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Secularizados deveras?
Pedro Miranda . Professor de EMRC
“Poderemos observar que se (…) a remissão para a secularização, em nossas sociedades, tende a referir-se a uma (suposta) “abolição da fé”, todo sentido faz, inversamente, propormos uma secularização crente.”
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Uma afirmação peremptória, sem matizes ou ambiguidades, da secularização como fenómeno inequivocamente instalado (nomeadamente, hoje, a Ocidente) tende, em realidade, a negligenciar uma consideração outra de perspectiva: a que nos remete para a perenidade do religioso, do sagrado no – entre o – humano. Neste sentido, dificilmente a chamada “morte de Deus” seria susceptível de exaurir a dimensão crente da pessoa humana – homo credens, por definição, pois – pelo que, mais do que falar em secularização, devemos atentar, antes, na deslocação do sagrado para âmbitos até aqui considerados profanosi . Da ciência às ideologias, passando pela economia, o partido, a nação, a natureza, o desporto ou os media, várias são as novas sedes sacralizadas. E, todavia, radicalmente, nenhuma delas, outrossim, alcança substituir o Deus da confiança, o “exterior fundamento do sujeito”; a modernidade, sempre à procura de um (novo) deus que substituísse Aquele, instituiu, então, novos horizontes de divindade. Em uma palavra, não se secularizou, afinal, a cultura. Será, porventura,
i Cf. João DUQUE, Ambiguidades da secularização entre modernidade e pós-modernidade, Cultura e Comunicação, nº11, 2011, 19-35. aparentemente, de maneira paradoxal, a partir da tradição bíblica – para a qual/segundo a qual, só Deus é santo -, que a crítica a esta não secularização pode adquirir força substantiva e operar com pertinência. Só no interior de uma mundividência em que o Deus transcendente - simultaneamente presente (maxime, na minha relação ética com o outro) e transcendente (na autonomia conferida ao humano) à história (humana) -, abre espaço para a “mundanização do mundo”, a recusa de falsas divinizações – incluindo os desejos de cada um - encontra respaldo; em rigor, só o Deus transcen-
dente garante a secularidade do demais; Deus é fundamento da secularizaçãoii . De modo esquemático, poderemos, assim, observar que se, não raramente, a remissão para a secularização, em nossas sociedades, tende a referir-se a uma (suposta) “abolição da fé”, todo sentido faz, inversamente, propormos uma secularização crente. Ela implica, reitere-se, a aceitação de que só Deus é santo; tudo o resto, não é Deus – mas criatura sua. E o Criador, no respeito absoluto pela autonomia do que é criado, na liberdade que dá ao mundo, abre espaço para uma correcta leitura/interpretação da relação Deus/ mundo. Mais: “se a ‘morte de Deus’, na cultura ocidental, implica o reconhecimento claro desta relação entre mundo e Deus, entre humanidade e divindade, então ela é simbolicamente condição positiva de vivência correcta da fé cristã. Mas só na medida em que assim for”iii . Tal não significa, bem entendido, que Deus não possa manifestar-se no mundo; sem embargo, cremo-Lo presente, mas por adjectivação derivada da sua referência à origem primeira (sem intervenção directa ou imediata, qual deus ex machina). Em suma, terá sido uma específica cosmovisão – aquela que encontramos manifestada na Bíblia – a dar expressão à experiência de um mundo ou realidade especificamente seculares (e isto por distinção face à origem divina de tudo). De acordo com J.B.Metz, a vexata quaestio do nosso tempo não é, já, desta sorte, a presença ou ausência do religioso, mas, bem mais, a construção do religioso sem Deus – o Deus bíblico – na medida em que tal compromete o refreamento das ambições do “Homem superior” (nietzscheano), pois que o Deus de Jesus Cristo – e a sua memória – promoveria a igualdade entre os humanos, a fraternidade, a simpatia para com as vítimas inocentes (e ignoradas/ esquecidas). Neste contexto, pois, “a mais tremenda ‘morte de Deus’ (…) coincide com a ‘morte do humano’iv.” Se a valorização do mundo encontrava fundamento na sua relação com o “sagrado fundamental”, Deus, o que o processo moderno de secularização
ii Ibidem, 29. iii Ibidem, 24. iv Ibidem, 27. pareceu pretender anular foi este carácter mediador – do mundo para o Deus transcendente -, instalando, em alternativa, uma secularização idolátrica do imanente, com absolutização do mundo na sua factualidade. Não obstante, em leitura radicalmente diversa desta, poderemos questionar-nos, com Jean-Paul Willaime, se não estaremos, na verdade, a viver um novo tempo, o da radicalização da modernidade – não o da superação desta e, portanto, não pós-modernidade -, o da “secularização ao quadrado (a secularização elevada a dois)”v, no qual a desmitologização, a secularização não incide, já, sobre o religioso, mas recai nas próprias instituições que haviam presidido à secularização ou tomado o lugar do sagrado (isto é, na vez do religioso). A ideologia, os partidos, a nação, por exemplo, seriam, desta forma, vítimas do processo anteriormente passado com o religioso. “Os desencantadores são desencantados”vi, por fim, e, de novo, a religião mostra proporcionar um acervo de recursos, identitários e éticos, que explicam muita da sua perenidade. Se é certo que a Ocidente, cada vez mais, as sociedades são pós-cristãs, com a separação do Cristianismo a fazer-se não apenas com o Estado, mas, ainda, e provavelmente de modo mais importante, com a ambiência circundante - o fim da cristianitude -, não menos relevante é compreender como no seio de sociedades em que o pluralismo extremado - que dificulta de sobremaneira a construção do “eu” -, grupos de jovens, e menos jovens, qualificados (em França, abaixo dos 45 anos, a maioria dos crentes é composta por pessoas com qualificação escolar superior) forjam pequenos sub-conjuntos identitários, em que o sentido e orientação é proporcionado pela vinculação cristã - a heresia do séc.XXI não é, como no passado recente, a heterodoxia, mas a ortodoxia. De aí que “ser religioso hoje é um não conformismo”vii .
v Jean-Paul WILLAIME, As condições socioculturais da religião na ultramodernidade contemporânea, in Anselmo BORGE, Deus ainda…, 29. vi Ibidem, 30. vii Ibidem, 44. De acordo com o autor, nos nossos dias “participa-se em” muito mais do que “pertence-se a”. E, neste contexto, o excluído de hoje é aquele que se fixa nalgum lugar, que resiste à mudança permanente. O religioso pode ser protecção, abrigo seguro – de leitura do mundo e vivência nele – e não, apenas, limitador de uma qualquer emancipação.