X0-IXK 3/4X0 - Bernarda Coletiva

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X0-IXK 3/4X0 @bernarda_coletiva | Zine #4 - 2021

X0-IXK 3/4X0 Uma zine fantástica da Bernarda Coletiva! IXXK XO-3/4X0 IXKKXI000. XKX-IXK-IXKXI. XIX K0 IX K0I. I0K3/K. K/XX. XKX-IXK-IXKXI. 3/4X0 IXKKXI000. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0. XKX-IXK. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0 IXKKXI000. XKX-IXK-IXKXI. XIX K0 IX K0I. I0K3/K. K/XX. XKX-IXK-IXKXI. 3/4X0 IXKKXI000. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0. XKX-IXK. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0 IXKKXI000. XKX-IXK-IXKXI. XIX K0 IX K0I. I0K3/K. K/XX. XKX-IXK-IXKXI. 3/4X0 IXKKXI000. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0. XKX-IXK. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0 IXKKXI000. XKX-IXK-IXKXI. XIX K0 IX K0I. I0K3/K. K/XX. XKX-IXK-IXKXI. 3/4X0 IXKKXI000. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0. XKX-IXK. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0 IXKKXI000. XKX-IXK-IXKXI. XIX K0 IX K0I. I0K3/K. K/XX. XKX-IXK-IXKXI. 3/4X0 IXKKXI000. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0. XKX-IXK. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0 IXKKXI000. XKX-IXK-IXKXI. XIX K0 IX K0I. I0K3/K. K/XX. XKX-IXK-IXKXI. 3/4X0 IXKKXI000. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0. XKX-IXK. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0 IXKKXI000. XKX-IXK-IXKXI. XIX K0 IX K0I. I0K3/K. K/XX. XKX-IXK-IXKXI. 3/4X0 IXKKXI000. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0. XKX-IXK. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0 IXKKXI000. XKX-IXK-IXKXI. XIX K0 IX K0I. I0K3/K. K/XX. XKX-IXK-IXKXI. 3/4X0 IXKKXI000. XIX K0 IX K0I. IXXK XO-3/4X0. XKX-IXK. XIX K0 IX K0I. Spotify: https://open.spotify.com/playlist/1MYOQs3iqoy1gcb71w2GyA Instagram: https://www.instagram.com/bernarda_coletiva

Paulo Ribeiro Neto Sol Felix Thais de Paula São Bernardo do Campo, dezembro de 2021.


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Verborragia Sol Felix Há pegadas de sangue pela casa. 37/38, unissex, talvez tênis ou mocassins. Estou sonolenta. Mas, a insônia não é mais minha inimiga, é minha adversária. Sigo o rastro carmim. Lavanderia, cozinha, banheiro. As marcas começaram na estante estreita restaurada que fica no canto esquerdo da sala, onde bate um pouco de sol. O tempo é elíptico como as pegadas. Olho para elas e elas existem. Instantes depois, olho novamente e não estão mais lá. Dos livros escorria uma correnteza vermelha e quente. No lugar dos verbos há agora uma nascente breve de sangue. Acomodei uma taça ainda fresca no filete vigoroso que saia de A Hora da Estrela. Bebi com gosto a ação de Macabea. Antes de repetir o drink, sentei-me de frente ao Sol. Ao cruzar as pernas, vi as marcas acerejadas no mocassim.


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Sorriso Macabro Thais de Paula Quando cheguei na porta daquele quarto, a pele flácida deles estava levemente esverdeada e já fazia muito tempo que estavam mortos. Seus olhos e suas línguas estavam cortados, mas eles tinham um sorriso fixo no resto dos seus rostos. Meu trabalho estava apenas começando, mas eu já tinha vontade de cair fora dali. O ar estava pesado, ainda mais pela situação. Claro que o cheiro era terrível, de putrefação, de morte. O pai acabara de ficar viúvo, havia surtado e deu fim a vida dos filhos e depois com a própria. Foi uma tristeza ver aqueles corpinhos pequenos das crianças jogados no chão frio e tudo aquilo era tão injusto! Voltei para casa arrasado e logo que vi minha filha, abracei a menina fortemente. Ela era a luz da minha vida e o meu refúgio. Eu passava o dia todo vendo a maldade humana, mas tinha ela para abraçar. Claro, afinal de contas, quando ela parou de respirar eu me recusei a enterrá-la, mesmo ela mantendo aquele sorriso macabro no rosto e aquela pele acinzentada.


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Pecado Paulo Ribeiro Neto

e assim que chegou, tirou da sacola e lavou uma, duas, três, quatro, cinco, foram seis para a fruteira a sétima é posta na beira da janela

mudou também o tom de vermelho da casca de um vermelho-sangue para o vermelho-terra dizem que há sonhos que brotam do chão

e agora? agora? agora você fecha os olhos, ela responde fecha e faz um pedido pro pequeno e ela obedeceu e assim o fez e passaram-se dias, semanas passou uma estação inteira, passaram duas até mas a maçã seguia ali, sem apodrecer só diminuía, encurvava, reduziu-se lentamente como quem se despede assim sem vontade de ir embora

a maçã já parecia uma bola de gude quando foi retirada da janela ela a guardou no bolso da calça jeans era uma noite de brisa gelada o que você pediu? perguntou a velha sabe que eu nem lembro mais? mas era mentira - as duas sabiam assim que colocou o pé pra fora, colocou também a mão no bolso não sentiu mais nada só soube sorrir e agradecer foi uma noite feliz


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Tolo do ouro Sol Felix Faz algum tempo que o homem produz e acumula mais do que precisa ou usa. Com o tempo, passou a ser comum o fato de alguns terem mais bens que os outros. Na sequência, veio a cobiça e o roubo. Hoje temos bancos digitais. Mas naquela época não havia nenhum espaço, físico ou não, destinado a cuidar e guardar o dinheiro alheio. Era comum enterrarem ouro, moedas e todo tipo de bens. Às vezes, dependendo da avareza do dono da grana, nem a família sabia do esconderijo embaixo da terra. A morte não perdoa ninguém, pobres e ricos. E é aí que começa essa história. A maioria dos defuntos, após a morte, ficava ligado ao objeto enterrado principalmente se ninguém sabia do montante. Tinha morto que fazia guarda na entrada do buraco e não permitia que ninguém se aproximasse, fosse corpo ou alma. Tinha morto que soprava nos ouvidos vivos sobre a riqueza enterrada "logo ali", na esperança que alguém o libertasse, se apropriando do dinheiro. E tinha vivo que, mesmo sem receber mensagem nenhuma do além, era um verdadeiro caça tesouro de defunto, bastava investigar os velhotes mais mão de vaca. Foi em uma dessas escavações aleatórias que, a minha bisa Eleonora, iniciou a fortuna da família. Ela contava com orgulho sobre as riquezas que desenterrou e tudo que conseguiu construir e comprar graças a isso. Tinha até alguns itens que guardava de lembrança, pequenos souvenirs.


