UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE BELAS ARTES – EBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
Quimeras Maquínicas Conexões entre arte e máquina
Elisabete de Almeida Esteves
Rio de Janeiro 2011
Elisabete de Almeida Esteves
Quimeras Maquínicas Conexões entre arte e máquina
Dissertação
de
Mestrado
apresentada
ao
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Dr. Milton Machado
Rio de Janeiro 2011
Elisabete de Almeida Esteves
Quimeras Maquínicas Conexões entre arte e máquina
Dissertação apresentada junto ao Programa de PósGraduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ, na área de concentração de Teoria e Experimentações da Arte - Linha de Pesquisa de Linguagens Visuais, como requisito final de obtenção do título de Mestre.
Orientador: ____________________________ Prof. Dr. Milton Machado - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Banca Examinadora: ____________________________ Prof. Dr. Tadeu Capistrano - Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________ Prof. Dr. Marcelo Campos - Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, _____________ de ______________ de 2011.
ESTEVES, Elisabete de Almeida Quimeras Maquínicas: Conexões entre arte e máquina / Elisabete de Almeida Esteves. Rio de Janeiro: PPGAV/UFRJ, 2011. ix, 180 f. : il. ; 31 cm. Orientador: Milton Machado. Dissertação de Mestrado. UFRJ, PPGAV, 2011. 1. Arte 2. Máquina 3. Crítica 4. Filosofia e Poesia - I. MACHADO, Milton II. UFRJ / PPGAV / EBA III. Título
À Yolanda Conceição de Almeida Esteves
Dedicatória Dedico essa dissertação à memória de Candido
Guilherme
Esteves,
e
aos
“celibatários” que, de um jeito ou de outro, me “aguardam”. A eles, meu afeto em mais alto grau: Milton Machado, Pedro Honório Oliveira, Frederico Carvalho, Ricardo Paes, Rodolfo de Athayde, Marcio Chaves, Charles Watson, Artur Esteves, e a todas as pessoas que direta ou indiretamente contribuíram na realização deste projeto: Luciano Vinhosa Simão, André Queiroz, Mônica Cruz, Francisco Costa, Pablo Gonçalez, Irene Grether, Antonio Caetano, Lisa Akerman, Carlos Murad, Cadu Costa, Wagner Tavares Malta, Marcia Stein, Fátima Alfredo, Conceição Aparecida Mendes Matheus.
RESUMO
A partir do cotejamento transversal e transdisciplinar dos conceitos da esquizoanálise de Deleuze e Guattari (inconsciente maquínico, máquinas desejantes e de guerra), da autopoiese de Maturana e Varela e de outras abordagens críticas de diferentes autores e artistas sobre as conexões entre arte e máquina (máquinas celibatárias), a autora disserta sobre as relações entre máquinas e seres humanos pautando suas digressões em diferentes acepções do termo máquina ao longo da história e sua função na arte até nossos dias. Mescla e hibridiza suas reminiscências infantis que a conduziram a experimentações próprias que acolhe como "quimeras maquínicas", relacionando-as a outras manifestações, com seus arcabouços conceituais, devires poéticos e patafísicos - apresentando as novas ideias e conceitos que pairam nessa contemporaneidade maquínica e pós-humana. Palavras-chave: arte, máquina, crítica, filosofia e poesia.
ABSTRACT
Comparing the concepts of Deleuze and Guattari's schizoanalysis (Machinic Unconscious, War and Desiring Machines), the Maturana and Varela's autopoiesis and from other criticism approaches of different authors and artists about connections between art and machine (bachelor machines), this dissertation approaches the relations between machines and human beings, shaping their discussions on different of machine conceptions during the History and their function into the art until our days. Mixing their childhood reminiscences that resulting to their own experiments called "machinical chimeras", relating they to others manifestations, with their conceptual basis, poetical and patafisic - presenting the new ideas and concepts that emerges into machinical contemporanity and pos-human. Keywords: art, machine, criticism, philosophy and poetry.
Sumário Pré-textos..................................................................................................................................10 Apontamentos e desapontamentos............................................................................................12 Capítulo I: Quimera e desejo...........................................................................................................14 O desejo é a máquina....................................................................................................17 A máquina é quimera e a quimera, maquínica..............................................................19 Curto-Circuito solipsista...............................................................................................25 Maquini-Cidade............................................................................................................32 Circuito de arte ............................................................................................................35 Sessão de cinema..........................................................................................................40 Capítulo II: Machinae Multae...........................................................................................................46 Antiguidade...................................................................................................................55 O indivíduo técnico.......................................................................................................61 Tudo que não invento é falso........................................................................................67 Phylum Maquínico........................................................................................................72 Diálogos........................................................................................................................73 Capítulo III: Máquina Zero................................................................................................................77 Mais do que com bicicleta:As abstratas........................................................................80 Bicicletas Dobráveis......................................................................................................87 Nômades........................................................................................................................96 Com quantas partes se faz uma quimera? ..................................................................102 Capítulo IV: Motum Continuum......................................................................................................107 Do exercício empírico.................................................................................................108
O exercício autômato.................................................................................................112 Hocus Pocus...............................................................................................................118 Arritmia patafísica......................................................................................................121 Ereções celibatárias....................................................................................................128 De voltas.....................................................................................................................131 Das celibatárias..........................................................................................................135 Vetores históricos.......................................................................................................150 Futurismos..................................................................................................................151 O quebra-mola exige a troca de marcha.............................................................154 Câmbio mecânico. A alta rotação do motor obriga a passagem da marcha.......159 Câmbio automático.............................................................................................164 Movimentum perpetum..............................................................................................169 Capítulo V: Máquina/Arte Arte/Máquina......................................................................................172 Quimeras....................................................................................................................173 Máquinas quiméricas neonatas...................................................................................176 Máquina de fumaça.............................................................................................177 Máquinas de abrir marias-sem-vergonha............................................................179 Máquinas autopoiéticas.......................................................................................182 Regras para reconhecer uma máquina quimérica.......................................................185 ANEXO A Desenhos esquemáticos das máquinas neonatas …...............................................................186 Referências …........................................................................................................................192
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PRÉ-TEXTOS
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá. Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam1. (Manoel de Barros)
Nem a oficina mais sofisticada de Steve Jobs, os laboratórios da NASA ou os Na'vihumanos híbridos em Pandora2, poderiam arranjar todas as partes de máquina, numa combinação única. Seria tolo tentar colocar sobre a mesa cirúrgica, ou levar a um especialista em anatomia, essas peças para acertar uma combinação afinada. Aqui não se trata de um quebra-cabeça possível. Sempre haverá uma falha, sempre uma peça que poderá ocupar um, dois ou três lugares de forma produtiva. Sempre haverá conjunções e disjunções possíveis que frustrariam qualquer confinamento de conceito. A complexidade se dá sempre com o “e” que não se reduz, de forma direta, às fórmulas políticas ou a qualquer captura similar. Sempre o escorregadio, sempre a pista de patinação percorrida por muitas diagonais, curvas, setas de direções e sentidos diversos. Falo isso porque sinto que o máximo que consegui aqui foi tatear, roçar em algum conceito dos autores que me apontaram possíveis direções especulares. Não poderia fazer, dessas combinações de escritos e conexões, uma cartilha. Um par de máquinas referenciadas nessa dissertação ou a combinação de uma delas com algum conceito trabalhado seria o suficiente para construir uma máquina dissertativa. Entre duas delas, poder-se-iam verificar múltiplas cadências. Assim, poderia ter escolhido apenas uma máquina e um conceito. No entanto, como poderia aproximar apenas duas unidades se falo do conteúdo maquínico? Para essa máquina desejante, se o homem de um livro só já não é o bastante, o que se dirá o de um amor só! A máquina quimérica que escrevo é autoreferencial, minha própria produção. Brota do meu desejo, da minha máquina abstrata, das linhas de fuga e rupturas que borbulham no interno e no externo, blocos de lembranças, atualizações, digressões. São produtos do 1
BARROS, Manoel de. A ciência pode classificar e nomear. Referência a “Avatar”, o filme épico americano de ficção científica de 2009, escrito e dirigido por James Cameron. Cf. http://vai.la/20o8.
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produzir – por isso tantas reminiscências, tanta memória, tanta novidade apreendida por momentos nômades. Essa é a máquina que opera aqui: motores que engendram outros, bielas, rebimbocas, escovas, placas comutadoras. Como ocorre no ato de pensar caracterizado pelo involuntário “pensamento que nasce do pensamento (…) engendrado na sua genitalidade” 3. Ora, a forma como o leitor pode fruir nessa dissertação, ela própria, fará parte da aventura perante o limbo. Um interstício, uma instância descontínua, intermediária, um ‘nem cá, nem lá’ que exprime o movediço e precário da existência. Talvez caiba observá-lo (o limbo) desprovido de patologia, paralisação, pecado ou inépcia. De algum modo é assim que se dá toda escritura, toda teoria sendo ficção. Quimera – Na mitologia grega, por exemplo, a Quimera era uma criatura que soprava fogo, representada como uma combinação de leão, cabra e serpente. Esculturas e pinturas de quimeras, desde a Grécia antiga até a Idade Média e os movimentos modernos de vanguarda, habitam os museus por todo o mundo. A.“quimera” refere-se a qualquer forma de vida imaginária feita de partes diferentes, em biologia, “quimera” é um termo técnico que representa organismos reais com células de dois ou mais genomas distintos 4.
Se é verdade que a "idéia se torna uma máquina que faz a arte” 5, eis aqui um exemplar.
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DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição, p. 217. Cf. http://vai.la/1V73. 5 SOL LEWITT. Paragraphs on Conceptual Art'. Artforum, June 1967. 4
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APONTAMENTOS E DESAPONTAMENTOS
O poema é antes de tudo um inutensílio. Hora de iniciar algum convém se vestir roupa de trapo. Há quem se jogue debaixo de carro nos primeiros instantes. Faz bem uma janela aberta uma veia aberta. Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema enquanto vida houver. Ninguém é pai de um poema sem morrer. 6 (Manoel de Barros)
É no limbo, é aí que me encontro, é aí que se avolumam miríades de tempos indefinidos, é aí onde atiro, deposito e acumulo coisas inúteis, onde lanço as tantas tentativas de escritura, tantas morosidades de falas, de narrativas, de elaboração de discursos que raramente me alcançam. É aí onde patino, onde cavo buracos e sou atravessada de vetores espaço-temporais, de forças abissais que me sacodem e arremessam longe. É aí onde solavancam minha meninice, a vontade de cientista, o silenciar das palavras, as dúvidas sobre as potências dos maquinismos, os arrepios, as contaminações, as incertezas. Onde habitam as ponderações que me encabulam, onde brotam hesitações e decisões espontâneas. Me desencontro aí, nesse limo pleno de nutrientes de ação e adormecimento, nesse habitat de tensões simultâneas e de aparente imobilidade. Onde minimamente algo acontece, opera, irriga, alimenta, cria, repete; onde conjugo verbos. Onde não há uma grande ação, mas uma irrigação, um vazamento mínimo, um corrimento, uma infiltração, um gotejamento. Aí, no movimento quase desprezível, no micro mundo, na vaga do sonho, nas falhas do micro perceptível, aí onde encontro a lupa, a lanterna que me auxiliam a visionar o detalhe de alguma teoria e também o bisturi e a agulha que me fazem penetrar a urdidura do tecido que constrói meus castelos lúdicos. Nesse quintal onde observo algumas das grandezas, das insignificâncias, matériasprimas com as quais teimo acreditar ser possível a construção de quimeras, é nele onde me ponho a ouvir o murmurar e os alaridos, as correntes e as contracorrentes, a perceber as tramas da matéria sutil e delicada de que é composto o caos. Às vezes temo, mas teimo em acreditar que a contaminação seja uma das melhores formas de traduzir uma ideia, elucidar ou lidar com um conceito que se julga incompreensível ou mesmo intraduzível. Acredito em transversalidades, em espécies de protuberâncias que se podem construir. Hipertextos que vão se ligando e formando uma cadeia infinita de 6
BARROS, Manoel de. In Arranjos para Assobio, Ed. Record, 1998, RJ.
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atravessamentos. Acredito em gerúndios, pequenos movimentos que se somam ao longo de uma trajetória, fichinhas que se depositam no fundo do pote, cumulus, somas de digressões que geram pontos de suspensão, separação e criação, movimentos de ilhas oceânicas e continentais7, devaneios, divagações, distanciamentos e aproximações, quase um tatear no escuro, de forma que não se tenha ao certo nem começo nem fim, mas um viés no qual se possa flutuar, um meio onde uma ideia possa maturar para em seguida ser sentida, percebida. Acredito mais em bricoleurs, em flâneurs de devaneios semieruditos, que constroem entendimentos a partir de volumes experimentados, de núcleos, de conjuntos de ideias. Mais em grupos de peças que operam no interior de uma máquina, engrenagens que funcionam numa dança de singularidades e coletividades, que geram ampliações de campos de conhecimento, do que num arrematador de ideias objetivo e determinado, que chega a conclusões sem sequer conseguir espreguiçar-se. Sigo, pois, sem nostalgias excessivas, por um grande número de digressões ou, se preferirem, saltos de associações, para apresentar os temas desta dissertação que guardam, entre si, ressonâncias, nem sempre muito diretamente percebidas, mas que, no conjunto, tomado o devido distanciamento, assumem alguma unidade.
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Cf. DELEUZE, Gilles. Causas e Razões das Ilhas Desertas. In: L’Île déserte et autres textes (1953-1974). Ed. preparada por David Lapoujade, Paris, Minuit, 2002. p. 50.
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I. QUIMERA E DESEJO
“Isto funciona por toda a parte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente. Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode. Mas que asneira ter dito o isto 8 . O que há por toda parte são máquinas, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligações e conexões. Uma máquina-órgão está ligada a uma máquina-origem: uma emite o fluxo que a outra corta. O seio é uma máquina de produzir leite e a boca uma máquina que se liga com ela. A boca do anoréxico hesita entre uma máquina de comer, uma máquina de falar, uma máquina de respirar (ataque de asma). É assim que todos somos bricoleurs9, cada um com as suas pequenas máquinas. Uma máquina-órgão para uma máquina-energia, e sempre fluxos e cortes.” 10 (DELEUZE, Gilles)
Arte e máquina representam mais um fluxo que um campo definido onde possam operar conceitos cuja fixidez busco questionar. Manter os conceitos mutáveis o bastante para que reverberem junto ao desfile de exemplares escolhidos entre tantas obras e artistas será meu esforço ao longo deste trabalho, ele próprio uma máquina, uma quimera, uma quimera maquínica. Este e os demais capítulos a seguir são núcleos com os quais construirei um dispositivo verborrágico e devem ser entendidos como partes que fazem a máquina dissertativa operar. Gostaria, para tanto, e num primeiro momento, de poder contar com a ajuda do dispositivo de Juan Esteban Fassio11. Talvez tal maquinismo pudesse me auxiliar a erguer essa máquina dissertativa, facilitar minha escrita ou introduzir uma forma exemplar de apresentação desse sortimento de informações de forma consistente e ainda com um tempero patafísico12. Talvez uma leitura mecânica desta dissertação já pudesse ser em si mesma uma 8
Ça no or. Em francês é possível fazer um jogo polissêmico entre o ça (isto) e o ça freudiano (id), jogo que é impossível manter em português. 9 Bricolage é uma palavra intraduzível em português e que designa o aproveitamento de coisas usadas, partidas, ou cuja utilização se modifica adaptando-as a outras funções. 10 DELEUZE, Gilles. O Anti Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, p.53. 11 apud CORTÁZAR, Julio. De otra máquina célibe. In: La vuelta al dia en ochenta mundos, (1967) Siglo XXI, p.53-54. Juan Esteban Fassio, artista argentino citado por Cortázar nesta obra, inventou uma máquina para ler as Impressions Nouvelles d'Afrique, e também criou outra máquina para a leitura de Rayuela. 12 A Patafísica, criada pelo dramaturgo francês Alfred Jarry, nasce dos discursos formados no cerne da ideologia de uma cultura sob a possibilidade de riscos e aventuras do pensamento. Os corpos ficam à deriva, em estados de delírio, divagação e êxtase e não mais em estado de exercer a própria razão. busca não a verdade da obra, mas a suspensão imagética que leva o óbvio ao obtuso. A idéia central da Patafísica é a consideração de que as leis gerais da física são um conjunto de exceções não excepcionais e, conseqüência disso, sem nenhum interesse. Deleuze, sobretudo em Critique et clinique et L’Île Déserte, desenvolve a idéia de que ao criar a patafísica, Jarry
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obra autoexplicativa, uma DISSERTOMATIC, ou ainda QUIMEROMATIC de seções variadas, de notas, fantasias e teorizações, com direito a esboços de construção e manual de instruções como em “Les nouvelles impressions d’Afrique, reading machine” de Fassio, que reproduzo a seguir:
Figura 1- Desenho de Juan Esteban Fassio, máquina de leitura de Novas Impressões da África ,1964 que sugere a ideia de seu funcionamento
Sucede que, infelizmente e por ora, uma tal solução segue inatingível, de modo que terei de buscar outras formas de atingir fluidez e contorno no texto. Assim sendo, seguirei na presença de blocos recorrentes de infância que reinauguram o movimento do universo das máquinas que vivi, empreenderei um rápido olhar sobre a cidade onde se vê, aos poucos, a inserção da máquina na vida cotidiana e me deterei, neste capítulo, a apresentar por que o conceito de “máquinas desejantes” se presta a falar de máquinas artísticas, ou daquelas que denomino quimeras. Apontarei os conceitos e o regime com os quais trabalharei os exemplos de máquinas artísticas, fazendo um curto passeio por uma primeira máquina na arte, seguido de uma breve incursão pelo cinema. Considero essencial o aditivo presente nas epígrafes dos capítulos, também ele combustível desta minha máquina desejante, combustível poético de toda essa maquinaria. Manoel de Barros, que me ajuda com seu tempero, com seu jeito de desver as coisas, de fruir na falta de rumo do vento, no descontrole a céu aberto, deve ser uma chave essencial para virar a engrenagem dessa máquina que se apresenta “incompleta” como ele mesmo considera o homem. abriu caminho para a fenomenologia.
16 A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas 13. (Manoel de Barros)
Outro ponto a destacar aqui é um certo olhar esquizoanalítico14 que tentarei lançar sobre o objeto deste trabalho. Mais uma vez afirmo que é no conjunto, no todo, que deve ser compreendido o texto. Solicito ao usuário desta máquina, porém, que tenha sempre aberto o caminho à inflexão poética que pode, por vezes, afastar o rigor acadêmico, mas que certamente não o abandonará totalmente, sobre ele retornará e, espero, marcará diferença. No capítulo dois, tratarei de elencar alguns dos conceitos pelos quais já passou o termo máquina, de modo a, pela diversidade, tornar seu entendimento mais maleável. De posse de uma concepção menos pragmática do vocábulo máquina, mesmo sem mergulhar profundamente nas teorizações do léxico, acredito que talvez consiga ampliar suas funções e qualidades e assim poder apresentar a máquina como uma composição entre meios que se apoiam mutuamente, o que ajudará a entender o tipo de máquina artística que abordarei nos capítulos três e quatro. Para isso, lançarei mão de alguns pensadores como Gilbert Simondon, de quem tomarei os conceitos de individuação e transdução que podem ser elucidativos para a observação mais detalhada dos objetos técnicos e maquinarias artísticas; Humberto Maturana e Francisco Varela, de quem aproveitarei o conceito de autopoiése; e Gilles Deleuze e Felix Guattari, a quem pedirei emprestado o olhar esquizoanalítico a que já me referi acima. Todos esses conceitos contribuem para o mosaico que compus com minhas leituras, e que, espero, formem um quadro, ainda que precário – uma máquina que trabalha avariada. O tema a ser destacado no capítulo terceiro é a bicicleta. Nele, remonto momentos pessoais com essa máquina, comento algumas obras que incluem a bicicleta e apresento
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BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. p. 79 Esquizoanálise é uma concepção da realidade em todas as suas superfícies, processos e entes, e também nas suas individuações inventivas como acontecimentos-devires. Para esta concepção, a produção, o registro e o desejo revolucionários são imanentes e produtores de toda a realidade. Consiste em uma leitura da realidade, tanto natural quanto social, subjetiva e industrial-tecnológica.
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proposições que aproximam esse veículo da noção de quimera maquínica e/ou desejante por excelência. No capítulo, quatro são mostrados, através de passagens históricas, e transhistóricas, alguns exemplos de máquinas artísticas que prezam características que denomino quiméricas. Farei um pequeno prelúdio na tentativa de apresentar as forças que fizeram surgir, com a máquina, ligações, ações, reações, que atendem pelas categorias de burlesco, lúdico, delirante e celibatário. A união de universos dispersos que, uma vez estrategicamente combinados, transformam-se num germe produtor de informação nova, transmissor de produto diferencial – tema da última parte –, é o produto que restará desta produção. Para concluir o trabalho ao lado de teóricos como Vilém Flusser, Gilles Deleuze e Richard Sennett, vislumbro caminhos para a arte que lida com maquinismos. Ao brincar com pedaços disponíveis de informação provenientes de lugares díspares – que, depois de entrarem em contato entre si, promovem um novo diálogo, geram o imprevisto, uma nova informação, tatibitates, impensados cochichos, arfar de pensamentos –, construo pequenas máquinas. Nesse último capítulo, apresentarei alguns exemplos de trabalhos pessoais que, de certa forma, exemplificam também a proposta em jogo. Advertido o usuário sobre tal dispositivo, passo à primeira tarefa de definir o que vem a ser o problema investigado
O DESEJO É A MÁQUINA
De modo geral, o que fundamenta a escolha dos trabalhos artísticos que serão abordados neste e nos capítulos subsequentes é o fato de serem máquinas ou partes de “máquinas desejantes”, que encontram também na arte sua residência. O que significa dizer que tudo é máquina? Dentre as muitas formas de entender o que representa uma máquina neste contexto amplo e que serão abordadas no capítulo dois, podese dizer, de modo abrangente, que se trata de uma combinação de corpos resistentes, arranjados de tal modo que, por meio deles, forças mecânicas são compelidas a trabalhar acompanhadas de movimentos determinados. O conceito de máquina, assim como o de desejante, permite estender ao maquínico uma grande rede de conexões que abarcaria até
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mesmo o universo, pois sugere o dinamismo e a potencialização presentes inclusive na molécula. Se, para algo ser considerado máquina, é preciso que se esteja em meio a uma relação de forças que derivam e são derivadas de ações; se a energia trocada entre as partes de uma máquina e as relações estabelecidas entre elas são elementos constitutivos de uma máquina – o que abrange muitas processualidades –, pode-se afirmar, a seguir, que tudo é máquina. Uma vez que o “Todo”, constituído de moléculas que até em repouso se movimentam, implicando necessariamente alterações, modificações e mudanças de energia, segue ele mesmo, o “Todo”, sendo desejante, maquínico, conforme veremos a seguir. Por máquina desejante refiro-me à ideia de Deleuze e Guattari apresentada na citação inicial deste capítulo, aquela que concebe o desejo ligado ao produzir e não à falta. Essa noção diz respeito à redefinição do conceito de desejo que concebe o inconsciente envolvido com produtividades múltiplas, um inconsciente maquínico15. Deleuze acusava a psicanálise "[...] de não compreender o que é o delírio, porque não compreende que o delírio é o investimento de um campo social tomado em toda a sua extensão; e de não compreender o que é o desejo, porque não vê que o inconsciente é uma fábrica e não uma cena de teatro” 16.
O desejo, digo agora, o produzir, nesse caso, pode ser comparado ao de uma usina onde acontecem diversos tipos de intercâmbios com forças exteriores. Forças do mundo, indissociáveis da conjuntura social. O produzir ligado ao acidental, incidental, ocasional, catastrófico, turbulento. Nesse caso, máquina composta de fluxos contínuos de produção de informações e sentidos múltiplos. Em outras palavras, desejo maquínico, máquinas abertas, cujo funcionamento interno escapa a uma classificação específica, já que lidam com e são compostas de peças heterogêneas sempre em dinâmica, sempre em conexões de acordo com suas relações internas e externas. A noção de maquínico convoca à cena o sentido molecular e não mecânico. 15
Inconsciente maquínico é um conceito de Deleuze-Guattari (O anti-Édipo de 1972) segundo o qual o inconsciente, diferentemente da concepção freudiana, é produtivo - e o que ele produz, acima de tudo, é o real em sua multiplicidade. O inconsciente é, ele próprio, “máquina de máquinas” (a) e, ainda segundo esses autores, há dois tipos de máquinas, as desejantes e as sociais - que não se oporiam por diferirem apenas em seus regimes de funcionamento, já que "a produção social é simplesmente a produção desejante em determinadas condições"(b). (DELEUZE, G., GUATTARI, F. O anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Lisboa: Assírio e Alvim, s/d. páginas 7 (a) e 27 (b) respectivamente) 16 DELEUZE, Gilles, L’Île déserte et autres textes ed. preparada por David Lapoujade, Paris: Minuit, 2002, p. 306
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Implica pensar a vida a partir de seu caráter processual, de alterações contínuas. Formações que descrevem processos abertos com suas partes constituintes, que mantêm o potencial de realizações múltiplas, sem que operem obrigatoriamente através de uma estrutura sistêmica. O que se pode dizer delas é que talvez funcionem como uma ilha de edição, como sugeriu o poeta Waly Salomão a respeito do funcionamento da memória. Máquinas que conjugam nexos dos mais diversos, que atravessam memórias e tempos presentes. Em resumo, o ‘maquínico’ irá distinguir-se do sentido ordinário de máquina para indicar este âmbito infinito onde tudo que é engendrado, atravessado e operado pelo e a partir do desejo (produção) é máquina. Ou seja, maquínico diz respeito ao metabolismo interno dos aparelhos, seus meios microscópicos, que reúnem qualidades heterogêneas 17 em dinâmica e apresentam um infinito número de possibilidades de forças. Variações de relações que dizem respeito ao interior dos corpos, técnicos ou sociais, microcosmos com seus ritmos, pulsações, vibrações, esquizes, fluxos de cor, peso, forma, movimento, força, sentido.
A MÁQUINA É QUIMERA E A QUIMERA, MAQUÍNICA
Fundo aqui um sentido que reúne a integração dos termos máquina, quimeras e maquínico. O uso dos atributos maquínico e quimérico são correspondentes. “Quimera Maquínica”, o objeto, a coisa, é quimera adjetivada como maquínica, cujo sentido é referendado acima, e “Máquina quimérica”, a máquina adjetivada como quimérica, como híbrida, fusão de vários. Os termos trabalham aqui em sentido biunívoco, complementam-se. As máquinas artísticas são desejantes, pois exprimem esse desejo que se constitui não pela falta, mas pela produção que produz atualizações constantes. Em alquimia ou na mitologia, quimera18 é um ser artificial, criado a partir da fusão de animais. Por derivação de sentido, alude a qualquer composição fantástica, absurda ou 17
GUATTARI, F. O Inconsciente Maquínico - Ensaios de Esquizoanálise. Campinas: Papirus, 1988 “Cabra-leão do Inconsciente Belle Époque: horizontes quiméricos para as artes da vida futura; plantas compostas a partir de tecidos de relevantes genótipos diferentes, ou (...) rizoma orgânico, como emblema paradigmático dos inconscientes maquínicos-futuristas-construtivistas. E por isso, sem medo, as áreas confusas de sentido e non-sense: longos peixes prateados... A esquizoanálise se apropria de todas essas acepções do termo. Portanto, mais do que a teoria padrão obrigatória. Cartografias de eventos e circunstâncias; estados dos lugares do possível e do virtual. Teoria-quimera para a meta-modelagem de singularidades e processos não fundamentalmente modeláveis." GUATTARI, Félix (Texto de apresentação para o n. 1 da revista Chimère Disponível em http://vai.la/21X2). Tradução livre.
