Zine da Bernarda #1

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ZINE DA

BERNARDA

#1

Amores inanimados

lรกpis = ama = borracha = ama = pneu = ama = estrada = ama = placa = ama = ringue = ama = luva = ama = agulha = ama = linha = ama = pipa = ama = vidro = ama = celular = ama = rede = ama = coco = ama = canudo = ama = lata = ama = tinta = ama = tela = ama = janela = ama = grade = ama = cela = ama = cabresto = ama = urna = ama = cinzas = ama = cigarro = ama = saliva = ama = megafone = ama = bernarda = ama = zine


Mas, vem cá, o que é isso de

Bernarda? Tradicionalmente, Bernarda é o nome de uma mulher, mas, no final do século XIX, essa palavra também foi utilizada para nomear algumas revoltas populares, no Brasil e em Portugal. Desde então, virou sinônimo de motim e arruaça. Uma Bernarda é forte como uma ursa ou pode ser só uma variedade de pera. Ah, também se refere a um grupo de escritorxs de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista.

Essa zine é a ____ / _____


Nem aroma nem sabor

Por um período tão curto Senti seu calor e seu cheiro Cada pedaço de você em mim e me espetaram e te cortaram Sentia a lâmina indiferente O frio metal me arranhava Pouco a pouco nos separava Quase nada sobrou Tudo foi lavado embora Fiquei livre do seu odor e do seu sabor Logo recebi um novo calor Logo senti um novo aroma E tudo recomeçou Nunca fico com todo o meu amor Ele é tirado aos poucos de mim Para receber um novo em seguida E o ciclo se repete sem fim


(Intestino adulto embolado em si. Aparência extensa e característica. Ouve-se grunhidos. Chove café. Neblina de fumaça de cigarro) Não sei o que houve! Estou que não me contenho. Se eu empurro, sobe. Se eu aperto, escapa. Quando vejo, já foi! Subo e desço, diariamente. Até estufar, estupefato! Vez ou outra, sinto umas pontadas cá embaixo. De repente, explodo! Eu costumava receber tantos corpos que me percorriam inteiro e ficavam tempo suficiente para eu satisfazer minhas vontades! Era pleno, feliz, corado. Agora os poucos que me visitam, Já fogem e escapam. Eles perpassam correndo por mim. Que saudade eu tenho da minha juventude! Os tempos não são mais como antigamente! Desgraça de amores líquidos!


SENTIMENTO UNIVERSAL Não achava que o amor fosse pra mim. Por isso, sempre segui a trajetória que me foi previamente delineada, atravessando o espaço de forma elíptica... isso até o dia em que eu o vi pela primeira vez Fiquei encantado. Ele era um ser independente, diferente de tudo que eu conhecia. Me senti inseguro quando percebi que ele se dirigia até mim. Logo eu, que sou tão pequeno e redondo?! As vozes dentro de mim gritaram apavoradas quando o avistaram, mas eu não dei ouvido a elas. Permiti a sua aproximação.

Ele era ainda mais belo de perto, mas não quis conversar comigo.

Penetrou a minha atmosfera violentamente, sem nenhuma cerimônia, e queimou como uma estrela dentro de mim. Grosseiro, só parou ao dissipar toda a sua energia bruscamente na minha superfície. “Por que fez isso comigo se te recebi com tanto afeto?”, perguntei ao ver o a nuvem de fumaça e os tremores sísmicos. Encrustado na minha superfície, ele finalmente abriu sua boca. Escutei sua gargalhada. Um ruído metálico, enferrujado:

“Afeto? Você era só mais um obstáculo no meu caminho!”