X0-IXK 3/4X0 @bernarda_coletiva | Zine #4 - 2021 Na cozinha havia um jogo de talheres todinho em ouro e prata. No seu quarto havia um espelho cravejado de pedras preciosas. O cãozinho, Lala, também era a riqueza de algum velho pão duro. Lala era dócil e só latia para desconhecidos e borboletas. Dizem que a peruca do vovó foi um "ouro" que a bisa não conseguiu vender. Objetos de vestir eram mais difíceis de vender quando foram de defuntos. Mas, o souvenir preferido da bisa, era a empregada Antônia. Eita, mulher trabalhadora! Ninguém faz bolo de milho como ela!


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Identificação Thais de Paula Subitamente, uma luz iluminou o meu quarto e tudo estremeceu. Era madrugada, tudo estava escuro e eu estava dormindo há algumas horas. Ouvi um estrondo forte, a janela sendo forçada de fora para dentro. No rádio, tocava “Não identificado”, na voz da Gal Costa e eu cobri minha cabeça de medo. Achei que estaria protegido assim e nada aconteceria. Quando tive coragem, tirei a coberta da minha cabeça e tentei enxergar algo. O ambiente estava cheio de poeira, a parede já não existia mais, pois os tijolos vermelhos estavam espalhados pelo chão. Aos pés da minha cama, vi um homem parado com suas roupas rasgadas e seu olhar vazio. Atrás dele, havia algum tipo de veículo com formato estranho pegando fogo. Pensei ser um veículo, mas não tenho certeza. Ele parecia flutuar de alguma forma. Ao perceber o perigo, tratei logo de segurar a mão do estranho e puxá-lo para fora do cômodo. Gritei o máximo que pude para os meus pais saírem do imóvel. Apenas meu quarto foi pelos ares! Fiquei embaixo do entulho até ser encontrada pelos bombeiros no dia seguinte. Sobrevivi por muito pouco, minhas pernas quebraram e quase perdi alguns dedos da mão direita. Tive a sorte dos meus pais e irmãos terem escapado do acidente. Afinal de contas, apenas o meu quarto foi destruído. Porém, o resto da casa ficou comprometido e acho que vai levar um tempo para consertar tudo. Sobre o veículo, era um pequeno caminhão, mas curiosamente não encontraram nada dentro dele, nenhum corpo carbonizado. Não havia também nenhuma informação, nenhum número no chassi e nem sequer uma placa. Eu já não sei se realmente vi alguém antes do acidente, pois foi tudo tão rápido, mas às vezes tenho a impressão de que estou sendo observada.


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Sumiço da Velha Inácia Paulo Ribeiro Neto A história que eu ouvi começava com um grito. Um grito de mulher que se ouviu do outro lado da cidade. Só que como se tratava de cidade pequena, isso significa, na verdade, que o grito se ouviu na praça, nas duas ruas abaixo e nas três ruas acima da casa da Velha Inácia. Mas o grito não foi da velha, foi da sua cuidadora. Primeiro, acharam que a idosa tinha morrido. Mas quando chegaram à casa da velha, não encontraram corpo algum. A cuidadora, coitada, tinha desmaiado e precisou de muita água. Assim se foram uns cinco minutos até descobrirem que o que tinha acontecido ali era, na verdade, um sequestro. Quer dizer, um sequestro ou quase isso. A mulher jurava que um pavão tinha agarrado a Velha Inácia, prendendo as duas garras nas tiras da camisola que a mulher dormia, e saiu puxando ela pra fora de casa e voando com ela. O povo, é claro, riu muito. Só uma criança preocupada perguntou: “Mas e pavão voa?”. E a cuidadora respondeu que não, mas esse sim, voava. Aí o povo riu mais. Eles só pararam de rir mesmo quando sumiu a Velha Dalva, na rua de baixo. A Velha Dalva era uma mulher rica, viúva, que sustentava a cidade e, por isso, era muito amada. A cozinheira que trabalhava em sua casa contou uma história muito parecida, de que um pavão que entrou pela janela, a agarrou pelas perucas e assim saiu voando. Também houve um terceiro desaparecimento, no Convento da Pedra Azul, não muito longe dali. Dizem que o pavão entrou pelo vitral, agarrou a Velha Madre Telma pelo hábito no meio de um rosário. Foi um desrespeito com a congregação! Ele saiu voando com ela dali e os relatos disseram que ele pousou no bosque. Depois disso, houve uma mega operação. Homens armados invadiram a mata e procuraram as senhoras por oito meses, sem sucesso. Até que se deram por vencidos. Nenhum outro sumiço ocorreu por ali, mas dizem que, até hoje, quatro pavões se reúnem no topo de um Jequitibá, todos os dias às cinco da tarde para tomarem um chá.


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Os pássaros voam, mas são mudos Sol Felix "A melodia é chicote", a Boa Mulher sempre os lembrava. "Nessa casa ninguém canta". No primeiro impulso do cantarolar, a porta batia, ouvia-se berros ao longe, pratos quebravam, luzes falhavam e o aperto no peito, misto de culpa e vergonha, persistia até o estômago parir sapos, entre urros e coachos. "Se Deus permitir que a respiração vire música, eu morro, todos morremos. Não nascemos para ser livres aqui." Era um imenso terreno com uma casa central e 4 casas ao redor. A família vivia naquele sítio há 4 séculos. Os moradores compartilhavam o hábito das poucas palavras serradas e secas. Música é a liberdade de poucos. Nessa família, a melodia escorre nos cantos escuros e se afoga em poeira e no rastro das almas passadas. Uma delas já teve a chave do segredo. Uma delas, quem sabe, já foi livre, mas não era a Boa Mulher. Ela e sua única filha eram as moradoras da casa central. Essas mulheres carregam nos sulcos dos olhos o peso de corações mal-assombrados. Por isso,os colibris não se aproximavam. Não tinham flores. Vez ou outra, com vida prematura, um cogumelo aqui e ali. Os cogumelos faziam morada nas janelas, no telhado, na caneca de café e, uma vez, no canto direito da boca da Boa Mulher. Em uma manhã de garoa, ela encontrou um papel esverdeado, dobrado em três partes simétricas, umedecido pela melancolia do novo dia, no capacho da cozinha. Leu atentamente por 10 minutos. Em seguida, dobrou o achado em mais duas partes e escondeu-o no decote já suado. Todos os dias, desde então, antes do primeiro raio de sol, produzia uma mistura de açúcar e ingrediente tal que apenas ela sabia e acomodava tudo na tigela centenária com o rabisco de um peixinho. Em pouco tempo, apareceu um colibri, depois dois, depois cinquenta, depois, muitos.


