Abertura/Encerramento de Processo - Bernarda Coletiva - 2024

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Estimada pessoa leitora, Que bom te ver aqui, prestigiando o trabalho da nossa Bernarda Coletiva em seu sexto ano de atividade! Neste ano de 2024, seguimos nos reunindo periodicamente e escrevendo muito material. Dessa vez, mergulhamos em uma investigação dos nossos interesses no campo da dramaturgia, a escrita feita para a cena teatral. Achamos curioso como os processos se adaptam no tempo. Diferente de outros anos, não fizemos posts nas redes sociais nesse período, ainda que a nossa produção estivesse a todo vapor. Não foi uma escolha totalmente consciente, mas talvez ela esteja relacionada com a nossa necessidade de observar o mundo, as pessoas e a realidade concreta, usando esses apontamentos como disparadores do nosso processo criativo. Talvez seja clichê, mas reconhecemos durante este ano que a vida é de fato o maior dos palcos. Até porque, é inegável que os personagens mais interessantes do mundo são aqueles que interpretamos no nosso dia a dia, as diferentes máscaras que usamos no trabalho, com a família, no bar com as nossas amizades ou na cama com os nossos afetos. Nesse sentido, reconhecemos que a dramaturgia não começa, nem acaba. Ela está, ela foi e ela será. Sob essa ótica, nosso maior objetivo, enquanto autores, foi tentar captar um fragmento dessa vida e transformá-lo em algo palpável para a construção de uma cena, que é por si só outra criação e interpretação do viver. Levando em conta toda essa jornada, fez mais sentido chamar este compilado de textos de uma “abertura de processo”, pegando emprestado um termo comum no meio teatral para a apresentação de uma criação artistica que ainda está em andamento. Ao mesmo tempo é também um “encerramento de processo”, já que faremos uma nova investigação em 2025. De toda forma, mesmo reconhecendo que a tradução da vida para a cena é sempre incompleta, esperamos que, assim como nós, você consiga perceber que ela é apaixonante, inebriante e pungente em sua incompletude. Boa leitura!

Bernarda Coletiva Paulo Ribeiro Neto e Sol Felix São Bernardo do Campo/SP Dezembro de 2024


BERNARDA COLETIVA - 2024 Prólogo de Peça Imaginária Paulo Ribeiro Neto (Três pessoas falam com o público) 1: Boa noite! Na nossa peça de hoje, iremos contar a história de um corretor imobiliário que vai em uma festa de inauguração de uma nova imobiliária em sua região. Nessa festa, há uma mesa repleta de biscoitos da sorte. 2: Boa noite! Hoje eu farei uma cartomante. Uma mulher que usa as cartas para ver o futuro para o qual as pessoas caminham, a partir do estado de espírito delas na hora da leitura. A cartomante é uma figura clássica na ficção brasileira: foi explorada por escritores como Machado de Assis e Clarice Lispector. 3: Boa noite! Pediram que eu contasse uma história de bastidores antes do começo da peça. Esse tablado é cheio de histórias curiosas. Hoje pedimos que o nosso técnico de palco pendurasse uma das pernas da coxia, esse pano que separa a área da cena do camarim, e ele colocou o tecido lá no hall do teatro. Isso nos preocupou um pouco. Ainda que seja verdade que o mundo é um palco, pedimos que ele fosse pra casa. Desconfiamos que ele esteja com burnout. 1: Você já comeu um biscoito da sorte? É uma experiência bem interessante. O meu personagem, o corretor imobiliário, sofre muito nessa vivência. Ele caminha até essa mesa, escolhe um biscoito, fica com ele na mão, não quebra, fica inseguro, troca, escolhe outro biscoito, observa ele atentamente, sente seu peso, o seu cheiro, fica com medo, troca de novo, enfia a mão na pilha de biscoitos de olhos fechados, caça outro biscoito, dá uma lambida, o seu gosto não lhe agrada, o devolve, sente um segurança se aproximar, fica com medo, constrangido, escolhe o primeiro biscoito que vê pela frente e se afasta dali. 3: Eu sei que é piegas ouvir um ator falando sobre o teatro, mas algo que eu realmente amo nesse ofício é que aqui temos liberdade pra muitas coisas que vocês, que estão sentados aí, não tem. Eu tenho liberdade pra mentir, por exemplo, e assumir que menti. Eu inventei a história sobre o técnico de palco. Viu só? Nós podemos fazer isso, enquanto vocês têm que sustentar a mentira como verdade. É uma pena, pra ser sincero. O mundo seria melhor se todos os mentirosos pudessem sair do armário, se pudessem pedir perdão. 2: Nem todo mundo sabe, mas o Machado de Assis foi apelidado de “Bruxo do Cosme Velho” porque queimou cartas em um caldeirão uma vez. Eu fiquei apaixonada por essa história quando a ouvi. Fazer arte é um pouco como fazer bruxaria. Invocar personagens, criar uma ritualística, revelar os destinos e os significados da vida das pessoas. Se o Machado estivesse vivo hoje, eu acho que ele ainda seria meio bruxo. A Clarice também. 1: Quando o meu personagem quebrar o biscoito da sorte com os dentes, ele vai ler uma mensagem que diz: “Aproveite! Você também vai morrer”. Ele vai ficar indignado. Um biscoito da sorte que fala sobre morte é como um bilhete da loteria que se transforma em boleto. É coisa que não se faz.


