Biblioteca Escolar Dr. José dos Santos Bessa - Carapinheira
TAMBÉM ACREDITAS?
ISABEL FILIPE
Dezembro 2015 Momentos de Ler… Momentos de Prazer...
últimos aos meus colegas ou nunca mais me vão largar com piadinhas parvas).Pois bem, mesmo com toda a diversidade e qualidade do que leio, considerando que, raridade das Carapinheira, 18 de dezembro
raridades, até acho piada aos romances de Camilo Castelo Branco (o preferido do meu avô, que recita páginas de cor e cujos
Professora,
títulos parecem de telenovela - A Brasileira de Prazins, A Queda
Confesso que ontem, quando nos sugeriu o trabalho para
de um Anjo - o máximo!), continuo a lutar afanosamente com as
as férias de Natal, fiquei em pânico! Escrever um conto de
palavras, tropeço nas frases e enrolo-me com os parágrafos
Natal?! Eu, que sempre tive tantas dificuldades em pôr no papel
quando chega a altura de exprimir as minhas ideias e de criar
as histórias mirabolantes que me passam pela cabeça, como
uma história original.
iria resolver este problema? A professora sabe que gosto muito
Ontem, com o objetivo de começar a explorar o tema,
de ler, consigo interpretar um texto sem grandes dificuldades,
falei com a minha mãe sobre as nossas memórias de Natal. As
mas a minha criatividade, quando toca a escrever, deixa tanto
minhas ainda não são muitas, claro, doze anos não me permitem
a desejar…
ainda colecionar vivências muito empolgantes, mas o meu pai e
Dizem que para escrever bem é só preciso ler muito. Eu
a minha mãe falam-me muitas vezes de outros tempos, quando
sou o exemplo vivo de que talvez não seja bem assim. Leio tudo
as famílias eram maiores e se reuniam na casa dos avós, a
o que me aparece à frente e nos locais mais improváveis: jornais
consoada era celebrada à maneira – presépio, mesa cheia com
desportivos, na casa de banho, romances, no chão da sala,
velhozes, coscurões, arroz doce e o “fatal”bacalhau cozido com
revistas “cor-de-rosa”, na mesa do escritório, banda
batatas e grelos – o Pai Natal que só chegava depois da missa
desenhada, no terraço, livros de História, antes de dormir -
do Galo e nem sonhava ainda com os smartphones, consolas,
gosto de sonhar com reis, rainhas e princesas - ficção científica,
ipads, ipods, tablets que hoje tem de carregar no saco a
na praia, e contos de encantar, na mesa da cozinha, enquanto
abarrotar. Os mais novos ouviam histórias tantas vezes
a minha mãe prepara o jantar. (Por favor, não fale destes
repetidas mas sempre novas, aninhavam-se no ombro das avós e deliciavam-se com o seu cheirinho doce tão familiar, sentiam Página 2
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familiar, sentiam que o mundo estava ali e não precisavam de
de Londres, se esqueceu das horas e, na véspera de Natal, a única
mais nada.
coisa que conseguiu comprar para jantar foram duas costeletas
Depois eles viveram também outras histórias. Umas tristes – o primeiro Natal do meu avô em Moçambique,
congeladas e um quilo de cebolas de conserva, por especial favor, no supermercado paquistanês da esquina).
durante a guerra colonial, aquele Natal de 75, quando a
- Agradeço que não me lembrem de coisas tristes! Fico
família regressou de África…- outras alegres – o primeiro
enjoada só ao recordar o cheiro. Achava que eram batatas
Natal com a minha humilde pessoa (primeira filha, primeira neta,
cozidas…Estavam tão arrumadinhas no tabuleiro…À mesa, eu
primeira sobrinha :) ), o natal na casa nova, com tanto espaço e
e o João não sabíamos se havíamos de rir ou chorar.
o avô a reivindicar o cadeirão elétrico que estica e encolhe,
- Oh Augusto, o que vais calçar hoje à noite? As “adidas”
passando toda a noite colado ao dito cujo. E houve também
ou as “encardidas”? (o Augusto é o meu primo mais velho que,
outros natais inesquecíveis, porque proporcionaram peripécias
há uns anos, vivia uma adolescência difícil, principalmente em
que continuam a ser referidas ano após ano.
relação à água e ao sabão. Quando a mãe resolveu oferecer-lhe
- Oh Marta, e quando o “Pai Natal” (o meu tio avô Tó,
umas sapatilhas novas como prenda de natal e fazer
completamente irreconhecível) nos entrou pela casa dentro a
“desaparecer” as que ele teimosamente enfiava todos os dias nos
chamar por ti e tu desataste a gritar e foste esconder-te ao
pés – a pobre já não conseguia suportar o cheiro - amuou e
colo do pai? (Marta é a minha mãe.) O susto foi de tal ordem
choramingou como um bebé, ameaçando fazer greve de fome se
que mais ninguém ouviu o som da tua voz nessa
as suas “encardidas” não reaparecessem. Conclusão: ganhou uma
noite…ah,ah,ah…
véspera de natal em jejum o que só contribuiu para aumentar o
- Nem me falem nisso! Ainda hoje olho para o velhinho,
apetite com que acordou no dia seguinte e devorou tudo o que lhe puseram à frente.)
sinto um arrepio na nuca e passo ao largo. - Oh Fátima, aquilo é que foi uma ceia de natal em
- Então, eu só queria ajudar na economia doméstica!