Ele continuou rindo até que a lava que vazava dos meus poros o engolisse, fazendo com que desaparecesse não só ele, mas tudo e todos que habitavam em mim. Ver-me banhado pelo caos me fez reconhecer, pela primeira vez, o quão belo eu já́ tinha sido. Numa última tentativa de reparação, cobri-me com o manto do inverno para fechar as feridas abertas pelo meu invasor. Hoje estou bem. Não sobrou nada do meu passado, mas, com o tempo, o amor brotou novamente nas minhas terras. Tenho muito orgulho de toda a vida e de toda a morte que me escolheram como morada. Sei que carrego o meu maior tesouro aqui, guardado dentro de mim.


O careta que curte oral

Me chupa... Me chupa, me chupa... A cada trago, um jato quente na boca O dilema engole cospe, uma esporrada no ar. Me chupa atĂŠ o fim.


coturnos Bastava calçar os coturnos e ganhava o mundo sob seus passos pesados esmagava flores a cada segundo os dedos, o calcanhar apertados o contato com o couro sintético as feridas e bolhas marcas de batalhas construí diversas muralhas para se manter inteiro dentro desse ambiente e se afeiçoou ao que tanto o machucava ficou mais forte ficou mais leve já não sofria mais com os ferimentos e sua estadia nele ficou menos breve


“carinho aprisiona� ouviu um dia talvez o caso fosse o oposto de tanto desgosto acabou gostando e se adaptando


Garanhão Não se contentava com uma só e dizia ser o melhor no que fazia. “Eu dou conta de qualquer uma”, gabava-se. “Das pequenas, das grandes, das velhas, das novas... Até mesmo das mais finas e luxuosas”. Um dia, o desafiaram a suportar três ao mesmo tempo.

Não aguentou os pesados casacos e partiu-se ao meio. Pelo menos o cabide morreu feliz.


DanCando entre cores Eu atravesso o tecido e te conduzo pelas fibras Eu combino as cores As vezes cobro um pouco de sangue Ao espetar o que me dá movimento Trabalhamos juntos Aproveitamos o momento Até o seu desgaste Até que você se desenrole completamente E torne algo maior do que nós E começo este processo novamente Dançando entre cores e movimentos Consumindo toda a extensão


“o poliamor da cebola” ou “a cebola optou pela monogamia e casou-se consigo” ela tem 7 namorados e não desgruda de nenhum. cansouse. globo bulbônico que não gira e não roda, ceboleia regando a vida com lagrimas. despe-se do primeiro, o dourado. não ressente, apenas deixa ir, como árvore que permite o rapto das folhas secas pelo vento. foi-se um. ciente da importância de cada parte suculenta desse amor, a cebola foi cuidadosa e delicada. durante tempos prendeu-os por baixo em fios descampados e, por cima, numa pirâmide verde carnuda, que temperava céus e vidas! amava-os por si e por todos e rodeava-os em um amor perfeito e concêntrico. cansou-se chegou a vez do segundo: umedeceu os olhos mas não esmoreceu. descobriu um choro tímido com essa partida. foi-se outro e mais outro e mais outro. o lamento é ininterrupto quando a gente se acostuma com as perdas. soltou-se das películas envolventes desse amor que a consumia.


restou um miolo nu feito de flor. cansou-se. ciente da importância de cada parte polposa de si, a cebola vasculhou-se impiedosa ao descobrir um resquício de raiz. vagou. vagueou. “morrerei afogada”, pensou ao encontrar um oceano novo de terra fértil e úmida que a desejava.

mergulhou.