X0-IXK 3/4X0 @bernarda_coletiva | Zine #4 - 2021 Os pássaros amavam aquele néctar de afeto e mistério. No inverno, a Boa Mulher adoeceu, seus músculos não se moviam mais. Sua filha se encarregou de alimentar os colibris diariamente. Em princípio, eles ficaram tristes, dias depois ficaram violentos.


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Curriculum Vitae Thais de Paula abril de 2008 Richard Gabriel Augusto Melo Almeida Júnior Engenheiro, Artista Plástico, Contador, Jornalista, Escritor, Publicitário, Cozinheiro, Guru de Marketing e Coach. Brasileiro, divorciada (4 filhos que são machos de verdade), nascido em 1979, Guararema – SP. Viveu de 0 aos 7 anos em uma chácara muito bonita e cheia de histórias de outros tempos. Iniciou a vida profissional em São José dos Campos em 1905, e trabalhou nos escritórios locais até 1900, como chefe de mídia. Foi difícil voltar no tempo e trabalhar com as pessoas do início do século sendo um moço dos anos 1980. Na época, dirigiu simultaneamente o principal jornal do país e chegou a cobrir a coroação do último imperador brasileiro. Devido a sua formação de engenheiro, tornou-se chefe da construção da primeira hidrelétrica nacional. Foi um momento incrível, onde aproveitou sua formação como cozinheiro para oferecer um almoço luxuoso para as famílias mais abastadas do estado em sua fazenda. A essa altura, era um grande dono de terras e tinha muitos escravos trazidos da África, quando esteve por lá lutando contra a dominação egípcia. Entre 1982 e 1987, tornou-se sócio da empresa de publicidade e marketing Mobile, onde criou campanhas incríveis para clientes, como uma empresa de petróleo, um canal de televisão e uma rede de postos de gasolina. E a coisa cresceu demais e ele acabou ganhando muito crédito na praça. Queria muito permanecer em sua época, mas sua família havia ficado no passado e seus 4 filhos estavam prestes a casar. Então, Richard voltou para 1903 e trouxe sua família para 2020. O que encontraram foi uma terrível doença que os manteve fechados em casa por mais de um ano. Todos estavam cansados de viver daquele jeito, mas ainda não podiam sair. Até 2021, a vida foi assim, mas Richard não ficou parado e acabou se tornando coach de viagens no tempo.


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Da Cabeça aos Pés Paulo Ribeiro Neto […] “foi quando me avisaram que ele tava lá perto da linha férrea.” “e você não teve medo?” “eu não, é parente né, cresceu comigo” “e tava mesmo? como dizem?” “tava sim, nunca vi aquilo, o peito aberto mesmo, tudo pra fora, e ele sem roupa nem nada, parece que o bicho comeu tudo” “que bicho?” “eu não sei, a gente nunca viu nada assim aqui não, não conheço bicho nenhum da região que tenha força pra fazer aquilo com alguém” “então você não sabe” “a gente sempre sabe muito pouco” pediu mais dois copos, um pra ele e um pro outro. bebeu mais da metade. “mas também foi bonito” “bonito?” “foi, um pouco” “por quê?” “porque ele sorria” “sorria?” “os dentes tudo pra fora assim, todos, dava pra ver, acho, que ele foi feliz” “a vida toda?” “a vida toda não, mas um pouco antes sim, dizem que ele cantou pra mata por muito tempo, mas o trem logo passou e ficou só os dentes mesmo” “não sobrou mais nada?”


X0-IXK 3/4X0 @bernarda_coletiva | Zine #4 - 2021 “só os dentes mesmo, cê quer ver?” e tirou um do bolso. o outro olhou, analisou bem de perto, e então tirou a língua pra fora. colocou o dente na língua, fechou a boca e engoliu. “desculpa” “não tem problema” “eu só tava com saudade” “eu imaginei” “tava com saudade do gosto dele” “eu imaginei que fosse isso mesmo” ele bebeu o resto do copo, pediu mais um. o outro ainda não tinha tocado no dele. “é agora que eu canto?” “é logo mais” “e eu vou ser feliz?” o outro sorriu. “o amor quando é de verdade devora a gente por dentro… devora a gente todinho… mas eu prometo que vou aos poucos.” e então colocou a mão na perna dele enquanto ele bebia. e eles ficaram assim, em silêncio, e beberam até amanhecer.


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Lugar preferido Sol Felix As cutículas estavam ensanguentadas. Era possível ver a nascente do centro das unhas. Passava o dia inteiro cutucando os cantos dos dedos com os dentes. Tecos de pele se eriçavam, feito grama, e elas os puxava também. Sentia um leve gosto de sangue. É curiosa a dinâmica da compulsão: diz "nunca mais farei". Instantes após, sem perceber, já está fazendo em um gesto automático, como respirar ou viver. As mãos, cada vez mais ressecadas pelo excesso de higienização, ficavam ainda mais apetitosas. Suas unhas estavam sempre esmaltadas, impecáveis. Seu alvo era mesmo as cutículas. No trabalho, os colegas já estavam comentando e alguns papéis que passavam por ela apareciam manchados de sangue. Por isso, vez ou outra, se trancava no almoxarifado, sem janelas e sem luzes e, na escuridão, se entregava. Ficava cada vez mais naquela sala escura do que em sua própria sala de trabalho. Almoçava lá, inclusive. Imersa e bem a vontade na falta de luminosidade, começou a trazer algumas trocas de roupa e estocava lá, em um canto qualquer. Sempre conseguia encontrar tudo. Alguns perceberam que ela exalava um odor de mofo, mas preferiram não comentar. Quando conseguiu completar 17 dias no almoxarifado, vivendo com as roupas e comida que havia trazido, decidiu se mudar definitivamente. Ficou tão ambientada que, meses depois, quando o escritório mudou de prédio, ela desistiu do emprego para não abandonar o seu lugar preferido sem luzes e janelas.