Londres, hem? Queres umas cebolinhas hoje? (A Fátima é a
Estavam sempre a queixar-se da carestia da vida!
minha tia que, no ano em que esteve a estagiar na Universidade
- E se contasses aquela história que só eu sei? - Mãe, impossível! A professora pede-me para ler em
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Desfiadas as lembranças com muita gargalhada Página à 5
voz alta e eu vou passar a ser a mais recente vítima de bullying emocional na turma.
anos… - A semana do Natal estava a ser pródiga em
- Ena, ena, estamos a usar uma linguagem muito científica!
surpresas: chegara a tia Célia do Canadá e a prima Julinha de França, o presépio estava pronto e as cartas ao Menino Jesus
- Tivemos uma sessão sobre o tema, na semana passada. Acredita, não é fácil.
e ao Pai Natal também (escrevia sempre aos dois, não fosse algum deles esquecer-se de mim), as histórias ao pé da lareira
- Eu sei, filha, mas falar do assunto é um primeiro passo
estimulavam a minha curiosidade e eu mal conseguia pregar
para que não aconteçam essas situações tão graves. E tu és
olho durante a noite. Lembro-me que no dia 23, mandaste-me
corajosa, nunca evitaste enfrentar o que te incomoda ou
deitar mais cedo, porque nos esperava um dia muito longo e
desafia.
emocionante. Fui bastante contrariada, podia lá aceitar que
- Mãe!...mas o Pai Natal, mãe, na minha idade?
toda a gente continuasse a conversar na sala e eu fosse exilada
- Na altura eras novita! Era natural que acreditasses.
para o quarto e de luz apagada!
Todos passamos por isso. E sabes que acho tão bonito! Tenho saudades de acreditar no Pai Natal.
Decidi que não dormiria. Mantive os olhos fortemente abertos e os ouvidos à escuta. A dada altura, comecei a ouvir
- Não convém dizer isto alto, mas eu também! Se a beta da Mafalda ouvisse, começava logo “dah”...
uns sussurros agitados e uns ais muito lamentosos que me pareceram estranhos. Levantei-me e em bicos de pés
- O que me parece é que a história é muito original e podes sempre dar-lhe uma “volta” diferente para não se tornar tão embaraçosa…
aproximei-me da sala. O que vi, deixou-me estupefacta. A superfície da sala tinha triplicado e estava repleta de pequenos seres que, sentados em volta de uma grande mesa,
- Pensando bem, vou arriscar. No mínimo, vai ser
se acotovelavam, falando baixinho e trocando olhares
retumbante! Não sei se me lembro de tudo como deve ser.
preocupados. Aos madeiros na grande lareira não tinha sido
Ajudas-me?
ateado o fogo e uma semiobscuridade misteriosa envolvia tudo
- Claro. Vamos lá começar: foi em 2009, tinhas tu seis
porque apenas algumas velas iluminavam o espaço. Uma nevoazinha brilhante pairava no ar e um cheiro a açúcar e
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morangos fazia suspirar até os menos gulosos.
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correio expresso chegou uma raridade: uma carta! Com
morangos fazia suspirar até os menos gulosos. Esfreguei bem os olhos e tentei compreender o que estava a acontecer. Pelas janelas podia ver-se a neve alva e cintilante cobrindo as árvores e as casas. Os pequeninos seres
papel, envelope e selo! - Acho que nunca vi nenhuma – exclamou um Nenuco rosadinho.
agrupavam-se à mesa segundo uma hierarquia bem definida:
- Nem eu - assegurou a uma Bratz de cabelo azul.
do lado direito, os duendes, de barretinho verde e laço
- Aquela carta foi um milagre! A menina chama-se
vermelho, sérios e expectantes, fixavam a grande porta
Sofia, tem seis anos e tocou o coração do Pai Natal.
castanha que abria para o interior da casa; do lado direito, os
- Conte, conte- pediam os duendes com impaciência.
soldadinhos
silêncio,
- Bem, é uma carta singular. Esta menina, na sua letrinha
aguardavam ordens; ao fundo, os bonecos e os palhacinhos,
redonda e cuidada, inundou-nos o coração de esperança.
coloridos e alegres, acotovelavam-se e cochichavam nervosos.
Ouçam…
de
chumbo,
aprumados
e
em
De repente, os guizos das renas ouviram-se lá fora.
E foi então que o coração quase me saltou pela boca!