BERNARDA COLETIVA - 2024 2: A minha personagem, a cartomante, está buscando uma nova casa porque aquela em que ela está, onde atende seus clientes há 20 anos, vem sendo vandalizada após a abertura de uma igreja evangélica na sua rua. Ela chamou a polícia, denunciou à imprensa, de nada adiantou. Ela conhece o corretor imobiliário na busca por um novo imóvel para ser sua base. 3: Antes que eu me esqueça, devo dizer pra vocês que vou fazer alguns personagens diferentes no espetáculo de hoje. Farei primeiro o papel da morte. Depois disso farei os papéis de Deus e do Diabo. Isso foi uma exigência do dramaturgo: que o mesmo ator fizesse a morte, Deus e o Diabo. Eu também farei uma criança, que se chama Tempo e que gosta de pular amarelinha. 2: Tanto no conto do Machado quanto no livro da Clarice, as pessoas morrem depois de consultas com uma cartomante. 3: O Raul Seixas disse numa música que a morte é uma mulher vestida de cetim que espera as suas vítimas na esquina e as beija de surpresa. 1: Ele leu de novo: “Aproveite! Você também vai morrer”. Daqui a cem anos, nenhum de nós estará mais aqui. Isso é algo que te assusta? A mim sim, um pouco. Já não sei mais se falo como ator ou personagem, pra ser bem sincero. 2: A morte é um arcano maior no tarot, mas ela não representa sempre a morte literal. Ela fala, na maioria das vezes, sobre o encerramento de um ciclo, de uma fase. A vida é cíclica e está em constante metamorfose. Nada é pra sempre. 3: Os figurinos de Deus e do Diabo são bem parecidos, mas eu acho que vocês vão saber quem é quem. A gente não gosta de subestimar nosso público. Eu confio muito que vocês saberão diferenciar um do outro. Bom espetáculo!


BERNARDA COLETIVA - 2024 Curadoria Sol Felix Personagens: - Instalação Intermidiática - Óleo sobre Tela Palco com decoração de natal intercalada com arte contemporânea bem caricata, mas que não anula a sensibilidade que a cena pede. No fundo do palco, um imenso quadro está voltado para a plateia. A sua frente, 2 cubos possuem a inscrição “não tocar”, como é comum nas obras de arte. Em cada cubo tem uma atriz voltada para o quadro, observando-o. Em nenhum momento as atrizes encaram a plateia. É possível usar recursos de cena, como espelhos, para que se possa ver as expressões das atrizes. Intermidiática - Uau, que cores! Tela - Sim... Intermidiática - Esse vermelho em destaque... Tela - ... é a corrente sanguínea da obra. Intermidiática - Esse olhar triste... Tela - Sim. Intermidiática - Estou amando a exposição, obrigada pelo convite. Tela - Sabia que você ia gostar. Intermidiática - Tem mais quantos andares para vermos? Tela - 3 Intermidiática - Bastante coisa. Tela - Sim. Silêncio. As atrizes podem olhar para outras direções como quem aprecia outras obras, mas não olham a plateia e nem entre si. Tela (estica o braço para tentar alcançar a outra atriz, em um ato de afeto) Intermidiática (resiste brevemente, porem cede e encostam a cabeça uma na outra) Tela - Senti sua falta. Intermidiática- Eu também. Silêncio. Tela (ri) Intermidiática - Que foi? Tela - Aquele dia que você levou bronca do segurança, lembra? O pedaço de tecido era parte da obra, mas você pegou, tocou, cheirou e ainda se enrolou nele porque disse que o ar estava muito frio. Intermidiática (ri inconformada) – Nunca vou entender o porquê de não poder tocar aquele tecido. Tela - É... Silêncio.


