar produz uma imagem que foge daquilo que foi programado. É uma libertação da programação do aparelho, uma libertação tanto dela, que produziu a imagem, como também de quem a recebe e a interpreta. É uma imagem que fala sobre as possibilidades de se viver em um mundo com menos caixas pretas e mais liberdade. U NICAPHO T O 139
dica especial
A Câmera de Pandora: eis a pós-fotografia por Joan Fontcuberta Texto por Julianna Nascimento Torezani
Além de uma intensa publicação sobre a fotografia analógica há também livros que tratam sobre a fotografia digital. Cada autor que desenvolve um estudo interpreta esse novo sistema de produção de imagens após o processamento químico. Entre as obras há o livro A Câmera de Pandora: a fotografi@ depois da fotografia do professor, pesquisador, crítico e fotógrafo catalão Joan Fontcuberta. O livro foi lançado em 2010 na Espanha e em 2012 no Brasil pela Editora G. Gilli com a tradução de Maria Alzira Brum e o prefácio escrito pelo fotógrafo Juan Esteves. Foi dividido em 17 partes que reúnem textos novos e alguns ensaios escritos anteriormente para periódicos. Na Introdução, Fontcuberta traça um quadro das características da fotografia analógica e digital, indicando que a primeira se desenvolve pelo processo químico, obedecendo as regularidades da sociedade industrial, em que produz elementos materiais em
série, haja vista o grande número de imagens que foram produzidas nos séculos XIX e XX, inicialmente em placas de metal e vidro, e depois prevaleceu como suporte o filme de celulose e para ampliação o papel tendo como emulsão de ambos a gelatina e a prata. A fotografia digital, por sua vez, ocorre em função da transformação da luz em energia elétrica e depois em código binário, neste caso essa criação está ligada a sociedade pós-industrial, visto que há a virtualização da imagem em telas (para serem visualizadas), assim a imagem circula pelos fluxos das redes de conexão, diferente da distribuição em papel no sistema anterior. “A foto digital, portanto, é uma imagem sem lugar e sem origem, desterritorializada, não tem lugar porque está em toda parte” (FONTCUBERTA, 2012, p. 16). Ao longo do livro o autor conta experiências que ocorrem por conta desse novo regime visual, apresentando inclusive novos dispositivos para criação de imagens, U NICAPHO T O 141
bem como programas de computador, sobretudo em função das manipulações, montagens e alterações imagéticas. Fontcuberta trata da possibilidade de registro de forma rápida, automatizada e instantânea, em especial com os telefones celulares, fazendo com que o cotidiano seja ainda mais fotografado, ou seja, a imagem vernacular ganha muito mais espaço pela tecnologia atual, “no ápice dessa onipresença a imagem estabelece novas regras com o real. Hoje tirar uma foto já não implica tanto um registro de um acontecimento quanto uma parte substancial do acontecimento em si. [...] Não existem mais fatos desprovidos de imagem” (2012, p. 30). Vale a pena observar entre tantos temas o grande número de selfies que são produzidas atualmente, em que além da pessoa registrar o fato, participa imageticamente dele e certifica sua presença no local do acontecimento. Essas imagens digitais tem efeito comunicacional, muitas vezes, efêmero, pois muitas fotografias não são feitas para serem guardadas, mas para indicar uma informação numa situação específica, o que nos refletir sobre o conceito de memória através dos acervos fotográficos. “A representação fotográfica se liberta da memória, o objeto se ausenta, o índice se evapora. A questão da representação da realidade dá lugar à construção de sentido” (FONTCUBERTA, 2012, p. 65). Ainda mais que a pós-fotografia é uma imagem latente, pois o arquivo digital em formato gráfico só se torna aparente após ser ‘aberto’ e visto na tela. O autor também aponta o duplo caráter da fotografia, de registro e ficção, sua face documental, mas além
disso, a possibilidade de criação de uma cena, que se inicia pelas escolhas do fotógrafo, passa pelo tratamento com filtros e retoques digitais e, ainda, quando é colocada diante dos olhos do observador. Para ilustrar tal característica Fontcuberta reflete sobre a foto da corte espanhola onde aparece o rei Juan Carlos, a rainha Sofia e seus netos, feita no Palácio de La Zarzuela, usada oficialmente como retrato do natal da família real na mensagem que é publicada à população, o autor observa que pela truncagem que fora feita o rei aparece ‘sem as pernas’. “As pernas do rei Juan Carlos (que ele tanto precisa para esquiar e navegar!) tinham sido apagadas; assim como os braços de Victoria Federica, filha mais nova da infanta Elena e de Jaime de Marichalar. E é difícil explicar o estranho escorço de Irene, a filha mais nova da infanta Cristina, no colo do irmão mais velho. As crianças situadas de um lado e de outro tinham sido fotografadas com perspectivas discordantes. O casal real, além disso, está vestido exatamente da mesma maneira que no ato de apresentação da filha dos príncipes de Astúrias um mês antes. Em resumo, um desastre” (FONTCUBERTA, 2012, p. 117). E claro após a publicação do cartão de natal não faltou os famosos memes destes membros reais em situações adversas feitas pelos internautas, na apropriação da cena em si, como em formato Lego, com a paisagem lunar de 1969, na foto de Lewis Hine da construção do Empire State Building, no formato da Família Addams e na capa do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Eis a pós-fotografia!
