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O livro como corpo físico

Espacialidade e exacerbação do corpo

O livro como corpo físico

Entre as declarações publicadas na revista nova-iorquina Art-Rite, dedicada aos livros de artista, edição do inverno de 1976 para 1977, existe uma que me é especialmente simpática. “Um artista que se senta para examinar seu próprio livro sente o movimento do ar contra seu rosto enquanto vira as páginas” (p.13, definição de John Shaw). Essa satisfação nascida da completude e do contato remete ao que de mais determinante ou distintivo tem o livro de artista: sua fisicalidade. Como todo livro (aqui entendido como o volume), ele também é um corpo físico que ocupa lugar no espaço. É uma coisa, um objeto. Mas se o livro é, o livro de artista é muito mais. É linguagem e metalinguagem tornadas concretas. É um corpo físico expressivo.

Corpo é “todo objeto material que ocupa um espaço e tem por principais propriedades: a extensão em três dimensões, a impenetrabilidade e a massa” (Japiassú e Marcondes, 1990). Por essa condição ele “possui propriedades sensíveis [...] ou que causam nos seres humanos [...] impressões, ou estímulos, ou ambas as coisas” (Mora, 1996). Podemos direcionar esse entendimento, adjetivando-o. Pelo ponto de vista que o considera a matéria orgânica que forma (conforma) o homem, é o “corpo humano”. Nesse caso ele é qualificado porque encerra a alma, ou o psíquico, ou a mente. A dependência dos conceitos está por detrás da metáfora histórica que atribui conteúdo anímico aos livros, frequentemente representado da pintura antiga até os produtos culturais e de entretenimento de massa do século 20. Da mesma forma, a sugestão do rosto humano ou fantástico está presente tanto em encadernações verdadeiras como nas representadas em alegorias, em contos de fadas e nas mais diversas fantasias.

É sempre necessário voltar aos conceitos expostos no início. Pergunta: a interdependência explícita do livro de artista com um objeto já consagrado que é o seu referente formal pode ser determinante de sua condição de gênero artístico especial? Tim Guest

(1981, p.9 e 19) nota que os livros de artista são todos, sobretudo, livros. Como ele está se referindo ao sentido estrito – o fruto de um movimento iniciado nos anos 60 –, suas considerações estreitam ainda mais essa relação.

Com esses qualificadores em mente, e reconhecendo a grande diversidade de conteúdo nos livros de artistas, o que determina esse conjunto de obras de arte como um gênero específico? A resposta óbvia é que todos eles são livros – conscientemente e manifestamente de si mesmos; mas além disso, livros, como qualquer outra forma de arte, conotam e prestam-se para certas coisas. Para descrever essas conotações e para ter por considerar a função dos livros de artistas, existem (ao menos) quatro eixos temáticos aos quais o leitor pode recorrer: 1) a estrutura formal e conotações da forma de livro. 2) a função documental do livro. 3) o livro como forma de arte distributiva. 4) a realização da sensação de leitura.

A partir daqui, sobretudo o primeiro e quarto eixos serão estudados, talvez os mais passíveis de intervenções físicas. O segundo eixo foi estudado anteriormente, e o terceiro será comentado apenas eventualmente, já que interessa pouco para este trabalho.

O problema tropológico (uso de sentido figurado) que incide no conceito do livro não existe na prática. É usual que se aceite a realidade unificadora da palavra “livro”. Mas no esforço de um desenvolvimento crítico, deve-se lembrar, novamente, que de fato a substância física que o compõe é o antigo volumen, a unidade material, termo originado dos rolos precursores. O liber latino era a unidade intelectual contida neles: liber est interior tunica corticis, ou o livro é a túnica (o revestimento) interior da proteção (do córtex). Ou melhor, a proteção como a trama de papiro em rolo, revestida na face interna pela escrita. A evolução da forma, sua reprodutibilidade, a expansão da literatura, a vulgarização do ensino e da contabilidade, o desenvolvimento das ciências, etc., propiciaram a fusão dos conceitos. Hoje não mais importa que o volume contenha o livro. Ou será que importa?