SAPATOS WERE MEANT TO BE Foram feitos um para o outro, e nunca duvidaram disso. Estiveram lado a lado sempre, desde onde a memória lhes é capaz de recordar. Parceria de uma longa vida: vitrine, pés, caixa de papelão, vitrine novamente, pés, pés, pés, pés... Muitos pés até ganharem a rua. Por onde andavam eram admirados. Feitos um para o outro, diziam a eles. Sapatos lindos. Sapatos de salto vermelhos lindos. Beleza clássica, atemporais, sempre invejados. Nunca passavam desapercebidos. Iam a festas, eventos importantes. Sabiam aproveitar a vida. Uma noite porém, um tropeção enquanto dançavam. Haviam bebido além dos limites, não se pode negar, e é assim que acontece, há coisas que não se pode pensar ou premeditar muito; um impulso e pronto. Separaram-se. Um pra cada lado na pista e abandonaram seus pés conhecidos há tanto tempo. Seria assim, seguiriam seus caminhos, sozinhos. Não esperavam por isso, não depois de tanto tempo juntos. Melhor assim, concordaram. Um, o direito, foi encontrado poucos minutos depois, ainda na pista de dança, e levado por uma jovem que trabalhava no circo. Descobriu seus dotes artísticos, passou a apresentar-se a multidões. A cada noite, um par diferente, e por quê não? Por que insistir na tradição de ter sempre o mesmo par previsível, sempre os mesmos pés?


O outro, o esquerdo, foi varrido na manhã seguinte para fora do salão e encontrado por um menino que passava por ali. Guardado na mochila e escondido embaixo da cama. O menino o calçava todos os dias e escondido dos outros desfilava a si mesmo, manco. Nunca divertiu-se tanto, nunca sentiu tanto amor. Ainda pensavam um no outro as vezes, é verdade. Mas eram outros, já. Se por alguma ironia do destino voltassem a se encontrar, sabiam que não se reconheceriam mais. Jamais voltariam a caber nos mesmos pés.

O amor inconstante do cadarço de all star

Ata, desata. Ata, desata. Ata, desata. Infinitamente. Não sabia amar a si mesmo

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O CAPACHO SADOMASOQUISTA Me pisava com saltos finos todas as noites Às manhãs, me erguia pelos cabelos e dava-me bofetadas Eu, nu em pelos Fetiche à soleira da porta

O GUARDANAPO PEGADOR Gostava de bocas, lábios, beijos públicos Homens e mulheres, não importava a idade Pernas e lábios. E o fetiche do batom vermelho difícil de lavar.

O FÓSFORO APAIXONADO Mal se conheciam Ao primeiro toque já sentiu Paixão flamejante O consumiu por completo, Única noite de amor.


FALHA ─ Errei com você, meu filho. Justo você, o meu último filho! Me perdoa, eu não fui forte... Os seus irmãos eu consegui pôr na linha, mas eu era mais nova. Naquele tempo, eu tinha a energia necessária pra deixar a minha marca neles. Encrustei o meu amor no âmago de seus seres, como uma tinta que ninguém poderia soltar, e eles foram pro mundo com um destino seguro, já traçado. Com você foi diferente. Você passou por mim sem que eu conseguisse te marcar. Por mais que eu tentasse, por mais que eu te amasse, tive que te soltar assim: como um ser em branco. Uma figura incompleta. ─ A minha incompletude é uma dádiva, mãe. As ausências me dão espaço pra encontrar minha essência. Eu encaro essa liberdade, que você me deu, como uma prova de amor.


A VIDA CLICHÊ DO ANÃO DE JARDIM Vida é coisa monótona cinza, sabia disso. Deve ser difícil pra todo mundo, pensava consigo. Pensava consigo e ouvia a mulher reclamar todos os dias enquanto conversava com a amiga no portão. Como queria ele poder ir até o portão encontrar com amigos e conversar sobre o dia. Mas nem amigos não tinha. Tentava puxar assunto com as flores, mas elas, estrangeiras, não entendiam-lhe as perguntas, pensava; nunca respondiam. Pois via a vida passar pelas frestas das grades enferrujadas, buscando pequenas alegrias cotidianas e vez ou outra aguentando com dignidade a humilhação de ser mijado pelo bulldog. Um dia, a viu pela primeira vez. Há sempre uma primeira vez. Seu aro vermelho como seu gorro de gnomo. Suas rodas ágeis, sua sinetinha. Tlin-tlin, tlin-tlin. Ela sabia de sua paixão, passava por ele todos os dias, provocante. Tlin-tlin, tlin-tlin. Ela sabia que ele estava ali, que a observava passar, que sonhava com o dia em que ela o carregaria em sua cesta. Ganhariam o mundo. Tlin-tlin, tlin-tlin. Sua vida só existia pra que ele a visse passar.


