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Carnaval e Devoção. Fé e Alegria

O que diz o Círio de Nazaré sobre a religiosidade paraense?

Flávia Rocha

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Para muitas pessoas, a simples menção ao Círio de Nazaré traz à tona fortes memórias afetivas envolvendo devoção, cores e sabores. Também chamado de “Natal dos paraenses”, o Círio proporciona um sentimento festivo que é “palpável” durante todo o mês de outubro. Os termos “Círio de

ALEXANDRE DE MORAES

Nazaré” ou apenas “Círio” designam a festividade religiosa como um todo, incluindo missas, procissões, peregrinações, festas, arraial, shows, autos e mais uma infinidade de acontecimentos que remetem à festividade. Com o passar do tempo, esses eventos multiplicam as formas de celebração. Assim, o Círio de Nazaré reflete vários aspectos da cultura paraense. Na tese O Círio de Nazaré de Belém (PA) como fresta para a religiosidade paraense, a antropóloga Mariana Pamplona Ximenes Ponte afirma que o seu objetivo foi compreender a religiosidade considerando que o Círio de Nazaré de Belém tem representatividade regional na área estuarina do estado. Sendo assim, seria possível ter acesso ao ethos religioso paraense. A tese foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia (PPGSA/IFCH), sob orientação da professora Carmem Izabel Rodrigues. A tese mostra que o catolicismo é um dos elementos centrais da religiosidade no Pará e tem em seu centro o culto aos santos. A influência de práticas religiosas de matriz africana e indígena é inegável. “Ocorre que, de certa forma, todas essas práticas se relacionam e, juntas, compõem um ethos religioso amazônico”, explica a pesquisadora. É ainda em seus próprios termos, com suas práticas e dinâmicas, seus simbolismos e imaginário, e não como se fosse uma versão empobrecida da religião oficial”, explica a pesquisadora. A metodologia envolveu pesquisa de campo e observação participante com coleta de dados primários e entrevistas gravadas. A coleta de dados sepossível ver a influência portuguesa. Vários hábitos dos círios lusitanos do século XVII podem ser encontrados no Círio de Belém do Pará, por exemplo, o pé descalço como forma de penitência ou promessa e os ex-votos de cera. O Círio é composto por eventos de diversos formatos, que podem ser divididos em dois grandes grupos: os organizados e realizados pela Diretoria da Festa, com o apoio da Arquidiocese de Belém, os quais compõem a programação “oficial”; e os que não são organizados pela Diretoria da Festa. Este segundo grupo é composto pelo Auto do Círio, pela Festa da Chiquita, pelo Arrastão do Pavulagem, entre outras festas, e costuma ser chamado de “o lado profano do Círio”. No estudo, Mariana Ximenes discute os conceitos de “sagrado” e “profano” no campo da Antropologia e como eles se aplicam a esse outro

Nada é rotina quando se fala no “Tempo do Círio”

De acordo com Émille Durkheim, a esfera do sagrado é aquela fora do tempo comum, na qual há efervescência, encontro, celebração do coletivo, enquanto o profano é o tempo comum, a rotina, o tempo do trabalho. “Neste sentido, todos os eventos e práticas do Círio de Nazaré de Belém, sejam elas oficiais ou não, são sagrados, pois estão fora do tempo comum. Nada é rotina quando se está no ‘Tempo do Círio’”, revela Mariana Ximenes. “A pesquisa foi baseada na crítica ao paradigma da religião popular. No texto, nós a tratamos como ‘religião normal’, ou seja, a não institucional. Trata-se de analisar a religiosidade do devoto comum grupo de eventos. cundários envolveu outras pesquisas, materiais veiculados na mídia e de divulgação produzidos por instituições, produções audiovisuais (filmes, vídeos, performances e fotografias) e literatura, além da revisão bibliográfica. “Participei de missas, shows, festas, procissões, romarias, peregrinações que fazem parte do Círio durante