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Goiabeira Thais de Paula Órfã. É isso, agora sou órfã. Sem pai, sem mãe, sem ninguém. Perdida no mundo! Mesmo antes, eu já era sozinha, eu já vivia assim. Estava sempre fechada em mim. A vida era simples e fácil, Mesmo com esse corpo frágil, Eu corria pelo quintal e subia nas árvores. Colhia uma goiaba do pé e mordia todos os bichinhos. Eles pareciam meus vizinhos. Eu queria ser livre, ter os pés sujos de terra e lama. Eu vivia assim: cabelos soltos, camisetas e bermudas largas, chinelos. Meus pais tentavam colocar laços, saias e sapatinhos de boneca. Sim, ficava igual uma bonequinha de porcelana. Parecia até que tinha alguém que me ama no mundo. Parecia…as aparências enganam. Os dois nem eram meus pais de verdade. Acho que isso até eles esqueceram. Eu não sei quando cheguei nesta casa. Só sei que eles me receberam. E agora se foram. Eu acho que o quintal ficará lindo na primavera. Tive muito trabalho para deixá-lo arrumado: Cavei bastante e plantei mais uma goiabeira. Acho que ninguém vai olhar lá.


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Agosto Paulo Ribeiro Neto Não sabia se um haicai seria suficiente para aliviar o frio na barriga dessa vez. Mas ainda assim abriu o caderno e tentou. Suspiros de ar atravessam a mata no décimo andar De alguma forma, era como se pudesse mesmo ouvir o vento sussurrando do topo do prédio. Como se fosse seu confidente e ele contasse as fofocas mais sujas e absurdas, falando muito mal de gente que nem mora tão longe assim. Como se as portas e janelas abertas por ele, cada vez mais brutalmente, fossem sempre um convite singelo. Degrau de gelo pobres pés sem calçados que beijam você Na escadaria também era impossível negar a presença da brisa, que agora partia do térreo para escalar a estrutura. Sedutora, ela atingia seu rosto suavemente, deixava as bochechas coradas, mas não sem antes passear pelas suas pernas, pelo seu torso. Arrepiava toda a sua coluna ao acariciar suas costas. Se fechasse os olhos, jurava que poderia flutuar. Linguajar chulo que canta esse vendaval ao me desflorar Naquela noite, ninguém mais dormiu por ali. Dizem que o som era alto, insuportável. Se o frio um dia existiu em parte daquele corpo, a partir daquele momento, todos sabiam, ele havia se apoderado dele por completo, para sempre. No mês de agosto, ainda hoje, há pessoas que juram ouvir barulhos ao vento. Os gritos não são de dor.


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Phobia com PH Sol Felix Ao amanhecer, abria a janela, aspirava para dentro de si o cheiro único da amanhã. Era um aroma delicado de rosa e sorvete de baunilha. Enfim, enchia seus pulmões e quando não sobrava mais espaço na barriga, forçava o ar a subir para o tórax e ombros. Segurava por 3 segundos e rugia… o mais forte da floresta. Os vizinhos ansiavam por aquele momento. Sempre começavam o dia assim. Depois, fechava a janela e voltava a ser quem era: um menino de 120 anos assustado com fama de bad boy.


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Colheita Paulo Ribeiro Neto Ela estava prostrada em frente ao ipê amarelo quando a mais nova chegou. “É a hora, né?” “Você foi chamar a sua irmã?” “Ela já tá descendo” “E o meu chapéu?” A mais velha apareceu correndo com o chapéu de pano. A senhora o vestiu. Era um pouco largo, cobria toda a sua nuca. A idade pesava nas costas, mas ela ainda lembrava de tudo. Com alguma tremidão, vestiu as luvas nas mãos enrugadas e pegou a pá. “Chegou a hora”, anunciou em um tom grave. “Eu achei que a gente ia esperar mais” “Não, hoje eu acordei e senti aquela dor na lombar” “Mas você disse que levaria anos”, tentou argumentar a maior. “Eu me enganei, vai ser aqui e vai ser agora” e olhou para a copa do ipê outra vez. Apontou com a mão esquerda a posição da pequena, ao oeste. Depois, com a outra mão, indicou o ponto mais ao leste, onde a outra criança se posicionou. Ao ouvirem o comando, as meninas cavaram com a mão e ela começou a escavar o chão com a pá. Elas ficaram ali por horas. Nas pontas, cada uma encontrou equipamentos de jardinagem. Ao centro, a mulher recuperou um livro de receitas, a escritura de uma casa, três cartas de amor, uma revista científica e um telescópio. E também um baralho cigano. E também cinco cordões umbilicais e dez vestidos de festa. E mais uma carta de amor, mas essa vinha com um cartão-postal. E ainda achou dois canudos de formatura.


X0-IXK 3/4X0 @bernarda_coletiva | Zine #4 - 2021 E, por fim, veio uma lápide. Foi então que ela sorriu. As meninas tiraram tudo pra fora e a mulher deitou. “Lembrem de voltar pra colheita quando for a hora” A pequena ensaiou um choro, mas a maior se manteve firme. “Agora a gente só junta a terra e te cobre?” “Isso, usem as novas pás. Vai levar muito tempo e vai doer em vocês, mas não esqueçam de prestar atenção na dor. Vocês vão ter que saber como ela é depois”.


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O casal que deu certo Sol Felix Era uma vez um casal que deu certo. Um alegre, outro feliz. Um gostava de ouvir, o outro, escutar. Um impaciente, o outro, ansioso. E assim seguiu por muitos anos. Todas as noites perseguiam estrelas em silêncio com a cumplicidade do casal perfeito. Na primavera, eram flores. No verão, pernilongos. Galhos secos, n'outono. Neve, n'inverno. E assim seguiu por muitos anos. Todas as manhãs viam um ao outro no reflexo do espelho e lembravam a si o tamanho de seu amor. No sol, eram o raio. Na chuva, a enchente. Na lama, garoa. Na vida, o cordão. E assim seguiu por muitos séculos. Todas as tardes, de mãos dadas com os 78 filhos, balançavam em seu quintal. Eram O Sol, A Lua, O Mundo e A Política. Durante a’marelinha, quando um faleceu, o outro morreu.