Também elas estavam nervosas e se abanavam para
O Duende Mor começou a ler a minha carta! Foi enumerando
espantar a inquietação. Foi então que se ouviram passos e o
os meus pedidos: a Barbie Rock Star, dois livros de histórias, o
Duende Mor entrou na sala, dirigindo-se à cabeceira da
filme da “Coralina”, umas botas vermelhas até ao joelho (Que
mesa.
vergonha!) e, se possível, um jogo para o computador. A sua - Então? Então? Então? – perguntaram os mais afoitos.
voz começou a ficar ligeiramente sorridente quando eu
- Calma, temos muito que conversar. Como sabem o nosso
desatei a pedir ajuda para todos os problemas da família: as
chefe Pai Natal esteve doente durante algum tempo. Muito
dores nos joelhos da avó Isabel, os testes de matemática da
deprimido, desmotivado, achando que a sua missão deixara
minha prima Ana, as contas da luz da minha mãe, o mau feitio
de fazer sentido. Afinal, os meninos já não acreditam nele, as
do chefe do meu pai, enfim, um desfiar de mágoas. Mas o que
caixas do correio eletrónico estão vazias…Não havia nada
leu de forma solene e até comovida foram os meus pedidos
que o animasse… Contudo, há dois dias tudo mudou. Por
para o mundo (que presumida!) – e aí eu tinha mencionado tudo
correio expresso chegou uma raridade: uma carta! Com papel,
o que ia ouvindo na televisão: os meninos órfãos no Iraque
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e em África, os meninos nas lixeiras das grandes cidades, os meninos obrigados a trabalhar desde os três, quatro anos, sem frequentarem a escola e sem aprenderem a brincar, os meninos condenados à fome e à pobreza, sem sonhos, sem afeto, sem mundo…Ah, não me esquecera também dos animais abandonados, como o Jaquinzinho, o gato amarelo que aparecera à nossa porta, escanzelado e assustadiço, cujos olhos verdes aguados tinham amolecido o coração da minha mãe. Entrara para a família e estava feito um marquês: gordo, luzidio, preguiçoso, mas doce e terno como no primeiro dia. Nesta altura, o Duende parou, limpou o monóculo
queriam saber o que fazer. Davam saltinhos, punham o dedo no ar, abraçavam-se, soltavam risinhos. Já faltava tão pouco tempo!
Os
soldadinhos
tiveram
mesmo
de
intervir.
Aconselhavam calma e procuravam organizar os grupos. - Rafael e Mikael, acendam a lareira. Mais velas, mais velas…Duendes pasteleiros, toca a preparar os doces. Atenção, que o ano passado os chocolates tinham pouco leite! Duendes
carteiros,
coloquem
as
listas
em
ordem
e
acompanhem os duendes responsáveis pelo armazém na organização
das
encomendas.
Bonecas
embrulhadoras,
preparem o papel e as fitas! Palhaços animadores, comecem com os poemas e as canções. Quero muita alegria e animação
embaciado e disse: - Como ouviram, ninguém fica indiferente a isto. O Pai Natal ganhou vida nova. Como estava mais gordo porque passava os dias ensimesmado em frente à lareira a comer chocolates, já começou a fazer exercício para recuperar. O Batman e o Iron Man da nossa secção de super-heróis têm sido os seus treinadores pessoais: uma hora de passadeira de manhã e 20 abdominais antes do almoço. À tarde, uma sessão de ioga e relaxamento. Amanhã, já deve poder iniciar o treino
quando o Pai Natal chegar! Soldadinhos, preparem as renas e comecem a arrumar os embrulhos nos trenós – o Duende Mor conduzia os trabalhos com uma energia contagiante. Subitamente, uma voz forte interrompeu toda aquela azáfama. - Podemos ajudar? Eram os outros super-heróis - Spiderman, Hulk, Tartarugas Ninja, Wonderwoman - que queriam ajudar a fazer daquele Natal um sucesso.
de descida de chaminés. Toda a sala rompeu em palmas. Num alvoroço, todos
Foram aclamados com um coro de aprovação e muitas palmas e quando um deles, nas suas deslocações supersónicas, me roçou o cabelo, acordei!
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Fiquei ainda um bom bocado na cama, a rever cada pormenor daquele sonho tão fantástico. Parecera tudo tão real! Quando me levantei, ainda despenteada e sem a cara lavada, corri para a sala. Desilusão das desilusões! Estava tudo na mesma. Resignada, resolvi aguardar pela noite de Natal e constatar se a minha carta fora tida em conta. Sem muita esperança, confesso. Quando, na manhã do dia 25, corremos para os sapatinhos, foi a maluqueira do costume: gritos, gargalhadas, papéis pelo ar, saltos e abraços… E um olhar mais atento fez-me emudecer: um pedacinho de tecido vermelho pendia da parede rugosa do interior da lareira. Soltei uma gargalhada e pensei: Afinal, o Pai Natal não emagreceu o suficiente! Professora, envio-lhe o meu conto em anexo. Espero que não fique muito desiludida comigo. Até à próxima aula. Não querendo parecer muito piegas, receba um grande abraço de Natal. Apertadinho! PS. Se for necessário ajudar-me…diz que também acredita no Pai Natal?
EDIÇÃO: Biblioteca Escolar Dr. José dos Santos Bessa – Carapinheira
Natal 2015 Isabel Filipe Página 7