BERNARDA COLETIVA - 2024 Tela - Quer almoçar comigo mais tarde? Intermidiática - Hoje, não. Talvez outro dia. As atrizes descem do cubo, cada uma para um lado. O quadro é substituído por um emoji de beijo com coração e elas saem em lados opostos para fora do palco.


BERNARDA COLETIVA - 2024 Nominal Paulo Ribeiro Neto A gente tem que ter cuidado com os nomes Muitos nomes têm poder destrutivo Sejam nomes de coisas, de animais Mas me refiro principalmente às pessoas Quando eu fiquei grávida, não sabia disso Não sabia desses perigos, de todos os riscos Não sabia nem sequer tudo do sobrenome A periculosidade pode ser herdada da família Mamãe insistiu que a menina chamasse Bernarda Bernarda Augusta, ela queria um nome composto Bernarda Augusta Espinhosa, a quem dei a luz Do Espinhosa, a minha filha herdou a violência Do Augusta, a criança herdou a fé no sagrado E do Bernarda, a minha menina herdou revolução Pai Nosso que estás nos céus Santificado, Senhor, seja o Vosso nome O Vosso nome é Santo, ó Deus Só o Vosso, Senhora, só o Teu Venha a nós o Vosso reino Mas assegurai-vos, ó Mãe, que há trancas Nas correntes que prendem os arcanjos rebeldes Que as portas que nos separam estão fechadas E assim livrai-nos de todo e qualquer Mal Amém A Bernarda tinha quatro quando engoliu o primeiro Ela adorava os terços, principalmente os coloridos Aos sete, começou a engolir cabeças de santos Aos dez, crucifixos e, aos quinze, garrafas de vinho Eu alertei, os médicos alertaram “O vidro e a madeira te furam, menina” Mas ela tinha fé e ela queria revolução O vinho preferido dela era tinto e argentino “Quem bebe o meu sangue permanece em mim” O vinho preferido da Bernarda chamava Esperanza Os nomes podem ser destrutivos É preciso ter cuidado com os nomes É preciso ter cuidado com todos eles


BERNARDA COLETIVA - 2024 Nuvens Sol Felix Personagem: Mulher Nuvem (Som de penhasco) Viver dá uma agonia. Sabe aquela cólica do primeiro dia da menstruação, que você ainda não sabe se será um fluxo suave ou se irá jorrar tinta vermelha que atravessa sua calcinha e escorre junto com sua coragem pelo escritório, pelo metrô? Eu tô é cansada. De tão exausta de vazar decepção pelos meus peitos, misturado com o suor sujo de mau amor, nasceu a autossuficiência, o amor próprio forçado, coalhado, azedo, mas firme. Firme, sim! Desliguei até o celular, porque hoje eu tô na nuvem. (Som de penhasco) Tô com a cabeça em nuvens sem forma. É péssimo fazer arte com crianças e usar algodão no lugar do céu. O algodão é a caneca e a nuvem é o eco do vazio. É o barulho da água quente batendo no fundo da cerâmica. É o espaço completamente oco, invisível e preenchido. A nuvem é uma mulher que quer ficar sozinha. (Som de penhasco) A minha menstruação é uma nuvem indecisa se para ou se fica. É uma velha que não para de reclamar. E reclama da falta de aumento, da falta de paz, da falta da família, da falta de memória. Eu tô com a cabeça de molho em um balde de nuvens. Justo eu que não controlo nem as linhas brancas que nascem na minha cabeça e pelo meu corpo. Minhas pernas estão pesadas, são os filhos que não tive, mas que todo mundo tanto cobrou. Arrasto essa dívida como punição. (Som de penhasco) Os amores que rejeitei me deixaram corcunda. Dizem que foram as telas que embaçaram meus olhos, mas o motivo real foi a vista grosso que fiz para as paixões que não vivi porque não quis.


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(Grita) Eu não quis! (Som de penhasco) (Chora) Eu não quis! (Som de penhasco) E agora eu sou um vapor morno e pacífico, um amontoado de partículas de água que toma a forma do vazio que escolher. Eu sou toda ar que destrói as estruturas, tudo o que é certeza absoluta e fixa. Tudo o que tem forma indestrutível, eu descrio e transformo em nuvens como eu.