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monstruosa, constituída de elementos incongruentes ou disparatados. Aqui, quando me referir a quimeras será preciso entendê-las como criaturas mistas – como são as representadas pela combinação do leão, da serpente –, entendê-las tanto pelo aspecto fantástico como no sentido de sonho, da fantasia que conjuga também o lúdico, o mágico e o movimento da imaginação. Nesse caso, porém, não mais personagens ficcionais e imaginários, mas criações a partir de organismos reais, com “células” de duas ou mais máquinas que saltam da lenda para inaugurar territórios. Combinações improváveis, invenções que brotam da tentativa de semear poesia, de lançar pequenas faíscas ao relento, lumen de vaga-lume. Também não são gadgets, aproximam-se mais de “torções” mecânicas, junção de coisas deixadas de lado. Versam sobre o brincar de encostar uma membrana em outra, de tangenciar micro mundos distintos e gerar miniaturas brincantes e extraterrestres. Não são produtos do acaso ou da inspiração de ordem divina, mas do deliberadamente escolhido para formar uma combinação improvável numa ação dirigida e estratégica que funda DNAs imprevisíveis. Se montam e desmontam no encontro de funções e rearranjos disfuncionais, da física quântica, da engenharia reversa19, da biologia, da eletrônica. Deve parecer claro, então, que tipo de conexão existe entre quimeras maquínicas e máquina desejante e onde se cruzam essas ideias. Ora, para além do fato de que as quimeras maquínicas encontram-se mais no âmbito artístico e que abrem horizontes de emparelhamento com as quimeras na biologia e na mitologia, elas operam de forma semelhante. Na qualidade de desejantes, o fazem maquinicamente e por contágios, não mecanicamente, no sentido trivial. Isto é, não obedecem a um sistema de relações progressivas, de causalidades necessárias, automáticas e previsíveis entre termos dependentes, mas funcionam por meio de um conjunto de "vizinhanças" entre termos heterogêneos independentes20, dos quais fazem parte o homem, ferramentas, coisas e os animais. Essas máquinas têm por peça tudo que as atravessa; o homem, o meio social no qual está inserido e os variados tipos de fluxo que entram em conjunção. Adoto neste trabalho o termo Quimeras Maquínicas para referir-me a um tipo de trabalho artístico específico. Em geral imprevisíveis e temperamentais, rejeitam a produção 19
É o processo de análise de um artefato (um aparelho, um componente elétrico, um programa de computador, etc.) e dos detalhes de seu funcionamento, geralmente com a intenção de construir um novo aparelho ou programa que faça a mesma coisa sem realmente copiar alguma coisa do original. Objetivamente a engenharia reversa consiste em, por exemplo, desmontar uma máquina para descobrir como ela funciona. Disponível em http://vai.la/21VC 20 DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire: Diálogos. Portugal: Relógio D´ Água, 1996. Trad. JGC p.127
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normalizada e apresentam aspectos conturbados. Muitas destas quimeras invocam, além do desarranjo, a circularidade, o mito de Sísifo, a mágica, o truque, o riso e o divertimento. Houve quem as chamasse de celibatárias, como Michel de Certeau, Michel Carrouges que será referido no capítulo quatro. Há quem goste de ser uma delas, e pode-se até pensar que foi o que se deu com Andy Warhol, quando afirma: “A razão de eu estar pintando dessa forma é porque eu quero ser como um máquina e sentir que o que quer que eu faça e faça como um máquina é o que eu quero fazer”21. Houve, também, quem, como Tatlin, almejasse para elas vida longa, com a crença de que, através do processo técnico, mecânico ou randômico, a arte pudesse ainda ter uma sobrevida, já que para alguns ela parecia estar morta. E, de certa forma, houve ainda quem as eternizasse não só no “Grande Vidro”, mas em toda sua produção como foi o caso de Marcel Duchamp. Muitas das quimeras são compostas de máquinas técnicas que operam de forma mecânica, mas na verdade seu funcionamento é maquínico como o do desejo. Criadas para funcionar a partir de determinações que geram indeterminações de movimento, essas máquinas lúdicas produzem repetição. Não aquela da máquina que reproduz peças homogêneas ou funciona destinada à obtenção de resultados previsíveis, mas repetições de diferenças. É como se essas máquinas “esquecessem” quase instantaneamente o produzido e se lançassem a novas produções subsequentes, uma vez que seu objetivo é o próprio produzir. O conceito de “máquinas desejantes” de Deleuze-Guattari, que aparece expresso n’ O anti-Édipo, mais tarde revisto, irá ceder lugar aos conceitos de ‘agenciamento’ e ‘máquinas abstratas’ presentes em Mil Platôs. Os termos se equivalem, se explicam e se adicionam. Logo, faz-se necessário também introduzir, sucintamente, o conceito de agenciamento para entender as quimeras aqui convocadas. Deleuze chama de agenciamento a uma dada associação realizada entre partes e extrapartes, que são os componentes das máquinas. Uma região onde, pelo menos, entre dois termos, algo acontece. Núpcias, implicações, encontro de diferentes onde haja uma produção entre os dois, um sistema vivo e mutável com capacidade de fazer circular, força capaz de articular um processo que implica saídas e reingressos de territórios, novas possibilidades de vidas. Uma produção de enunciados em nós e fora de nós – nas palavras de Gilles Deleuze, o co-funcionamento, a “simpatia”, a simbiose22. “Um roubo
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SWENSON, G.R.. "What is Pop Art?," Art News, November, 1963. DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire:: Diálogos. Portugal, Relógio D´ Água, 1996. Trad. JGC.p.69.
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autorizado onde o que foi roubado passa a pertencer simultaneamente a dois, sem que haja plágio ou cópia. Um jogo duplo, uma dupla captura, o fora e o entre” 23 “A vespa e a orquídea são o exemplo. A orquídea parece formar uma imagem de vespa, mas, na verdade, há um devir-vespa da orquídea, um devir-orquídea da vespa, uma dupla captura pois “o que” cada um se torna não muda menos do que “aquele” que se torna. A vespa torna-se parte do aparelho reprodutor da orquídea, ao mesmo tempo em que a orquídea torna-se órgão sexual para a vespa.” 24
O agenciamento será melhor comentado no capítulo três onde, além de investigar algumas acepções do termo máquina, investigo o quão quimérica-desejante a máquinabicicleta na arte pode ser na arte. Dentro do âmbito que importa a este trabalho, o emprego deste e de outros conceitos deleuzianos servem, nesta discreta seleção que torno repertório, para balizar uma reflexão sobre o que faz do desejo-máquina uma quimera maquínica, uma quimera que é desejo e que se torna "máquina abstrata". As máquinas abstratas não são representações, nem figurações. Reais embora não concretas, atuais ainda que não efetuadas; por isso, máquinas abstratas 25. Pode-se através de trabalhos de Francis Picabia (1879-1953) ter melhor ideia a respeito delas. Picabia realiza a partir da experiência americana na exposição “Armory Show”, de 1913, em Nova York, pinturas e desenhos com morfologias de peças de máquinas nada funcionais como “Fille née sans mère” (1916-17). Nesse quadro, o próprio título, constituinte linguístico da máquina, instala uma estranheza, um caráter miraculante, uma abstração: imaginar a filha nascida de um pai apenas, ele mesmo, Picabia. A mãe, presente no título, é inexistente para a filha; o pai, ausente do título, é o criador que faz nascer a filha à imagem e semelhança da máquina. Ao dispensar a figura da mãe, pode-se pensar na eliminação de Édipo. Isto é, a triangulação é marcada, mas é inexistente, dado que Picabia apesar de configurar a mãe no título do trabalho deixa de apresentá-la. Eliminar Édipo é eliminar o desejo como falta e inseri-lo no âmbito do desejo como produção, como faz a esquizoanálise. O criador prescinde da progenitora, libera o temor e o desejo de morte em relação ao pai, e com isso descarta conflitos de ordem psicanalítica, onde se sobrepõem a castração, o narcisismo e a falta, fato que libera a máquina, ou a filha, para todas as conexões, sexuais ou 23
op. cit. p.3. Idem. 25 DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo : Ed. 34, 1997. p.228 24
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não, possíveis. Não fossem suficientes esses vetores de força linguísticos, que também remetem à sexualidade, em ação que fazem sacudir a máquina, há na imagem ainda outros estranhamentos. A filha apresenta, no lugar do rosto, eixos, pistões e alavancas saídos do universo mecânico das máquinas técnicas. Picabia introduz uma imagem que em nada se assemelha à de uma figura humana, onde nem a máquina é objecto representado, nem o seu desenho é representação 26, e faz funcionar o conjunto do quadro como abstração pura. A máquina, no lugar da imagem humana, roça suas membranas oleosas numa metonímia, aproxima peças de motor a vapor, biela, eixo, haste de comando, êmbolo, à ideia de um corpo de mulher. Pode-se especular que há calor sendo produzido para gerar algum tipo de deslocamento ao se imaginar, por exemplo, o êmbolo que desliza no movimento de vaivém no interior do cilindro, que se assemelharia ao arfar ou ao ato sexual.
Figura 2 - “Fille née sans mère” (1916-17) Guache e tinta metálica sobre papel. 50X65cm (Francis Picabia)
A imagem apresentada sobre a tela também pode sugerir que o homem, substituído por uma máquina, desconhece sua proveniência e se encontra camuflado no mesmo registro das máquinas. Pode-se considerar ainda que a substituição jocosa confere à atividade humana um caráter mecânico e ignora as diferenças que versam sobre a maneira particular pela qual o ser humano e a máquina podem se relacionar um com o outro, sem que se pense em 26
DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago,1976 p.409
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substituições. Abstrato e quimérico, esse jogo funde aspectos humanos às máquinas num único ser que aponta uma união de diversos. A trama tanto decorre e recorre às peças que são exteriores às máquinas (como aspectos sexuais, sociais e psicológicos já citados) quanto às peças que fazem parte da imagem maquinal do interior da tela. Aspectos que são partes dessa máquina desejante que tem como produto o próprio produzir de vários desdobramentos possíveis. A estetização da mecanização e a mecânica do sexo tanto foram tema em Picabia como em Marcel Duchamp. Ambos parecem ter percebido que ícones, feitos a partir de peças mecânicas, seriam acertados para comentar a atividade humana e atacar a natureza sexual. 27 “A noiva despida por seus celibatários, mesmo” (obra apelidada de “Grande Vidro”), de Marcel Duchamp, é outro exemplo de máquina abstrata. A respeito dela, e para facilitar o entendimento do conceito que trabalhará aqui, vale lembrar outro trecho, no qual os autores de Mil Platôs especificam a máquina abstrata: Cada máquina abstrata é um conjunto consolidado de matériasfunções (phylum e diagrama). Isto se vê claramente num “plano” tecnológico: um tal plano não é composto simplesmente por substâncias formadas, alumínio, plástico, fio elétrico, etc, nem por formas organizadoras, programa, protótipos, etc, mas por um conjunto de matérias não formadas que só apresentam graus de intensidade (resistência, condutibilidade, aquecimento, estiramento, velocidade ou retardamento, indução, transdução...), e funções diagramáticas que só apresentam equações diferenciais ou, mais geralmente, “tensores”.28
Desde o “Moedor de café” de 1911, as obras de Duchamp parecem habitar esse terreno abstrato onde o mecanismo humano, ligado às forças naturais, funciona como e assemelha-se a uma máquina sincronizada com vetores artificiais, criados pelo artista. Duchamp anima a máquina, mecaniza a alma. Entre esses efeitos contraproducentes, o movimento torna-se operação pura, sem objectivo ou consciência 29. Com “Grande Vidro”, Duchamp apresenta uma máquina complexa e abstrata; nem projeto, nem representação, mas um conjunto de formas e signos que interagem graus de
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Informações pesquisadas in Francis Picabia 1879-1953 (exhibition catalogue), National Galleries of Scotland Galerie Neuendorf Frankfurt am Main, 1988 28 DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo : Ed. 34, 1997.p. 227. 29 In “Marcel Duchamp, Anti-artist” série V, n. 1, março de 1945 Hultén, K. G. Pontus. The Machine as seen at the end of the mechanical age. New York, Museum of Modern Art, 1968 p. 74.
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intensidades e funções contraproducentes que são descritas pelo artista em suas anotações na “Caixa Verde”, porém não encontradas nem pela observação, nem por seu funcionamento real. Essa máquina, desde a sua gênese, plena de destruições e remontagens, procede, como as desejantes, por cortes e fluxo. Isso se demonstra tanto na sua realização, que seguiu por desistências e retornos de 1912 até 1923, quanto pelo fato de ela ter sido constantemente reformulada e reinterpretada. O “Grande Vidro” apresenta muitos elementos dinâmicos: o vidro que serve de suporte à obra, através do qual se pode perceber o movimento real, as relações entre as formas, espelhamentos e reflexos que se alteram constantemente conforme os deslocamentos do público; as formas visuais, a máquina de chocolate, a noiva que, para Duchamp, era praticamente um motor, um carro que sobe e desce a ladeira em marcha lenta e os nove celibatários submissos e à espera da noiva, e que, identificáveis isoladamente, constituem peças da engrenagem maior; as múltiplas interpretações que podem ser feitas a partir de seu manual de instruções (Caixa Verde). Todos esses são aspectos, sobre o qual têm se debruçado muitos especialistas que não param de interpretá-los e alterá-los, oferecem um funcionamento maquínico incessante. As funções e identidades das diferentes partes da máquina que compõem o “Grande Vidro”, são peças plenas de ambiguidades e trocadilhos e serão comentadas quando, no capítulo quatro, forem mencionadas as “máquinas celibatárias”.
CURTO-CIRCUITO SOLIPSISTA
O "Grande Vidro", cujos desdobramentos e funcionamento podem ser apreendidos através dos comentários e orientações contidos na "Caixa Verde", serve a Certeau como metáfora para expressar que a escrita pode se liberar da linguagem e reinventá-la ficcional, hermética e ironicamente. As informações complementares e contraditórias funcionam como peça da própria máquina, são parte da engenharia e da matemática do trabalho que engendram componentes como peças do jogo de xadrez, em meio a capturas, prisões e saídas, num jogo de esconde-esconde que faz menção ao mecanismo do desejo sexual. Ao configurar estratégias linguísticas para o trabalho, Duchamp escapa das regras impostas pela arte, da qual a própria obra é fruto, seja pelo uso de materiais pouco comuns até aquele momento, caso do vidro, seja pelo estabelecimento, através da linguagem mecânico-erótica, das regras para
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acessar os aspectos visuais da noiva e seus celibatários . A proposta anunciada pelo jogo semântico do título acontece em nível abstrato e modifica os limites do objeto artístico. O observador, praticamente obrigado a admitir que "o rei está nu", só conseguirá acessar a obra ao se inscrever na contorção linguística proposta por ela, pelo delírio e pela hilaridade. “A noiva despida por seus celibatários, mesmo”, citado por Certeau no primeiro volume de A Invenção do Cotidiano, é exemplo de máquina que funciona pelo desejo de produção ao unir arte e seus interlocutores pelo absurdo da linguagem, Narram que não existe, para a escritura, nem entrada nem saída, mas somente o interminável jogo de suas fabricações, as quais Michel de Certeau chamou de ficções teóricas do outro impossível e da escritura entregue a seus próprios mecanismos ou a suas ereções solitárias. O texto escrito, fechado em si mesmo, perde referente que o autorizava; a utilidade expansionista se inverte em "estéril gratuidade" 31.
Na literatura, no teatro e nas artes plásticas, essas máquinas imaginárias operam a partir da linguagem e funcionam por desvios, consolidando o cenário das máquinas celibatárias, aquelas cujo funcionamento se resolve na produção de resíduos, de restos da sua própria destruição. Além dos citados por Certeau, muitos são os exemplos de máquinas abstratas e quiméricas na literatura – como a máquina cut-up, fragmentada e não linear, de inspiração jazzística, elaborada a partir de retalhos de variados textos e anotações de Burroughs, no romance Naked Lunch 32, ou como mulher-imagem-máquina que se desvenda ao longo do livro A invenção de Morel
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e que será aqui apresentada como um exemplo de
máquina literária. No romance A invenção de Morel um fugitivo, cujo nome se desconhece até o final do livro, se encontra numa ilha habitada por uma máquina. Uma máquina que grava e reproduz visualmente a realidade dos eventos que se deram em um período em que habitantes estiveram nessa ilha. No entanto, trata-se de uma máquina que reproduz as imagens captadas não apenas como luz projetada, mas quase como uma reencarnação de todas as fisicalidades 30
Seria excessivo e impossível apresentar aqui as minúcias do trabalho em questão. Gerações de historiadores têm escrutinado, reinterpretado as anotações contidas na “Caixa Verde” a respeito do “Grande Vidro”. Sobre ele muitos autores, críticos e livros poderiam ser citados. As referências usadas aqui foram pesquisadas em TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo: Cosac & Naify.p.11-24 31 CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 245. 32 Romance escrito por William Burroughs e também filme de 1991 dirigido por David Cronenberg. 33 BIOY-CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. Trad. Vera Neves Pedroso. Prólogo.Jorge Luis Borges.Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
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envolvidas nos eventos transcorridos quando de sua gravação. O que inclui texturas, cheiros, sons, pesos e acompanha gestos, atitudes, conversas, discussões de cada minúcia dos eventos, reproduzidos de tempos em tempos. A regularidade das projeções era ditada pelas marés altas. A partir do depoimento gravado de Morel, também gravado pela máquina, o narrador descobre que a gravação registra uma semana da vida dos visitantes da ilha, e que a máquina foi projetada para funcionar ininterruptamente. Por seu criador não ter compreendido as variações das marés ao longo do ano, a máquina passou a funcionar erradamente. A presença dos visitantes em todos os seus desdobramentos – atitudes e objetos em cena – durante sua estada na ilha é projetada de forma intermitente; quando baixa a maré, a máquina para de funcionar. Na tentativa de reprodução das cenas vividas, Morel imortaliza momentos e corpos, que, no entanto, não interagem, não são vivos, mas personificados. A máquina de Morel produz simulacros através de seus componentes, entre os quais espelhos, e engendra também a morte, dado que, depois de alguns dias de ter sua alma capturada pela máquina, o visitante da ilha acaba morrendo. Os personagens são vistos e não podem ver ninguém além daqueles que estiveram presentes na cena. O narrador vê, mas não pode ser visto pelos visitantes, não há diálogo ou intercâmbio dos personagens que vivenciam a cena com o narrador. O fato de o outro ser visto e ao mesmo tempo ser imaterial, inexistente, promove um rebatimento sobre quem vê. O que é visto de certa forma não é outra coisa senão quem vê, o que gera vetores que se dobram sobre si mesmos num ciclo improdutivo, celibatário. Visto que não há energia para se dar o intercâmbio entre as partes, a entropia aparece como resultante. Como última esperança de contato ou como forma de eternizar o amor que cultivou por Faustine, uma das visitantes da ilha por quem se apaixona, o narrador se insere numa das passagens gravadas e contracena com a amada. A despeito da falta de comunicação real com ela, o narrador assume o risco e opta pela captura da alma após a gravação, que lhe reserva a morte e a promessa de eternidade imagética, tanto sua quanto a de seu amor – ou, dito de outro modo, se torna imortal ao inserir a ficção dentro da ficção. Em regime parecido com a máquina do “Grande Vidro”, a de Morel parece singularizar o tipo de ficção que pretendo abordar com essas duas máquinas. Se fosse o caso, poder-se-ia traçar um paralelo entre Faustine e Marie como sendo as noivas que aguardam seus celibatários. Mais importante, porém, é entender que ambas as narrativas se constroem por rastros não capturáveis e emergem na incerteza e no desconforto diante do familiar. Não
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se consegue construir uma identidade, no sentido de uma entidade fixa, nem na noiva eternamente inacabada de Duchamp, nem nos personagens que vivem do funcionamento da máquina, em Casares. Tais máquinas, desejantes, se perdem e se constroem no esforço de recuperar a si mesmas. Pautadas por incongruências, pela impossibilidade da interpretação literal ou pela ideia de desconstrução que visa à liberação, são abstratas, artificiais, mas não fantasmáticas. Como bem afirma Borges, no prólogo do romance de Casares: “Nestas páginas, Adolfo Casares resolve com felicidade o problema talvez mais difícil. Desenvolve uma Odisséia de prodígios que não parecem admitir outra clave que não da alucinação ou do símbolo, decifra-os plenamente mediante um único postulado fantástico, mas não sobrenatural” 34.
Ao avaliar-se algum dos regimes sob o qual trabalham essas máquinas, pode-se apontar: a linguagem criptografada, interrompida, de difícil captura; a ironia, o divertimento, o dinamismo; certo aspecto lúdico e mágico. São também marginais, no sentido em que muitas vezes dissociam ação do entendimento ou pensamento, numa espécie de esquizofrenia, produzida pela quantidade e qualidade de forças, delírios persecutórios e alucinações que perpassam suas partes. Lembro, e aqui repito, as “máquinas desejantes” que constituem a vida não edipiana do inconsciente."35 Em outras palavras, nada do teatro edípico, apenas a fábrica, máquina social, a produzir seus sujeitos-resíduos. Deleuze nos diz que "Nas máquinas desejantes tudo funciona ao mesmo tempo, mas nos hiatos e nas rupturas, nas panes e nas falhas, nas intermitências e nos curtos-circuitos, nas distâncias e nos despedaçamentos, numa soma que nunca reúne suas partes em um todo” 36.
Zourabichvili é quem destrincha o conceito e explica a aparentemente paradoxal afirmação de Deleuze de que as “máquinas desejantes” "só funcionam avariadas"37: “Esse paradoxo é apenas aparente se percebermos que aqui a palavra máquina não é uma metáfora. Com efeito, o sentido corrente da palavra resulta de uma abstração pela qual se isola a máquina técnica das condições de seu surgimento e de seu fun34
BORGES, Jorge Luis. Prólogo. In: BIOY-CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. Trad. Vera Neves Pedroso. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 9. 35 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago,1976. p.468 36 Op.cit p.50. 37 Op. cit p.38-39.
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cionamento (homens, eventualmente animais, tipo de sociedade ou de economia etc.). A máquina é portanto social antes de ser técnica, ignora a distinção entre sua produção e seu funcionamento, e não se confunde de forma alguma com um mecanismo fechado” 38.
Para concluir a série de exemplos que tenta esclarecer o que chamo de quimeras maquínicas que se vinculam à noção de máquinas desejantes, trago Jean Tinguely, construtor de máquinas que alinham estruturas sem funções individuais com outras que lhes dão sentido e direção de funcionamento. Em Rotozazas, 1967, Tinguely apresenta escultura ou instalação composta de uma série de engrenagens que parecem proceder de universos díspares e operam com propósito duvidoso: rodas dos mais diversos tamanhos, correias, peças de ferro em formato de cornos, foices e bolas de plástico são tão peças da máquina, como o jogador que interage com ela. As quebras de associações que existem entre os elementos se reconfiguram e justificam numa quimera. As membranas de ferro e plástico das peças se unem às mãos humanas que interagem com ela no ato de receber as bolas emitidas pela máquina e devolvêlas. A bola, produto feito para diversão da produção em massa, transforma-se em bala, não tão vinculada ao divertimento, dado que se poderia pensar em projéteis de arma de fogo, atirada pelo canhão-rotozaza, máquina-lúdica, máquina que dispara ao mesmo tempo em direção àqueles que a observam como lança projéteis de sátira contra a crescente industrialização e coloca em jogo - mercado, arte e ludicidade. Através de um processo cíclico no qual operam muitas dessas quimeras, também se podem observar Sísifos 39 em ação. Ao receber os tiros de bolas de plásticos, obrigados a alimentar a máquina com a própria bola que foi expulsa, os visitantes estabelecem um embate que une tanto o homem ludens, sujeito a muitas variações, como Sísifo, trabalhador inútil dos infernos que adquire nesse jogo um caráter de brincante. Também emparelham-se o homem faber e o homem social, e o próprio Tinguely como peça desse híbrido maquínico. Tinguely, ao ridicularizar, através da “anulação” de produtos supérfluos, questões que envolvem o lado racional e prático da produção em massa descontrolada, chama simultaneamente a atenção para a estética e para o fluxo de movimentos das máquinas artísticas.
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ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004 p. 35-36. Referência a Sísifo, que desafiou os deuses; quando capturado, sofreu uma punição: por toda a eternidade teria de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha; a pedra então rolaria e ele teria de recomeçar tudo. Ver em http://vai.la/22Kp
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Figura 3 - Rotozaza (1967) Métal, motor, Bolas de plástico Instalação no Museu de arte contemporanea de Marseille. (Jean Tinguely)
Pretendo, ao longo do trabalho, ampliar os exemplos de máquinas como os que apresentados até agora. O modo como alguns artistas travam diálogo com esses mecanismos, aparelhos e dispositivos – que vão das máquinas simples até as que recorrem à eletrônica e à robótica, da literalmente técnica à sutilmente cravada de movimentos maquínicos – será assunto principalmente do capítulo três, onde figurarão máquinas cujas particularidades se aproximam da produção que realizo. Acredito que, ao visitar esses trabalhos, possa especular sobre o espaço difuso em que se imiscuem até hoje arte e máquina. E, ainda, recorrendo a Vílem Flusser, confirmar se através da construção de dispositivos técnicos dialogantes os artistas realmente fazem vigorar a dupla máquina e arte como forma de expressão possível40. Esclarecidos alguns dos conceitos que irão nortear o trabalho, sigo de acordo com forças multidirecionais que me atravessam. *** Rememoro as pilhas de caixotes de madeira, que armazenavam as garrafas que chegavam e saíam da fábrica de água mineral onde trabalhava meu pai. Filas compassadas de sequências de garrafas, em geral marrom escuras e muitas vezes verdejantes, claríssimas, azul cobalto e cristal transparente eram suspensas sobre as esteiras que, ao girarem, faziam reluzir o caleidoscópio vítreo e horizontal. Seguiam esbarrando-se num movimento que provocava 40
Não me deterei muito sobre as máquinas high-tech, dado que meu interesse e produção atual se aproximam mais das máquinas simples, apesar do uso de partes eletrônicas e micros processadores.