os anos do doutorado. Fiz parte do elenco do Auto do Círio por dois anos. Acompanhei um grupo de peregrinação e um grupo de promesseiros da corda”, conta Mariana Ximenes. A pesquisa mostra que o mesmo devoto que integra Outro exemplo é a Festa da Chiquita. Segundo Mariana Ximenes, esse evento faz parte do Círio, e sua existência e realização estão atreladas à festa e à celebração a Nossa Senhora de Nazaré. É mais um momento de encontro e confraternização entre parte da população, motivada pela Festa de Santo. “Nesse sentido, ela também é sagrada, pois não se trata de um momento ordinário, mas extraordinário”, explica a antropóloga. Comumente, fala-se sobre a Carnavalização encontrada no Círio. Dalcídio Jurandir cunhou o termo Carnaval Devoto em sua obra Belém do Grão Pará, que ainda hoje é usado em discussões sobre a religiosidade o elenco do Auto do Círio – popularmente considerado um dos aspectos profanos do Círio - também paga promessa na corda, prepara seu almoço, recebe a imagem da santa em casa durante as peregrinações, não há uma hierarquia entre esses eventos. “Um caso bastante citado na tese é o da Wal Medeiros, professora e artista, que, todos os anos, participa do Auto do Círio com a personagem da Nossa Senhora de Paysandu, pagamento de uma promessa pelo restabelecimento da saúde do seu filho. Então, classificar a participação da Wal como um ato profano, com o uso comum do termo, é inadequado. A promessa dela equivale à de alguém que cumpre indo na corda do Círio”, avalia a autora.

Sagrado e profano não são características opostas

ou seja, na vivência da devoção, paraense. O personagem principal, seu Virgílio, identifica a Berlinda como o “carro sagrado” e compara-a com o “carro de terça-feira gorda”. Os presentes na procissão são comparados com o público dos “ranchos do momo”. Os elementos carnavalizantes estão presentes em todos os eventos, seja nas práticas, seja no clima festivo, seja nos objetos. “Dessa forma, as características que comumente são pensadas como parte do que é ‘sagrado’ e do que é ‘profano’ não são características opostas ou conflitantes. Elas coexistem no Círio e na religiosidade paraense. Somos Carnaval e Devoção, somos fé e alegria”, diz Mariana Ximenes. “Com base nas concepções dos fiéis, devotos e outros participantes do Círio, compreendi que todos os eventos e práticas são sagrados. Essa divisão entre sagrado e profano se refere a uma classificação que advém da concepção da Igreja, é (re)produzida pela Diretoria da Festa e foi incorporada pelo discurso do senso comum. Ela busca regular, controlar e colonizar as práticas. Do ponto de vista sociológico, considero inadequada essa classificação entre eventos sagrados e profanos que vem sendo feita até mesmo por pesquisadores, pois não corresponde à maneira como se dá a festa do Círio nem a religiosidade. Ela é uma classificação institucional”, argumenta a antropóloga. Para Mariana Ximenes, não se trata da perda da sacralidade, de atos de desrespeito ou desvalorização. Trata-se de um tipo específico de relação com o sagrado, de ter protagonismo e atuar no rompimento das regras. A religiosidade paraense possui aspectos únicos, que devem ser acolhidos e celebrados. “Observando o que os devotos pensavam sobre o que fazem e como vivem o Círio, ficou claro que são múltiplas formas, todas válidas e legítimas, sobre o que significa ser devoto, ter fé, celebrar, agradecer e estabelecer uma relação com a Santa”, conclui.

a Senh ra d Pay andu

A tese traz o depoimento da professora e artista Wal Monteiro, que, em 2010, passou por uma situação difícil. Em julho, seu filho (à época com 13 anos) teve dengue hemorrágica e foi internado na UTI, por dois dias. O menino teve um grave edema no braço e não conseguia movê-lo. “Eu me ‘peguei’ com Nossa Senhora e disse: ‘Maria, olha a minha dor e o sofrimento do meu filho. Tu foste mulher, foste forte, viste teu filho ser crucificado e morto numa cruz. Meu filho tem só treze anos e é um menino tão bom. Então, Maria, se foi algo, que eu que seja castigada, mas não leva o meu filho’. Quando voltei ao quarto, meu filho disse: ‘Mamãe, apareceu uma luz na minha cama e uma voz de mulher disse: Gabriel, tudo vai acabar bem, confia em mim’.”, conta Wal Monteiro. Mesmo após a saída de seu filho da UTI, Wal persistiu em sua fé e em suas orações. Torcedora do Paysandu, Wal Monteiro já tinha participado do Auto do Círio usando a cor do time: azul celeste. E, no ano em que o tema foi “Todas as Marias”, Wal se vestiu de Nossa Senhora do Paysandu. “Eu tenho esse figurino até hoje. E tudo é fé, né? Eu vou agradecer para sempre. Todos os anos que eu tiver saúde, vou usar o figurino de Nossa Senhora do Paysandu no Auto do Círio”, relata a professora.

MELISSA BARBERY

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