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Aqui no cimo desta montanha
Agostinha C. Araújo . Professora de Português e Lit. Portuguesa
“Toda a minha vida tem sido um caminho para a totalidade, um esforço para recolher esses pedaços de mim, um esforço para encontrar a paz da missão concluída, a tranquilidade do descanso merecido.”
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Aqui, no cimo desta montanha azul, ao amanhecer, olho a planície e vejo páginas de mim a esvoaçar, espalhadas pelo vento. Aqui, neste deserto profundo, olho a vastidão de areia e vejo a minha vida. Vejo pedaços de mim dispersos pelo vento, perdidos no tempo, a esvoaçar pelo espaço. Vem-me à memória Camões, “poeta pelo mundo em pedaços repartido”, como alguém lhe chamou. Sinto-me Camões na pele, nos músculos, nos ossos. Sinto-me pelo mundo e pela história em pedaços repartido. Estou aqui, mas anseio em simultâneo estar ali, sou eu, mas desejo viver várias vidas ao mesmo tempo, em simultâneo tomar várias direções. Toda a minha vida tem sido um caminho para a totalidade, um esforço para recolher esses pedaços de mim, um esforço para encontrar a paz da missão concluída, a tranquilidade do descanso merecido. E sempre a minar-me um sentimento de “medo sem ter culpa”, um sentimento que, por vezes, faz uma lágrima grossa e quente deslizar, rápida, pelo meu rosto. Se me olho ao espelho, esta é a imagem que ele me devolve: um homem maduro, forte, queimado pelo sol, de mãos abertas, de coração generoso. Sim, estou de bem com a vida, sou calmo, sensível, ousado, prezo a amizade e a tolerância, mas os meus olhos são tristes e têm uma expressão séria. Adoro desafios e sonhar, sempre sonhar e realizar novos projetos. E os outros? Que imagem os outros captam de mim? Algumas pessoas chamam-me louco, outras acham-me cruel, volúvel, egoísta, e algumas, poucas, acreditam que sou meigo e encantador. E eu sou tudo aquilo que elas pensam que eu sou, mais aquilo que eu penso que sou, um espelho que, desastradamente, em certo momento, quebrou em pedaços pequenos e que reflete a realidade de vários ângulos, um caleidoscópio de cores e formas em constante mutação. De forma desajeitada, tosca talvez, procuro deixar marcas no mundo, uma impressão digital de mim aqui, outra ali, outra mais adiante… pistas de mim para me encontrar. Acredito na eternidade. A eternidade são os meus filhos: a bela, o bondoso e o justo. Nós os quatro somos a totalidade. Mas continuo incompleto, eles crescerão e voarão para longe. As mulheres que tive, que colecionei, uma após outra, e até as que amei, fizeram parte do meu sonho. Amei algumas vezes, mas já esqueci as circunstâncias, os nomes, os rostos, os cheiros e os sabores. Às vezes pergunto-me: seria mesmo amor ou teria sido apenas o amor do amor? A sedução da caçada, a torre cercada, estrategicamente, pacientemente, a conquista! Logo depois
esse sentimento já gasto, já cansado, sem novidade, sem sentido, vazio. O que fiz na vida… O que sonhei… O que pensei… O que senti… Os sítios que visitei… Os erros que cometi… No computador, retroceder é o meu comando preferido. Em qualquer momento me posso arrepender de uma ação e retroceder, reparar o dano, corrigir. Pudesse ser assim na vida! Pudesse haver um retroceder ou até uma tecla delete para os nossos erros! Estou no fundo de um poço profundo. Escuro, húmido e profundo, nas entranhas da terra. Uma friagem acaricia-me estranhamente o corpo, chega-me aos ossos e sinto a boca seca, tenho sede. Estou no meu âmago, no meu centro, na corola de mim. Vejo-me. Encontro um punhado de areia, folhas secas, remoinhos, pedaços. São fotos de mim que esvoaçam, um álbum de memórias, infância, perdas, vitórias, conquistas, emoções gastas, um cansaço, uma inquietação na alma. Memórias, lembranças, fragmentos dispersos, sono agitado, inquietude… Esta inquietude que me corrói, que torna menos claro o meu olhar… Quero fazê-lo? Que me trará isso? Quem serei quando o fizer? Que me impede de o fazer? Que tenho de fazer para que isso aconteça?... Perguntas que ajudam, mas que não me guiam no labirinto de mim. As perguntas profundas, subcutâneas, definitivas, permanecem sem resposta. Aqui e agora. Mas eu sou amanhã e quero estar ali, de preferência sempre ali. Inquietude, linha infinita, imensidão, dispersão… sem fim.