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tilintares e estilhaços dos mais variados timbres, percorriam pequenos túneis, esteiras de aço, vielas que ora se abriam em mãos duplas, ora desembocavam numa espécie de rotunda até conseguirem alcançar o movimento dos carrosséis aquáticos dos quais despejavam jorros de água que lotavam garrafas e que depois de lacradas ainda haviam de vencer a distância para, finalmente, voltarem a trepidar nas boleias rotas dos caminhões. Desse universo guardo muitas lembranças de maquinarias: as que enchiam, as que tapavam, as que rotulavam, as que expulsavam, as que quebravam. E também cheiros: de óleo diesel, de graxa, de soda cáustica, e ruídos de barulho de motor de máquina, de caminhão ligado, de carrinho de empilhar rangendo. Era um ambiente de maquinarias que promoviam ritmos, melodias e enunciados, um território de coletividade de dança nos interiores e no espaço exterior dos mecanismos, dança no interior das peças encapadas por suas carapaças e carretilhas, pinças, pistões, no inframundo oleoso, que lubrifica minhas memórias e se atualiza no meu fazer. O que me move e comove, o que pulsa, expulsa e produz movimento que me arrebata? Que emoção me envolve quando, ao passar pelo cais do porto, assisto aos movimentos pré-históricos de guindastes oscilantes? Que perguntas me lançam a dança desses seres ancestrais? O que deseja cada parte desse esqueleto mecânico, esse títere e seu titereiro? Que performance é essa que admiro em tantos “burros-sem-rabo” que coleciono pelos caminhos da urbis e que ao mesmo tempo parecem sair de um quadro mecânico? Como me capturam esses seres suspensos entre moradores e circuladores, entre o engenho e a cidade, entre o empenho e a paixão, entre o folião e o ambulante, entre o extemporâneo e o oitocento, entre o banal e a subsistência! A cada um que fotografo, vejo paralisado um passo de dança, um intervalo, a cada alegoria circulante, móvel e intercambiável observo a marcha fúnebre e o samba da catação de cada item que subirá carrinho acima para desfilar sobre o asfalto que ouve o ranger das rodas e sente atrito de tantas temperaturas. Uma cavalo de força e seu cavaleiro, Dom Quixote e seu Rocinante. Bailadores das vias públicas, onde o olhar desloca-se em múltiplas direções, perspectivas e linguagens, e que trazem consigo resquícios que emergem do séc. XIX. Um personagem lançado diretamente de um tableau méchanique para colocar em cena uma memória amortecida pelos motores e olhos velozes. ***
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MAQUINI-CIDADE
Os parafusos aos poucos se despregam e soltam a tampa da parte de trás do quadro pendurado sobre a mesinha de cabeceira. Trata-se de um quadro mecânico. O clima é melancólico. No primeiro plano, vemos um homem solitário debruçado no peitoril de uma ponte. Seu olhar atravessa a extensa estrutura metálica instalada por toda ponte e paira sobre os trilhos do trem vistos de cima. Por instantes, se vê a fumaça do trem que acabara de passar. Talvez ele esteja observando a gare Saint-Lazare, ou apenas o movimento das locomotivas e dos comboios de qualquer outra estação de ferro em Paris. Do lado esquerdo da cena, passeia com ar displicente um homem elegante. Usa um casaco de tom cinza duplamente abotoado. À sua direita, uma mulher num vestido escuro, folgado, traz o chapéu e a sombrinha sobre a cabeça. Ambos parecem trajar costumes ditados pelos padrões da moda daquela época. Um cachorro passa pelo casal e segue em direção ao fundo do quadro. Ao longe, avistam-se alguns prédios, movimenta-se a urbe que parece frenética. Pode-se até supor que estão imersos na Paris do século dezenove. A fumaça se dissipa por todo o quadro e do seu interior “A figura do flâneur avança sobre a calçada de pedra como se ele fosse animado por um mecanismo de relojoaria” O passante é um personagem desse presépio, dessa pintura mecânica. Um autômato: “seu coração assume a cadência de um relógio”. 41
“O observador ambulante” e bem trajado sai do quadro, ganha mobilidade, segue passo a passo e a esmo. Seus olhos agora são plurais, tudo veem. Ele vagueia pelas ruas a observar as mercadorias dispostas nas vitrinas iluminadas dos magasins, dos bistrots. Anônimo, o cidadão do século dezenove, tomado pelo estranhamento urbano e pelo movimento liberto e adquirido, desloca-se em sua própria terra agigantada, como um estrangeiro, adaptando-se à modernidade emergente. Na Paris de 1889, onde já se avistava a torre Eiffel e tantas outras novidades, segue por luxuosos centros comerciais de mercadorias, galerias, cobertas de vidro, mármore e ferro, espanta-se com a “galeria das máquinas”, perambula pela construção metálica dos pavilhões da Exposição Internacional de Paris42. Admira-se a cada esquina. A sedução está no ar. As 41
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens Urbanas. São Paulo: Ed. SENAC, 1996. p. 84-85. Em 1851, na “Grande Exposição”, Paris celebra as maquinarias modernas e os produtos industriais, instalados numa gigantesca estufa projetada e construída por Joseph Paxton. Ali foram exibidos desde sofisticadas máquinas, objetos fabricados graças ao trabalho mecânico delas, até um robô conhecido pelo nome de seu criador “Homem de aço do conde de Dunin”. Tratava-se de um homem de metal que expandia suas dimensões, transformando-se em uma espécie de Golias, e voltava a sua escala normal. In.: SENNETT, Richard. O Artífice.
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novas máquinas oferecidas pela revolução industrial com seus ritmos cada vez mais velozes – as locomotivas, os carros, o telégrafo, o telefone, o gramofone, o fonógrafo, o microfone, a máquina de escrever, a máquina de contar, o radiômetro, a imprensa elétrica, a magnética – são motivos de impulsos de celebração, puro maravilhamento. As cidades assemelham-se a redes neuronais onde milhares de sinapses são disponíveis! São verdadeiras “máquinas urbanas” que emergem da industrialização capitalista. Sua diagramação revela um plano, como um esquema maquínico que viria atender à necessidade de concentração do humano em um pequeno espaço de produção. A modernidade da segunda metade do século dezenove baila por entre uma vasta rede de bulevares, galerias metropolitanas e feiras universais, como o sangue em artérias de um sistema circulatório urbano. No apreço por esses ambientes e pela nova cultura popular citadina, a modernidade demonstra o gosto pelo devir maquínico. Haussmann, prefeito da Paris de Napoleão, redesenha e reconstrói a máquina urbana, que passa a permitir o fluxo contínuo de grandes volumes de pessoas, universaliza e nivela a todos em uma cultura fundada em novas bases econômicas, sociais, estéticas. O flâneur caminha sobre o mundo que se transmuta sob seus pés. Transformam-se o mapa urbano, as relações com as cidades e entre as pessoas. Peça de movimento maquínico, incessante e munido de instinto especulativo, vasculha a cidade, encadeia visages observa silêncios, zigue-zagues, curvas ligeiras, momentos breves e extensos. Também ele, uma máquina que produz coreografias. Coreografia. Do grego khorus (círculo, das danças circulares e da orquestra, local onde o coro teatral grego dançava) e graphe (escrita, representação). O espaço percorrido é gravado pelo movimento corporal, quer seja de corpos orgânicos, mecânicos, elétricos, flexíveis ou rígidos. Reflito sobre a cidade hoje com seus semáforos, seu mapeamento agora ubíquo do Google, seus sistemas informatizados, todo o controle de tráfego, os GPS em tudo que se encontra em dinâmica produtiva, em tudo que se desloca, em como tudo produz forma. Coreografias que sugerem um nexo próprio, uma lógica de movimento43, que implicam deliberações, mas que lidam ao mesmo tempo com o caráter voluntário dos movimentos, que nem sempre são ditados por sua finalidade ou expressividade. Um conjunto de movimentos heterogêneos que não são mais do que momentos de respiros, diversões inesgotáveis,
Record, 2009.p.128. 43 GIL, José. Movimento Total. O Corpo e a Dança. Lisboa: Relógio d’Água, 200. p.67
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conversões, inversões que alteram o tempo. Bailes de solidões. Não aqueles baseados no virtuosismo técnico e coreográfico, mas sempre aqueles de muitos concertos e desconcertos, ainda que cada um, cada objeto, em sua solidão, possa ser vários, já que se trata de solidão complexa, povoada de imagens, sonhos, fantasmas, memórias, que criam multiplicidades ímpares, só e múltipla ao mesmo tempo, só na multiplicidade e múltipla sem formar massa, família, organograma, companhia de corpo de ballet. 44 Se dança quase sempre para estar junto e entre vários. Os corpos se aproximam um do outro, vão e vem sem ordem prévia, em volta e reviravoltas. Se roçam, se desejam, se divertem, se atam e desatam. Uma festa, uma variante de um cortejo sexual. 45
No salão principal das galerias das máquinas é Dionísio que baila, e com ele incita-se a cadência profana clamada pelo corpo e pela vitalidade. Aqui o cortejo é levado pelo entusiasmo, improviso e fruição. Assim são as máquinas citadinas onde o que impera é a expressão de êxtase dos elementos em dinâmica constante, e nela os carros, suas partes, as pessoas e seus organismos internos em fluxo constante, os motores a vapor, as combustões, as ligações hidráulicas, os mundos intersticiais dos mecanismos, os retalhos da minha colcha de patchwork, minhas asas do desejo, meus fetiches de fruição, movimento, a dança das estrelaspalito que se espreguiçam, os beijos-anelos-baforadas, e também as borboletas amarelas que ao sabor do vento descem o rio caudaloso onde operam pedras, pedaços de galhos, peixinhos, formas larvares e abissais... “E eu, que estou bem com a vida, creio que para saber de felicidade não há como as borboletas e as bolhas de sabão, e o que se lhes assemelhe entre os homens. Ver revolutear essas almas aladas e loucas, encantadoras e buliçosas, é o que arranca a Zaratustra lágrimas e canções. Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar. E quando vi o meu demônio, pareceu-me sério, grave, profundo e solene: era o espírito do pesadelo. Por ele caem todas as coisas. Não é com cólera, mas com riso que se mata. Adiante! Matemos o espírito do pesadelo! Eu aprendi a andar; por conseguinte corro. Eu aprendi a voar; por conseguinte não quero que me empurrem para mudar de sítio. Agora sou leve, agora voo; agora vejo por baixo de mim mesmo, agora salta em mim um Deus". 46
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DIDI-HUBERMAN, Georges. El bailador de soledades, Valencia: Pre-Textos, 2008. p.33 DIDI-HUBERMAN, Georges. op. cit. p.13 46 NIETZSCHE, Friederich W. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 9ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. MOURA, Carlos A. R. Nietzsche: civilização e cultura – São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.59-60 45
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CIRCUITO DE ARTE
Uma vez frente ao fascínio pelos seres moventes, pelas combinações e configurações que se dão entre o repouso e movimento, dessa qualquer coisa expressiva que escapa à linguagem, faço uma interrupção para observar o trabalho The way things go (Der Lauf der Dinge), 1987, dos artistas suíços Fischil and Weiss, que a meu ver incrementa e combina muitos dos aspectos apresentados como pertencentes ao universo das quimeras maquínicas. Destacarei nele a movimentação e a montagem, o precário e o caráter mágico do truque. No filme The way things go (Der Lauf der Dinge), 1987, funcionam muitas máquinas abstratas. São microquimeras e estão em movimento numa série de objetos heterogêneos promotores de eventos que não parecem querer outra coisa senão deslocar-se. Na projeção do filme, pareço assistir a experiências de “relojoeiros suíços” que conjugam habilidade com os esquemas de movimentos parecidos com os que Rube Goldberg (1883-1970) explora nos desenhos de seus engenhos. O roteiro que define o jeito como as coisas se dão na obra de Fischil and Weiss, procede em sequência encadeada de ações, que se percebem contínuas, como o cair de dominós enfileirados, que ao serem tocados acionam a ignição e desdobram-se de forma inevitável e improvável.
Figura 4 - Frames de “The way things go” (Fischil and Weiss)
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Episódios banais seguem um após o outro, numa espécie de organicidade de ações de aparente naturalidade. O saco de lixo gira e distorce a corda que o pendura. Ao girar cada vez mais rapidamente se aproxima do chão, toca um pneu posicionado abaixo dele. Com isso o pneu rola sobre o plano inclinado e bate em um elemento que lhe dá um empurrão e o faz deslocar-se. Na sequência de cem metros de ações que se contaminam por pequenas rupturas, os pneus são colocados em movimento, as garrafas derrubadas, líquidos derramados, coisas se inflamam, distorcem, explodem, giram e rolam sobre eixos excêntricos ao longo de uma trilha. Assim as coisas funcionam, de acordo com suas tendências naturais. O que sobe, derrama, o que derrama, espalha, o que acende, queima, o que é empurrado, desloca. No entanto, ao final de toda a sequência do filme surpreende o fato de que esses procedimentos que facilmente poderiam emperrar – não precisaria muito para se desorganizarem e o circuito ser interrompido – estejam milimetricamente vinculados ao acerto. Durante todo o percurso não há falhas. Todo movimento procede sem paragens até o final do filme. Algo suspenso entre realidade, ficção e fantasmagoria instaura o encantamento, mas provavelmente gerará algum tipo de desconfiança. Seria Deus o regente dessas justezas? Seriam elas mediadas por cálculos de engenharias mecânicas, químicas, físicas, com tanto rigor e previsibilidade que nada as tiraria de seu curso? Haveria alguma espécie de truque, corte, montagem, passe de mágica na dinâmica mecânica desses objetos moventes? Suspeito que as cenas, que se encadeiam nos quase trinta minutos de filme, sejam regidas por truques, tanto experiências como na montagem do filme. O truque talvez seja um dos eixos dessa “maquinaria”, e realmente não queira ser desvendado por ninguém. Como facilmente pode-se encontrar esse tipo de recurso nas quimeras maquínicas com as quais estou trabalhando, penso que seja razoável que esse trabalho seja comentado com um pouco mais de atenção. Para isso recorro à passagem inicial do filme O Grande Truque, dirigido por Christopher Nolan, que versa sobre mágica. Todo truque de mágica consiste de três partes ou atos. A primeira parte se chama “a promessa”. O mágico mostra alguma coisa comum: um maço de cartas, um pássaro, ou um homem. Ele mostra um objeto a vocês. Talvez peça que o inspecionem para ver se é de verdade. É. Inalterado, normal. Mas é claro, provavelmente não é. O segundo ato chama-se “a virada”. O mágico pega o objeto comum e o transforma numa coisa extraordinária. Agora vocês estão procurando o segredo, mas não vão encontrá-lo. Porque, é claro, vocês não estão realmente
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olhando. Vocês não querem realmente saber. Vocês querem ser enganados! Mas ainda não aplaudem, porque fazer uma coisa desaparecer não é o suficiente: Tem que trazer de volta. Por tudo isso, o truque mágico tem um terceiro ato. A parte mais difícil. A parte que chamamos de “O GRANDE TRUQUE” [...] 47.
O filme citado versa sobre o encontro e disputa entre dois mágicos, mas o que se percebe ao longo das cenas não é magia de verdade. Trata-se da história de dois mágicos geniais e seus engenheiros, com direito inclusive à presença de Nikola Tesla 48. O que parece estar em jogo tanto no filme do trabalho quanto na “performance” de Fischil and Weiss é talento, inteligência e obstinação. Os personagens envolvidos na trama, que apresenta lacunas e segredos, “vivem o truque”. Como na mágica, fantasia e realidade misturam-se. Aliás, como bem ilustra a citação acima, não se trata também, no trabalho dos suíços, de se descobrir o procedimento que usaram para que a trajetória fosse percorrida até o final. Não se trata da busca da verdade. Mesmo que seja razoável acreditar que para colocar em andamento contínuo essa dinâmica, nada improvisada, seja necessário a constante intervenção dos artistas, e que a montagem esconda os procedimentos reais do “curso das coisas”, prefere-se o fascínio. Em uma das passagens, latinhas de conservas, uma de cada lado de uma haste, presas a um eixo central, giram impulsionadas pelo vapor sobre uma garrafa de plástico e conferem à cena um clima que remete a um ambiente de ficção científica sem apuro ou refinamento, uma espécie de cenário de Blade Runner, onde fumaça e fogo ajudam a compor o clima ordinário, e nem por isso pouco encantador e mágico. 49 Os objetos precários e inanimados são brindados com movimentos inesperados e transformam-se em brinquedos: carrinhos que deslizam impulsionados por balão de gás ou que se deslocam velozmente acima de trilhos, colchão que se desdobra, rodas elípticas que se deslocam cambaleando. O interesse pela ilusão e pelo risível, a apreensão pelo próximo movimento, parecem se sobrepor à explicação de como tudo funciona. Esses personagens cômicos, em sua quase autonomia, movem-se envolvidos pela névoa das experiências, pelas brincadeiras com fogo, explosões químicas, fumaça e líquidos que escorrem dos suportes,
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Trecho do filme “O Grande Truque” dirigido por Christopher Nolan, 2006. TESLA, Nikola (Smiljan, Império Austríaco, 10 de Julho de 1856 — Nova Iorque, 7 de Janeiro de 1943) foi um inventor nos campos da engenharia mecânica e eletrotécnica, de etnia sérvia nascido na aldeia de Smiljan, Vojna Krajina, no território da atual Croácia. Disponível em http://vai.la/4Pa 49 Ver parte citada em http://vai.la/22zM 48
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aparentemente improvisados, que em conjunto trabalham as partes e garantem a atmosfera do desenvolver da sequência e o interesse de quem as assiste. Um dos momentos que considero mais risíveis se passa quando uma espécie de balança, que tem no centro um pequeno bonequinho, desce de uma haste e cai sobre um pedaço de madeira que aciona um par de sapatos muito velhos (pode-se até lembrar das botas de Van Gogh) que, unidos por um eixo, descem uma pequena rampa, andando à moda de Chaplin, para contaminar de movimento o próximo objeto. As muitas ações e elementos necessários à realização de um simples ato provocam riso e são comparáveis aos efeitos sofridos ao se observarem os complicadíssimos engenhos do cartunista Rube Goldberg. São fórmulas para entreter, dominar, edificar, degradar, iludir. Em geral maquinarias criadas para propósitos insólitos e incertos, como é o caso do mecanismo de limpar a boca. O peso excessivo da maquinaria, satirizado pelas ideias de automação dos projetos de Goldberg, subverte a lógica da máquina capitalista para que se espalhe a magia recheada de poesia, que transforma os artífices de todas as máquinas em prestidigitadores.
Figura 5 - Rube Goldberg, uma idéia para funcionamento automático de guardanapo.
A magia e o riso parecem ser o passaporte que leva ao sonho, mecanismos capazes de eliminar o torpor e o tédio que abatem o homem moderno. Como ensina Nietzsche na afirmação “O homem é tão atormentado neste mundo que foi forçado a inventar o riso!”, o riso é um dos impulsos que dá acesso ao mundo íntimo da imaginação criadora que possibilita a vivência da duração dos acontecimentos. Esse riso agora também opera como desvio, um
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intervalo. Através da fenda do risível criam-se possibilidades suportáveis de reformas e deformações da realidade. A edição do filme “The way things go” opera tanto como peça da “máquina” real, encadeada, quanto como recurso dentro do filme que se assiste. O fato de os planos revelarem, pouco a pouco, os acontecimentos que se desdobrarão a seguir também desperta curiosidade e fascínio. No cinema, imagens sucedem-se para criar a ilusão de continuidade. O convincente plano-sequência, a ausência de intervalos, a propagação da motricidade nos coloca diante de algo que pode ser considerado real, apesar de toda a inquietação causada. A manipulação da imagem através do uso de breves fusões ou raccord
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são recursos que
articulam os planos das ações e impregnam as cenas de senso de realidade contínua. Se há cortes, não podemos detectá-los ao certo. São invisíveis. Esse tipo de “trapaça”, além de garantir a verossimilhança temporal dos acontecimentos, também promove o suspense aliado ao cômico e reserva o lugar cativo do espectador, que aguarda a grande promessa, a surpresa, o estancar, o desfazer, o despencar, a mágica. Ao se admitir os objetos prestidigitadores em ação encarna-se uma certa ingenuidade infantil. A admiração perante o mágico parece tomar conta da cena. Se há o desejo pelo engano da mágica há também, nesse passeio esquemático de Fischil and Weiss, um ballet de cadência inquietante, subordinado a um roteiro que se desdobra sobre ele mesmo sem outra destinação maior. Apenas dança pela dança. O esforço empreendido para que se dê a transmissão entre os componentes da “máquina” que não fala senão dela mesma, do próprio esforço que opera – não seria essa mesma a falta de sentido da vida? O mito de Sísifo? O trabalho também parece engendrar uma espécie de tautologia. Os objetos tanto são peças, como eles mesmos máquinas que se auto-impulsionam. Um jogo no qual objetos banais, deslocados de suas aplicações usuais, se sucedem e empreendem esforço trágico para colocar em operação a própria operação. O riso frouxo acompanha a cena propositalmente montada com fins ilusionistas e alcança seu grau maior quando se percebe a “quantidade de barulho por nada”.
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“o raccord seria definido como qualquer figura de mudança de plano apagada enquanto tal, isto é, como qualquer figura de mudança de plano em que há esforço de preservar, de ambos os lados da colagem, elementos de continuidade” AUMONT, Jacques e outros. A Estética do Filme. São Paulo: Papirus Editora, 2002.
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SESSÃO DE CINEMA
No cinema, as máquinas e a parafernália que a ciência e a técnica multiplicaram na revolução industrial de fin du siècle também trazem à cena uma forma maquínica de interação. Buster Keaton, em muitos de seus filmes, principalmente nos curtas-metragens, acentua a presença da máquina na vida do homem e nas relações sociais. As máquinas aparecem em permanente movimento na caracterização dos gestos dos personagens, na adaptação dos mecanismos, nos veículos, na elaboração dos artefatos. Como aliadas, fazem de Keaton peça, ainda que atuem de forma aleatória ou que fujam ao seu controle. Nas casas inteligentes de The Scarecrow (1920) e Electric House (1928), ou no navio de The Navigator, o protagonista adapta os aparatos domésticos, (elétricos, como a escada rolante de Eletric House), utilizados no cotidiano por centenas de pessoas, para funcionarem como aparelhos-máquinas. Nesses filmes, o personagem usa um conjunto de alavancas, roldanas e fios como engenhosos sistemas maquínicos, dota-os de um funcionamento que ultrapassa qualquer maniqueísmo. Em The Scarecrow, Keaton automatiza soluções para problemas do dia-a-dia, do tipo como preparar uma mesa onde se servirá uma refeição, como lavar os pratos sem dispender muita energia, como pegar uma garrafa na geladeira e abri-la sem levantar sequer da cadeira, e até como aproveitar os restos de comida. Tais soluções, que envolvem uma espécie de maquinismo lúdico, servem para uma casa onde não há mulher. São respostas que cheiram às dadaístas e que passam pelo burlesco, facilitam ao máximo o trabalho doméstico e as vidas dos protagonistas e parecem não tecer nenhum tipo de comentário pró ou contra a excessiva mecanização do mundo.
Figura 6 - Cenas de The Scarecrow (1920)
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Em The Navigator, o navio, a imensa máquina pensada para uma volumosa tripulação, é ocupada apenas por Keaton e seu par romântico. Na cozinha do navio o protagonista cria uma série de mecanismos automáticos – um riscador de fósforos que acende o fogo, um filtro, um dispensador de pó de café, um abridor de latas que funciona sem oferecer riscos por meio de uma engrenagem acionada mecanicamente pelo pé, uma cesta para cozinhar ovos numa grande panela – enfim, inventa uma série de máquinas simples, que funcionam através de polias, alavancas, planos, com soluções que driblam dificuldades que o navio lhe apresenta, tornando-se, ele mesmo, peça do navio, juntamente com os objetos, partes constituintes da máquina, com os quais interage.