Foto Breno Rotatori
DIREITO AUTORAL E DIREITO À IMAGEM
Termo de autorização de imagem Texto por Julianna Nascimento Torezani
A imagem das pessoas está protegida por lei através do Artigo 5 da Constituição Federal de 1988, conforme vimos na Edição 4 mas vale relembrar: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Portanto, para a representação do corpo e voz da pessoa requer um Termo de Autorização de Imagem, que tem por objetivo esclarecer o projeto da produção fotográfica e sua finalidade, como a produção de obra intelectual. Para a advogada Maria Cecília Naréssi Munhoz Affornalli, no livro Direito à própria imagem (Editora Juruá, 2012, p. 56): “O consentimento para tal deve contemplar os fins a que o uso da imagem se destina, os meios de comunicação ou de divulgação em que ela deverá figurar e outros elementos que estejam envolvidos com o uso permitido. Quanto mais específica for esta autorização, maior a proteção do titular do direito à imagem”.
meses ou por tempo indeterminado – Quando? - Meios de divulgação: livro, revista, jornal, CD, CD-ROM, DVD, programa de rádio, programa de televisão (aberta, fechada, por assinatura), cinema, Internet (colocar sites específicos e redes sociais), outdoor, busdoor, folhetos em geral (encartes, mala direta, catálogo) – Vale a pena nesse item indicar as futuras possibilidades de uso da imagem - Como? - Remuneração ou se vai ser a título gratuito – Quanto? - Nome da empresa, projeto, programa de televisão, agência de publicidade, cliente, universidade – Quem? Affornalli (2012, p. 38) chama atenção do seguinte aspecto: “Os contratos adequados para regulamentar o uso da imagem, geralmente para fins publicitários, são os de licença de uso, mas nunca de cessão; haja vista que o direito à imagem não pode ser transferido, mas tão somente licenciado para determinado fim e por tempo certo”. Assim, a imagem é autorizada ou licenciada para o uso específico, mas não pode ser cedida, os profissionais devem ter o cuidado ao elaborar tal documento que deve ser chamado de Termo de Autorização de Imagem ou Termo de Licenciamento de Imagem, mas nunca Termo de Cessão de Imagem. Em alguns termos dessa natureza há o aspecto de “exclusividade” da pessoa que está sendo fotografada para um uso específico (geralmente publicitário), ou seja, não permite a imagem dessa mesma pessoa para empresas concorrentes do mesmo setor econômico. Para os trabalhos acadêmicos deve indicar qual é a instituição, curso, disciplina, período letivo e professor(a) que está orientando o trabalho, entendendo que se trata de uma obra para fins didáticos, de pesquisa e divulgação de conhecimento científico. Assim, as pessoas que aceitarem participar de uma produção desta natureza autoriza, de livre e espontânea vontade, para os mesmos fins, a cessão de direitos da veiculação da obra finalizada, não recebendo para tanto qualquer tipo de remuneração. No caso de produção videográfica incluir no termo a autorização para captura da voz.
Desse modo, este documento deve apresentar os dados da pessoa que vai autorizar o uso da imagem: nome completo, endereço, telefone, profissão, estado civil, nacionalidade, RG (com órgão emissor e estado) e CPF. Assim como, devem ter os mesmos dados para o fotógrafo(a) que irá produzir o trabalho. Para os menores de 18 anos tem que ter assinatura dos pais (pai e mãe) ou responsáveis legais com todos os dados Dicas: No site da iPhoto há modelo de Termo de Autocompletos. Além disso, deve conter os dados referen- rização de Uso de Imagem através do endereço: http:// tes a produção fotográfica, como: www.iphotoeditora.com.br/direitoautoral/ Também existe o aplicativo para celular Easy Release que tem o - Título do trabalho – O que? modelo e pode ser atualizado, assinado e enviado para - Finalidade de uso (publicitário, por exemplo) – Para o email da pessoa e do fotógrafo. que? - Espaço territorial para a propagação: local de exibição. Ex.: Recife – Onde? - Tempo e número de exibição: período. Ex.: por 6 U NICAPHO T O 143
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O “kiosque” de Wilson Texto por Betânia Correia de Araújo Foto Wilson Carneiro da Cunha
Ser moderno no Recife, na segunda metade do século 20, era usar um terno branco, frequentar o bar Savoy na Avenida Guararapes, tomar um sorvete na Rua da Aurora, comprar um jornal e engraxar o sapatos na Rua Nova. Ser moderno era atravessar a ponte da Boa Vista e ser clicado por Wilson Carneiro da Cunha. Na década de 1960, o fotógrafo Wilson instalou um "kiosque" no centro histórico do Recife, pre-
cisamente na esquina da Rua Nova , ao lado da matriz de Santo Antônio, no centro comercial mais movimentado da cidade. No "kiosque" , além de vender seus retratos , Wilson exibia fotografias de cangaceiros e zeppelins. Ao longo de vinte anos Wilson registrou os passantes com sua câmera portátil. As imagens produzidas por Wilson representam a cidade em transformação. Homens, mulheres, novos hábitos, um novo mundo em movimento. O estúdio, agora em céu aberto, era a ponte, as calçadas com suas belas pedras portuguesas e a rua. Tudo sob a luz natural dos trópicos.
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