BERNARDA COLETIVA - 2024 Discursos Paulo Ribeiro Neto Há dois púlpitos com microfones no palco. Uma mulher para em frente ao púlpito mais à esquerda e sorri. Liga o microfone, há um ruído pela microfonia, ela faz uma careta, mas logo se recupera. Sorri e encara o público como uma estátua. Outra mulher entra em cena. Para em frente ao outro púlpito. Tenta ligar o microfone com mais cuidado, não consegue, microfonia. Mais caretas, agora das duas mulheres. Quando o ruído passa, elas dão sorrisos amarelos. As mulheres seguem encarando a plateia. Em nenhum momento da cena elas trocam olhares. A primeira: Você é bonita A segunda: Você é linda A primeira: Você é bonita pra caralho A segunda: Você é toda gostosa A primeira: Você é inteligentérrima A segunda: Você é uma deusa maravilhosa A primeira: Você é uma sereia do mar A segunda: Você é um presente do céu A primeira: Eu sei A segunda: Eu sei e também sei que você sabe A primeira: Eu sei que você sabe que eu sei A segunda: Eu sei que você sabe que eu sei que você sabe A primeira: Obrigada, não há de quê A segunda: Obrigada, não há de quê Microfonia. Elas tampam os ouvidos. Depois de alguns segundos, se recuperam. A primeira: Eu não acho isso certo A segunda: Isso aí tá tudo errado A primeira: É uma cagada enorme isso aí A segunda: É uma merda colossal A primeira: Eu acho horrível A segunda: Eu acho horroroso A primeira: Eu penso que isso é meio feio A segunda: Eu penso que isso é imoral A primeira: Mas todo mundo faz né? A segunda: Todo mundo? A primeira: É, todo mundo faz né? A segunda: Quem é que é todo mundo, porra? A primeira: Desculpa! A segunda: Você não é todo mundo! Microfonia mais forte. O incômodo dura mais tempo. Elas eventualmente voltam ao microfone.


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A primeira: Que dia é hoje? A segunda: Domingo A primeira: Dia de descanso A segunda: Dia de missa A primeira: Dia perdido A segunda: Deus descansou no último dia A primeira: Quando será o nosso último dia? A segunda: Você foi na missa? A primeira: Eu gosto da sensação que tenho quando a luz da pista de dança me cega. A segunda: Faz tempo que você não se confessa. A primeira: Eu grito os meus pecados pro mundo todo, eu faço isso toda hora A segunda: Isso aí tá tudo errado. A primeira: Eu não vou me desculpar de novo! A segunda: Eu penso que isso é imoral Microfonia mais forte. Elas já se contorcem quando escutam, mas sempre voltam ao microfone. A primeira: Eu queria dizer uma coisa importante A segunda: Assim não! A primeira: Assim como? A segunda: Tira esse negócio da cara primeiro! A primeira: Que negócio da cara? A segunda: Esse em cima da boca, entre as bochechas. A primeira: Você quer que eu tire o meu nariz? A segunda: Não fala esse nome! Imunda! A primeira: Mas isso todo mundo tem. A segunda: Se é isso que você quer ter, o problema é seu, mas não fica esfregando esse troço na cara dos outros! Se vai ser assim, seja discreta! Ninguém precisa ver, não fica balançando isso na minha frente! Só por Deus! A primeira: Eu só queria falar um pouco! A segunda: Não vai tirar?! Nojenta! Suja! A primeira: Eu queria dizer uma coisa importante A segunda: Eu tenho asco de você. Sua nojenta! A segunda tira uma Bíblia de trás do púlpito e começa a vasculhar o livro. Ela fica cada vez mais agressiva. A primeira começa a se afastar lentamente do seu púlpito. A segunda: Eu vou achar aqui o versículo com a ordem de Deus! Eu vou achar! Eu tenho nojo de gente igual você, sua porca! Vaca! Parece um urubu com esse negócio na cara e quer esfregar na minha frente! Balançando pra lá e pra cá esse treco horroroso, como se fosse um pêndulo. O que você acha que vai conseguir de mim, hein? Fala, sua pervertida! Salafrária! Eu tenho horror a gente como você, eu tenho pavor, eu tenho pesadelos com gente como você, eu tenho urticária, eu tenho alergia a gente igual você! Sua imunda! Boca de bueiro! Pássaro infernal! Amontoado de carne de quinta! PECADORA! Blackout. Microfonia.


