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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao desenvolver este estudo, que não é conclusivo, comprovamos que o Carnaval, independentemente de povos, lugares e épocas, sempre foi um tempo reservado para a celebração da vida. Era e ainda são festejos sem distinção de gênero, idade, etnia e condição social, caracterizados pelas possibilidades de inversão. Debret,aqui em nossas terras, em 1818,com a missão artística francesa, percebeu que,nas festas do Entrudo, negros se fantasiavam de europeus e imitavam os gestos deles, confirmando exatamente a inversão de posições que podemos exemplificar a partir das análises de Bakhtin acerca do carnaval e em muitas letras de nossos sambas-enredos. O
Zé Pereira, manifestação cultural surgida na primeira metade do Século XIX, por muito tempo, foi um atrativo no carnaval carioca. Os Cordões, que surgiram na segunda metade do Século XIX eram agrupamentos que reuniam senhores e escravizados e, dentre outras alegorias, os negros saíam fantasiados de reis. Essa manifestação cultural também foi interpretada como uma sátira do povo carioca ao sistema da época. De igual forma, os Ranchos, fundados por volta de 1870, pelas classes populares, inseriram reis e rainhas em seus cortejos. Em ambos, encontramos referências religiosas e culturais, congada, ternos de reis nordestinos, festas folclóricas de dezembro em suas características. Impossível, assim, ignorar a participação do povo na formação de nosso Carnaval. Por outro lado, se a elite econômica e letrada, majoritariamente branca, integrava as Grandes Sociedades ou Clubes Carnavalescos, era exatamente esse grupo que protestava em seus carros de crítica contra o sistema político e defendia abertamente a Proclamação da República e a Abolição da Escravidão, muitas vezes, deixando de desfilar para comprarem cartas de alforria. Dessa forma, constatamos que várias manifestações culturais do passado (Entrudo, Zé Pereira, Cordões, Ranchos, Sociedades Carnavalescas) colaboraram para a formação das nossas Escolas de Samba como a conhecemos hoje. Evidentemente, muitos locais como a casa da Tia Ciata, a Praça Onze, e os terreiros,que não pudemos representar geograficamente, foram espaços de elaboração de variadas e significativas composições. Com o passar dos tempos, a letra em conformidade com a apresentação do tema, do desfile, torna-se uma necessidade e um valor. Assim, o samba-enredo passa a ser quesito obrigatório. Se o carnaval pode ser interpretado como a festa do povo e da liberdade, tornou-se significativo para nós analisar a inscrição da liberdade nos sambasenredos. Ora, estudar a forma de escrever é tentar compreender não apenas a letra, mas o
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que ela representa no tempo, no espaço e na memória41 . Desse modo, após analisarmos os 232 sambas-enredos cariocas, coletados por nós, escritos no período de 1943 a 2013, chegamos às seguintes considerações: Ao empregar a palavra liberdade no período de 1943 a 1964, ao que denominamos “Era Vargas e Democracia Populista”, os compositores se referiram à Segunda Guerra Mundial, à Independência do Brasil (Inconfidentes, Tiradentes e José Bonifácio) e à Escravidão (Princesa Isabel, Castro Alves, Palmares, Preto Velho e Chico Rei), em 10 sambas-enredos. No contexto da Segunda Guerra, o autor, além de apresentar um discurso patriótico, posicionou-se em defesa da Democracia, diante da Ditadura Vargas. Na memória da luta pela Independência política e econômica de Portugal, voltou o olhar não somente para o passado dos Inconfidentes e de José Bonifácio, manteve-se em estado de atenção com o presente, o seu tempo e lugar. A realidade do negro foi contundentemente representada naqueles escritos ao descreverem navios negreiros, senzalas, dores e cantos de Preto Velho, refúgio em Palmares, Princesa Isabel. Ao inserir o vocábulo liberdade no período de 1965 a 1985, de “Ditadura Militar”, os autores do samba-enredo apontaram o Carnaval, a Escravidão, a Independência, o Povo, os Indígenas, a República, a Semana de Arte Moderna, as Significações Difusas, o fundador do Rio, Estácio de Sá e a Batalha de Guararapes, em 27 sambas-enredos. No contexto ditatorial, comprova-se que a escrita foi utilizada, ainda que de forma muito implícita e cuidadosa, para também denunciar aquele regime, reescrevendo episódios da nossa história. O reconhecimento da literatura e da linguagem coloquial, do povo, confirmou-se em algumas letras. Em um exercício metalinguístico, escritas reverenciaram o próprio Carnaval. Nesse período de repressão, a liberdade adquiriu significados difusos em vários sambas, mas o maior conjunto relacionou-se à Escravidão. Além do regime escravista, propriamente dito, os compositores recontaram as histórias de Zumbi, José do Patrocínio e Chica da Silva, ressignificando os valores negros, a cultura e a superação. Ao inscrever a palavra liberdade no período de 1986 a 2013, a “Democracia”, os escritores se referiram às seguintes linhas temáticas, percebidas e agrupadas por nós:
41 Com respeito aos que pensam de forma diversa, aqui pouco nos importou, até esse ponto a que chegamos, a pessoa física que escreveu o samba-enredo e nele inseriu a palavra liberdade. Tivemos de recusar seu nascimento, sua origem, sua etnia, seu sexo, suas ideologias, suas formas de escrever. Entretanto, não ignoramos a relevância das contribuições das críticas genética e biográfica, estamos cientes de que, em outro estudo, elas podem servir de suporte, de instrumento. Aqui, o que esteve ao nosso alcance foi compreender, ou melhor, tentar interpretar o texto escrito. Texto e contexto, com todas as nossas limitações.
