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Para Ti
José Artur Matos . Professor de Artes Visuais
Fiquei-me sempre pelas meias palavras, nas frases esquivas, nos olhares discretos e julgo que não te disse tudo que havia para dizer. Parece que me morreste no preciso momento em que já ia desistindo de ti e tu de ti mesmo. No oportuno tempo em que parecia já não valer a pena. Em que o teu corpo estava a desistir, as tuas mãos estavam inchadas das transfusões, a tua pele alva como a de uma boneca de porcelana, as muitas escaras de tanto te roçares nos lençóis, os pensos de morfina e outras drogas que eu nem conheço. Nos últimos tempos pediste que não me fosse embora, uma e outra vez, que chamasse os enfermeiros para te mudarem de posição. Não imaginas como eu anoitecia a descer o elevador, como anoitecia no percurso até ao carro e no caminho até casa. Como me culpava por te esquecer na tua dolorosa reclusão, por levar a minha vida de todos os dias. Como me culpava por não ser capaz de te visitar todos os dias. Quando estava contigo evitei tocar-te quase sempre, enquanto via pela porta semicerrada do quarto, em frente, as carícias que outros faziam. Invejei-os de alguma forma, mas fiquei imóvel, agarrado às apps do smartphone, para disfarçar o desconforto. Nós nunca fomos de carícias, sempre evitamos essas lamechices, sempre fomos daqueles que nada dizem, daqueles que apenas trocam olhares fugazes como dois perfeitos desconhecidos. Mesmo assim julgo que sempre nos compreendemos como ninguém. No outro dia vi uma foto antiga, talvez dos anos 70, em que estavas com o Sr. Francisco, o “Rei dos Bigodes” e transportavam um caneco à cabeça. Ao fundo estava a Tia Isabel, acabada de chegar de Angola. Bela e desempoeirada, tal e qual a Claudia Cardinale, num filme de Fellini. Tenho olhado a foto repetidamente, inquieto com aquele teu sorriso de que já não me lembro. Um sorriso puro. Aqueles de que me lembro nunca foram assim, sempre me pareceu que já transportavam o peso do tempo, pareciam uma despedida, pareciam sempre tristes ainda que fossem sorrisos. Pior do que isso, nos últimos tempos, às vezes, já nem eram sorrisos, mas apenas uma ligeira contorção muscular na face. Sempre me pareceste triste e algo resignado. Sempre o atribuí ao fatídico dia 26 de Agosto de 1986, tinha eu acabado de fazer 18 anos. Embora não esteja certo, julgo que esse dia nos transformou a todos e nos colocou no rosto um semblante algo melancólico-depressivo que ficou para a vida. Nunca foste perfeito e sabias ser mau como ninguém. Sei muito bem como foste mau para pessoas que eu muito amei. Em nossa casa sempre houve segredos, as portas estavam sempre fechadas, mas as paredes eram de madeira e para os ouvidos foi sempre tudo bastante claro. Devo a essas paredes a compreensão do caráter mais íntimo de cada um dos que ali viviam, a nossa pequena família. Devo a essas finas e promíscuas
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paredes uma boa parte daquilo que sou e o meu interesse pela psicologia humana. Devo a essa falta de privacidade uma parte da construção do meu caráter. Para além das coisas boas que construímos nessas condições, cedo me dei conta que transportava comigo o mesmo tipo de maldade que nessa altura encontrei em ti, aquela maldade que sempre aplicamos àqueles que mais amamos. Uma estranha forma de amar, que julgo ter herdado de ti e de que não me orgulho. Mas nem tudo foi mau. Também partilho de ti a capacidade de contemplação, a espantosa segurança com que agarramos a vida pelos cornos, a genuína humildade que sempre nos ficou tão bem. O gosto pela terra e pelo trabalho árduo. O imenso respeito por todos aqueles que trabalham para nós. A seriedade e a autenticidade relacional para com aqueles com quem nos cruzamos. Nem tudo foi mau, mas partiste e deixaste-me órfão, deixaste-me algo perdido. Agora já não tenho ninguém para culpar quando algo não me corre de feição, já não tenho ninguém onde depositar a culpa. Tu sabes do que eu estou a falar, sempre nos compreendemos como ninguém.