Figura 7- Cenas de The Navigator (1928)
Peça de uma engrenagem maior, Keaton passeia por inventos diversos, contorna as dificuldades impostas pelas máquinas e pelo cotidiano, garante agilidade e estabelece um movimento desejante, quimérico com a máquina-casa ou a máquina-navio. Ou seja, é movido pelos fluxos e acometimentos de forças estabelecidas na relação com as coisas nas quais está inserido. Pequenos processos de causalidade física, que passam por desvios, alongamentos, caminhos indiretos e ligações entre heterogêneos
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que estão presentes no que Deleuze
chamaria “gag maquínica” dos filmes de Keaton. As sequências de trajetórias maquínicas, apresentadas nos filmes citados de Keaton, movem-se conectando uma ação à outra e muitas vezes acarretam acidentes de percurso que implicam novos desdobramentos, acompanhados pelo riso e passagens de permanente estado de ansiedade. O que me leva, mais uma vez, tanto aos inventos de Rube Goldberg como às trajetórias pelas quais passam os apetrechos do trabalho de Fischil and Weiss, onde invariavelmente acontecem sequências de ações que se contaminam umas às outras sem
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DELEUZE, Gilles. Cinema 1:Imagem-movimento. Lisboa: Editora Minuit, 1983. p.261
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envolver qualquer finalidade na ação individual. Ao se emparelharem, no entanto, fazem com que elementos não funcionais passem a sê-lo no seguinte 52. O conceito de David Robinson, um dos biógrafos de Keaton, introduz a ideia de “gag de trajetória” que pode servir aqui à dupla de artistas suíços de The way things go onde figuram personagens que, ao percorrer um determinado traçado, erigem-se como máquinas que produzem desvios mediante os quais se experimenta a resistência dos organismos precários acompanhados por surpresas e pressentimentos que se misturam ao burlesco e nonsense e apontam para o riso como reação. Outro ícone do cinema mudo americano, embora com estilo de interpretação bem diverso do de Keaton, Chaplin, segundo Deleuze, é um belo exemplo do potencial do cinema como máquina de produção de discurso, embora o próprio Chaplin negasse qualquer outra intenção em sua obra que não fosse o entretenimento. "Tempos Modernos" (1936) marca uma ruptura na obra chapliniana - era a última vez que levava às telas seu legendário vagabundo e, sendo seu último filme mudo, restringiu a sonorização à música e efeitos sonoros, predominando a pantomima sobre os diálogos (apenas o dono da fábrica tem voz). A clássica cena em que o pequeno vagabundo, apertando os parafusos, fica preso na esteira rolante e é arrastado para dentro de uma enorme engrenagem da máquina faz de Carlitos um operáriomáquina louco que parte para todas as direções apertando parafusos e lubrificando os resíduos, e parodiando as nefastas facetas da crise econômica mundial e a nova fase da industrialização. A máquina capitalista, que mastiga sem cessar a carne humana que é, em última análise, ao mesmo tempo peça e combustível, devora a “máquina cinematográfica” que se aprimora, sonora e cada vez mais sofisticada, enquanto cospe de volta à estrada o peripatético vagabundo, seu para sempre rejeito. No cenário cinematográfico, o imaginário e o fantasma da automação ganham corpo em robôs que almejam ser replicantes na grande máquina cinematográfica como Golem53 de Henrik Galeen & Paul Wegener, Metrópolis (1926) de Fritz Lang. Entre fantasmas e discussões científicas, em clara referência aos experimentos com a eletricidade e o
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Op. cit. p.262 Golem é um filme de cinema mudo, de 1915; dirigido por Henrik Galeen & Paul Wegener, trata de um Golem de argila criado por um feiticeiro ancestral, que ganha vida na Praga medieval. Está baseada na novela de Gustav Meyrink. Um golem é, no folclore medieval e na mitología judia, um ser animado fabricado a partir de matéria inanimada. Em hebreu moderno, a palavra “golem” significa «tonto» ou inclusive “estúpido”. O nome parece derivar da palavra gelem, que significa matéria em bruto. Disponível em http://vai.la/26Xd 53
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galvanismo , o Prometeu moderno se encarna em Frankenstein, romance de Mary Shelley, de 1818. A escritora, através do Dr.Victor Frankenstein, e com a ajuda da tecnologia e das experiências com as máquinas, utiliza partes de animais e cadáveres humanos para dar vida a uma criatura maquínica. Disforme e de estrutura gigantesca renasce um ser que concentra a eletricidade dos raios, energiza fluidos e torna o cadáver novamente corpo vivo. Da recriação da vida através de máquinas à transformação de máquinas em coisas "vivas", esbarra-se na ideia de replicante, no clássico Blade Runner55. Num povoado futuro, seres geneticamente alterados - “mais humanos que os humanos” - são utilizados em tarefas pesadas, perigosas ou degradantes nas novas colônias. Na trama, os modelos Nexus-6, fisicamente idênticos aos humanos, embora mais ágeis e fortes, apresentam instabilidade emocional, empatia reduzida e comportamento eventualmente agressivo, por isso são programados para um ciclo de vida de quatro anos. Como alguns se infiltram clandestinamente na Terra, onde são proibidos, aparece a figura do caçador de androides. Esses replicantes, como são chamados, vão apresentando cada vez mais as características humanas, ao contrário dos que os caçam. Os replicantes como os Blade Runner e os robôs são denominados por Richard Sennett, ferramenta-espelho56 , visto levarem o homem a pensar sobre si mesmo. Os replicantes espelham e imitam atitudes e gestos dos seres humanos. Como Frankenstein, o gigante feito pelo homem que quer tornar-se um replicante, trama à moda de um humano. Os robôs, ampliações do humano – de memória, por exemplo –, são mais robustos, obedientes e incansáveis. São seres que levam o homem a deparar-se com suas limitações. Ao observar suas deficiências, através da criação e comportamento dos robôs, o humano tenta novos talentos para alcançar a perfeição. Isto é denominado por Sennett como o “fracasso salutar”. Logo, torna-se necessário e salutar, que o homem aceite a máquina e encare a sua própria imperfeição, que o fará chegar a perfeição. Marcapassos e aparelhos de hemodiálise são replicantes; imitam as funções humanas, robôs como gadgets ampliam a memória humana como os ipod ou computadores e atendem à demanda humana. 54
Galvanismo, teoria de Luigi Galvani segundo a qual o cérebro animal produz electricidade que é transferida para os nervos, acumulada nos músculos e disparada para produzir movimentos dos membros. 55 Cf. http://vai.la/2300 56 SENNETT, Richard. O Artífice. Record, 2009. p.101
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A inteligência artificial de um onisciente computador é retratada no romance 2001, Uma Odisséia no Espaço57 de Arthur C. Clarke, imortalizado no cinema por Stanley Kubrick (1968). A personagem-máquina HAL 9000 com sua avançada inteligência maquínica controla todo o funcionamento da nave espacial Discovery. Embora Sennett talvez considerasse HAL 9000 uma ambiguidade, um ser que tanto poderia ser visto como um replicante – visto que imita e complementa funções humana ao pensar, falar naturalmente, apreciar manifestações artísticas, interpretar emoções, raciocinar, expressar emoções e jogar xadrez, também poderia ser enquadrado como um robô visto que amplia, em muito, as capacidades humanas mediante atributos da onisciência ao realizar reconhecimento facial e vocálico, fazer leitura labial etc. Nos exemplos acima, percebemos o quanto o “fantasma da máquina”58 podem provocar movimentos na imaginação humana ante uma sofisticação crescente da técnica – a biônica, a bionanotecnologia, a vertiginosa miniaturização dos dispositivos de processamento e memória, a sofisticação dos algoritmos. A exposição legendária: The Machine as seen at the end of mechanical Age K.G. Pontus Hultén, 1968, traça a influência da máquina e sua estética na criação artística. No catálogo, Hultén esboça a influência da máquina e sua estética sobre a criação artística, dividida entre um grande pessimismo e um profundo entusiasmo. Hultén profetiza: “Por volta do ano 2000, indubitavelmente, a tecnologia terá feito tantos avanços que nosso meio ambiente será tão diferente de hoje quanto nosso mundo hoje se distancia do antigo Egito. Que papel a arte irá fazer nessa mudança? A vida humana compartilha com a arte as qualidades de ser uma única, contínua e irrepetível experiência. Claramente, se nós acreditamos em algum dos dois, vida ou arte, nós devemos assumir completo domínio sobre as máquinas.” 59
Independentemente do domínio ou submissão de um pelo outro, máquinas se infiltraram de forma incontrolável na sociedade e na arte. Sinônimo de velocidade, conduzem à vertigem, uma patologia que a vanguarda artística viveu e que se recusou a tratar. Ao contrário, muitos foram os artistas que optaram pelo turbilhonamento das novidades e pela comunhão da arte com a máquina e criaram, ante o permanente estado de ansiedade e ante a queda. 57
Cf. http://vai.la/2301 Referência ao clássico homônimo de Arthur Koestler, de 1967 (Disponível em http://vai.la/230k) 59 Catálogo Art Machines Machine Art, ed. Katharina Dohm, Heinz Stahlhut, Max Hollein, and Guido Magnaguagno, 2000 p.21 58
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Por falar em trajetória e aproveitando o sentido de gags, foram percorridas até aqui algumas das forças pelas quais procedem as quimeras maquínicas. Desejantes podem operar por vetores abstratos, artificiais, caso das obras de Picabia, Filha nascida sem mãe. No âmbito da literatura operam movimentos e conexões imaginárias, como, por exemplo, a máquina da Colônia Penal60 de Kafka, ou “Grande Vidro”. Funcionam em meio a episódios banais ou sofisticados, mas sempre conectam-se com quem as produz, com o meio no qual foram criadas e onde funcionam, caso das Rotozaza de Tinguely. Podem constituir-se de diversidades de materiais, que variam do aço carbono aos pedaços de objetos precários encontrados nas diversas peças de “The way things go”. Como quimeras, são programadas e compostas de, no mínimo, dois elementos que se relacionam. Sempre composição de vários que podem ser orgânicos, humanos, mecânicos, elétricos e eletrônicos. Lidam com a montagem, que pode se dar sob forma literária, fílmica embora mais frequentemente sejam encontradas em materialidade física. Vinculadas à circularidade, inspiram o lúdico, são divertidas e esquizofrênicas. Em geral, apresentam em sua constituição algum tipo de mecanismo cômico, funcionam ao fazer espreguiçar os sentidos e os estados afetivos.
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A Colônia Penal de Franz Kafka (1914). Todo o livro gira em torno de uma máquina, instrumento de tortura que escreve lentamente na pele dos condenados. O Oficial, personagem do livro, é a favor do uso da máquina de tortura para executar sentenças, fala dela como se tratasse de um ente divino.
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II. MACHINAE MULTAE
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O Fotógrafo Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto: Madrugada a minha aldeia estava morta. Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã. Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina. O silêncio era um carregador? Estava carregando o bêbado. Fotografei esse carregador. Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra. Fotografei a existência dela. Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei sobre. Foi difícil fotografar sobre. Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça. Representou para mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski – seu criador. Fotografei a Nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir a sua noiva. A foto saiu legal 62 (Manoel de Barros)
Desde o primeiro emprego do latim machina, do grego mechané, até os dias atuais, a máquina não só se transformou no aspecto físico e nas relações estabelecidas com os indivíduos como também o termo passou por uma série de (re)processamentos. Pretendo, ao investigar o vocábulo “máquina”, flexibilizar o entendimento do termo, discorrendo sobre algumas noções que acrescentam muitos “e” à sua acepção usual, seja a que associa máquina a algo classicamente construído com um fim específico ou a que entende a relação homemmáquina através de predominâncias, submissão e captura dos indivíduos e dos próprios objetos e partes da máquina. Acredito que ao apresentar tais noções, possa ampliar o entendimento do termo. Na fixidez do conceito usual, máquina representa um equipamento mecânico, elétrico, eletrônico ou equipamento industrial utilizado na fabricação e processamento de produtos e de modo geral requer um operador humano. A finalidade primeira e mais óbvia que o homem
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Do latim “muitas máquinas”. BARROS, Manuel de. Ensaios Fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2007 pag. 11
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atribui a um automóvel, por exemplo, é a de facilitar seu deslocamento. No sentido usual, essa máquina é um dispositivo que tem a finalidade de transportar. Porém, ao considerar o sistema que funciona no âmago do carro, ou seja, seu funcionamento interno, encontram-se também outras formas de abordagem dessa máquina. Pode-se inferir, por exemplo, que para além da sua destinação final de transportar, compete também, tanto a essa automobilística quanto a qualquer outra máquina a tarefa de colocar em dinâmica seus elementos heterogêneos. Ao habitar o interior do organismo da máquina, podese ver funcionar partes que se relacionam numa complexidade de tramas e encadeamentos que produzem deslocamento de energia, execução de giros, variações, arremessos, oscilações, saltos, sacolejos, descontinuidades, cortes e fluxos. Nesse caso, o que acontece de primordial no corpo dessa máquina é a ativação da relação de satisfação que deve ser mantida entre seus componentes. A função dessa máquina é, para além de sua função final de deslocamento, garantir o movimento contínuo de seus componentes estruturais, que em conjunto fazem com que ela funcione e promova o deslocamento esperado. Assim, outro dado que pode ser percebido quando descolados da ideia funcional e finalista desses aparelhos, e se investiga seu interior é o fato de que esses dispositivos maquínicos são indissociáveis da relação de seu meio interno com o externo. Ou seja, os trabalhadores, operadores e usuários das máquinas também fazem parte de seu funcionamento, são peças delas. Operam tanto com o trabalho intelectual e cognitivo que se dá na invenção ou criação de cada máquina como quando a utilizam. De modo geral, numa relação direta com as máquinas e como partes delas, podem-se incluir cientistas, pesquisadores, engenheiros, físicos, artistas, economistas, trabalhadores, donas de casa, isto é, toda classe de indivíduos. Não fosse suficiente observar toda a movimentação que procede no interior e exterior do aparelho, faz-se mister perceber que tanto a própria máquina executa modificações no meio no qual está inserida quanto o homem, modificado por ela, altera seus comportamentos. Nota-se, então, que assim como o homem, as máquinas são corpos maleáveis. Ambos sujeitos a modificações em relação ao meio em que atuam, que requer, por vezes, acréscimo ou retirada de peças, reconfigurações de formas e alterações de movimentos, comportamentos ou juízos. Sendo assim, comportam-se indivíduos e máquina profundo intercâmbio que permite atualizações e gera novos entendimentos e comportamentos que alteram a subjetividade.
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Com "olho vibrátil" e poros da pele abertos, como propõe Suely Rolnik , pode-se vislumbrar e captar essas permanentes permutações de estados lógicos e físicos que todas as máquinas fizeram e fazem nos meios sociais, políticos, econômicos, educacionais; que transformam formas de agir, pensar e sonhar. Surpreendo-me quando penso, por exemplo, o quanto se alterou em termos de comportamento, tanto pessoal como social, os atravessamentos, em nossos cotidianos, da primeira locomotiva, que promoveu a diminuição das distâncias e o maravilhamento com a velocidade, alterando a relação espaço-tempo, do cartão de ponto que disciplinou o operário ao estabelecer e regular a jornada de trabalho, da linha de montagem, uma espécie de hipermáquina que mecaniza a ação dos trabalhadores, e mesmo de aparelhos mais íntimos, que aprimoraram muito a produtividade do trabalhador, como a máquina de escrever, a bicicleta, o fonógrafo. O advento da máquina - da revolução científica do século XIII à expansão tecnológica do século XX, passando pela revolução industrial do século XVIII - inaugurou e mantém a discussão, sem precedentes, sobre sua atuação e o uso das tecnologias. Ao longo desta trajetória, as reações perante a – sempre emergente – tecnologia variaram. Enquanto para certos indivíduos o Iluminismo representava a vitória da superioridade da máquina e a falência do homem, havia quem considerasse a introdução das máquinas e técnicas uma contribuição para o homem e para as ciências. Segundo a avaliação de Richard Sennett 64, Diderot, em sua Enciclopédia (1750-1772), chegou à conclusão de que não se poderia competir com as máquinas, mas que caberia ao homem usá-las de maneira esclarecida, avaliar sua força e adaptar seu uso à luz de seus próprios limites. Para lidar com as máquinas, seria preciso que o homem não obedecesse ou se rendesse às ordens da perfeição que elas propunham, mas afirmasse sua individualidade, conferindo um caráter próprio ao trabalho desenvolvido através dos dispositivos. São inegáveis as melhorias da condição de vida da sociedade, sob muitos aspectos, depois da introdução das máquinas. Esses avanços não podem ser pensados desvinculados da introdução dos instrumentos mecânicos e técnicos que substituíram a força muscular humana e as ferramentas manuais, dos motores a vapor, ou de combustão interna, que dinamizaram os deslocamentos e de todos os inventos que possibilitaram a incorporação da energia hidráulica, eólica, mecânica, elétrica, magnética e eletrostática em todos os campos.
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Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. SENNETT, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 122
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Assim, parece natural que também o desenvolvimento artístico tenha sido contaminado pelo crescimento científico, industrial e tecnológico. A máquina fotográfica teve um papel relevante nesse ponto. Apesar da resistência à inclusão da fotografia na categoria de arte, essa inovação técnica acabou por provocar alterações não apenas no modo de pensar, produzir ou discutir a arte, mas também produziu nítidas mudanças na forma como os artistas passaram a representar o mundo. O uso da “câmara lúcida”65, por exemplo, foi um artifício que permitiu que o artista retratasse o mundo da maneira mais fiel possível. Segundo a tese de David Hockney, muitos artistas, desde 1430 aproximadamente, teriam usado espelhos e lentes para retratar com verossimilhança as imagens pintadas, o que estabeleceu novos parâmetros pictóricos e novas formas de olhar o mundo retratado66. A partir do momento em que imagem fotográfica foi fixada por meio de um processo químico, outros entrelaçamentos e demandas se estabeleceram. A fotografia, em certa medida, parecia suprimir a necessidade da mão do artista de representar o mundo real, fato que aos poucos contribuiu pelo menos para resignificar o estatuto dos pintores, a forma de ver, o estudo das cores, o enquadramento, o que fez proliferar respostas frente a essa nova invenção. Também fizeram uso desses dispositivos óticos artistas ligados ao Impressionismo, ao Cubismo, ao Dadaísmo e mais especificamente artistas como Duchamp, Man Ray, Rodchenko e tantos outros. A máquina fotográfica, olho mecânico que substitui o humano67, filha natural da nova era, atravessou, da câmara escura até o vídeo caseiro, uma variação de formatos e tipos que introduziram, adaptaram e reformaram o modo de se olhar o mundo, a natureza e o comportamento do homem. Mas o que se altera com a introdução desse tipo de aparelho são os tipos de imagem que dele provêm – assunto abordado por Vilém Flusser no livro Filosofia da Caixa Preta e revisitado em outro, O universo das imagens técnicas, elogio da superficialidade. O autor deixa claro que as imagens68 que provêm dos aparelhos técnicos, 65
Trata-se de um dispositivo, patenteado em 1806 por William Wollaston, que auxiliava os artistas a desenhar e que, ao que tudo indica, era uma reinvenção do dispositivo descrito 200 anos antes por Kepler (Dioptrice) em 1611. Cf. http://vai.la/23vF 66 HOCKNEY, David. O Conhecimento Secreto – Redescobrindo as Técnicas Perdidas dos Grandes Mestres, Ed. Cosac Naify, 2002. 67 A esse respeito ver CRARY, Jonathan. Techniques of Observer. On vision and modernity in the nineteenh century. Massachusetts: MIT Press, 1999. 68 Por "imagem técnica" assumo o sentido que lhe confere Flusser, qual seja aquela produzida de forma mais ou menos automática, ou seja, de forma pragmática, "através da mediação de aparelhos de codificação". Considera a imagem fotográfica como "o primeiro, o mais simples e ao mesmo tempo o mais transparente modelo de imagem técnica", embora o sentido se aplique "a qualquer espécie de imagem produzida através de mediação técnica, inclusive às imagens digitais". apud Machado, Arlindo in Repensando Flusser e as imagens técnicas (Disponível
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como a máquina fotográfica, o vídeo, a televisão e os computadores implicam em programação. São geradas a partir de um programa fechado, portadores de informação e fazem parte de um mundo computado, construído. As tecnoimagens, incorpóreas, são fórmula, cálculo, algoritmo, programadas, portanto, desde sua concepção. São produtos de máquinas técnicas que nada mais têm a ver com as imagens tradicionais, não mais explicam o mundo e sim o informam. Depois do surgimento dessas máquinas, o homem estaria obstinado a viver sob o domínio das imagens técnicas que impõem novas formas de agir e pensar a realidade – e programam a sociedade. Toda ação se dá por obediência a um programa ou roteiro previamente inscrito na esfera infra ou supra individual. Os programas se constroem por programadores que também são programados. Escrito no final da década de 80, o conteúdo de O universo das imagens técnicas revela sua atualidade ao prever a solidão como um dos resultados maquinais a que os homens – já transformados em “telespectadores”, “jogadores com computadores” ou “público de cinema” – estarão submetidos com o aumento do domínio de tais imagens e da padronização de interações e soluções. O trânsito social, a circulação será o oposto do prevalecente nas sociedades anteriores. A sociedade espalhada não formará amontoado caótico de partículas individuais, mas será uma sociedade autêntica, porque o indivíduo estará ligado a todos os demais indivíduos do mundo inteiro através da imagem técnica que o está programando, já que tal imagem se dirige a todos os indivíduos indistintamente e da mesma forma. 69
Isso já se vive. A instância do público é agora vivida no privado, cada vez mais encerrado entre quatro paredes; vive-se a solidão com o mundo de imagens programadas frente aos olhos. Elas ditam comportamentos, estabelecem um cerco fechado, transformam o ordinário em extraordinário para, em seguida, o tornarem de novo ordinário, reafirmam o consumo dos mesmos produtos que consumimos; espetacularizam vidas, discursos; apresentam políticos entre os quais devemos escolher algum; estimulam que o corriqueiro, o cotidiano, o individual vivido seja fotografado, gravado, filmado, disponibilizado na rede, para que seja visto; impingem a corrida tecnológica pela qual há um interesse cada vez maior. em http://vai.la/23vN) 69 FLUSSER, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas - elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. p.56
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Usuários reativos a programas guiados pela homogeneidade, pela repetição indiscriminada das imagens conduzem a sociedade rumo à previsibilidade e, segundo o pensamento de Flusser, provavelmente à entropia. Essa repetição exaustiva de imagens técnicas préprogramadas conduz à estereotipia, à padronização de soluções, a uma uniformização generalizada. É preciso astúcia para acessar o programa e inserir-se nele, e provocar mudança capaz de alterar a qualidade de relação com a máquina. A solução, para Flusser, passa pelo jogo e pelo diálogo que desarmem o programa existente no aparelho técnico. Os artistas apontam algumas saídas que, pelo menos, denunciam tal programação concernente às máquinas produtoras de tecnoimagens. O artista Harun Farocki70 é um exemplo; ele utiliza como mote de seus filmes a emergência de novos regimes visuais advindos da videovigilância: telejornais, programas de computador destinados ao treinamento de profissionais, partidas de futebol apresentadas por programas esportivos. Enfim, questiona as tecnoimagens que, apresentadas massivamente, acabam por traduzir-se em mecanismos de poder e controle sobre os cidadãos na sociedade contemporânea. Os trabalhos de Candice Breitz71 também confrontam, de forma contundente, a produção das tecnoimagens hollywoodianas de cinema. A matéria-prima usada em seus trabalhos são trechos de filmes da indústria cultural cinematográfica que trazem no elenco personagens autoritários, que pretendem modelar e infantilizar os espectadores. A partir da reinserção dos trechos retirados desses filmes, a artista produz novos roteiros, argumentos e formatos que contestam e evidenciam as imagens pasteurizadas do ecrã e os recontextualiza em enquadramentos e cenas destituídas de glamour. Em suas instalações, percebe-se claramente a tentativa de criticar, polemizar, colocar em questão os estereótipos e as convenções visuais da cultura de massa. No trabalho intitulado “The Trilogy Soliloquy”,72 Breitz utiliza as passagens dos personagens principais de três filmes de Hollywood: Sharon Stone, em Instinto Selvagem, Clint Eastwood, em Dirty Harry e Jack Nicholson em As Bruxas de Eastwick. De cada filme, ela separa e utiliza apenas 70
Nascido na Tchecoslováquia e radicado na Alemanha, artista que usa o cinema e o vídeo como linguagem. BREITZ, Candice nasceu em 1972 em Joanesburgo; trabalha com a apropriação de fotografias e fragmentos visuais de filmes e vídeos. Vive e trabalha em Berlim. 72 Soliloquy (Clint), (1971 – 2000), Duração 00:06:57:22 / Soliloquy (Jack), (1987 – 2000), Duração 00:14:06:25 / Soliloquy (Sharon), (1992 – 2000), Duração 00:07:11:03 71
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os quadros em que os personagens falam e em seguida edita-os em sequência, retirando do filme as cenas em que seus protagonistas não aparecem. Assim, cria sequências de diálogos em que só se assiste o ator ou atriz durante o tempo exato em que este/esta aparece ao longo do filme. Na nova montagem dos filmes, extremamente comerciais e conhecidos, cria-se uma espécie de choque, uma nova duração. As duas horas se traduzem em catorze minutos, por exemplo, na edição de Jack Nicholson, ao passo que nas de Sharon Stone e Clint Eastwood a duração é de apenas sete minutos cada. Ao apropriar-se das imagens desses filmes, Brietz cria um novo script que transgride a dinâmica preestabelecida pelo diretor original do filme, corrompendo o esquema sensóriomotor, o entendimento racional e linear do roteiro, implantando novo jogo de temporalidade, distinto do roteiro original. Em outra instalação Mother+Father, 2005, outra instalação, a artista comenta as funções materna e paterna no contexto da contemporaneidade. Nesse trabalho, ela usa as imagens de Meryl Streep, Shirley MacLaine, Julia Roberts, Susan Sarandon, Faye Dunaway e Diane Keaton, que desempenham o papel de mãe nos filmes originais, na montagem da sessão Mother. E as imagens de Dustin Hoffman, Donald Sutherland, Tony Danza, Harvey Keitel, Steve Martin e John Voight na sessão Father. Recortadas frame-by-frame de seus contextos fílmicos originários, as performances dos atores e atrizes compõem uma nova montagem, em seis telas de plasma, uma para cada intérprete, exibidas todas a um só tempo, uns diante dos outros. Ou seja, cada ator/atriz é recortado de seu ambiente fílmico e apresentado num fundo negro, separado de seus companheiros de cena, porém mantidas as performances originais de cada um. Nesse ato de reedição, mais uma vez, Breitz opera uma desconstrução fílmica com a reciclagem das imagens e parece capacitar o espectador para a percepção de uma nova possibilidade de associação de imagens. Usa imagens de identidades fixas, construídas para fins comerciais, para criticar o uso das imagens na mídia e convida a uma reflexão sobre como recebemos esses impulsos das tecnoimagens. Ao fazer uso de material preexistente, a artista parece explorar as mais diversas releituras, numa prática similar a de um DJ, ou a de um internauta. Esses trabalhos versam sobre reciclagem, tradução, interpretação, em suma, são eles também maquinações num processo de reanimação de materiais e linguagens que preexistem à própria prática do artista
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contemporâneo. Nas palavras da artista, em entrevista concedida em 2005 a Nicholas Chambers a respeito desse trabalho, Candice comenta: É necessário invadir o sistema operacional que desenhou a paisagem - injetar-se na mídia como uma presença viral. Não temos escolha se vivemos em grandes centros urbanos, somos obrigados a consumir a produção cultural global do capitalismo. Mas o consumo deve ser seguido por digestão, digestão que deve ser seguida pela excreção. Esta é uma maneira educada de dizer que, se não temos escolha, se temos que consumir o que a mídia oferece, então temos de insistir em completar o ciclo digestivo, temos que insistir no direito de mastigar, processar e regurgitar as formas de mídia de massa, de forma que essa cultura possa servir-nos e não apenas a ordenhar-nos.73
Seja pelo uso de uma estrutura cíclica que adota o looping ou pelo uso do recurso da instalação, em que se adota um sistema de multiprojeções, onde podemos entrar a qualquer momento, os trabalhos de Candice Breitz comentados aqui nos envolvem numa forma de tempo em que não se sabe claramente onde começam e onde acabam, o que, de certa maneira, potencializa e exige do observador um olhar que não se fixe num único ponto de vista, destruindo assim a ideia de sentido único ou do esquema sensório-motor. Além disso, nenhum dos trabalhos expostos possui uma estrutura narrativa predefinida, e por isso não subjazem à “lógica do aparelho ótico”. Lidam com uma estrutura narrativa livre de amarras ou procedimentos específicos. Seguindo essa linhagem, um trabalho que pode ser mais um exemplo de exercício que corrompe a imagem do filme cinematográfico é o que realizei com a artista Simone Cupello e que foi finalizado em 2010. Legenda em português74 apresenta uma colagem formada de livres associações de palavras que carregam imagens acopladas a elas. São “células fílmicas” retiradas dos mais variados filmes comerciais que, ao serem recortadas do filme de origem, criam um novo dicionário de “períodos” compostos de cenas e palavras. A partir das legendas originais recortadas, brincamos de inventar novas frases imagéticas, que só por serem frases, já valeriam, mas que, carregando consigo uma imagem real e montada a partir de várias outras, constroem coleções de significados que muitas vezes remetem a um sentido existencial 73
CHAMBERS, Nicholas. ‘Candice Breitz: Mother + Father – Entrevista com Nicholas Chambers,’ Artlines (Queensland Art Gallery, South Brisbane - Volume 2: 2005) pp. 12-15. Disponível em http://vai.la/26jM 74 Legenda em português é uma série de quatro vídeos que desenvolvi em parceria com a artista plástica Simone Cupello entre os anos de 2008-2010. Cada um dos vídeos mostra, entre colagens e fusões, quatro elementos, a saber: água (http://vai.la/1Vdm), terra (http://vai.la/1Vdj), fogo (http://vai.la/1Vdl) e ar (http://vai.la/1Vdk). A ideia central do trabalho é a composição de frases aleatórias a partir das legendas retiradas de filmes cinematográficos e com isso criar nova sequência de significados.