Liberdade de Expressão, Independência, Indígenas, Mulheres e Diretos Feministas (Elis Regina, Leci Brandão, Tereza de Benguela, Elza Soares e Sinhá Olímpia) Países (África, Itália, Japão e França), Povo, Mitologia e Religiosidade (Cristã e Afro), Outras Representações (Democracia, República, Invasão Holandesa, Olimpíadas, Loucos, Abdias do Nascimento, Chateau, Garibaldi, Gregório de Matos, Jorge Amado, Miroma, Nelson Rodrigues, Oscar Niemeyer e Rui Barbosa), Carnaval e Outras Artes, Significações Difusas e Escravidão. Comprovamos que a Independência e a Escravidão foram as referências que se repetiram nos três ciclos analisados. Enquanto o tema da Independência foi reduzido com o passar dos anos (30%, 16,22% e 3,6%), o da Escravidão permaneceu significativo nos três ciclos, mesmo com novas significações, (50%, 35, 14% e 33, 78%). A partir do exposto, estamos convictos de que a pesquisa não se encerra nestas páginas. O que ora fizemos foi contribuir, de forma modesta, para uma parte dos estudos culturais, inserindo, notadamente, reflexões sobre a escrita do Carnaval, após a eleição de uma palavra que sempre acompanhou a festa, desde as suas primeiras manifestações, talvez ao redor das fogueiras, nos rituais da agricultura, nas praças da Idade Média até os nossos dias, nesse grande espetáculo do Rio de Janeiro. Decisivamente, o estudo não se encerra, mesmo porque há outras liberdades que, ao nosso sentir, anseiam por sua inscrição, sua voz, seu lugar. E as necessidades são urgentes, a exemplo a liberdade dos gays, lésbicas, transexuais. A liberdade das crianças. A liberdade dos idosos. A liberdade das mulheres, de forma mais contundente e a liberdade dos indígenas, igual à dos negros, agentes de sua história. Por que estamos propondo essas linhas temáticas? Porque o Carnaval trata de todo o assunto, como a Literatura.
Finalizando este estudo, asseguramos, após a análise da inscrição da palavra liberdade nos sambas-enredos cariocas, no período de 1943 a 2013, que o significado desse vocábulo, em parte considerável dos escritos, refere-se a um processo histórico, político e econômico que perdurou no nosso país por mais de 350 anos – a escravidão negra. A escrita da liberdade negra é um processo polissêmico que denuncia as mazelas de variadas formas, seja retomando imagens de navios negreiros e senzalas, seja recuperando a paisagem de Palmares e os feitos de Zumbi, Ganga Zumba e Chico Rei, seja exaltando a elegância de Chica da Silva e a resistência de Tereza de Benguela, seja reverenciando personalidades da literatura e da política, Castro Alves, José do Patrocínio, Princesa Isabel, seja reescrevendo o sol da liberdade nos Hinos Nacional, da Bandeira e
da Proclamação. Portanto, podemos afirmar, com veemência, que o trabalho desses escritores/compositores, relacionado à memória da escravidão, dentre outros temas, foi o “de não esquecer, mas de dizer o passado de um modo pacífico, sem cólera, por muito doloroso que seja42”, conforme nos propôs Paul Riccœur, naquela conferência de Budapeste, em 2003.
42 Disponível em http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/memoria_historia.