BERNARDA COLETIVA - 2024 Tem uma batata na geladeira Sol Felix Amor, tem uma batata na geladeira. Não, meu bem. Comprei mamão anteontem. Eu sei, mas ainda tem batata. Vamos almoçar na sua mãe e depois vamos ao parque. Amanhã. Amanhã. Sim. É sim. Tava lembrando quando senti sua mão na minha cintura. A primeira vez. Não lembro. Mas eu lembro da sua mão quente. Eu tava na dúvida se você também estava gostando de me tocar. Sua mão pousada sem pretensão na minha cintura. Enquanto me questionava sobre algumas coisas. Não sei como consegui responder. Queria que tudo isso fosse verdade e não apenas um sonho. Queria que tudo isso se repetisse. A descarga de dopamina. O coração acelerando. O tempo acabando. Minha boca tava seca e eu só pensava no seu beijo. Vou pegar a batata. Tira o mamão também. Toca minha cintura. Daquele jeito. Agora? É. Toca. Vem. Sente ainda?


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Chega mais perto. Você sente? Sinto. Me olha daquele jeito. Consegue? Quero café, mas o pó acabou. Me olha. Me beija. Me olha. Nunca entendi sua beleza diferente das outras. Sua beleza é diferente das outras. Eu sinto uma dor no peito quando você não me olha. É um amanhecer com cheiro de cidade e não de manhã. Aquele dia que toquei sua cintura. Escuta o som dessa xícara quentinha de chá. Foi o dia que senti algo além da pele do seu rosto quando te cumprimentava. Te perguntei o que você fazia nos dias tristes “Leio poemas de amor.” Me olha. Olho. Me come.


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Chora, Brasil! Paulo Ribeiro Neto Há um púlpito com microfone no centro do palco. Um homem muito bem vestido para em frente a ele e faz uma expressão solene. Respira fundo antes de começar. Porta-voz: É com imensa tristeza, que comunicamos hoje o falecimento do Deputado Hilário, carioca da gema do Rio de Janeiro. Deputado Hilário foi um homem que contribuiu muito para o país em seus seis mandatos na Câmara de Deputados. Foi dele a criação da edição especial e extremamente popular Selo Natureza nos Correios, com adesivos lindos de animais em homenagens ao jogo do bicho... (tosse) Desculpem, em homenagem à fauna e flora do nosso país. As circunstâncias da sua morte não podem… Com licença! Porta-voz vira de costas. Silêncio. Quando volta a ficar de frente, o Porta-Voz está com um adesivo de lágrima colado embaixo do seu olho esquerdo. Ele sorri para a plateia e, assim que se lembra que é um anúncio de morte, fica sério novamente. É constrangedor. Ele enfim retoma o seu discurso. Porta-voz: Onde eu estava? Ah sim, Deputado Hilário… As circunstâncias de sua morte não podem ser alvo de especulação barata pela mídia chinfrim que quer manchar a reputação de um homem de bem, mesmo depois de sua morte. Hilário era terrivelmente religioso! Se estava numa casa da luz vermelha, era para evangelizar as mulheres que ali trabalham, como confirmam fontes de sua igreja. Me desculpem, mais uma vez! Novamente, o porta-voz vira de costas. Silêncio. Quando vira de frente, o porta-voz está mais emocionado e com dois adesivos de lágrimas embaixo do olho esquerdo. Porta-voz: Em nome dos familiares e entes queridos de Deputado Hilário, venho transmitir o agradecimento pelas condolências. É solicitado ainda o direito à privacidade da família neste momento tão difícil! Não é justo que a morte do Deputado Hilário seja usada por seus rivais políticos para discutir temas que nada tem a ver com este momento solene e muito menos com a sua trajetória, como reforma agrária, taxação de grandes heranças, contas em paraísos fiscais, criptomoedas, apostas online, prostituição e aliciamento de mulheres, desmatamentos florestais em latifúndios do agronegócio, isenção de impostos à entidades religiosas, violência doméstica, tráfico de drogas, tráfico de órgãos, corrupção de bens, enriquecimento ilícito, alcoolismo, abandono parental, habeas corpus, condenação em última instância, compra de votos, venda de alimentos vencidos, embargos das autoridades sanitárias, deportação dos Estados Unidos, cidadania espanhola, passaporte falso, comprovante de vacina adulterado ou presentes de autocratas do Oriente Médio. Nova pausa, o porta-voz está ainda mais emocionado. Ele coloca óculos escuros e assoa seu nariz. Tenta retomar sua fala, não consegue. Tenta de novo. Porta-voz: Poucos sabem disso, mas o Deputado Hilário amava Monteiro Lobato! Sempre disse que o Quindim lembrava a sua falecida mãe! Infelizmente, a emoção não permite que eu recite agora o trecho que ele mais gostava, uma conversa linda entre a boneca Emília e o Visconde de Sabugosa, mas deixarei vocês com a bailarina mais famosa do nosso país,