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e que, pela justaposição de células, formam territórios, poças, ondas, marés, fogueiras, ventanias. “do mar ouviríamos suave estratégia” (água) “quem vai a pé conta com a lama” (terra) “liberdade leve contornando ninguém” (ar) “queima a esmo calma implacável (fogo)
Estas são frases, apesar de não parecer, criadas a partir de regras que estabelecem uma demarcação, são maquinações aparentemente combinadas, ainda que sugiram abstrações enquanto conjuntos incongruentes. Como no haikai75, são colagens de imagens cujo sentido se completa nas vivências e entendimentos de cada espectador. Essas junções, feitas a partir de subprodutos de mídia global, dos filmes que estão no mercado, geram frases subjetivas, produtos de uma singularidade, que podem soar intraduzíveis mas também são parte de uma humanidade além das fronteiras geográficas e culturais e até da própria língua. O fato de as palavras aparecerem escritas em português não furta ao esteta de outra língua a possibilidade de se encantar com as colagens desses inúmeros “canais” fílmicos, muitas vezes perfeitamente identificáveis, e de ouvir os muitos diálogos e efusões de sons que repercutem em frente a seus olhos e ouvidos. Legendas em português é uma espécie de chamamento à resignificação, à modulação, uma indução à ideia de realizarmos colagens que corrompem as imagens técnicas, desde seu âmago, e subvertem os filmes standard para lançálos em um outro universo semântico e provocador de nova linguagem. Este e os outros trabalhos citados demonstram que o homem e suas máquinas maravilhosas, ou não, movimentam-se através de suas criações maquínicas, sejam elas máquinas reais, máquinas fotográficas, de videovigilância, de cinema e seus produtos ou artifícios que envolvem uma trama. Do rigor do termo máquina, como um dispositivo aplicado a uma funcionalidade econômica que incrementaria a produtividade, à variabilidade do sentido mais abrangente que percebe a máquina como composições de partes distintas – cortes movediços, dobras mutantes, diferenças e singularidades – encontram-se muitos conceitos cujo tangenciamento 75
Haikai é uma forma poética de origem japonesa, que valoriza a concisão e a objetividade. Os poemas têm três linhas, contendo na primeira e na última cinco caracteres japoneses (totalizando sempre cinco sílabas), e sete caracteres na segunda linha (sete sílabas). In Lanoue, David G. Issa, Cup-of-tea Poems: Selected Haiku of Kobayashi Issa, Asian Humanities Press, 1991,
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pode ajudar a compreender ainda mais o funcionamento das máquinas apresentadas nesta dissertação. Nos trechos a seguir apresentarei, em tópicos, reflexões sobre a máquina que ajudarão a sondar o corpo das máquinas, suas semelhanças e diferenças, interrogar seu funcionamento através de certa visão "esquizoanalítica" que tenta, como diz Deleuze, “[...] desfazer incansavelmente os eus e os seus pressupostos, libertar as singularidades pré-pessoais que eles encerram e recalcam, fazer correr os fluxos que eles poderiam emitir, receber ou interceptar, estabelecer cada vez mais longe, de um modo cada vez mais fino e muito abaixo das condições de identidade, as esquizes e os cortes, montar as máquinas desejantes que recortam cada um de nós e o unem a todos os outros.” 76
Ao discorrer sobre tais conceitos que tratam máquinas como volumes e qualidades de forças, pretendo demonstrar o quanto os dispositivos maquínicos, desenvolvidos no campo da arte ou não, carregam em si a maleabilidade que possibilita a interação a partir do núcleo da máquina para transformá-la em dialogante. Acredito que, se uma máquina, mesmo programada para um dado fim, já é, em si, continente de partes que, acionadas num trabalho em conjunto, transladam, aquecem, interrompem, contraem, rotacionam, expulsam e ainda assim mantêm sua singularidade, é possível extrair, incutir, reprogramar ou desprogramar seus elementos e com isso criar novos dispositivos que, em vez de se aterem às tarefas fixas a que foram tecnicamente destinadas, possam fazer funcionar uma nova língua, novas possibilidades de diálogos tanto em sua morfologia como na relação subjetiva com quem as desfruta como usuário ou observador. ANTIGUIDADE
O privilégio da conotação puramente técnica e mecânica, com contornos físicos definidos e restritivos, do termo máquina, fundou-se sob influência do pensamento europeu, em que a palavra máquina se transformou em metáfora para o modo de pensar situações complexas. O sentido mecânico da palavra só surgiu com o início da era industrial. Entre o início do século XIII e a Revolução Industrial, o termo máquina, ligado ao sentido mecânico, foi amplamente difundido e recebeu intensa sobrecarga semântica, a ponto de ser aplicado a
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DELEUZE, Gilles GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, Rio de Janeiro, Imago,1976, p. 380
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tudo aquilo que implicava tarefa repetitiva, formatada com um fim definido e preciso e que vinculava o homem a uma dominação. Antes desse período, no entanto, essa noção de máquina parece se aproximar muito daquela considerada por Guattari e Deleuze como desejante. Mais uma vez explico que para os autores o desejo é definido como produtivo. Distinto de um sistema fechado, esse regime atribui ao termo máquina uma pluralidade de sentidos, estritamente vinculados a produção, fundados no desequilíbrio e na composição de heterogêneos. Vejam-se a seguir alguns dos conceitos que foram usados pela arte ou técnica de efetuar cercos militares e pelos autores que trataram da arte da guerra na antiguidade clássica, coletados durante a pesquisa77, e que consideram máquina menos uma essência e mais uma composição de movimentos, forças e componentes vinculados que operam em determinado meio. Entre os que parecem ter sido os primeiros a usar o termo machina encontra-se Vitruvio, arquiteto romano que, por lidar com o conjunto de técnicas de defesa e ataque de fortalezas, escreveu no século I a.C: machina est continens et materia coniunctio maximas ad onerum motus habens virtutes, ou seja, “máquina é um conjunto de componentes de materiais que têm a máxima virtude de mover coisas pesadas”.78 No início do século II, Enio79 atribui outro uso ao termo em machina minax multa machina maximamuris miniatur, com o qual designou uma máquina gigante, que rompia as muralhas que protegiam as cidades. As muralhas da cidade constituíram o foco de atenção dessas máquinas especiais, uma vez que, por um longo tempo, não havia armas que pudessem abrir brechas nesses muros. Assim foram necessárias máquinas combinadas e complexas, que possibilitassem uma aproximação segura ao sistema de trincheiras e fortificações, e conquistassem ou destruíssem muralhas, mesmo que isso exigisse o desmonte de pedra por pedra 80.
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A referida pesquisa a esse item especifico se deu através dos livros: Mil Máquinas, de Gerald Raunig: Cuomo, Serafina (2007) Technology and culture in Greek and Roman antiquity. Key Themes In Ancient History. Cambridge: Cambridge University Press; apud ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 78 RAUNIG, Gerald. Mil máquinas. Breve filosofía de las máquinas como movimiento social. Colección Map-22. Tema: Movimientos sociales p. 88 (trad. livre). 79 RAUNIG, Gerald. op. cit. p. 64 (trad. livre). 80 Idem.
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Nesse momento histórico fazia-se necessário conjugar a força e a inteligência do homem com a da máquina para que, unidos, pudessem enfrentar as dificuldades circunstanciais. A máquina mais estrategicamente pensada para colocar fim a uma guerra, e que sobrepôs muitos componentes materiais e imateriais, foi o cavalo de madeira de Tróia.81 Na Eneida, poema épico latino escrito por Virgílio no século I a.C., o autor se refere ao cavalo de madeira como um truque que se exibe contra os muros de Tróia na seguinte estrofe: “[...] Ou os aqueus82 estão escondidos neste madeiro, ou esta máquina foi construída contra nossas muralhas, para vigiar as nossas casas e sobrevir contra a cidade, ou alguma armadilha está nela escondida; [...].”
O Cavalo de Tróia, máquina de guerra por excelência, incorpora estratégia, ação que ataca os muros da cidade, sem sequer destruí-los, uma vez que são os próprios troianos que o introduzem na cidade. Máquina aqui combina o tramar um segredo, plano de execução de um conluio, deslocamento de uma cidade para outra, conjunto de mecanismo físico capaz de se inserir na cidade e, acima de tudo, invenção. Trata-se mais de uma relação constantemente redimensionada e condicionada socialmente de acordo com as potencialidades e determinações produtivas estabelecidas, de um jogo que prevê impulsos para que se efetuem modos específicos de atuação. Importante perceber a ausência de rigidez vinculada a essa acepção. Tudo indica que, de modo geral, a noção de máquina combina, aqui, componentes decisivos e interrelacionados: invenção, composição e movimento de forças materiais e imateriais, que operam tanto nas máquinas corporais humanas como nas técnicas que, por sua vez, também seriam compostas por outras máquinas, inclusive a orgânica, que faz mover a técnica com destreza e sagacidade. Agem em função do que se apresenta como realidade. Pode-se pensar então que esse conceito combina movimentos coletivos dos elementos das máquinas com quem a opera, numa alternância de relação de forças entre seus componentes.
81
A cidade de Troia foi assediada por legiões gregas durante a chamada Guerra de Troia, quando o artefato de madeira foi deixado junto a suas muralhas. Construído de madeira e oco no seu interior, o cavalo abrigava alguns soldados gregos dentro de seu ventre. Deixado à porta da cidade pelos gregos, os troianos acreditaram que ele seria um presente como sinal de rendição do exército inimigo. (...) Durante a noite, os guerreiros deixaram o artefacto e abriram os portões da cidade. O exército grego pôde assim entrar sem esforço em Troia, tomar a cidade, incendiá-la e destruí-la. – disponível em http://vai.la/22YL. 82 Relativo à Acaia (antiga Grécia), ou o seu natural ou habitante; um dos quatro ramos do povo grego antigo.
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A arte da guerra era uma atividade com a qual se ocupava todo cidadão livre, guerreiros em potencial. Agostino Ramelli, engenheiro militar, no prefácio de Diversas e artificiosas máquinas (1588) escreve que:
“as artes mecânicas nasceram do labor e das necessidades dos primeiros homens, que construíram os primeiros estreitos tugúrios para se defenderem da inclemência do céu, das intempéries do ar, das injúrias dos tempos e dos muitos danos da terra” 83.
As máquinas da antiguidade são tipos de máquinas de guerra. Se considerarmos que aqui são definidas como um conjunto composto sempre em contato com a exterioridade e que não ambicionam a manutenção nem a criação de um estado unificado, que como máquinas de metamorfose são compostas de invenção, linhas de fuga, deslocamentos num território, que possibilitam a emergência da diferença, pode-se aproximá-la dos limiares daquela máquina de guerra descrita por Guattari e Deleuze. No “Tratado de Nomadologia” exposto em Mil Platôs, as máquinas de guerra não se apresentam como um aparato militar preparado pelo Estado para destruição de inimigos internos ou externos, mas como uma máquina que por definição é exterior às diversas formas de Estado. A máquina de guerra não é fundamentalmente uma peça do aparelho de Estado, é a organização dos nômades enquanto destituídos de aparelho de Estado.84
As dimensões marciais da máquina de guerra são inseparáveis do nomadismo. Seu objetivo, traçar linhas de fuga; “Fugir, mas fugindo, procurar uma arma.”
85
Ou seja,
combinação de deserção do Aparelho de Estado com invenção. Implicada diretamente com a velocidade, a máquina de guerra lida com deslocamentos permanentes, experimentações e principalmente com a invenção, capacidade de criar novos mundos, que pode ser um dispositivo, uma história, uma maquinação ou um modo de enganar, mas que preserve o estado de tensão, atração e concorrência da interioridade e exterioridade.
83
Apud ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas: 1400-1700. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 84 DELEUZE, Giles e PARNET, Claire: Diálogos. Portugal:Relógio D´ Água, 1996. Trad. JGC. p.44 85 idem p.164
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Mas, conforme a essência, não são os nômades que possuem o segredo: um movimento artístico, científico, "ideológico", pode ser uma máquina de guerra potencial, precisamente na medida em que traça um plano de consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço liso de deslocamento, em relação com um phylum. Não é o nômade que define esse conjunto de características, é esse conjunto que define o nômade, ao mesmo tempo em que define a essência da máquina de guerra. 86
Uma máquina artística que se aproxima desse tipo de quimera, da concepção de máquina de guerra é o objeto escultórico “+ and –”, 1994-2004, de Mona Hatoum87.
Figura 8 - “+ and –”, 1994-2004, Mona Hatoum. 88
O Estado não para de produzir e reproduzir círculos ideais, mas é preciso uma máquina de guerra para fazer um redondo. 89 Nesse trabalho, funciona um sistema fechado sobre si mesmo que se atualiza constantemente. Um eixo central inscreve círculos por meio das marcas deixadas pelos crivos 86
DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo : Ed. 34, 1997. p.109 87 HATOUM, Mona. 1952 nasceu em Beirute, no Líbano. De origem palestina, é uma artista que trabalha com vídeo e instalação. Vive e trabalha em Londres. 88 Trabalho de 2004 apresentado na imagem disponível em http://vai.la/23G4. Trabalho inicial de 1994 disponível em http://vai.la/23G7. 89 DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo : Ed. 34, 1997. p34
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da palheta que desenha de um lado, enquanto o outro, ao percorrer a mesma posição, com suas bordas lisas, apaga o desenho que o lado oposto deixou. A cada passagem um novo relevo se inventa, um novo território deslizante se estabelece, vê-se um desenho em eterno fluxo e corte. Uma instalação de movimentos hipnóticos, sulcos eternamente feitos e desfeitos na areia. Meios-dias e meias-noites. Marcas efêmeras constantemente atuais e virtuais que ora são territórios lisos e nômades sobrepondo-se aos sulcos, ora configuram-se como terreno estriado cravado pelo aparelho de estado. Operações que se validam no meio, entre os dois movimentos, fazem-se em dois níveis como numa diferença potencial
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e determinam uma
velocidade absoluta, que é a velocidade dos nômades. Velocidade que não implica obrigatoriamente corrida ou mudança, mas atravessamentos, paragens e avanços, relações com o público, técnicos, que deslizam entre diferenças sutis. O movimento absoluto dessa máquina implica o senso de existência, acentuado pelo medo de desaparecimento num paradigma da inseparável, mas ambígua, relação entre opostos: destruição e construção, desaparecimento e existência, aparecimento e desistência, mescla entre territorialização e reterritorialização. Para o nômade, (…), é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização. É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade aí encontra um território. A terra deixa de ser terra, e tende a tornar-se simples solo ou suporte. A terra não se desterritorializa em seu movimento global e relativo, mas em lugares precisos, ali mesmo onde a floresta recua, e onde a estepe e o deserto se propagam. 91
Mona Hatoum 92 tem a sua origem marcada por questões territoriais e políticas. Artista libanesa, de Beirute, procede de família palestina exilada do Líbano desde 1948 e nunca obteve sua identidade libanesa. Nesse caso, na questão abordada “+ and –”, pode-se também afirmar a ênfase política que evidencia as lutas do povo palestino. Em 1975, quando irrompeu a guerra no Líbano, a artista foi apartada de sua família enquanto estudava na Inglaterra. A artista, apátrida, estrangeira tanto no país em que vive, quanto no seu país natal, parece utilizar essa máquina de guerra para falar do entre; do lugar e não-lugar, do pertencimento, do desaparecimento de um território para existir em outra nação ou do aparecimento em uma nação quando se desiste do território natal. 90
op. cit. p43 idem 92 ARCHER, M. Brett, G. De Zegher, C. ed., Mona Hatoum, Phaidon, Oxford, 1997. 91
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O sistema redundante e fechado, reductio ad absurdum , apresenta paradoxos filosóficos e perceptuais da condição do nômade que vive entre o fluxo contínuo da improdutividade ou da produtividade; entre a automação do arado que faz e desfaz seu percurso numa tarefa que remete ao mito de Sísifo. Veios que se instauram para repetidas vezes desaparecerem, e a cada passagem reaparecerem entre arranhão e carícia, lembrança e esquecimento,
inconstâncias
permanentes.
Transformações
mínimas
e
constantes,
apresentadas na velocidade absoluta de um pião, ou mais, um bailarino, que gira no eixo central da instalação. Desse modo pode-se considerar que há, também aqui, alguma semelhança com a máquina desejante, cujo funcionamento ininterrupto de movimento, de elementos contraditórios, duais, são inevitáveis, como afirma Deleuze, e concorrem para invenção de nova forma de linguagem, dado que garantem o múltiplo, que não é nem um nem outro, mas que se constituem no entre os elementos ou entre conjuntos: Devemos passar por dualismos, porque eles estão na linguagem. Não se trata de passar sem eles. Mas é preciso lutar contra a linguagem, inventar o gaguejar, não voltar a uma pseudo-realidade pré-lingüística, mas para traçar uma linha vocal ou escrita que fará correr a linguagem entre esses dualismos, e que definirá um uso minoritário da língua. 94
Em outras palavras, ao tratar com o conjunto de elementos que recorrem a outros elementos – anteriores, posteriores, colaterais, numa ação encadeada de constante comunicação e relação funcional –, essa quimera maquínica que é a peça “+ and –” de Mona Hatoum nem é mecânica nem orgânica, promove nova língua, colocando em jogo termos heterogêneos, que produzem fluxos contínuos de energia, de informação, de matéria, e são cortados por outros objetos que estão acoplados a eles. O INDIVÍDUO TÉCNICO
Para entender a pertinência do assunto a seguir, faz-se necessário inserir, aos poucos, algumas ideias a respeito da noção de individuação. No dicionário Houaiss, individuação – substantivo feminino, ação ou efeito de individuar(-se) – é processo pelo qual uma parte do 93
Reductio ad absurdum - "redução ao absurdo" é o processo, provavelmente originário dos gregos antigos, através do qual uma hipótese é comprovada por demonstrar que o contrário é impossível. De certa forma, hipótese que não se preocupa com uma comprovação. 94 DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire: Diálogos. Portugal: Relógio D´ Água, 1996. Trad. JGC. p.47.
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todo se torna progressivamente mais distinta e independente; diferenciação do todo em partes cada vez mais independentes. O âmbito que aqui será tratado é o da gênese ou ontogênese, ou seja, desenvolvimento de um indivíduo desde a concepção até a idade adulta. O ser aqui será visto principalmente em termos de objetos técnicos; antes, porém, apresento um entendimento mais generalizado. Existem, no campo da filosofia da ciência, duas teorias que tentam dar conta desse princípio de individuação: o monismo e o hilemorfismo. O conceito monista pressupõe o ser como uma unidade atômica de núcleo estável. Um pouco mais: a gênese do composto monista é a existência de partículas sólidas, átomos, que não podem ser desmembrados. O mundo, em transformação constante, é explicado e constituído a partir da reorganização dos átomos imutáveis. Para o hilemorfismo, o indivíduo é constituído de matéria (hile) e forma (morphe). Ou seja, pressupõe a ocorrência do ser antes mesmo de seu princípio de individuação. O ser apresentar-se-ia moldado antes de passar por sua gênese. Apoiado na conjugação de matéria e forma, o princípio de individuação é pensado a partir do indivíduo já constituído, dado. Logo, essas duas são correntes que entendem a existência do indivíduo a partir de um princípio de individuação prévio, tanto o monismo na forma de átomos imutáveis quanto o hilemorfismo através do molde prévio de matéria e forma. Gilbert Simondon95 refuta ambas as correntes filosóficas, rejeita a metafísica dualista que atravessa a história da filosofia em que estão calcadas essas duas teorias. Segundo ele, essas perspectivas encobrem a própria operação da individuação, já que apresentam o ser como princípio dado. No lugar disso, Simondon propõe que antes mesmo do processo de individuação, haja a existência do ser pré-individuado. Certa fase em que o ser não tendo ainda passado pelo processo de individuação, se apresenta relativo, como um indivíduo-meio. Isto é, ainda não sendo todo o ser, não se esgota durante o processo e deve ser considerado uma realidade relativa ao ser dado. O indivíduo, durante o processo de individuação, passa a ser percebido como uma realidade relativa, não é um ser em sua totalidade, mas submetido e atravessado por tensões de grandezas variáveis. 96
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Excertos da Introdução de “L’Individu et sa Genèse Physico-Biologique”, de Gilbert Simondon (Paris: PUF, 1964). A partir da seleção e comentários de Luiz Alberto Oliveira disponível em http://vai.la/23br 96 DELEUZE, G. Gilbert Simondon. O indivíduo e sua gênese físico-biológica. Tradução de Luiz Orlandi. Fonte: http://vai.la/22KY. Acesso em 22 jan. 2008
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O vir a ser não se apresenta mais em oposição ao ser, mas como capacidade que o ser tem de, nas palavras de Simondon, “se defasar em relação a si mesmo, de se resolver defasando”. O ser pré-individual pode ser visto, então, como aquele que conjuga estados ricos em potências, “resolução parcial e relativa que se manifesta num sistema que possui potenciais, e que carrega uma certa incompatibilidade em relação a si mesmo, feito de força de tensões.” O processo de individuação é, assim, uma atividade permanente, uma problemática que se resolve por saltos, “estados” de vir a ser. Nele considera-se o ser não como substância, matéria ou forma, mas como sistema tenso, supersaturado. Enquanto só se conhecia o estável e o instável, não se considerava o metaestável, que a ciência moderna incorpora. O estável, porém, suprime o vir a ser e por sua vez o instável impede o ser. A fronteira entre instável e estável no princípio de individuação é mantida e carregada pelo indivíduo. Constituído, ele transporta a carga associada à realidade préindividual, reservatório de possíveis, fonte de estados metaestáveis futuros de onde poderão sair novas individuações. O indivíduo, “contemporâneo” do princípio de sua individuação, não é somente resultado, mas o próprio meio de individuação. Através do estudo do regime pré-individual dos cristais, Simondon avalia o sistema metaestável, caracterizado pela presença microscópica, molecular e macroscópica, molar que, “seria como a solução supersaturada, mais que unidade e mais que identidade, capaz de se manifestar ora como onda, ora como corpúsculo, ora como matéria, ora como energia, porque toda operação – e toda relação no interior de uma operação – é uma individuação que desdobra, defasa, o ser pré-individual, correlacionando os valores extremos, as ordens de grandeza, primitivamente sem mediação”. (SIMONDON)
No caso do cristal, a individuação ocorre uma vez, a matéria adquire uma forma e permanece ali. Compreender a mudança de paradigma que carreia o entendimento da individuação a partir da metaestabilidade e ampliá-lo à escala macroscópica pode ajudar a entender como isso pode repercutir no ser vivo e no objeto técnico. No vivo, diferentemente do cristal, a individuação acontece continuamente, de forma perpétua. Simultaneamente, encontram-se o sistema de individuação, o sistema individuante e o sistema individuando-se. Não se trata apenas de um resultado específico a partir da
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metaestabilidade, mas de um palco permanente onde acontecem contínuas individuações que garantem o funcionamento do todo. Até aqui, temos o que distingue a individuação única do cristal da humana, que se apresenta modificando-se, inventando estruturas internas novas, introduzindo-se em novas problemáticas vitais. No caso humano, há ainda o psiquismo que, para Simondon, seria a sequência da individuação vital. O ser psíquico não pode resolver em si mesmo sua problemática, ela só pode ser resolvida pela captura de aspectos da realidade pré-individual que o atravessam, ou seja, no coletivo, que transforma o indivíduo num indivíduo de grupo. Isso permite definir a categoria transindividual que representaria tanto a individuação psíquica quanto a coletiva. Ou seja, a relação entre indivíduos que transcende sua condição para gerar sucessivas individuações. Esses são os subsídios para entender o que Simondon chama de transdução: operação que conjuga algo de transmissão e tradução simultaneamente, ou seja, individuação em progresso, transporte em que o transportado é transformado com todas as variedades e substâncias implicadas, uma relação entre indivíduos que transcende sua condição para gerar sucessivas individuações. Dito de outra forma com a ajuda de Luiz Alberto Oliveira, a transdução “[...] descreve a transformação de um tipo de energia em outro; assim, um microfone é um dispositivo que transduz energia sonora (a energia transportada pelas ondas de pressão que constituem os sons) em energia elétrica, ao passo que um alto-falante operaria a transdução inversa. Para Simondon, contudo, a transdução configura não apenas uma conversão entre tipos de energia, mas seria ademais inseparável de uma variação na organização do sistema em foco. Não seria inapropriado dizer, então, que Simondon acrescenta ao conceito usual de transdução uma dimensão nova, qualitativa” 97.
Para Simondon a transdução é a individuação em progresso, é o que preside as sucessivas transferências do mundo físico, vivo, psíquico, coletivo e artificial com tudo o que ele supõe. Na transdução opera tanto o processo de individuação pré-individual quanto o transindividual. Em outras palavras, trata-se da individuação em processo que se constitui fisicamente, e pode ser biológica, mental ou social. 97
OLIVEIRA, Luiz Alberto é físico, doutor em cosmologia (CBPF), pesquisador do Laboratório de Cosmologia e Física Experimental de Altas Energias (LAFEX) do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF/MCT), Rio de Janeiro. Pesquisador associado do Programa Transdisciplinar de Estudos Avançados (IDEA) da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO/UFRJ). Disponível em http://vai.la/23br
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“A individuação que o homem mantém com suas máquinas assume a forma de uma transdução, ou melhor, a transdução no nível humano, psíquico e coletivo supõe necessariamente a proliferação de elementos, objetos e sistemas técnicos, entre eles as máquinas” 98.
Assim, pode-se dizer que a relação que o homem mantém na criação de máquinas se constitui de individuações que assumem a forma de uma transdução - transferência de energia vinculadas de variações - e onde se envolvem os níveis humano, psíquico e coletivo e implicam transferência e tradução de conceitos, elementos, objetos, matéria, energia, capacidades corporais, intimidade, consciência, percepção, ação, imaginação e sistemas técnicos vinculados diretamente à metaestabilidade do ser com a do vir a ser. No livro “O modo de existência dos objetos técnicos”, Simondon apresenta a perspectiva de imbricação da técnica concebida como algo genuinamente humano. A concatenação homem-máquina sugere a integração da técnica à cultura enquanto o objeto técnico é mediador entre o gênero humano e o mundo. O autor se detém sobre a relação entre o indivíduo e o objeto técnico, considera o objeto técnico um tipo particular de indivíduo que também passa por um processo de individuação, assim como o humano. A individuação seria maquínica uma vez que sua força não viria do motor imóvel de uma ideia. O desenvolvimento seria feito pela produção e processamento de informações tanto em seu meio externo como interno, de acordo com os pontos da rede que foram articulados. Uma máquina, nesse sentido, surgiria de uma produção de múltiplos direcionamentos de desejo e não pela compulsão do encontro com uma forma ou finalidade capaz de trazer-lhe quietude. A máquina não deve ser considerada um artefato mecânico básico, mas antes de tudo a concretização de um processo mental, uma ideia que ganhou corpo e expressão e que adquire desenvoltura e autonomia conforme sua utilização. Logo, um organismo em formação que passa de um estado abstrato, artificial e desarticulado a um sistema complexo, fruto de relações espontâneas e imprevisíveis com o meio. Todo objeto técnico primitivo, enquanto sistema saturado, abrange um conjunto de elementos, operações e gestos implicados diretamente com sua fabricação e utilização. Dessa forma, no lugar de pensar o surgimento dos objetos técnicos como o encadeamento direto da 98
RODRIGUEZ, Pablo. Prólogo in SIMONDON, Gilbert. Del modo de existencia de los objetos técnicos. 1ª edición, Ed. Aubier, 1958.