Será que o livro é um corpo que contém alma, metaforicamente falando? Essa dúvida, como outras (valor, significado social, originalidade, etc.), é acompanhada de problemas dialéticos que são o próprio retrato de um caldo de tensões. São tensões que comportam dualidades, ambiguidades e controvérsias que possivelmente não seriam aprofundadas sem o entorno conceitual que forjou o conceito “livro de artista” em sua primeira acepção, antes da sua atual (quase) vulgarização. Germano Celant insere o fenômeno na continuidade das experiências plásticas (e talvez políticas) do pós-guerra. Ele acusa a tensão dialética interna ao “informal” (aspas dele) nos anos 1956-1963, quando a ênfase ao elemento natural e ao humano se transfere para o relacionamento entre o homem e a mídia. A mídia seria usada não como um meio, mas como um fim em si mesmo. Nesse período poderiam ser identificados dois grupos de aproximação ao meio. No primeiro, o aspecto físico da obra tendia a ser subserviente aos seus elementos humanísticos. No segundo, o aspecto físico era apresentado como parte intrínseca da

essência primária e complexidade orgânica da obra. Um meio significante em si mesmo nos seus usos cotidianos e não-artísticos (Guest e Celant, 1981, p.85-86).

O livro é um objeto no sentido genérico, uma coisa que pode ser apreendida pela percepção ou pelo pensamento. Sendo material e ocupando um lugar no espaço, tem nas três dimensões a principal característica de ser um corpo físico matemático. Como corpo, portanto, possui a propriedade de causar impressões e estímulos nos seres humanos. Os dualismos corpo e alma, corpo e espírito, corpo e mente e outros semelhantes importam aqui de uma maneira acessória. Neste enfoque, o corpo é sensível e inteligível, através da relação entre o plano material e o plano mental e dessa possível identidade, pelo uso da leitura e/ou da percepção como ferramenta de compreensão ou apreensão.

É pela percepção mais ou menos imediata (por vezes reflexa) da aparência que o livro que é obra de arte se instaura, mesmo naqueles que são bastante discretos. A leitura, o desfrute e a intelecção são processos de aproximação posterior. Para qualquer das etapas, é principalmente a sua eloquência como corpo físico que impõe o seu status de objeto artístico. Oscila entre o belo e o espalhafatoso, entre o livre e o imobilizado, entre a preservação da forma e a perversão de sua finalidade e função. Do deleite ao estranhamento, passando por suas possíveis gradações, até talvez a uma possível repulsa, é a eloquência da (ou pela) fisicalidade que institui a sua identidade. Eloquência porque é capaz de comunicação em grau complexo e marcante, seja de modelo visual, ou verbal, ou ambos. Eloquência, também, por portar mensagem, ou por ser (por sua própria compleição física) texto, fazendo da audiência e suas circunstâncias o contexto.

Uma diferença a ser destacada entre o artista gráfico, que profissionalmente cumpre expediente em uma editora, e o artista plástico, que experimenta o livro de artista em suas formas mais livres, está no tipo de Doutor Frankenstein que cada um é. O primeiro constrói corpos – sempre. Não é de sua “função” desconstruí-los. A uma alma dada, desgarrada, ele dá o corpo, elaborado com a originalidade possível a sua profissão. Serão cotejados princípios já aceitos com novas soluções entrando na moda. Alguma ousadia poderá haver em seu trabalho, mas apenas com a tolerância das partes envolvidas. A individualização do criador afluirá com extrema dificuldade. Seu livro buscará ser, por princípio e norma, apolíneo. Veja-se, como rápido exemplo, um preceito de Douglas C. McMurtrie (1982, p.595):

À pergunta “qual é o melhor tipo para todos os fins, desenhado desde o começo da imprensa até agora?”, não pode dar-se resposta duvidosa. O tipo foi desenhado e gravado por William Caslon e pode aplicar-se anos e anos para todos os fins sem enfadar o gosto. [...] O tipo Caslon é também o melhor tipo para livros que se tem fabricado, pois é legível no mais alto grau e não se torna monótono.

Este é um exemplo de proposição de norma estética. Ela tem sido confirmada por especialistas e editores. E um exemplo de aceitação dessa norma é este texto que está

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