BERNARDA COLETIVA - 2024 que foi apadrinhada pelo falecido, Poliana do Livramento, fazendo uma coreografia inspirada no Sítio do Picapau Amarelo, em homenagem ao nosso eterno deputado. Chora, Brasil! Poliana é uma idosa. Ela entra no palco vestida de bailarina, também de óculos escuros. Ela se posiciona com uma pose clássica, mas parece não saber dançar tão bem assim. É, ao que tudo indica, uma impostora. Porta-voz: Poliana, onde quer que seu padrinho esteja, ele estaria muito orgulhoso em ver o filho dele, que hoje é seu marido, seguindo os passos do pai e concorrendo às eleições legislativas. Porque a família, mais que os iates, que as mansões e que as contas off-shore, é o nosso bem mais precioso! O Porta-voz manda um beijo para o céu e bate três vezes no peito antes de sair de cena. A bailarina começa a coreografia inspirada no Sítio do Picapau Amarelo. Ela faz uma dança clássica, mas logo seus passos incorporam sinais obscenos: a idosa mostra os dedos do meio e faz bananas com seus braços para a plateia.


BERNARDA COLETIVA - 2024 Vendaval Sol Felix Monólogo. Uma mulher de preto do lado de um coroa de flores (?) Hoje é 31 de um mês qualquer com infinitos dias. Enterro hoje, por falta de forças, as nossas lembranças ao som daquela playlist. Te vejo na foto. Será que gosto de você ou era insana pela malícia dos seus olhos que (também) me comiam? Às vezes, quando te lembro, te amo em fantasia e escuto o roçar dos seus pelos na minha pele sem graça e o cochicho animado das cicatrizes com as tatuagens contando tudo sobre cada dor, cada um dos mistérios que eu via nos seus olhos enquanto me rasgavam. Sinto saudade de todos os seus corpos, todos eles. O corpo da batalha, o corpo do amor, o corpo da mulher. Saudade do seu corpo sóbrio, quando o entorpecente era eu, o green, o céu e a escuridão que você trazia no peito. A saudade é uma prisão que derreteu meus pés e invento desculpas para justificar a minha presença. Te amo e te dispenso. Seu gozo gemendo meu nome não é mais o meu poema favorito. Dói. E tenho vontade de gritar que te odeio. Te rejeito por me impedir de viver uma história de amor. Hoje dou rumo para essa história, oro em sussurro o seu nome, que só eu sei, debaixo desse teto grafitado de bolor e mofo, mais parece o céu nublado, quando nem tá frio ou calor, tudo cinza como uma TV preta e branca. Meu pai dizia que antes as TVs eram assim. Já imaginou um mundo sem telas? Essas manchas no teto? Um monte de nuvens carregadas de chuva, um anúncio do temporal que vem aí, com muito vento, raio e desmoronamento. Um vendaval no nosso quarto esquartejando de vez a nossa cama. Ainda te sinto gemendo o meu nome monossilábico. O momento da certeza que você pensava em mim. Entregue, nunca errava. Fecho os olhos e lembro da força da minha carne sobre a sua. Dos meus dedos que impediam o rompimento da barragem que havia no canto escuro e encantado em você. Obedecia a todos os seus pedidos em súplica.... “Vem! ”. Bebi todas as suas águas, principalmente o teu choro doloroso e bonito. Te abracei com o seu cheiro fresco nas minhas mãos ainda úmidas e o seu hálito de pinga e fumaça. Nosso amor era maresia, estéril. Etéreo como você. Ontem te vi na rua e sorri rápido para não perceber nas entrelinhas das rugas do meu rosto todo o ódio misturado com desejo e o amor consistente e encruado. Mas, hoje eu dou rumo para essa história. O que você não esperava, é que da minha carne submissa, surgiu uma feiticeira ardilosa e eu te amaldiçoo a balbuciar o meu nome monossilábico, curto, fácil, que desliza do fundo da língua e vai numa crescente rápida para o céu da boca até explodir pelos lábios como um orgasmo indomável.


BERNARDA COLETIVA - 2024 Ainda vou ouvir você gemendo meu nome. E saberei que é você trepando por aí, amaldiçoada, incompleta sem mim.


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