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linha evolutiva é preferível acreditar que eles são frutos de intercâmbios e conexões diversas ocorridas durante a tentativa de ampliar e melhorar suas estruturas em relação aos meios. À individuação dos objetos técnicos Simondon atribui o processo de concretização, que traduz o processo do fazer humano, transindividual, através de seus produtos. Concretizar é como individuar, resolver uma tensão existencial, esticar um ponte entre a atividade artificial do homem e a natural. Na concretização, o homem adquire uma autonomia que lhe permite regular seu sistema de causas e efeitos e operar relações com o mundo natural. E o que eleva o grau da máquina a uma categoria superior corresponde à margem de indeterminação, isto é, a sua metaestabilidade garante, de certa forma, que ela seja sensível em relação ao exterior. Simondon dá o pontapé inicial na fase pós-romântica da filosofia da técnica, podemos dizer que é o advogado dos objetos técnicos ou o pedagogo das máquinas. 99
Simondon considera que se deve ter em mente os objetos técnicos enquanto mediadores entre a Natureza e o homem, uma espécie de Prometeu que faz o papel de intermediário entre Deus e o homem e que através de seus processos e sistemas internos é capaz de efetivar trocas tanto no seu íntimo como entre o que há de vivo no tecnológico e entre o que há de tecnológico no vivo, onde corpo vivo e organização técnica são colocados em relação. Como crítica a Heidegger, Simondon observa que a cultura tem criado ressentimento em relação à técnica graças a um “humanismo fácil” que desconhece a realidade dos objetos e sistemas técnicos e, mais especificamente, das máquinas. Para Heidegger, a técnica atendia ao homem apenas em sua perspectiva instrumental, ou seja, enquanto estivesse a serviço do homem e do bem-estar social. Ele se opõe à técnica por acreditar que ela oculta a essência e a forma e anuncia o desaparecimento do homem frente a força poderosa e antagônica da tecnologia. Tal ideia, relacionada diretamente com o Humanismo e com o discurso de progresso da modernidade, torna o pensamento humano concreto sujeito a repetições de acontecimentos banais. Para Simondon, a distinção entre o indivíduo e o objeto técnico deve ser desarmada e compreendida através de sua dimensão genética, que libera a tecnicidade para
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RODRIGUEZ, Pablo. Prólogo in Simondon, Gilbert. Del modo de existencia de los objetos técnicos. 1ª edición, Ed. Aubier, 1958
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corroborar o trabalho técnico, sem que um esteja submetido ao outro, o que converge para a comunhão do homem com os seres técnicos criados por ele. Simondon, na contramão do pensamento de Heidegger, acredita no tecnólogo como o representante dos seres técnicos através dos quais elabora a cultura. Preocupa-se mais com processualidade. Pensa a concretização dos objetos técnicos em seu aspecto mais amplo, tanto no físico quanto no biológico, no psíquico e no social. Dentro da perspectiva da individuação dos objetos técnicos, pensa na modulação e descarta a perspectiva de formar ou moldar. Neste caso, nem máquina nem indivíduos recebem uma formatação pré-determinada. Eles se automodulam num regime de metaestabilidade. A teoria de Simondon servirá a Deleuze para formular a teoria do acontecimento a partir das noções de disparidade, metaestabilidade e singularidade, e da ideia de modulação. Simondon enxerga, na ontogênese, as interações moleculares da concretização e transdução dos aparelhos técnicos e da pré-individuação do vivo. Flusser100, ao mesmo tempo que alerta para a predominância dos aparelhos técnicos sobre o homem, também considera que tanto as imagens técnicas como os aparelhos que as produzem são espécies de virtualidades concretizadas e tornadas visíveis, e com isso abre espaço para formas de comunicação ou diálogos que considerem o aproveitamento da virtualidade dialógica da “folha em branco”. Note-se que o importante, no que diz respeito à ideia de máquina desejante ou de minhas quimeras maquínicas, é o fato de serem constituídas de partes sempre em atividade, sempre produzindo sua própria produção e se atualizando.
TUDO QUE NÃO INVENTO É FALSO 101
À noção de sistema cola-se imediatamente a ideia de partes, elementos, concretos ou abstratos, unidades inter-relacionáveis que de alguma forma estão vinculadas, agrupam-se pelas características de semelhança, tocam-se, implicam-se mutuamente, relacionam-se, se distribuem em dependência hierárquica ou arranjo funcional.
100
FLUSSER, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas - elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008, p. 24 101 BARROS, Manoel de “inicia” com esse verso o livro Memórias inventadas: a segunda infância. A formatação desse material é apresentada em páginas soltas e podem ser lidos sem regras determinadas em qualquer ordem
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A noção de sistema refere-se a e descreve uma unidade que opera numa totalidade. Ou seja, formado de partes, etapas, conjuntos, estados, que implicam momento, processo, transformação, desenvolvimento, manutenção, um sistema descreve uma unidade singular que transita dentro de determinado limite. Enfim, ver operar um sistema em geral é observar um todo, uma unidade feita de partes. Ora, quando se pensa em sistema faz-se uma associação com algo que se organiza com relativa autonomia, com delimitações próprias, algo fechado em si mesmo. Tudo que não inclui determinadas características, regras ou leis implicadas naquele conjunto específico não faria parte dessa unidade. Seus contornos o discernem como unidades. Os sistemas autopoiéticos102 (do grego auto=próprio; poiesis=criação, produção), aplicados aos seres vivos, como configurados por Humberto Maturana e Francisco Varela, falam de poiesis enquanto produção e funcionam em termos de produção circular, designando sistemas que se recompõem a partir da reconfiguração de seus componentes consumidos pelo tempo e pelo esforço. São redes de produções moleculares que produzem a mesma cadeia que as produz, numa relação autogestionada que se reorganiza, solucionando-se diretamente com suas partes. Dito de outro modo, para esses autores os sistemas autopoiéticos que regem os organismos vivos funcionam enquanto sistemas fechados, autorreferentes. São as próprias partes e elementos que, ao interagirem entre si, o compõem como um sistema, como unidade, como indivíduo e garantem seu funcionamento. Sistemas fechados não significam isolados, insensíveis, imutáveis ou incomunicáveis. O fechamento a que se referem é puramente operacional, isto é, ligado apenas às suas operações. Para locomover-se, por exemplo, um organismo vivo o fará sempre através da organização de seus próprios recursos e partes, da dinâmica molecular que o compõe. A sua locomoção pode depender em maior ou menor grau do meio em que atua, mas sua identidade enquanto célula nervosa depende apenas do modo como se organizam suas partes e operações internas.
102
Autopoiesis é um conceito criado em 1970 pelos chilenos Humberto Maturana (1928-) e Francisco Varela (1946-2001) que explica como se dá o fechamento dos sistemas vivos em redes circulares de produções moleculares, em que as moléculas produzidas com suas interações constituem a mesma rede que as produziu e especificam seus limites. Ao mesmo tempo, os seres vivos se mantém abertos ao fluxo de energia e matéria, enquanto sistemas moleculares. Assim, os seres vivos são "máquinas", que se distinguem de outras por sua capacidade de autoproduzir-se. Desde então, Maturana tem desenvolvido a Biologia do Conhecimento. (http://vai.la/1V6e)
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Maturana, em “De máquinas e Seres Vivos”, apresenta a autopoiése como metonímia, também aplicável ao campo social, embora critique os abusos de linguagem que decorrem de algumas dessas aplicações. Na referida obra, Maturana nos explica que: "Uma máquina autopoiética é uma máquina organizada como um sistema de processos de produção de componentes concatenados de tal maneira que produzem componentes que: i) geram os processos (relações) de produção que os produzem através de suas contínuas interações e transformações, e ii) constituem a máquina como uma unidade no espaço físico." (...) "para que uma máquina seja autopoiética é necessário que as relações de produção que a definem sejam continuamente regeneradas pelos componentes que produzem. Mais ainda, para que estes processos constituam uma máquina, devem concatenar-se para constituir uma unidade, e isto é possível somente na medida em que os componentes que elas produzem se concatenam, e especificam uma unidade no espaço físico. A concatenação autopoiética de processos em uma unidade física, então, distingue as máquinas autopoiéticas de todo outro tipo de unidade"103
Resumindo: um organismo vivo, autopoiético, opera de forma autônoma a partir e não além das suas próprias estruturas; o fechamento refere-se às operações criadas entre as partes do sistema que constituem o limite do próprio sistema, o que não significa que eles não estejam estabelecidos no meio em que operam e sensíveis a este. No âmbito deste trabalho, e neste ponto de minha argumentação, aproximo e tomo emprestado aos biólogos a noção de sistema de funcionamento autopoiético para comentar algumas máquinas artísticas, que de certa forma também são seres que se autorregulam através de disfunções, remissões, reversões e atravessamentos. Funcionam como sistemas fechados, que lidam com ordem e desordem. Resolvem-se internamente, mas não deixam de se relacionar com o observador, com o sistema vivo e com o mundo – relações não deterministas e não apenas reativas, mas muitas vezes paradoxais, múltiplas, aleatórias ou incertas. Elas são mais estados do que unidades. São mais poros encetados de poesia, entre incorporais e corporais. Apresento a seguir três deles que poderiam estar numa mesma categoria de quimera. Ventilator: Different Energies, 1997-2005,104 obra do artista Ólafur Eliasson, é um ser movente, uma máquina-acrobática, que funciona pendurada no teto. Composto de uma parte
103
MATURANA, Humberto. De máquinas y seres vivos. Autopoiesis: la organización de lo vivo. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, Colección El mundo de las ciências, 1994. p.69 104 http://vai.la/23r3
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que é pêndulo e outra que é vento e meio no qual se desloca, dele também são partes o pédireito e o teto da instituição onde a obra instalada e o público que a visita. Durante seu funcionamento, assiste-se a um ser movente do qual não se pode esperar uma sucessão lógica de acontecimentos ou qualquer tipo de comportamento pré-fixado. Aqui é o movimento aleatório que gere toda a estrutura. Trata-se de uma máquina composta de um longo fio que, fixado no teto, dele pende, vencendo gigantesco pé-direito. Na outra extremidade do fio, um ventilador do tipo industrial desloca-se em movimento pendular. O eletro-eletrônico originalmente pensado para um fim social e industrial movimentase como que regido por moléculas. Um balanço autoimpulsionado que, a cada instante, instaura uma novidade, agencia elementos díspares num novo território. A força do movimento que desloca o ventilador faz com que suas hélices entrem em movimento; fazem o ventilador alterar direção e sentido. Assim também o visitante, aturdido com o movimento, se insere no campo de atuação do trabalho, se vê afetado e afeta o ar no qual se movimenta a máquina de vento. Variações de trajetórias tanto de um lado quanto de outro. De um lado, pêndulo arrítmico e descontrolado, uma máquina que promove um espaço lúdico; de outro, um público, que transita pela hipnose maquínica. Com suas partes em pleno funcionamento, a máquina autopoiética traça trajetórias sempre díspares e dissonantes. Vento é combustível de algumas quimeras máquínicas, não tem organismo105. Roman Signer brincou com ele em muitas instalações, como Bar, 2007, onde o vento balança garrafas de bar; 2 Wheels, na qual um ventilador faz girar uma roda de bicicleta presa à parede, e também trabalhos como Zwei Ventilatoren (two fans), 1998, quando aponta um ventilador para o outro e estabelece uma relação de dependência entre os dois. Difícil saber quando o humano percebeu a força do vento: se através da observação dos galhos das árvores ou da formação das ondas do mar. Talvez ao observar uma folha voando tenha lhe ocorrido a ideia de vela, de catavento, de moinho, de turbina. Componente autopoiético, incorporal. Fluxo puro. O que se supõe, no entanto, é que logo que instalou um pedaço de papel solto numa haste, inventou o mar. Também Wagner Tavares Malta é um desses navegadores que inventa quimeras ventanejantes. Realiza esculturas ligadas à produção de vento. Nave, 2010, é a fotografia de um exemplo rudimentar de máquina de vento, que se alinha e desalinha à beira-mar, até a água bater e o vento carregá-la mar adentro.
105
BARROS, Manoel de. Vento. In. Livro sobre o Nada e Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 1994.
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Figura 9 - Nave, 2010. Fotografia, formatos variados – (Wagner Tavares Malta)
Mas é na obra do artista lituano Zilvinas Kempinas106 que o vento contido e direcionado atualiza suas dimensões quiméricas para manter o funcionamento do sistema. Kempinas usa em sua obra basicamente um único material, além dos ventiladores: a fita magnética de videocassete. Para mantê-la suspensa, ele conta com atualização entre as partes, vento e gravidade. Uma espécie de relação autopoiética, em que o vento sustenta a força da gravidade exercida sobre a fita em movimento, que desenha, com delicadeza e contra a parede, o símbolo do infinito – que só não perece devido à compensação dos vetores exercidos pelo vento, gravidade e condições atmosféricas do ambiente. A operação dialógica remete a uma reflexão sobre a passagem do tempo, componente também sugerido pelas qualidades magnéticas, perenes e inacessíveis da própria fita de videocassete, presentes no trabalho.
106
Disponível em http://vai.la/23ra e também em http://vai.la/23rd
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Figura 10 - "Double O", 2008. Fita magnética, os fãs, dimensões variáveis. Fotografia da instalação na SP Arte, 2011 – (Zilvinas Kempinas)
PHYLUM MAQUÍNICO
Guattari aponta para uma ontologia maquínica na qual homem e máquina se hibridizam, entendendo as máquinas como pertencentes a um reino de seres vivos que inclui níveis de organização (taxons): Reino, Phylum, Classe, Ordem, Família, Gênero, Espécie e Subespécie. Neste contexto de classificação hierárquica, Phylum corresponde a um agrupamento muito alargado de seres vivos que partilham certas características evolutivas comuns. Em Caosmose, no trecho intitulado “Máquinas semióticas e a heterogênese ou heterogênese maquínica”, Guattari comenta: A evolução filogenética do maquinismo se traduz, em primeiro nível, pelo fato de que as máquinas se apresentam por ‘gerações’; recalcando umas às outras à medida em que se tornam obsoletas.(…) Mas não se trata aí de uma causalidade histórica unívoca. As linhas evolutivas apresentam-se como rizomas (...) 107.
Não se trata da abordagem antropocêntrica e humanista que consagra a máquina como a evolução da linha mecânica da ferramenta, que não leva em consideração o agenciamento com outros fatores. As máquinas desejantes se distinguem das ferramentas. As ferramentas implicam sempre uma máquina social. Até que apareça uma máquina social ou um 107
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34 , 1992, p.52
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agenciamento capaz de as transformarem num phylum, as ferramentas permanecem pouco empregadas. Elas só se constituem dentro de um agenciamento maquínico, em conexão com homens, animais ou coisas. Dizem os autores: Pensamos que é preciso estabelecer desde o começo a diferença entre a ferramenta e a máquina: um como agente de contato, outro como fator de comunicação; um como projetivo e outro como recorrente; um referindo-se ao possível e ao impossível, o outro com a probabilidade de um menos-provável; um, operando por síntese funcional de um todo, o outro por distinção real num conjunto. Constituir uma peça com qualquer coisa é muito diferente de se prolongar ou projetar, ou de se fazer substituir (caso não haja comunicação). 108
Nesse caso, revela-se que tanto a “finalidade” de uma máquina quanto a de um ser vivo é satisfazer as relações entre seus componentes estruturais. Nesse sentido podem-se aproximar máquinas e seres vivos, pois ambos funcionam impulsionados pelo desejo de manter seus sistemas ativos, desejo enquanto produção. Como se estivessem sempre rearranjando-se e distribuindo-se no intuito de um eterno fluxo composto de quebras e rearrumações, ainda que em relação de troca com o meio externo.
DIÁLOGOS
O valor da máquina foi resgatado ao longo do século XX, quando a tônica não era mais interceptá-la através de uma possível sabotagem em seu interior, mas transformá-la, resignificar suas partes, deixar que, por ela e através dela, se revelassem novas possibilidades de subversão, o que tornaria possível reconhecer sua potência revolucionária. Ao pleitear para as máquinas novas categorias de variabilidade, derrubando a fixidez inscrita no programa dos aparelhos e as categorias pré-estabelecidas para eles, torna-se possível abandonar a qualificação de indivíduos como meros operadores de máquinas, que apertam botões programados para serem acionados, e se construir uma alternativa à entropia totalitária rumo à qual o homem estaria se direcionando. Esse é o modo como Vilém Flusser considera que o jogo para combater o destino catastrófico da humanidade pode ser jogado; a construção de “um projeto de comunicação
108
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago,1976. p. 489
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dialogante” , que pode se dar de duas maneiras. Através da ressignificação do que ele aponta como imagens técnicas110, construindo assim a possibilidade de transitar sobre elas sem fixidez, desmitificando seu caráter totalitário para que se possa compreender o universo e as imagens que nele circulam. E através do uso das máquinas, das quais se originam as imagens, para compor diálogos que façam transparecer os artifícios dos programas que as geram. Para que isso se realize, o autor propõe o uso da liberdade de desprezar todas as condições préestabelecidas dos aparelhos técnicos a fim de elaborar universo não-determinado onde se possa dar a verdadeira comunicação. É a fixidez da repetição dos programas configurados nessas máquinas, segundo Flusser, que faz com que elas produzam essas imagens técnicas, programadas, previsíveis. A repetição levaria à entropia, uma vez que tais programas e máquinas não são outra coisa senão a formalização ad infinitum do primeiro pensamento que as originou – não restando nenhuma deriva além do resultado primeiro. Ao se buscarem outras formas de funcionamento do programa ou da máquina que instaurem a variabilidade, que valorizem o heterogêneo e fundem o imprevisível, acredito, juntamente com Flusser, que haja a possibilidade de insurreição contra a automação e, aí sim, a fundação de novos mecanismos capazes de criar singularidades. Máquinas e reprocessamentos que sejam capazes de quebrar a ordem estabelecida e que inventem novos formatos de ação, uma variabilidade que está latente até mesmo no programa que opera a repetição e que pode ser explorado pelo artista. Talvez, ao reprogramar o aparelho, o artista possa inventar novas possibilidades de jogo. Ainda que reconheça que essas criações possam ser rapidamente transformadas em elementos arbitrários e de massificação, seu respiro, mesmo que momentâneo, pode fazer vislumbrar algum reflexo, alguma poeira de novidade poética. Há sempre um intervalo possível de ser subvertido pelos delírios da imaginação, mesmo que por breves segundos. Há na falha, na variação, na indeterminação, um espaço para os criadores de máquinas e
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FLUSSER, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas - elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. p. 93 110 Imagens técnicas, para Flusser, fazem parte de um mundo computado, construído com pontos que se agregam para dar lugar a superfícies imaginadas, mas que são portadoras de uma zerodimensionalidade para a qual converge a representação. Essas imagens técnicas “assumem o papel de portadores de informação”. Por imagens técnicas Flusser se refere às fotografias, filmes, imagens de TV, de vídeo e dos computadores, criadas no programa de um mecanismo que, a partir de um determinado momento, instala a ilusão da concretude, da verdade.
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certamente um meio através do qual seja possível instaurar o imprevisto e, a partir dele, novas formas de diálogo. Richard Sennett, no capítulo “ferramentas estimulantes”111 do livro O Artífice, sugere o despertar para que se lide com as ferramentas de maneira a tirar proveito delas. Afirma que através de saltos intuitivos se encontrariam maneiras de rever a função inicial das ferramentas. De certa maneira, o que Flusser propõe como saída para a imagem técnica Sennett aponta como um novo método de abordagem frente às ferramentas. Sugere, para isso, quatro atitudes. A disposição de verificar se uma ferramenta ou prática pode ser mudada no uso. Ou seja, defende a importância de deixar que o limite das finalidades das ferramentas estejam abertos a novas possibilidades, em que a quebra do molde e de sua função possa ser bem vinda. Diante de dificuldades ou diversidades surgidas no uso das ferramentas verifica-se, liderada pela imaginação, a possibilidade de criação de novas derivas. Sennett propõe nesse primeiro salto que a imaginação seja o guia para uma possível reconstrução. Outro recurso para a efetuação do salto intuitivo é a aproximação de domínios improváveis. Aqui se trata de aproximações de universos que inicialmente estão distantes. O autor cita o exemplo da tecnologia do telefone conjugada com a do rádio que origina a telefonia móvel, universos que, em princípio, não seriam pensados juntos e que, uma vez aproximados, fazem nascer novas composições, novas máquinas. E ainda dois últimos estágios. E ainda dois últimos estágios. Trazer à consciência o que não é preciso dizer por estar implícito ou subentendido, preparar o terreno para o assombro, a surpresa. Esclarecer procedimentos, nomeá-los, muitas vezes revela compreensões inesperadas e de complexidade maior do que se supunha. É preciso deixar que a perplexidade penetre. Como último estágio, ele traz a noção de que um salto não desafia a gravidade. Não é o fato de haver transferências de habilidade ou prática de uma área para outra, ou de uma ferramenta para outra que vai fazer com que o problema seja resolvido. Mesmo que a técnica, a máquina ou a ferramenta destinada para aquele fim não seja suficiente e deixe ainda nebulosos os problemas a serem resolvidos, de certa forma corrige uma fantasia frequente sobre a transferência de tecnologia. Sempre quando se insere o estrangeiro, isto é, uma nova forma de lidar com o problema, há que se lidar com o que trouxe esse novo dispositivo, essa importação técnica que também trará seus próprios procedimentos e problemas.
111
SENNETT, Richard in Ofice, p. 234
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Tomo a liberdade de estender às máquinas o método descrito acima. Da mesma forma que Sennett, penso nesses caminhos não como silogismos, mas como possibilidades de criação, de rompimento com verdades, de entrada nos códigos dos aparelhos. Penso que noções como essas geram possibilidades de novos contornos para criação. Dão chance de pensar o fazer artístico, em meio ao aprimoramento tecnológico, e a ele também se conformar, revoltar, formatar e reformatar com possibilidades de novas configurações formais, estéticas, conceituais e filosóficas. Não se trata, pois, de afirmar “a obra de tal ou qual artista é uma máquina”, ou “olha como tal máquina é estética enquanto outra não é”, mas de considerá-las como tal num sentido maior. Do que teve início no século I até as investigações mais contemporâneas sobre as máquinas – das máquinas de guerra, das revoluções patafísicas da literatura, do futurismo, do construtivismo ou do surrealismo – e até mais recentemente as invenções nas áreas da informática, cibernética, traçam-se muitas linhas de fuga com as quais o léxico máquina se contorna e conforma. “antes de existir computador existia tevê/ antes de existir tevê existia luz elétrica/ antes de existir luz elétrica existia bicicleta/ antes de existir bicicleta existia enciclopédia/ antes de existir enciclopédia existia alfabeto/ antes de existir alfabeto existia a voz/ antes de existir a voz existia o silêncio/ o silêncio...” 112.
112
ANTUNES, Arnaldo. O silêncio (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown). Encarte do CD O Silêncio, BMG/Ariola, 1997.
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III. MÁQUINA ZERO “No quintal a gente gostava de brincar com palavras mais do que com bicicleta. Principalmente porque ninguém possuía bicicleta. A gente brincava de palavras descomparadas. Tipo assim: O céu tem três letras O sol tem três letras O inseto é maior. O que parecia um despropósito Para nós não era despropósito. Porque o inseto tem seis letras e o sol só tem três Logo o inseto é maior. (Aqui entrava a lógica?) Meu irmão que era estudado falou quê lógica quê nada
Isso é um sofisma. A gente boiou no sofisma. Ele disse que sofisma é risco n’água.
Entendemos tudo [...] 113 (Barros, Manoel).
Neste capítulo uso a bicicleta para apresentar um exemplo de quimera maquínica por excelência. Com a bicicleta abordarei a questão do lúdico e do cíclico. Da infância, comentarei algumas experiências que vivenciei e apresentarei trabalhos de artistas que conjugam essa máquina com arte. Farei um agrupamento desses exemplos por conjuntos. Num primeiro bloco incluirei as abstratas de Robin Rhode e The Extension of Reflection, 1992, de Gabriel Orozco, e num agrupamento seguinte apresentarei bicicletas nômades como Carbon (Pedersen), 2003, e de Tabernas Desert Run, 2004, ambas de Simon Starling, e ainda um último grupo das dobráveis, onde figuram a Roda de bicicleta,1913, de Marcel Duchamp, Four Bicycles (There is Always One Direction), 1994, de Orozco e Work, Make-ready, de Simon Starling. No final serão mencionados os filmes “Jour de Fête” e Bicicletas de Belleville, ressaltando-se alguns detalhes de suas particularidades. A bicicleta, em sua existência de menos de dois séculos, talvez seja a máquina que melhor inspire uma lúdica interação, uma quase prótese que permite que as pernas acelerem o vento sobre o corpo, encurte distâncias, permita trajetórias, desenvolva performances, encete voos. O que faz da bicicleta uma quimera maquínica reside na interação entre ciclista e máquina, em sua poiesis, quando define deslocamentos e paradas, fluxo e corte de movimentos, itinerários, intensidades, estilos próprios que tornam seu condutor uma sua parte 113
BARROS, Manoel de. Brincadeiras in Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. p.10.