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Seu rosto era um borrão Thais de Paula Antes de dormir, acabo lembrando de momentos que vivi e fico remoendo o passado. Aquele rosto sempre aparece na minha mente, como um borrão. Seu nariz fino, os óculos escuros e os cabelos espetados...eram como uma lembrança de algo que nunca vivi. Penso que ainda não sei superar minhas perdas e fico reimaginando as situações, refletindo em como eu poderia ter agido melhor, falado direito ou simplesmente ido embora. Claro que não é possível editar a própria vida, mas outro dia não acreditei quando vi a mensagem no meu WhatsApp. Sua foto estava um pouco diferente, trocamos algumas mensagens sobre nossas vidas atuais, nossos fracassos e conquistas. Eu me sentia estranha por falar com alguém cujo rosto era apenas um borrão distorcido na minha memória. Mandei um post engraçado do meu Instagram para ver se ele me seguia, mas ele ignorou. O perfil dele era público, então comecei a stalkeá-lo. Depois de um tempo, ele o tornou privado e não pude ver mais nada da atual versão dele. Costumava imaginar a gente nas fotos felizes e, algumas vezes, a gente feliz nas fotos. Também criava longas conversas no WhatsApp com ele até voltar a adormecer. No dia seguinte eu já não sentia mais falta dele e resolvia continuar cuidando de mim. Porém, na hora de dormir, tudo voltava novamente e eu via aquele rosto incompleto na minha mente e um sentimento nostálgico se apoderava de mim. Logo, as minhas mensagens não eram mais respondidas e eu ficava chateada, com o coração acelerado e todo o corpo formigando. Foi doloroso, mas eu reimaginei novamente a gente voltando a conversar e ele dizendo que foi uma brincadeira. Recebi suas mensagens com alegria no dia seguinte e voltei a ver o seu rosto completamente. Não o achava tão belo como antes e nem tão legal como pensava. Preciso voltar a fazer essa edição com mais cuidado e reimaginar que ele ainda me agrada e continua tão agradável quanto antes. Agora, só tenho que pensar em como trazer ele para mim.


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Olhe para o céu Paulo Ribeiro Neto Olhe para o céu Um pequeno grupo de pessoas na sacada Dedos em riste, apontados para as montanhas ao leste Movimentos dissipam nuvens que encobrem os picos gelados Olhe para o céu O som de um clique em uma máquina analógica É tão bonita a esperança de capturar o inalcançável Mas a imagem nunca chega tão longe, confirmamos depois Olhe para o céu A terra é alheia, estrangeira, mas a sensação é a mesma Do estupefato coletivo ao vislumbre, e então o medo Mas do medo não se fala em voz alta, ninguém se atreve Olhe para o céu Quanto tempo se passa enquanto sonhamos? Algumas noites, sinto que só fiz fechar e abrir as pálpebras Agora o silêncio preenche um segundo como se fosse perene Olhe para o céu Um gole do vinho para substituir um abraço na mãe Uma mão encosta no meu peito e me faz lembrar do futuro Mas as risadas que ouço ao longe são dos teus ancestrais Olhe para o céu Três pessoas agachadas, duas se abraçam, eu sigo só Em pé, agarro com força o parapeito, foco no presente O metal é gelado na ponta dos dedos, tenho vontade de chorar Olhe para o céu O horizonte é familiar Tudo está limpo outra vez Ainda que aquele agora durasse por tanto tempo


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A pílula Sol Felix Mais uma noite aleatória de sábado. Não um sábado qualquer nessas minhas décadas de existência. Era mais um fim de semana (mais um!) no meio da pandemia que já se estendia por um ano e meio e nem o cientista mais experiente sabia dizer quando iria terminar. Estava com uma dor de cabeça sem explicação, dessas que começam com um café e, tal como o covid-19, sem previsão de partir. Liguei no vídeo atendimento da farmácia. Expliquei, dentre outras coisas, sobre a impressão de que minha barriga estava torta, como se a banha do lado direito (tendo o umbigo como referência de centro) estivesse mais mole e passiva para tomar formas altas e protuberantes. Falei sobre o excesso de pelos que começaram a surgir em meu rosto e, por fim, cheguei na dor de cabeça infernal. O atendente ofereceu-me as opções de medicamentos, todas conhecidas, exceto uma. INEXIS. "É lançamento! Tenho uma amostra, se a senhora quiser". "Ok, mas envie a bula também". Chegou uma pílula translúcida em um degradê azul. Parecia vazia. "Indicada no combate da dor, febre e cegueira da realidade". Engoli a pílula com o restante de chá ainda morno na caneca velha. Acomodei-me na cama e adormeci. Não sei dizer se passaram horas ou dias. Acordei, mas não abri os olhos. Meu corpo todo sentia o calor do sol, como se todos os dez andares acima tivessem sido arrancados, assim como as paredes. Uma brisa de segunda-feira de feriado acariciava meus pés. Um cafuné macio brincava com o meu cabelo me convidando a abrir os olhos. Eu não queria abri-los.


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Ouvindo música Thais de Paula Gosto de ouvir música quando ando de ônibus e prefiro esse jeito de me locomover pela cidade. Eu me sinto só mais uma pessoa dentro desse tipo de veículo e curto muito isso. Não preciso me preocupar tanto com o trânsito, em qual marcha passar, se tem algum gatinho atravessando a rua, se o motoboy vai me ultrapassar. É ótimo me afundar naquele assento, colocar meus fones de ouvido e só curtir o caminho de casa até o trabalho (ou vice-versa). Algumas vezes ouço músicas mais antigas, de outros tempos. Costumo criar playlists conforme o meu humor ou qualquer outro critério bobo. Não me apego tanto a ritmos, pois acho que isso pode me limitar. Não me prendo ao país dos artistas, gosto só de sentir o ritmo e me identificar com a letra. Só isso. Outro dia eu comecei a ouvir umas músicas antigas, como estava falando. Acontece que eram da época do meu primeiro namorado. Ah, quanto tempo se passou desde a última vez que o vi? Dez anos? Quinze anos? Uma vida? Acho que foi mesmo uma vida….ou duas. Acabei me deixando levar pelos rifs de guitarra, pela voz grave do artista e me deixei levar para uma fase agridoce da minha vida. Sabe quando a gente ama mais o outro do que a si mesma? Pois é….foi o que aconteceu comigo e logo na primeira vez que amei alguém. Bom, acho que era amor, mas talvez eu mude de opinião quando for mais velha. Suponho que ficarei mais sábia conforme as décadas forem passando e essas músicas fiquem cada vez mais antigas. Lembrei de um dia quando fomos a uma livraria na Avenida Paulista que nem existe mais. Estávamos olhando displicentemente uma pilha de livros sobre vampiros e ele subitamente disse que se descobrisse como se transformar em um desses monstros, voltaria para me buscar. Dei uma gargalhada que até assustei um funcionário que estava ali perto. Acho que deixei esse meu ex constrangido, pois ele disse um “é sério”, numa voz tão desafinada que nem parecia ele falando. Tinha a voz tão bonita, grave...Sei lá...parecia estranho ele falar esse tipo de bobagem sendo já um universitário. No momento presente, sorri e vi meu reflexo na janela. Já era noite e estava voltando para casa. As luzes dos carros formavam rastros vermelhos e brancos. Os carros de hoje são tão iguais, com o mesmo formato e as cores. Eu nem sei mais quais são seus nomes...são todos Celtas? Não sei mesmo. Outra lembrança surgiu. O carro dele era um celta vermelho e a gente costumava andar bastante nele. Certa vez, quando estávamos passando em frente a uma igreja, o sinal parou e, enquanto esperávamos abrir para continuarmos a seguir viagem, ele fez o sinal da cruz. Meu coração ficou apertado e minhas bochechas ficaram muito avermelhadas. Logo lágrimas escorreram e eu comecei a enxugar tudo para que ele não percebesse. A essa altura eu já sabia da verdade e fiquei furiosa por ele se benzer. Era um descarado mesmo! Pecador! Não tinha direito de se benzer sendo um