Mas, certa vez, e há sempre certa vez, quando o tlin-tlin se aproximava do portão, ele, de seu jardim insignificante a viu passar toda garbosa ao lado de um outro tal. Aro verde brilhante, rodas com luzes piscantes e uma buzina. Ah, aquela buzina! Como pode fazer aquilo com ele? E justo com aquele tão deselegante, se achando o tal. O tlin-tlin não era mais lançado a seus ouvidos de pedra.

Nunca havia sentido tanta dor, tanta decepção. Quis sair correndo, sem rumo, sem destino algum, apenas correr, e gritar e chorar. Queria fugir dali, daquele jardim, daquela rua, sempre aquela rua, queria sumir. Queria correr atrás daqueles dois, cometer um crime passional, haveriam de compreender a sua razão. Acabar com os dois, depois tacar-se do muro, espatifar-se. Sim, iria espatifar-se! A vida não fazia mais sentido sem o amor ao aro vermelho, sem o sonho dos passeios na cesta. Sofria por tudo que não conseguiram viver juntos, sofria por todos os planos feitos em vão. Era isso, iria correr, amassar as latarias, e espatifar-se por fim. Viveria um grande amor, pela felicidade ou pela tragédia, não importava. Reunia suas forças para um primeiro impulso, um primeiro passo, quando um jato de mijo quente o trouxe de volta à realidade.


Me apaixonei pelo seu perfil. Te add, você aceitou. Você me curtiu e eu comentei. Compartilhamos. Ativei todas as notificações para você e bloqueei todos os meus ex's. 1 mês depois usávamos a mesma foto e a mesma senha. Mudamos de status. Você sempre online para mim. E eu, te seguindo. Add os seus amigos e você add os meus. Entre os seus, encontrei alguns ex's meus, achei estranho e melhor não comentar, uma vez que minha rede já havia diminuído muito depois que alguns membros de nossas famílias foram excluídos impiedosamente. Bugamos durante um período e nos desativamos temporariamente, mas a dor da solidão foi mais forte e, 6 meses depois, morávamos no mesmo app. Não demorou para que nosso relacionamento necessitasse passar por um processo periódico de disponibilização de uma nova versão de sistema. Decidimos juntos, depois de muita conversa, conceder liberdade – a quem usufruir - para executar, acessar e modificar nosso código fonte, e redistribuir cópias com ou sem modificações. Hoje somos livres, baratos e atualizados.



Amor que marca Não é sempre, mas tem dias em que eu preciso delas. Sinto um profundo incômodo, um ardor que me perpassa inteira até elas chegarem. Sei que elas têm uma vida atarefada, coisas muito mais importantes que eu, mas elas nunca deixaram de vir quando chamei. Porque só elas me tocam onde ninguém mais toca. Só elas conseguem me deixar vermelha. Me arranham na medida certa e não param até que eu esteja satisfeita.


Quem rabisca na

Bernarda? Carina Murias: “O amor inconstante do cadarço de all star”; “O capacho sadomasoquista”; “O guardanapo pegador”; “O careta que curte oral”; “O fósforo apaixonado”; “A vida clichê do anão de jardim” e “Sapatos were meant to be”.

Paulo Ribeiro Neto: “Sentimento universal”; “Falha”; “Garanhão” e “Amor que marca”.

Sol Felix: “O poliamor da cebola” ou “A cebola optou pela monogamia e casou-se consigo” e os dois textos sem título.

Thais de Paula: “Nem aroma, nem sabor”; “Dançando entre cores” e “Coturnos”.

Em breve, a Zine da Bernarda #2:

CADERNO DOS SONHOS


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