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e ela, a bicicleta, tornada uma sua parte. Neste ponto caberia reproduzir a célebre pergunta formulada por Gr Bateson114: "a bengala de um cego é parte de seu ser?" 115. *** Montava num apetrecho parecido com aquele que o Professor Pardal inventou para o Morcego Vermelho. No Manual do Professor Pardal - que um dia foi meu livro de cabeceira aprendi como funcionavam e desfuncionavam algumas máquinas de conexões malucas. Com ele também devo ter aprendido a mover-me naquela traquitana. Não é que tivesse tanta destreza assim, ficava meio atrapalhada, mas lá em casa era eu a única que conseguia saltar com ele. Conjugava um certo senso de força e equilíbrio no mono-pé que numa ponta tinha uma mola super dura e forte e na outra extremidade um guidon parecido com o de uma bicicleta. Me tornava uma com ele. Pulava o mais alto que conseguia e me transformava numa espécie de saci-pererê intergaláctico, num saltitar que ia quase às nuvens, talvez na intenção de também poder encontrar o pequeno andróide com uma lâmpada no lugar da cabeça, que me mostrasse o caminho das invenções. Se hoje me encanto com uma série de movimentos macios e encadeados, também o fazia com os abruptos, com os lampejos de frequência cardíaca, com as síncopes lascivas, afinal, cresci também em meio a muitos balés, danças barrocas, tarantelas, rodopios, candomblés sonoros, giros de derviches, sempre conjugando afastamentos e aproximações. Via despertar o interesse atávico e instintivo que me ligava ao movimento, ao “não parar” infantil – aquele da menina que, por instinto, experimenta imprimir força sobre o pequeno pedal do velocípede onde descansava o pé e, num susto, vê deslocar seu mundo. Que descobre o quicar do ping-pong, a búlica da bola de gude, o sudoeste que joga longe sua pipa, o bater das bolinhas bate-bate, o movimento aquático dos aquaplay. Ou o da mesma criança que, como desculpa, entrega ao pai seu disquinho preferido só para vê-lo cair sob o braço da vitrola e observá-lo girar sobre o prato. Um braço, um eixo, um círculo, um motor, uma história que despenca uma após a outra por puro prazer estético. A repetição que gera movimento, o giro em torno de um mesmo eixo que provoca uma rotação de mundos maravilhosos, de mecanismos que se misturavam a bonecos, bichos, personagens reais e oníricos. 114
BATESON, Gregory (Grantchester, Inglaterra, 1904 - São Francisco, Califórnia, 1980) biólogo e antropólogo por formação. Pensador sistêmico e epistemólogo da comunicação, aventurou-se também pela psiquiatria, psicologia, sociologia, lingüística, ecologia e cibernética 115 BATESON, Gregory apud Cukierman, Henrique Luiz e Marques, Ivan da Costa in Uma nova ordem social, científica e tecnológica: a condição 'pós-humana'. p.2
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*** Se a bengala faz ou não parte do corpo do cego, se ao se tatear, mesmo através de uma prótese precária, inventam-se conceitos e estabelecem-se relações, dá-se o mesmo com relação ao artista e sua obra maquínica (da produção, do pós-industrial e pós-humano) e quimérica (da transgenia etc): vale-se, na sua autopoiesis, do mero lúdico à crítica social mais lúcida. O que parece claro, no caso da bicicleta, é que uma vez que se tenha aprendido como pilotá-la, jamais se esquece. Como se a memória dos meneios corporais para esse fim ficasse para sempre armazenada em sua potencialidade e se atualizasse ou transmutasse a cada vez que o corpo fosse solicitado a girar os pedais e a manter o equilíbrio. Não que o corpo tenha sempre uma mesma resposta automática a esse impulso, mas como se essa memória se mantivesse sempre ao alcance do corpo um manancial de inesgotáveis possibilidades de ação disponíveis e em vias de efetuação. O que a princípio pode ser considerada uma simples máquina técnica, por manter uma relação fluida com o humano, transforma-se, a bem da verdade, numa espécie de entidade mutante que intercepta o território do campo social. O fluxo de emparelhamentos e concatenações estabelecidos entre as partes da bicicleta e o humano provoca adaptações tanto técnicas como corporais. Quanto mais tempo passa uma pessoa com uma bicicleta, mais se mistura a personalidade de uma com a outra. O que afeta, inclusive, o modo de movimento que se produz com o veículo. Comenta Gerald Raunig. 116 [...] há humanos que só se movem pegados ao muro, outros que caminham da forma mais retilínea possível, outros que nunca se sentam ou recostam na parede quando param descansando seu peso (da bicicleta) em um dos lados ou que dão impulso apoiando o pé no freio. No pior dos casos se movem com excessiva lentidão ou se detêm na metade da calçada, se dão de bruços contra o solo e há que ajudá-los a levantar e colocá-las de lado.117
116
RAUNIG, Gerald já citado no capítulo anterior, é filósofo e teórico da arte que vive em Viena, Áustria. Autor de Arte e Revolução, 2007 e Mil Máquinas. 117 RAUNIG, Gerald. Mil máquinas. Breve filosofía de las máquinas como movimiento social, p. 16
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MAIS DO QUE COM BICICLETA:
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AS ABSTRATAS
A bicicleta apresenta em seu funcionamento uma ordem sempre aberta ao improviso, à experimentação, ao equilibrar-se de acordo com peso, velocidade e ritmo, ao passeio, à corrida, ao deslocar-se em território liso, ao andar em círculos, zigue-zagues, trepidações, balanços. A maneira como se move, como se escapa, como se experimentam com ela os territórios potencializa a qualidade, formas e intensidades dos deslocamentos. Andar de bicicleta é uma prática ambulante, pode implicar descidas de rampas, ladeiras, subidas de escadas, derrapagens, curvas radicais, arranhões nos joelhos, cotovelos, quedas bruscas, ligeiras, corridas. Produz orientações das mais aleatórias na relação com seus usuários; remete tanto ao ir para trás e para frente, ou ao andar em círculos sem que se saia do lugar, como a caminhos que têm uma destinação final demarcada como a dos carteiros, entregadores de pizza ou de farmácia. Na arte, a bicicleta passeia entre utensílios e inutensílios, opera por abstração. Abstratas enquanto intensidades saturadas que aguardam operação que as transporte. Com finalidades vagas, as bicicletas esgueiram-se entre uma e outra obra de arte. Gabriel Orozco119, artista mexicano, fez uso delas em alguns trabalhos como The Extension of Reflection, 1992. Orozco é um artista nômade, desloca-se de cidade em cidade. Vive entre o México, Nova Iorque e Paris. Seu trabalho reflete esse deslocar através da transitoriedade dos objetos, do efêmero, do uso de elementos insignificantes e dispersos do cotidiano que usa nas suas obras. Trabalha com a manipulação de materiais maleáveis como papel, espuma, madeira, borracha, plástico, barro, plasticina. O título “A Extensão da Reflexão” mostra um meio intervalar que se estende e reflete nos imaginários que observam a fotografia tomada, também ela, num intervalo antes que o sol pudesse apagar o desenho. A fotografia retrata uma intensidade criada, individuada, um desenho. Apresenta um gênero de “cristal” que, enquanto poças no asfalto, ainda se encontravam em vias de efetuação, carregando inclusive, dentro de si, a possibilidade de nascerem e morrerem poças. Mas que se estabelecem a partir do momento em que se dá o acontecimento. A bicicleta que circulou, circulou, circulou e 118
Verso do poema apresentado na abertura desse capítulo. Barros, Manoel de. Brincadeiras in Memórias inventadas: a infância.São Paulo: Planeta, 2003. p.10. 119 OROZCO, Gabriel, 1962, é um artista mexicano. Nasceu em Jalapa, Veracruz, México, e estudou na Escuela Nacional de Artes Plásticas entre 1981 e 1984. Em seguida, continuou seus estudos em Madrid, no Circulo de Bellas Artes, entre 1986 e 1987.
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atravessa as duas poças une-as, imprime pouco a pouco, entre a secagem e a evaporação dos veios de água, sua resistência, uma suspensão, um entre. O desenho cria um estado de tensão e estabelece uma fronteira de territórios que gera um mecanismo de circularidade tanto no sentido literal e imagético quanto um rebatimento que dispara o pensamento cíclico. A ação autorreflexiva lembra o Uroboros, o dragão mítico que come sua própria cauda e que representa algo que constantemente recria a si próprio, ciclos que começam de novo assim que terminam, como também o mítico Phoenix ou a tarefa de Sísifo. Enfim, algo que, persistindo antes de qualquer início, insere-se com tal força e qualidades que não pode ser extinto. No entanto, um desenho composto de linhas frágeis que concentra a força de uma duração. Parece mais um tiro certeiro de alguém extremamente atento ao cotidiano que resolveu interferir nos “espelhamentos” locais e que sobrepõe ciclos, círculos, corpo, natureza e no andar do fazer artístico.
Figura 11- Extension of Reflection, 1992 – Fotografia – formato variado. (Gabriel Orozco)
Um desenho feito à máquina testemunha a integração do artista com seu espaço de convívio. Essas micromaquinações poéticas que ligam “espelhos”, ar e água se superpõem às circunstâncias aleatórias e dispersas das poças. O processo não aparente é intuído, mas a partir dele é possível imaginar uma série de sucedâneos ao longo da via.
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A partir de “The Extension of Reflection” pode-se fazer uma analogia com algumas máquinas de desenho, que mesmo com um circuito fechado de ações consecutivas, constituem uma organicidade, uma concatenação de descontroles. Bicicletas também funcionam como máquinas de desenhos nos trabalhos de Roman Signer, tanto quando desenham com fitas que circundam o espaço, envolvendo pilares – caso de Bicycle with yellow ribbon,120 -, como quando atravessam um corredor riscando as duas paredes laterais com fogo preso na parte traseira mesma em Canal; ou, ainda, como em Fahrrad mit farbe121 (bicicleta de cor) que, suspensa com o pneu traseiro sobre uma vasilha de tinta, ao girar espalha tinta na parede, formando uma espécie de desenho automatizado, porém irregular. No entanto, mais do que orgânico, o funcionamento nessas bicicletas desenhadoras é maquínico. No caso de Orozco a bicicleta não é exatamente uma ferramenta, nem utensílio para operar finalidades, mas uma máquina disfuncional. Melhor dizendo, adaptada para um outro fim, numa ação regrada e circular, é autora de pequenas variações. O encadeamento de ações exige um método, um formulário a ser cumprido e, no entanto, está presente o desacerto, o deslize. O que mais uma vez requer reflexão. Na realização dos traços circulares do desenho, o que surge não apresenta tanto controle. Os desenhos circulares não estão esquadrinhados sob papel quadriculado, há um certo aspecto de descontrole que se mostra na sobreposição das linhas irregulares do desenho. Uma certa quebra de regularidade na atividade que desenha um fim circular. Ele acontece no “entre” e no “e”. Aqui se podem pontuar aspectos do mito de Sísifo no sentido da tarefa de um desenho que é feito e sempre se tem que voltar a ele, pois como é volátil, se apaga e para ser fixado exige muitos retornos. Dá-se por movimento que não leva a lugar nenhum, insignificante, ensimesmado. No entanto, o que parece hediondo, pela futilidade ou falta de função, vazio, na circunscrição oferece uma ruptura no entre; pequenas brechas provocam diferenças que tornam plásticas as linhas variantes. Por aí se sonha, por aí passa o elogio da ruptura, fendas por onde saltam os cavalos. “Uma tela pode ser inteiramente preenchida, a ponto de que mesmo o ar não passe mais por ela; mas algo só é uma obra de arte se, como diz o pintor chinês, guarda vazios suficientes para permitir que neles saltem cavalos” 122. 120 121
Disponível em http://vai.la/26as Disponível em http://vai.la/26av
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Encontro muitas dessas passagens, dessas brechas, nas máquinas desenhadoras e pictóricas. Em Tinguely, certamente em suas Meta-matics, em Rebecca Horn, em Les Amants, 1991, Lola, 1987, The 3-armed paint school, 1989, e também nos trabalhos de Cadu Costa. Em Migrações, máquinas de desenhar estão instaladas em diferentes meios de transportes. Ali adaptadas, contam com grafite e papel e registram os traços sísmicos dos percursos por onde passam. Cadu é o mentor da máquina, porém seus desenhos surgem das irregularidades das trajetórias, registradas graficamente sob o papel. A máquina procede por pré-determinações e apresenta resultados aleatórios e indeterminados. Há outros trabalhos do mesmo artista que se desenvolvem de forma similar, ainda que com um certo rigor. São eles Nefelibata, Habitante das Nuvens, 2005-2007, sistemas que permitem a criação de desenhos em tempo real, com base em informações recebidas das correntes de vento. Em Rumos, 20012008, carrinhos de brinquedo movidos à pilha que, com a caneta esferográfica presa em suas traseiras, dentro de uma área fechada, também registram seus deslocamentos. Ao percorrerem o interior do espaço demarcado, pela experimentação, pela repetição de movimentos, geram padrões aparentemente guiados por uma liderança, circular e justa, mas em constante diferenciação. É a experimentação do repetir que acabará por gerar muitos “E” culto da estrada interminável que não tem fundações, que corre, avança à superfície e que quebrará o determinismo do ser123 O "E" não é sequer uma relação ou uma conjunção particular, e que faz com que as relações se escapem para fora de seus termos e para fora do conjunto de seus termos, e para fora de tudo o que poderia ser determinado como Ser, Um ou Todo. (...) Pensar com "E", ao invés de pensar É, de pensar para É: o empirismo nunca teve outro segredo. Experimentem, é um pensamento realmente extraordinário, e, contudo, é a vida. Os empiristas pensam assim, e ponto final. 124
Esses artistas, como Gabriel Orozco, Cadu Costa, primam pela multiplicidade da experimentação, para aí introduzir, a seu modo, uma quebra, uma velocidade que experimentará nova língua. Objeto de desejo infantil, a bicicleta talvez seja uma das primeiras máquinas, de dimensões mais arrojadas, que toda criança experimenta. O cair e levantar, o exercício de equilíbrio, o encher e esvaziar pneu, a velocidade das apostas de corrida, a sensação de
122 PING-HUNG, Huang apud DELEUZE e GUATTARI in O Que é a Filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz, Editora 34, Rio de Janeiro, 2009. 123 DELEUZE, Gilles e PARNE, Claire t: Diálogos. Portugal: Relógio D´ Água, 1996. Trad. JGC. p.77 124 Idem. p.75
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liberdade que provoca o pedalar, a autonomia e magia conquistadas são partes dessa máquina ciclística que se insere desde muito cedo na vida infantil e que se estende às mais diversas idades e atividades, variando do lazer aos afazeres, do meio de locomoção ao passatempo. Exercício da realização e afirmação de possibilidades e liberdade da criança, a bicicleta exige conhecimento corporal, equilíbrio. Remonta à magia da experimentação da velocidade depois, ou mesmo antes, da retirada de uma ou das rodinhas laterais que servem de apoio. Se adapta ao problema, ideia ou fabulação que se possa a vir a ter em relação a ela de acordo com a maneira que está disposta, usada ou imaginada. Quem, na sua infância, não virou uma bicicleta de ponta-cabeça para especular como a corrente, acionada pelos pedais, fazia movimentar as rodas? Quem não prendeu um pedaço de copo plástico nos raios da roda só pelo prazer de ouvir a repercussão sonora que advinha dela? Quem não tocou sem motivo sua buzina ou, ao girar livre da roda colocada de cabeça para cima, não pressionou fortemente o freio só para notar a interrupção do movimento livre? Bicicletas são embriões de quimeras que comportam variações de seres individuais e individuantes, palimpsestos da memória da infância. Mentais e abstratas como a de Orozco em “The Extension of Reflection”, e também efêmeras e engajadas socialmente, como as que Robin Rhode125 movimenta pelo asfalto real da cidade. Bicicletas, no trabalho de Robin Rhode, assim como todos os objetos e cenas com as quais o artista se envolve, funcionam como que num lampejo e dão o tom de ilusionismo do trabalho. São objetos muitos simples, bolas, disco de vinil, skate, televisão, bicicletas, cenas de esporte que eram inacessíveis numa Cape Town, South Africa (lugar onde Robin Rhode nasceu) que passou pelo apartheid, período durante o qual os direitos da grande maioria dos habitantes foram cerceados pelo governo. A partir do momento em que narrativas e objetos de desejo se tornaram disponíveis, ele os faz “reais”, transformando o público numa espécie de voyeur. Como num sonho onde tudo é possível, ele torna familiar objetos e situações. Assim endereça, de forma lúdica, as questões sociais, que ganham realidade através do desenho e sua interação com ele. São desenhos registrados quadro a quadro que se fixam no conjunto em forma de vídeo. Rhode, inspirado pelo artista Kendall Geers
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, trabalha na rua e acredita no fazer
artístico enquanto parte de sua experiência de vida. Sua arte passa por uma série de experiências visuais, compartilhadas com os desenhos feitos nas paredes e no asfalto, numa 125
RHODE, Robin é um artista sul-africano, nascido em 1976 em Cape Town, África do Sul. Vive e trabalha em Berlim, Alemanha. 126 Nasceu em Joanesburgo em 1968; é um artista de performance, músico e cineasta.
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narrativa vivida e processada pelos inúmeros personagens que interagem com as cenas desenhadas a giz nas paredes, calçadas e asfalto da cidade. A interação e a vivência são reais, as situações e objetos são desenhos, cenas que remetem a pantomima. Classic Bike (1998) é uma animação que se constitui na interação com o ciclista. Nela, a bicicleta desenhada parece ganhar característica de “coisidade”. A sequência composta de diferentes estágios de movimentos em que o ciclista puxa, empurra, parece em certo momento querer roubar a bicicleta, levanta uma das pernas, na esperança de sentar no selim e ir embora sobre ela e chega a conferir dado de realidade ao objeto desenhado. Mas também transporta o ciclista para a abstração, remete-o ao plano da ficção. Ali os dois, bicicleta e ciclista, ganham forma e se concatenam pela performance que pode ser percebida no intervalo entre a abstração da bicicleta como coisa ou do ciclista como desenho. Tudo que Robin Rhode precisa e explora para que se estabeleça esse jogo dúbio se resume ao seu corpo, às vezes o de outras pessoas, pedaços de giz, uma parede, uma superfície qualquer da cidade e uma câmera. Com esse conjunto de matérias-primas elementares ele gera séries fotográficas, animações, performances e desenhos. Dessa interação entre o corporal e o incorpóreo se criam cenas onde figuram o lúdico da brincadeira infantil e a diversão que fazem a cena acontecer. New Kids on the Bike (2002), obra que parece reencenar algum tipo de lembrança de Rhode, mostra a cena de dois meninos que parecem fugir da escola no veículo animado a giz no asfalto, e, ao fazê-lo, deixam cair papéis de suas mochilas. Nessa cena o plano bidimensional do desenho e a simplicidade do traçado, como em Clasic Bike, fazem par com duas crianças e seus apetrechos de escola. A posição ortogonal e aérea da câmara em relação ao solo, onde a cena se monta, permite a confluência de espaços e transforma a superfície do chão em folha de papel, onde os personagens vivos se movimentam como se estivessem num desenho animado, maquinação do trabalho. O uso desse recurso da animação, presente em todos os trabalhos de Rhode, e o roçar da membrana do vídeo com os corpos físicos induzem à escapada para o sonho.
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Figura 12 - New Kids on the Bike – 2002. (Ronbin Rhode)
Todos esses desenhos são espécies de membranas susceptíveis de diferentes graus de tensão. Passam por significativas mudanças durante o trânsito de seu uso, quando se apagam do chão devido ao roçar da roupas dos ciclistas e das crianças que brincam sobre ela. São quimeras criadas no chão, na parede, no quadro negro, no quarto de bagunça e na garagem da imaginação como as que eu criava: Com a bicicleta, tornada de ponta-cabeça, ao soar da buzina anunciava: “olha a pipoca!”, “quem quer pipoca?”. Num passe de mágica transformava minha monark púrpura num carrinho de pipoqueiro. A pedaleira imediatamente virava a tampa giratória da panela de pipoca. O selim se invertia e transformava-se em apoio. O pedalar da roda livre da bicicleta, deslocada do chão, fazia funcionar uma máquina de fazer pipoca; era o lapso por onde escapava a razão, e fazia a correia desatar e girar algumas engrenagens do mundo da fantasia onde observava os movimentos primordiais e construía minhas primeiras maquinações quiméricas. Gostava de brincar de gestar, gestuar, de pegar giro. Gostava desse universo de polias, parafusos, roldanas, seres moventes. Queria mesmo era dar uma volta de bicicleta na Rua dos Crocodilos onde respiram os Irmãos Quay127 e brincar imersa em seus puppets mecânicos e canteiros de coleções de parafusos enferrujados que brotam em meio a planos e tic-tacs vagos e empoeirados, lâmpadas queimadas, porcas que brincam de equilibristas, limalhas de ferro que se atraem em rodopios rítmicos, queria poder me irmanar com eles. 127
QUAY, Stephen e Timothy (gêmeos nascidos em 17 de junho de 1947 em Norristown, Pensilvânia), animadores conhecidos como Irmãos Quay. A maioria de seus filmes de animação caracteriza-se por bonecos feitos de peças parcialmente desmontadas, de materiais orgânicos e inorgânicos, muitas vezes, em um ambiente escuro, mal-humorado. Destacaram-se em 1986 quando realizaram o trabalho Street of Crocodiles, baseado no conto de mesmo nome do autor e artista polonês Bruno Schulz.
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Fundir-me nas suas máquinas de desejos, de repetições de imagens, por puro deslumbre. Só para me embrenhar nos eixos dos carretéis da máquina de projeção por onde correm acetatos que guardam e revelam histórias animadas por pequenos personagens que me divertiam e que me faziam observar, de sobrolho, a colocação do filme na máquina de projeção que já ia começar. Observação que, mais tarde, me ajudaria a fazer funcionar outras tantas máquinas. Suponho que durante as “cerimônias” de uso desses dispositivos talvez tenha se fundado uma espécie de rito de iniciação, um volume que só me atravessaria mais tarde no momento em que passei a enveredar pela arte e a incorporar elementos pertencentes a essas máquinas em meu repertório artístico. Talvez tenha vislumbrado – na máquina de projetar filmes, na bicicleta, no toca-discos – a confirmação do mundo mágico. Talvez essas três máquinas sejam os três animais básicos que dão origem à minha quimera maquínica imaginária. Uma quimera mítica, uma máquina de três cabeças criada a partir desses três aparelhos, ou mesmo com apenas um deles. Um braço de vitrola com uma agulha que faz tocar uma roda de bicicleta pela qual passa uma película que será projetada na parede, ou ainda qualquer outra combinação desses aparelhos. Deslocamentos que passam pelos mais diversos registros – físico, sensório, perceptivo, afetivo –, que não param de interpenetrar-se num conjunto de intensidades e diferenças capazes de se organizarem e reorganizarem, de mixar estruturas físicas a sonhos, concretudes a fabulações idílicas, capazes de transformar um toca-discos em outras individualidades moventes tais como o Viophonograph de Laurie Anderson em 1976, que mescla um corpo de violino a um disco de vinil gravado especialmente com sons de violino e frases, ou como Wheel of Steel (2006), de Robin Rhode, que faz tocar um longplay na calçada e na imaginação. Vitrola que assume narrativa criativa e viva através das sucessivas imagens desenhadas em sequência que se move em rotações de 33rpm ao stop motion.
BICICLETAS DOBRÁVEIS
Dos esboços nos quais Leonardo da Vinci mostra um sistema de transmissão básico da bicicleta, passando pela Tête de Taureau (1947) de Picasso – na qual um selim e um guidom são deslocados de seus lugares originais e suspensos numa parede sob forma de máscara de boi –, até os dias de hoje, passando pelas que são desenhadas à caneta esferográfica na utópica
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cicloviaérea de Jarbas Lopes , ou pelas obras performáticas de Roman Signer como Bicycle with yellow ribbon, 1984, Bicycle, 1991, ou Canal, 1992, foram muitos os modelos e formas de maquiná-las na arte, o que também inclui o cinema, o vídeo, a performance. "Em 1913 tive a feliz idéia de fixar uma roda de bicicleta a uma banqueta de cozinha e vê-la girar." (DUCHAMP, A propos of readymades, 1951). 130
A partir do momento em que Marcel Duchamp instala uma roda de bicicleta de metal sobre um banquinho de madeira para observar o movimento da roda girando sobre o eixo do garfo e o deste girando na base do banco ele realiza um deslocamento de função e movimento na arte. Como confirmam os depoimentos de Duchamp, a Roda de Bicicleta surgiu como uma oportunidade prosaica de experimentar a composição cinética. A peça, em seus movimentos banais, apresentava uma oportunidade de observar como as coisas funcionam, observação a partir da qual seriam investigados subsídios para trabalhos posteriores. Tocá-la ao redor do eixo servia mais como metabolização, distração e modo de admirar os deslocamentos projetados pela roda do que especificamente um trabalho que colocasse em questão a ideia de ready-made. Mais um brinquedo do que uma obra. Em entrevista a Pierre Cabanne, o artista fala sobre esse “exercício”, Duchamp: Pierre Cabanne: Como você veio a escolher um objeto produzido em série, um ready-made, para fazer uma obra de arte? Marcel Duchamp: Note bem, não queria fazer uma obra de arte. A palavra ready-made só apareceu em 1915, quando fui aos Estados Unidos. Ela me interessou como palavra, mas quando coloquei uma roda de bicicleta sobre um banco, o garfo invertido, não havia ainda qualquer idéia de ready-made ou coisa parecida, era apenas uma forma de distração. Não havia uma razão determinada para fazer aquilo, ou alguma intenção de exposição, de descrição. Não, nada disso...
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Cicloviaérea (2003-2004), a rigor um meio de transporte - um plano levemente inclinado, ligando um ponto a outro do trajeto com bicicletas, dispensando assim o uso de combustível. Contudo, tal plano não foi construído, mas, sim, esculturas-bicicletas que são símbolo do projeto. As obras de Jarbas Lopes operam num campo relacionado às margens do capitalismo, valorizando o artesanal e o original e resistindo à massificação crescente do nosso momento histórico. Jarbas Lopes (1964. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro), vive e trabalha em Maricá, Rio de Janeiro, Brasil. Formado em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalha com materiais pouco nobres e um procedimento frequente em seus trabalhos é a reconfiguração de objetos. Alterando a aparência de bicicletas sem, no entanto, interferir em seu uso, Jarbas preenche espaços vazios e encapa a superfície metálica delas com trançados de vime. 129 SIGNER, Roman (1938, Appenzell, Suíça), artista visual que trabalha com escultura, instalações, fotografia e vídeo. 130 "In 1913 I had the happy idea to fasten a bicycle wheel to a kitchen stool and watch it turn." - Duchamp, Apropos of Readymades, 1951
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Pierre Cabanne: Mas, mesmo assim, um pouco de provocação. Marcel Duchamp: Não, não. É muito simples. [...] 131
Ready made ou não, o que torna essa composição importante para a essência desta dissertação é o fato de que a partir desse momento Duchamp abre caminho para uma série de montagens e combinações feitas a partir de objetos disponíveis no mercado. Duchamp, com o gesto de unir objetos de mundos disjuntos abre portas para novas formas de conexões artísticas com as quais lidaram muitos artistas que se seguiram, como por exemplo os surrealistas. A diferença significante porém é que aqui não se trata de desocultar o segredo dos objetos que só funcionam em conjunto, mas de produzir, inventar e reinventar o sentido da conjunção das partes em constante estado de mudança. Nesse caso a junção da Roda de Bicicleta ilustra bem o que trato aqui como quimera maquínica. Um tipo de máquina que combina conjunto de próteses, conceitos, visões de mundo, suportes materiais ou desmaterializados, partes reinventadas autopoieticamente no fazer artístico. Todo ready-made, objeto corriqueiro do cotidiano ou do mercado que ao ser transportado para o museu é elevado à categoria de obra de arte, apresenta algo de nonsense. Isso não significa algo sem sentido, mas com características gerais transmutadas, que estabelece um novo grau de reinvenção, confluência de idéias e de conexões estabelecidas a partir de um ponto e vista. Para David Sylvester, por exemplo, a Roda de Bicicleta parece tecer comentário irônico sobre a evolução do homem através da invenção. A roda, nessa escultura, perde sua função e é retratada numa belíssima passagem desse autor: Era uma roda de bicicleta colocada de cabeça para baixo sobre um banco. Ora, os dois objetos aqui reunidos são os mais básicos no vitorioso domínio do homem sobre a terra e na sua distinção das bestas: o banco o capacita a sentar-se a uma altura e num local do chão a sua escolha; a roda o capacita a mover-se de um lado a outro com seus objetos. O banco e a roda são as origens da civilização, e Duchamp os tornou inúteis: ...pegou um banco útil e uma roda útil e tornou-os inúteis... Ele os converte em coisas que estão ali para ser olhadas. Duchamp parece estar dizendo que componentes de bicicleta podem se tornar escultura simplesmente por serem tratados como escultura. 132
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CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva, 2008. 2.ed. pag.79 132 SYLVESTER, David. Sobre arte moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. pag 472
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Em Work, Made-ready, Kunsthalle Bern, 1997, Simon Starling realiza uma inversão no ready-made de Duchamp. Contorce a contorção. Fazem parte do trabalho uma bicicleta completa e não uma roda; uma cadeira e não um banco.133 Ambos componentes do trabalho, assim como os ready-made de Duchamp também são tirados do mercado com o acréscimo de que no trabalho de Starling eles pertencem a uma grife de design; tanto a cadeira Charles Eames quanto a bicicleta Marin Sausalito. A Cadeira Eames
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, projetada para o mercado high-end, figura entre os móveis que
fazem parte da coleção permanente do museu de Arte Moderna de Nova York. Bicicleta da série Marin Sausalito é um tipo híbrido que tanto proporciona conforto em passeios pela cidade como também é eficiente na prática do ciclismo e ainda configura um tipo de peça de design sofisticado e pensada para um público seleto. A bicicleta e a cadeira são compostas originalmente de partes de alumínio, dentre outros materiais. O artista derrete e substitui as peças de alumínio retiradas da cadeira Charles Eames pelas que pertenciam à bicicleta Marin Sausalito e vice-versa, para compor o trabalho. Dessa forma, Starling corrompe as duas peças e torna-as fakes. Equilibra o espectro de nobreza das peças, assegurando um outro tipo de consanguinidade. Maquinação com direito a outros requintes de nuances, além de pertencer à linhagem Duchampiana. As mutações da cadeira, um objeto de museu, emprestam à bicicleta o grau de “celebridade artística” que mantém seu caráter lúdico e esportivo. Os “gens alumínicos” da bicicleta, ao serem injetados na cadeira, relativizam seu aspecto nobre. Aqui se apresentam materializações híbridas diversas além do próprio título, que usa a palavra work, antes da inversão made-ready. São elas: a peça original da própria bicicleta Marin Sausalito; a da cadeira-bicicleta; a da bicicletacadeira; a da Duchamp-Starling; usuário-história da arte; do trabalho como um todo.
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Não é questão de comparação ou de medição de graus de importância entre as duas máquinas, a de Duchamp e a de Simon Starling; a observação serve tão somente às especulações adiante. 134 Primeira cadeira projetada por Charles e Ray Eames para a Herman Miller Inc. Herman Miller Inc., com sede em Zeeland, Michigan, é um grande fabricante americano de móveis para escritório e equipamentos, bem como mobiliário para o lar.