X0-IXK 3/4X0 @bernarda_coletiva | Zine #4 - 2021 traidor. Eu sabia onde ele esteve naquele dia, ou melhor naquela tarde. Sabia o que ele tinha feito e com quem. Eu nunca fui uma moça muito bonita ou elegante, era mais do tipo trabalhadeira e estudiosa. Não entendia o que ele tinha visto em mim quando me pediu em namoro e achei um pouco demais ele ter conversado com meu pai pedindo permissão para me namorar. Parecia coisa de outros tempos, mas achei bacana. Afinal de contas, meus pais era um pouco antiquados. Naquele dia, eu senti que ele estava perto do meu trabalho. Não sei explicar como, mas eu sentia a presença dele. Eu trabalhava como auxiliar administrativa e costumava sair para levar ou buscar correspondências nos Correios ou fazer pagamentos nos bancos, visto que naquela época não se usava tanto internet banking. Celulares também não eram muito comuns. Engraçado como isso não faz tanto tempo assim. Enfim, numa dessas idas a um banco, acabei vendo ele de mãos dadas com uma moça, alguém que eu conhecia. Era uma amiga que ele havia me apresentado. Ela era linda, tinha feito duas faculdades e nunca havia trabalhado, mas já havia viajado para o exterior. Muito culta, descolada, comunicativa. Tinha tempo para fazer o que quisesse. Eu apenas os segui de longe e acabei vendo os dois entrando em motel. Ah sim...foi no mesmo dia que ele se benzeu em frente a igreja. Como eu pude aguentar tudo calada? Fiquei um bom tempo com ele ainda e toda vez era assim: sentia ele perto e acabava vendo que ele estava com outra e outra e outra. Aos poucos fui perdendo saúde, pois eu nem tinha vontade de comer e passava as minhas horas de almoço caminhando o mais longe que eu podia. Queria sentir dor nas pernas para ignorar o coração aos pedaços. Continuei assim até que um dia… não senti mais ele por perto. Não recebia mais nenhuma visita em casa, não o via em mais nenhuma parte. Lembro de ficar arrasada e de andar nas ruas perto de casa sem ao menos saber como havia chegado até ali. O que havia acontecido comigo? Ele foi real ou apenas algo que eu imaginei? Quando falo sobre ele em casa, meus pais me olham de uma forma estranha, entortam um pouco os lábios e forçam um sorriso. Em seguida, um ou outro diz que “já passou” ou “não sei” ou se insisto muito ouço um ríspido “não lembramos dele”. É uma coisa estranha ter todas essas músicas e lembranças de alguém que ninguém lembra. Eu nunca mais o senti por perto, nem vi o seu celta vermelho, mas algumas vezes fico encarando no espelho uma pequena cicatriz no meu pescoço.


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Inadiável Paulo Ribeiro Neto Quando eu entrei, a mulher avisou para não me aproximar muito. Ele estava no meio do tatame, sozinho no grande salão antigo. O pé direito duplo me lembrava uma igreja, os grandes vitrais me remetiam ao sagrado, e até mesmo as imagens de homens nus estampadas nas paredes, de certa forma, lembravam as representações católicas, ainda que eu saiba que isso possa ser considerado um ultraje. Num primeiro momento, não achei que ele notou minha presença, mas ela garantiu que ele conseguia ver tudo. Essa era mesmo a sua fama, um ser supostamente dotado de um dom raro. Quando me dei conta, mais duas pessoas entraram no espaço. Tenho dificuldade em dizer se eram apenas homens ou mulheres, mas rebolavam muito e usavam grandes brincos de argolas. Se dirigiram para duas das quatro extremidades da sala. Minha anfitriã me abandonou em uma terceira e ocupou seu lugar no último canto vazio. Foi então que começaram a cantar. Uma melodia triste, ainda que ritualística, e muito estridente. Incomodava demais porque às vezes parecia que estavam gritando e parte de mim queria rir do espetáculo montado, mas foi quando eu vi que ele, finalmente, começou a se movimentar. Em pouco tempo, o homem no meio do tatame já ganhava velocidade no movimento, rodopiava, desferia socos, se debatia, era arremessado com brutalidade ao ar, caía e se levantava, aparentemente travando uma batalha com algo invisível. Em meio a isso, o cântico continuava. Logo os objetos da sala começaram também a se arrastar pelo salão e eram arremessados na direção dele, como se também quisessem o combater por conta própria. Ainda que tivesse uma força descomunal, em certo ponto, uma mesa pesada de madeira o atingiu nas costas. Ele deu um grito de dor e o cântico parou. Minha anfitriã e as outras duas pessoas acudiram ao centro da sala para resgatar o homem, que agora se contorcia no chão. A luta estava perdida. Ele garantiu que estava bem, mas enquanto buscavam a maca, ele dirigiu o olhar diretamente a mim pela primeira vez: “Desculpa, eu tentei, mas eles estavam irredutíveis. Você vai morrer amanhã”.


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Chuva no Jardim Sol Felix Os fatos como um rio, iriam, adiante, desaguar em momentos maiores. "O que é maior que o tempo?", repetiria a Joaninha entre as gotas na folha do maracujá. "Minha vida é como esse cachinhos, da voltas e voltas e voltas e voltas…" Sentaria, então, na beirada e olharia longamente toda aquela extensão de diversos verdes em formas retangulares e redondas de concreto. Cada vaso, uma atmosfera de existência. Joaninha olharia as próprias patinhas calejadas e as asas no ensaio do voar. Uma família imensa de pulgões, amparada pela nostalgia da circunstância, sairia de cena para o nunca mais. No destino daquele instante, uma garoa cintilante e voraz. Antes de desprender a primeira gota do céu, Joaninha se desvestiria de cada uma de suas 7 pintas. Sem cerimônia. Uma duas três quaatro ciiinco seeeeeis Enquanto a sete ia, Joaninha já flutuava numa numa flor de maracujá.


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Segredo no fundo do coração Thais de Paula Há um episódio inesquecível. Um delicado segredo guardado no fundo do coração. Tenho me enganado nos últimos anos e ignorei o quanto a vida pode ser extraordinária. Diariamente eram iguais, mas como consequência de tudo o que vivi. Afinal de contas, são nossas escolhas que nos trazem até onde estamos. Cada pequena ação, cada desvio de um simples objetivo consegue mudar tudo. Meu segredo foi o que me trouxe até aqui e me deixou nesse estado. Eu realmente não teria continuado desse jeito, mas estou cansada de toda essa baboseira. Não aguento mais ser quem eu sou hoje em dia e após 28 dias eu sempre mudo. Sinto dores, tristeza e raiva enquanto quero sair pela noite e sentir o gosto da vida. Tudo mudou há vinte anos, quando eu era muito jovem e estava brincando nos fundos do sítio. Lembro que havia um alerta de perigo na região e que muitos animais estavam aparecendo machucados, principalmente na Lua Cheia. Eu pensei serem boatos e nem liguei, continuei brincando como sempre sob a luz do luar. Não foi mesmo uma boa ideia fazer a escolha simples de ser teimosa e continuar brincando. Eu julgava ser bobagem quando meus avós me falavam para ficar em casa, mas chegou uma época que resolvi não ouvi-los mais. Foi uma pequena escolha que mudou tudo. Eu já estava diferente, sentia muitas dores na barriga e um incômodo. Logo, minhas roupas ficaram vermelhas e inesperadamente, surgiram pelos por todo meu corpo e comecei a uivar.


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A Fruta Paulo Ribeiro Neto Afortunado foi Tuco que ganhou o sorteio, subiu o monte e atravessou o cume inalcançável Estava com a vida feita, conheceu todos os Deuses e ficou amicíssimo de Zeus Zeus era um velho caolho, meio safado, que andava sempre com a mão direita no bolso. Quando via um moço passando, perguntava se ele guardava segredo e logo oferecia: Quer comer uma frutinha? Tuco no começo não quis, desconfiou, mas depois de tanta insistência, ele enfim aceitou. E teve de reconhecer: não é que a tal frutinha que o velho Zeus escondia era boa mesmo?! Tuco ficou viciado na fruta que descobriu, queria toda hora provar mais um pouquinho dela. Sonhava com seu cheiro, textura, sabor, acordava nas madrugadas molhado de suor Um dia, decidiu espalhar a palavra - tanta frutinha lá embaixo sem ninguém pra aproveitar! “Comam as frutinhas que não há nada igual”, escreveu em bilhetes que jogou do monte Logo a notícia de que os humanos descobriram que as frutinhas eram uma delícia explodiu. Também, era só pegar um binóculo - estavam todos lambuzados lá embaixo, Baco adorou. Aí Zeus interrogou Tuco, que não negou ter espalhado o segredo, para o bem de todos. Mas Zeus se irritou com ele por causa dessa falta de consideração e o enxotou do Olimpo. (não sem antes oferecer a frutinha pela última vez, porque a fruta, ele dizia, não se nega).


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Lanternas Azuis Sol Felix Também na arte - já dizia Klee, em uma época pré-cibernética - há espaço para a procura exata. Largou a caneta e se serviu de mais um café. Me encarou. Viu além. Flagrou meus ancestrais e analisou microscópico, o meu DNA. Contabilizou meus pecados e banhou com suas lanternas azuis os meus segredos. Fingi que refletia. Fingi que sabia de tudo. Klee também dizia - ponderou quando finalmente decidiu me libertar - que o pior acontece quando a ciência é considerada um tipo de arte. Lembrei de higienizar as mãos. Há algum tempo, as unhas começaram a ficar quebradiças. Depois a pele ficou esbranquiçada pelo ressecamento. Por último, os cortes. Minhas mãos eram mapas cheios de riscos aleatórios e doloridos, porém, esterilizados. Álcool gel no estojo, na bolsa, nas mesas, no banheiro, em todas as entradas, corredores, cômodos e saídas. Uns cada vez mais fortes, outros com aloe vera. Ele se serviu de mais um café e agora descobriu as minhas mãos. O corte maior na mão que segurava a caneta, pingava gotas mudas e transparentes, do choro de ontem à noite, incontrolável e infinitamente mais doloroso. Plantei girassóis hoje cedo. O tempo estava bom e fresco. Do centro do meu anelar, um rasgo marrom com terra molhada adubada. Ainda dava para avistar a semente de girassol gigante, meu preferido, mal enterrado por causa da pressa. Odeio me atrasar pra aula dele. Na ponta do polegar da outra mão, a mancha azul - como as lanternas que me despiram - e a nascente de gotículas aquarelada batizavam o papel formando uma nova composição. Depois de um tempo ele sorriu como sempre fazia ao ver meus trabalhos.


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Ele não queria ser simpático Thais de Paula Eu tinha acabado de apanhar do meu cafetão e estava triste, ferida e com muito frio. Precisava, pelo menos, ir ao banheiro para lavar meu rosto, limpar um pouco do rímel que escorreu junto das minhas lágrimas de dor. Minha barriga doía muito, de tanto chute que levei. Ele gosta muito de dar bicas na gente bem ali e dar pisões na pelvis. Depois espera que a gente trabalhe bastante e traga dinheiro. Juro que quando pagar minha dívida eu volto correndo ao meu país e vou pedir perdão para minha mãe. Fugi de casa muito jovem, achando que viveria um amor na Europa. Como fui tola! Ele só queria mais uma garota para encher seus bolsos de grana. Agora estou aqui querendo usar um banheiro e nenhum desses comerciantes egoístas deixa eu entrar. “Acho que vou tentar aquele restaurante asiático no final da rua. Lá parece ser um lugar esquecido, pois vejo poucos clientes”, falo baixinho para mim. Quando entrei no restaurante, vi um moço jovem com semblante assustado. Não sei o que ele fazia, mas parece que atrapalhei. Só sei que tinha um cheiro gostoso no ar e vi a plaquinha do banheiro. Logo pedi para ele me deixar usar o banheiro e, de forma bem seca, acabou deixando. Fiquei muito contente por poder me aliviar, limpar o rosto e me recompor. Aproveitei para tomar um remédio para dor na esperança de amenizar um pouco o que estava sentindo. Sai do banheiro e o moço jovem perguntou rispidamente se eu ia consumir alguma coisa ou se ia cair fora logo. Meu estômago fez um barulhão, pois fazia mais de um dia que eu não tinha uma refeição decente. Infelizmente eu não podia gastar com uma refeição, pois apanharia novamente se gastasse a pouca grana que eu tinha. Decidi ir embora e antes mesmo de falar, ele me passou uma tigela pequena com um pouco de sopa e falou que era por conta da casa, mas que eu me apressasse. Tomei aquele caldo e nem lembro do gosto, para ser sincera. Queria só terminar logo e ir embora, mas os capangas do meu chefe vieram atrás de mim e começaram a me xingar. Ficaram furiosos por eu fazer uma pausa e me alimentar. Eu devia estar nas ruas e arrumar um cliente. Logo eles me pegaram pelos braços e saíram derrubando tudo enquanto me arrastavam através do restaurante. O moço jovem e pouco simpático ficou muito bravo pela bagunça e, juro que não sei como, surgiu na porta do estabelecimento. Sério, eu não sei como ele apareceu lá, pois ele parecia ter ido para cozinha depois deu uma tigela de sopa para mim.


X0-IXK 3/4X0 @bernarda_coletiva | Zine #4 - 2021 Logo, um dos capangas já estava caído no chão desmaiado. Na sequência, o segundo desmaiou sobre uma mesa, quebrando tudo devido a todo o seu tamanho e peso. O cara era um gigante. Para finalizar, o último apenas saiu correndo e tentou passar pelo moço jovem, mas não conseguiu, pois sua cabeça parece ter desencaixado do pescoço. Não há como explicar o que aconteceu da melhor forma. O que era aquele jovem? Eu não conseguia me mexer, não conseguia respirar direito, não conseguia falar. O clima estava muito pesado e eu comecei a me sentir muito pesada, sonolenta. As dores da surra se intensificaram e lágrimas começaram a escorrer dos meus olhos. Ele parecia olhar dentro da minha alma e acho que estava me julgando. De repente, voltei a ter controle sobre o meu corpo e ele só falou para eu correr e não olhar para trás e não voltar ali. Foi o que eu fiz! Nunca mais voltei naquele lugar, ainda mais pelo restaurante ter desaparecido. Parecia que ele nunca existiu.


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Sob medida Paulo Ribeiro Neto “Não foi muito longe daqui. Dizem que quando o colocaram no lugar marcado, ele estava mesmo era achando graça da cerimônia. Foi carregado com muita pompa nos ombros de milhares de súditos, como um presente sob medida, ainda que alguns digam que o termo correto era oferenda, mas isso pouco importa pra história. A nobre dama, que de dama pouco tinha, quando surgiu, tateava as casas dos pequenos, tateava todas elas, uma a uma. Ela só tinha um olho na face, que já não enxergava lá tão bem, por isso usava as mãos como guia. Com seus longos dedos, ela tocou o solo, o mar, e também três grandes rochas, e umas árvores da mata que cobria a encosta, até que, enfim, encontrou a superfície lisa dele. Era o presente prometido. Ela sorriu com seus dentes amarelos em êxtase, uma boca que, segundo os mais velhos, poderia engolir um vilarejo inteiro. Todos observavam a cena aos seus pés quando ela virou para o horizonte e curvou suas costas, empinando suas largas nádegas e, assim, quase tapando o sol. Mas o trono era astuto, ou brincalhão uns diziam, ou até mesmo ardiloso diriam outros, mas, de qualquer forma, fato é que, ainda no clima de graça, o que ele resolveu fazer foi ro-do-pi-ar. Nem preciso dizer que o estrago estava feito, né?! A terra toda tremeu com o impacto, foi uma gritaria só de gente temendo a destruição, mas foi só um susto, e enquanto a maioria respirava de alívio, o trono começou a rangir. Quando o primeiro entendeu que o rangido era, na verdade, uma risada bem safada por parte do objeto, ele também riu e, depois disso, você sabe, foi um efeito cascata, ou efeito dominó, enfim, isso também não importa, fato é que todos os pequenos súditos riam. Dizem que riam muito, viu?! Riam não, gargalhavam! Choravam de tanto rir! Quem começou a chorar também foi a nobre dama, agora caída ao chão, cujo grito pavoroso estourou umas vidraças no meio da multidão. Tá bom, já deu, agora não era mais tão engraçado assim, todos concordavam. Paramédicos levaram os feridos em macas para atendimento, mas, você sabe, quando alguém desata a chorar, é difícil parar. Eles bem tentaram consolar, tentaram mesmo, mas ela não conseguia, estava tão magoada, que com suas lágrimas ela foi inundando cada espaço, cada rua, cada casa e cada viela da cidade.


X0-IXK 3/4X0 @bernarda_coletiva | Zine #4 - 2021 Dizem que o cenário logo era apocalíptico. As pessoas clamavam por socorro e o trono, arrependido, se sensibilizou com o horror e tentou deixar a mulher finalmente sentar, mas ela desequilibrava muito com o chão molhado. O trono perdia pedaços, rachava mais e mais a cada tentativa, enquanto a princesa gigante se agarrava com brutalidade nele, em um misto de desgosto e desespero. Isso durou por algum tempo, até que, dizem, chegou uma hora em que a água era tanta que nem mais chão havia ali pro trono se estabilizar. Parece que foi assim o desenrolar da coisa. Até hoje, quando a maré baixa, tem gente que acha aqui, na nossa terra, itens perdidos dessa velha cidade afundada em lágrimas. Esses dias tiraram do mar uma bicicleta antiga, lembra? Ano passado foi um álbum de fotos. Lembro que acharam um sofá novinho quando eu era criança também. Além disso, teve um marinheiro que um dia pisou aqui jurando ter visto a dama gigante em alto mar, ainda se equilibrando em uma madeira podre, flutuando sem destino certo. Ele falou que ela não chorava mais não, mas ainda assim gritava aos quatro ventos o quão indignada estava com um destino tão vil. Isso tudo porque, um dia, ela tentou encontrar aquele que seria o seu lugar. Só que a verdade, meu amor, minha mãe sempre me dizia: tem gente que não foi feita pra caber em um lugar não”.


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