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Figura 13 - Instalação Work, Made-ready, Kunsthalle Bern, 1997. (SimonStarling)
Os dois objetos, cadeira e bicicleta, estão expostos em ambientes distintos, salas diametralmente opostas, separadas por uma parede de vidro. O fato de estarem separados fisicamente não é confirmado na sua essência, uma vez que ambos os objetos possuem partes um do outro estando intimamente vinculados e presentes em ambas as peças. As frases que são dispostas nas paredes em frente aos dois objetos dão o que pensar: na cadeira: “Uma cadeira “Groupe Aluminium”
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de Charles Eames refeita utilizando o metal de uma
bicicleta Marin Sausalito” e na bicicleta: “Uma bicicleta Marin Sausalito refeita utilizando o metal de uma cadeira “Groupe Aluminium” de Charles Eames.” Precisamente mais uma peça dessa engrenagem. Assim o artista inicia uma espécie de ping-pong remetendo a cadeira à bicicleta e a bicicleta à cadeira. O fato de ambos, produtos de serializações industriais, serem construídos através de processos manuais de sofisticada realização e também de necessitarem de cirurgião de alto gabarito para que os transplantes sejam realizados de forma a fazerem funcionar o trabalho, também faz parte do jogo artístico. O dois objetos produzidos em série apresentam, nas suas superfícies, marcas indeléveis de uma cirurgia engenhosa e discreta que só se percebe quando se aproxima do trabalho e faz-se, com ele, outra hibridação.136 Tanto Roda de Bicicleta como Work, Made-ready, são exemplos-chave de quimeras maquínicas, dado que são fusões e engendramentos de partes de procedências diversas e múltiplos acontecimentos que promovem e comportam muitas linhas de força e dobram-se 135
Fundada em 1993, Aluminum Group da França é uma holding que controla um grupo do setor do metal, e é especialista em usinagem, mecânica de precisão, extrusão de alumínio, concepção e montagem de conjuntos e subconjuntos, dobra, corte, perfuração 136 Além dessas maquinações, o trabalho parece fazer uma associação com a Irlanda, referida no romance de Flann O'Brien A Terceira Policial. Informação encontrada em: http://vai.la/244u
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sobre eles mesmo num movimento arredondado que transita num certo nomadismo sem endereço certo, movem-se num entre. A trajetória percorrida pelas bicicletas de Gabriel Orozco segue o caminho da extração e da reconfiguração. Em Four Bicycles (There is Always One Direction), 1994, as bicicletas de Orozco, feitas para se movimentarem, aparecem em conjunto de quatro unidades, unidas pelos canos que recebem o selim. A escultura, apoiada num centro de gravidade, é estável e autossustentável. É importante frisar que para o artista é extremamente relevante que as bicicletas não estejam soldadas,137 dando sentido à estrutura que negocia seu equilíbrio. Acopladas umas às outras, sem os selins e guidons, estão inertes, empilhadas, como numa interdição. No entanto, o fato de não estarem soldadas mantém em aberto a opção de serem usadas, ainda que sem os selins e os guidons. Seria possível desacoplá-las, montá-las e escolher uma direção a seguir. Dessa forma elas não foram exatamente tiradas de circulação, mas apenas suspensas, momentaneamente içadas entre a possibilidade de movimento e sua interdição. Existe sempre uma direção, como se sempre existissem possibilidades latentes de orientação. A indicação do título parece brincar com vetores de sentido e com a força para se estabilizar na presença da gravidade. A obra aponta, no seu conjunto, pelo menos quatro vetores de direção: norte, sul, leste, oeste. Podem-se adotar algumas dessas opções de deslocamento. Soltar alguma das bicicletas, dotá-la de orientação e seguir. Pode-se deixá-las inertes e movimentá-las na imaginação. Ao observar a peça exposta, veem-se apenas três rodas no chão.
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TEMKIN, Ann. Gabriel Orozco.New York: Museum of Modern Art, 2009. p92
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Figura 14 - Four Bicycles (There is Always One Direction), 1994. (Gabriel Orozco)
Ao pensar que essas rodas poderiam se alternar, executa-se o primeiro giro na escultura. O movimento é criado e pode-se ficar aí a girar mil cambalhotas. O ready-made, mesmo ao dobrar-se sobre si mesmo, multiplica-se e faz circular, se não o objeto pelo menos as sensações. Um certo senso melancólico pode remeter a uma época em que esse veículo não tem mais tanta expressão como teve no passado, ou mesmo remeter à infância, àquela vontade de colocar para cima as rodas da bicicleta e vê-las funcionar sem sair do lugar, ou lembrar da instalação duchampiana da Roda de bicicleta. Ou ainda pode falar também do equilíbrio necessário para conduzir uma bicicleta, de como sustentá-la sem cair. Equilibradas precariamente, as bicicletas gerenciam também uma estética sem direção única. O dado poético se estende – mesmo encalacrado e composto de quatro elementos iguais, ainda há formas de fazer movimentar essa quimera maquínica numa espécie de mandala. Assim como Simon, Orozco também reconfigura partes. Do seu convívio em Roterdã com esse tipo de bicicleta holandesa, cria quimeras que também podem remeter a algum tipo de acrobacia circense. Uma espécie de globo da morte de circo onde acrobatas, contorcionistas e equilibristas desenvolvem agilidade, força e flexibilidade. Durante a pesquisa sobre o trabalho de Gabriel Orozco encontrei outros acoplamentos ciclísticos138 que poderiam ser reunidos aqui sobre o item dobráveis.
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Disponível em http://vai.la/244w
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Essas bicicletas têm em comum o fato de se movimentarem através da circularidade. Dobram-se sobre si mesmas, executam uma trajetória circular que na mecânica clássica é considerada força centrípeta, sendo continuamente aplicada em direção ao centro do círculo. Mas a circularidade não acontece apenas fisicamente, como no caso de The Extension of Reflection. Orozco, que define seu movimento giratório através das marcas feitas pelos sulcos abertos da borracha do pneu, ou pela característica formal das dezenove bicicletas dispostas no grande círculo do trabalho Her 19th Foot, 1995, de Yutaka Sone139, onde o circular lembra a estrutura de um carrossel ou, ainda, como em Forever Bicycles, 2003, do artista chinês Ai Weiwei, em que bicicletas sobem numa torre cilíndrica. A circularidade aqui também se dá sem que haja movimento físico real, como observado em Work, Made-ready, de Starling, quando se percebe que, ao se olhar para a bicicleta vê-se a cadeira, e ao olhar para cadeira, o que se vê também é a bicicleta. Também há aqui um jogo maquínico, uma espécie de vice-versa que nos joga de um lado a outro incessantemente. Um looping, ou, de novo, um Uroboros, que envolve uma dança em torno do objeto, um remoinho que mantêm o sistema operante. Um sistema autorreferencial, assim como Picasso gostaria que acontecesse com sua "Cabeça de touro". Que fosse encontrada por um ciclista que pudesse readaptá-la num selim e guidom de bicicleta e que, em seguida, fosse, mais uma vez, transformada numa escultura e sucessivamente ficasse se transformando e retransformando de escultura em bicicleta, de bicicleta em escultura ad infinitum140
Figura 15 - Instalação de Her 19th Foot , 1995, exposição individual de Yutaka Sone no Center for Contemporary Art, Malmö, Sweden 139 140
SONE, Yutaka (1965), artista contemporâneo japonês, vive e trabalha em Los Angeles. SYLVESTER, David. Sobre arte moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. pag p. 467
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Mas há também quem, como o psicanalista Erich Neumann, associe o redondo ao feminino, emocional vinculado à consciência: O círculo, a esfera e o redondo são aspectos do Autocontido, sem começo nem fim; na sua perfeição pré-mundo, precede todo processo, é eterno, porque, em sua rotundidade, não há antes nem depois, não há em cima nem embaixo, não há espaço. Tudo isso só pode surgir com o surgimento da luz, da consciência, que ainda não está presente; aqui ainda domina a divindade não exteriorizada, cujo símbolo é, por conseguinte, o círculo. 141
Pode-se especular que o "carrossel" de Her 19th Foot, onde dezenove bicicletas são apresentadas conectadas umas às outras, fala também de ciranda, de feminilidade, de redondeza, de demarcação de abrigo. A obra pode implicar tanto uma releitura sobre a máquina-carrossel do começo do séc. XIX – que se movia através de motor à explosão ou elétrico numa plataforma giratória – como pensar num possível e mínimo deslizamento a partir da rotação do próprio carrossel de bicicletas, que aqui pode ser acionado pela tripulação de ciclistas que, pedalando, controlam o sentido de rotação e a velocidade da mandala. Ao mesmo tempo em que podem ser contadas como unidades, só podem funcionar como um todo, são um sistema do tipo bootstrapping,142 autossuficientes: ao lidarem com suas próprias partes, garantem a própria manutenção. A autonomia provocada pela interação das partes é autorreguladora. Implica uma causalidade retroativa, um sistema no qual produtos e efeitos são necessidades do produtor e causador, autopoiético. As bicicletas feitas de aço pesado que aparecem empilhadas em Forever Bicycles são confeccionadas em Xangai desde os anos 1940, e atendem à população chinesa como meio de transporte fundamental. Forever é a marca mais famosa de bicicleta chinesa. O vocábulo forever indica um bem eterno, construído para durar uma existência. Seu uso, no escopo dessa redoma ciclística, coloca em jogo questões que se relacionam com valor atribuído aos bens de consumo, aos objetos descartáveis, ao excesso em contraposição com um veículo, um objeto de posse que carrega valor cultural de um povo. Ao erigir essa torre cilíndrica, o artista parece interrogar o papel do volume de mercadorias dispostas no mercado como bens de consumo descartáveis em contraposição com o peso de um bem material que 141
NEUMANN, Erich. História da Origem da Consciência, SP, Cultrix, 1990 Termo de origem inglesa que se originou na década de 1880 como um acessório para ajudar a calçar botas. Em computação começou como uma metáfora nos anos de 1950. Pressionar um botão de bootstrap faria com que um programa embutido lesse um programa bootstrap de uma unidade de entrada e então o executasse. Tal programa lê mais instruções de programas e torna-se um processo autossustentável, que procede sem ajuda externa de instruções inseridas manualmente. 142
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foi um dos ícones da era pós-revolucionária. Essas bicicletas, partes de um sistema fechado pelo artista, têm sua utilidade, parte de uma escultura inerte, interditada, imobilizada. Sistemas, como visto no capítulo dois, são conjuntos de partes organizadas, implacavelmente administradas, retroagindo consigo mesmas. No caso de Forever, e também em Her 19th Foot, as bicicletas são as moléculas de uma organização complexa que devem ser vistas como parte de um conjunto, de um sistema, uma pele. Nele, não existe começo nem fim, mas um meio, um agrupamento que mantém um “funcionamento” operacional, uma membrana porosa de bicicletas que separa dentro e fora, que faz o ar atravessar meios, que assegura a autonomia circular do conjunto.
NÔMADES
De alguma forma a circularidade, o voltar a algum ponto do trajeto, o esforço empreendido por motivo aparentemente absurdo encontram também reverberação nos trabalhos de Simon Starling 143. No mundo de Simon Starling, o tempo existe em loops e curvas, mais do que em linhas retas. Objetos são traduzidos de uma coisa para outra, como é o caso da cadeira que foi derretida para fazer uma bicicleta e da bicicleta de montanha que se tornou uma cadeira. 144
Em sua prática, o artista "equilibra" a máquina aventureira, que é a bicicleta, sobre narrativas complexas. Desloca-se fisicamente, permeia fronteiras internacionais para observar os fatos e recontextualizá-los. Interessado no fluxo de ideias e reconstrução de histórias, ele faz circular objetos entre fronteiras, como o fez ao transportar um veleiro Loch Long para a Bienal de São Paulo, instalá-lo de ponta cabeça, transformando-o numa espécie de abrigo, quando carrega itens como ervas daninhas e as adapta à terra seca de um espaço de exposição em Veneza, ou, ainda, quando em 2005, desmantela um humilde barracão das margens do Reno e o transforma em um barco, para depois de remar rio abaixo, conduzi-lo de volta ao formato original de galpão numa mostra em Basel. 143
Simon Starling (1967-) é um artista conceitual inglês, ganhador do Prêmio Turner de 2005. Vive e trabalha em Copenhagen e Berlin e é professor de arte na Städelschule em Frankfurt am Main. Nasceu em Epsom, Surrey, na Inglaterra, estudou fotografia e arte no Maidstone College of Art (1986-1987). Cf. http://vai.la/20xP 144 Comentário de Moira Jeffrey em matéria no Herald Scotland em 17 junho de 2011. Disponível em http://vai.la/26sC
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Transformações que desafiam a lógica habitual e regulamentações são patentes também em dois outros trabalhos, Autoxylopyrocycloboros. e Wilhelm Noack oHG. Autoxylopyrocycloboros um acontecimento registrado em vídeo de uma viagem pelas águas do lago Loch Long, em um barco de madeira, em que se assiste a decomposição do mesmo. Simon Starling secciona com uma serra a madeira do próprio barco e transforma-o no combustível que faz o barco deslocar. O casco da embarcação alimenta a caldeira, garante seu movimento e a desmantela. Seu destino inútil figura o próximo passo, submergir. Simon Starling afirma, com Autoxylopyrocycloboros, uma atualização pró-ativa. A reutilização de máquinas e o know-how tecnológico são parte integrante e fundamental do trabalho. Em Starling, as coisas funcionais mantêm-se para além de seu funcionamento, trabalham mas não como foram originalmente destinados. Outro trabalho é Wilhelm Noack oHG145 que conta com uma projeção de um filme e um projetor diferenciado – uma escada em espiral, em aço inoxidável, lotada de roldanas através das quais perfilam os frames do filme de 35 mm até que cheguem à lente do projetor. Montado e desenvolvido em Berlim, esse projetor esdrúxulo, exibe um curta-metragem rodado na própria empresa que dá nome ao trabalho. Wilhelm Noack oHG é também o nome da fábrica que teve conexões com a Bauhaus, a Internacional Modernista, os projetos para o Terceiro Reich o pós-guerra na Berlim Ocidental, e desde os meados dos anos 90 colabora com os membros da cena artística florescente. Starling em entrevista concedida a Dominic Eichler, comenta que se trata de uma elaborada “Caixa com o som de sua própria construção”
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. O filme apresentado em loop
apresenta uma estrutura retórica, um documentário sobre a realização da elegante escultura cinética. Ou seja, o trabalho engendra seu próprio fazer, ao mesmo tempo que insere um pedaço da história de Berlim. Starling conta histórias com suas obras. Funde rigor e fantasia. Exige um trabalho em que o intelecto precisa estar em constante exercício. O resgate de alguma passagem através de um objeto marca seu processo de retornos circulares, saltos no tempo e no espaço, que obrigam quem entra em contato com a obra a um esforço de buscar, alhures, o foco do assunto abordado. Seu movimento é nômade, ele próprio uma máquina atravessada por muitos acontecimentos entre Glasgow, Berlim, Frankfurt e 145
http://vai.la/1VAn O titulo de “Box with the sound of its Own making” pertence a uma das primeiras esculturas feitas por Robert Morris. Um cubo de madeira que continha um gravador que reproduz a feitura do cubo. Sylvester, David. In: Sylvester, David. Sobre arte moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. pag 277 146
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outras cidades e assuntos históricos. Em vários de seus trabalhos pesquisa tecnologia de células de combustível e utiliza, como protagonista, meios de transportes. Em alguns deles a bicicleta é peça integrante fundamental. Na obra Carbon (Pedersen), Starling adapta duas bicicletas Pedersen.147 Instala uma motoserra como motor na parte dianteira da bicicleta. Nela são amarradas, por corda elástica, restos de madeiras, toras de árvore. Nos trabalhos de Simon as conexões entre as partes parecem infundadas. Parece estranho o motor de uma motosserra mover uma bicicleta. Essa conexão aparentemente improvável, que aqui posso chamar quimérica pela fusão de seres que apresenta, grosso modo poderia ser considerada dadaísta ou mesmo surrealista. Porém, a noção de ingenuidade logo é contraposta à dificuldade de entrar em seus trabalhos que, em geral, a julgar apenas pelo título, não oferecem acesso fácil de imediato; no entanto, fornecem pistas. Ao observar a instalação montada, percebe-se logo seu valor maquínico e, nesse sentido, quimérico. Existe uma história que justifica as partes e seus materiais; a bicicleta em questão não pertence a um ciclista querendo vencer uma estrada ou uma trilha para testar sua resistência e habilidade de sobrevivência, pertence a um artista com ambições capciosas. As Pedersens de Simon Starling são seres mutantes. Desmontadas, transformam-se em kit de sobrevivência, apresentam um novo ambiente. A instalação da obra no espaço expositivo mostra uma bicicleta encostada à parede e a outra desmontada. A motosserra, retirada de sua função de motor, volta à sua função original e fica liberada para cortar madeira. A capa presa ao quadro cruzado se transforma em barraca, o selim se transforma em banqueta, a madeira, atada na parte traseira, pode ser utilizada como combustível. Ao desmontar as peças da Pedersen, Starling desloca as fronteiras existentes, refaz os objetos e revela as partes da máquina que farão funcionar o mecanismo. Pode-se imaginar o espaço de convivência criado a partir da instalação da obra. Algumas possibilidades estão em jogo: um acampamento. Um espaço de convivência em torno do qual muitas histórias podem ser trocadas. Um acampamento potencializado pela convivência, pelo lúdico, pela descontração. Histórias de subjetividades que constroem relações com o "outro". A máquina bicicleta, desmembrada, promove um habitat também maquínico.
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PEDERSEN, Mikael (1855-1929) foi um inventor dinamarquês cujas bicicletas são conhecidas pela elegância futurista e leveza. Sua estrutura incomum é descrita como quadro cruzado puro; foi comercializada com um ponto de suporte (cantilever), e possui um banco em estilo de rede. Variações incluem modelos leves de corridas, bicicletas geminadas (tandem) e projetos de dobradura. Cf. http://vai.la/20xQ
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Figura 16 - École Supérieure des Beaux-Arts de Valenciennes, França, 2008. (Carbon Pedersen, Simon Starling).
Em torno do trabalho forma-se uma pequena ilha que constitui uma espécie de espaço provisório gerador de diálogos e intercâmbios. As peças de Starling, em geral feitas à mão, usam tecnologias leves, não industriais, conjugam improviso, experimentação e jogos intelectuais de elaborado calibre. Pelo fato de não serem produzidas em série, guardam uma singularidade hand made. Além de abrirem o campo para novas possibilidades de função e forma da bicicleta, esse tipo de exemplo mostra como, a partir de uma máquina simples, pode ser feita uma reprogramação dos aparelhos, saída apontada por Flusser para a programação das imagens técnicas. Aventureiro nos intercâmbios das peças e funções que fazem parte de suas obras, nos comentários irônicos e nas viagens de peregrinação que o lançam ao mar e ao deserto, Simon Starling parte em busca de histórias singulares. No trabalho intitulado Tabernas Desert Run, ele atravessa o deserto de Tabernas, no sul da Espanha, em sua bicicleta elétrica improvisada. Percorre o deserto durante três dias, debaixo de sol, numa viagem ergonômica e ecológica que resulta na instalação da obra. Tabernas, único deserto verdadeiro na Europa, cresce a cada ano devido a mudanças do clima. As condições meteorológicas ali são apropriadas e utilizadas, a partir de 1954, pela produção cinematográfica ítalo-espanhola. Sergio Leone foi um dos diretores que começou a rodar ali, durante o ano de 1964, filmes como "Por Um Punhado de Dólares", "A morte era um preço", entre outros. A bicicleta de Starling, dessa vez de corrida, parece mais bem aparelhada e também cruza o deserto de Tabernas. Funciona conduzida por motor elétrico. O que fornece tal eletricidade ao motor é uma célula alimentada por garrafas de hidrogênio
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comprimido e oxigênio do ar do deserto.
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O único resíduo deixado pelo ciclomotor foi água
que, captada em uma garrafa, apresenta-se instalada na bicicleta. O jogo implicado aqui tem como partes a tentativa humana de adaptação ao clima, ao território do deserto e ao meio ambiente, a trajetória, a bicicleta, a instalação da obra e a planta, fac-símile, projetada para sobreviver com absolutamente nada, o cactus. A bicicleta é um meio de locomoção que não envolve danos ambientais; ao colocá-la em funcionamento motorizado por um processo em que o combustível não promove danos à natureza, Simon Starling parece reafirmar o uso desse frágil veículo como alternativa ecológica. O deserto é um território inóspito, agressivo, que oferece resistências. Mas também um terreno de desmaterializações, um território liso adequado à invenção de trajetórias das mais variadas. Vislumbram-se miragens. Ali não existe caminho certo, cria-se de acordo com as peregrinações individuais, com os fluxos de intensidades. Simon Starling rende homenagem a Sergio Leone e aos filmes de cowboy, mas também pode-se pensar que faz comentário irônico a respeito do uso do deserto como cenário, dos combustíveis que se usa para abastecer os veículos, do reaproveitamento, da luta pela sobrevivência no planeta que tende à entropia. O grau de complexidade da engenhoca deixa como produto a água que será utilizada na realização da aquarela de um cacto. Na chegada da incursão de 2000 milhas através do deserto ele pintou uma aquarela de um cacto com a água produzida durante a viagem. Consta que em suas gravações Leone introduzia cenograficamente cactos, que na verdade não existiam na região, como peças dos sets de filmagem, naturalmente para conferir um caráter mais verossímil ao deserto. É importante ressaltar o fato de o artista utilizar a água (escassa no deserto) para pintar o cacto cenográfico. O próprio cacto é símbolo de algo que não está lá, que não brota naturalmente deste ambiente – o que revela algo sobre todo o fazer artístico: insere-se algo que não existe para apontar para algo que existe no imaginário do artista.
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O motor funcionava com a potência de 900 watts que era fornecida por uma célula combustível que foi capaz de produzir mais de 1200 watts de potência usando uma garrafa de hidrogênio comprimido e o oxigênio do ar do deserto. A jornada inteira, 66 quilômetros sobre terreno ondulado, consumiu duas garrafas de 800 litros de ar comprimido. O único produto desse ciclomotor foi capturado numa garrafa instalada em baixo da célula de combustível; o resto escapou como vapor d`água. Retirado do livro: Under lime, simon starling, p.117. Referências retiradas do site da Tate Gallery. Disponível em http://vai.la/21kp
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O trabalho também faz uma referência direta a Death Valley Run, 1977, do artista Chris Burden, que também usa uma bicicleta movida por um motor à gasolina minúsculo para atravessar por sete horas o deserto do Vale da Morte na Califórnia.
Figura 17 - Tabernas Desert Run, 2004. (Simon Starling)
A viagem precária pelo deserto acaba por encerrar a bicicleta híbrida, aquarela botânica do cactus Opuntia, numa grande folha de papel numa vitrine lacrada sob o teto pintado de azul da galeria. Talvez um jogo irônico composto de personagens míticos. Uma bicicleta que percorreu um longo trajeto, interditada. Uma espécie de cacto originário do continente americano, adaptado a ambientes muito secos cujo fruto pode ser consumido ao natural, sob um céu azul igualmente artificial que também foi pintado com a utilização da água recolhida pela viagem. Enfim, uma máquina abstrata que opera entre a realidade e a ficção, entre a aventura e a paralisação, mas que tangencia questões econômicas e culturais. Toda a questão que pretende ser demonstrada neste trecho da dissertação tem a ver com desencantar os objetos adormecidos pelo cotidiano, fazê-los perder a sua mudez, seja através de montagens, de composição de sistemas, de combinação de máquinas desejantes, ou da saída da linearidade do pensamento cartesiano e funcional do código identitário. Desfrutar o que de intensidade e poder de estranheza reserva cada um dos objetos e coisas do mundo, através da apropriação da tradição, da citação, da cópia, das colagens, do roubar os objetos do mundo. Afinal, sem meio ou influência não há criação. Revelar que objetos e coisas estão em eterno processo de individuação, engendrar seres compostos e saturados de possibilidades, que podem se configurar e reconfigurar, acrescer e diminuir, amplificar e eliminar, produzir
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repetições que geram quimeras maquínicas diferenciais. Resgatar, rever, completar, responder a outra obra, ao movimento que se iniciou com as vanguardas do século XX e provocar novos movimentos, novas tensões, novas voltas e reviravoltas artísticas que estendem linhas de força, de fuga, de novas percepções a partir das relações estabelecidas com o mundo. Gerar e gestar novos formatos, meios, seres híbridos – seja de objetos adormecidos pelo habitual, seja de tecnologias ou descobertas recém-nascidas. COM QUANTAS PARTES SE FAZ UMA QUIMERA?
“Penso que nenhuma festa, nenhum espetáculo de arte e acrobacia pode passar sem este extraordinário artista que inventou algo. Algo que tem a ver com desporto, com dança, com sátira e com o quadro vivo. Inventou o ser combinado: o jogador, a bola e a raquete; a bola e o guarda-redes: o pugilista e o adversário; a bicicleta e o ciclista. Em Jacques Tati – cavalo e cavaleiro – Paris descobre a personificação da criatura fabulosa: o Centauro!” 149
Figura 18 - Foto de 1949 tirada por Robert Doisneau (promoção do filme e Jour de fête, de Jacques Tati)
149
Comentário disponível em: http://vai.la/26CY
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Durante esta pesquisa encontrei a imagem promocional do filme “Jour de fête”, 1949 (“Há Festa na Aldeia”, título em português), de Jacques Tati, que me levou a dedicar, neste final de capítulo, uma breve passagem sobre algumas bicicletas fílmicas. “Rapidité, rapidité!” é a expressão de ordem do carteiro de “Há Festa na Aldeia”, primeiro longa-metragem de Jacques Tati no qual um carteiro de uma aldeia francesa, depois de assistir a um documentário sobre o trabalho dos carteiros americanos – que, ágeis, usando helicóptero, avião e moto, demonstram o heroísmo e pioneirismo da modernização –, contamina-se com o lema do novo espírito dos tempos da “rapidez” e obstina-se a modernizar seu trabalho com sua máquina. Talvez o carteiro, depois da criança, tenha sido quem mais interagiu com a bicicleta desde a sua invenção, e para quem essa máquina representa o mesmo que a bengala para o cego. A destreza com que lidam com a bicicleta e a intimidade que conquistam ao se movimentarem dia após dia com o veículo estabelece, entre eles – carteiro e bicicleta –, quase uma fusão física, em que já não se podem separar as partes. A mise-en-scène de Tati sugere a eterna luta entre o homem e a máquina. No filme, aos poucos vê-se a introdução do carrossel, do trator, da motocicleta, dos carros e até da locomotiva, em contraste com cabras, gansos e galinhas do vilarejo. O idílico e o burlesco da vida aldeã em “Jour de fête” parecem oferecer resistência e não se adaptar à velocidade da vida moderna americana. O carteiro, depois de contaminado com os benefícios da velocidade, abre sua própria oficina postal com sua bicicleta, convertendo-se, momentaneamente, num correio móvel ao utilizar parte da boleia de um caminhão em movimento. Escapa não só do contexto da comunidade da aldeia e da rígida ordem postal como sua fuga frenética da comunidade e do aparelho do Estado é, ao mesmo tempo, uma invenção: a invenção de um novo escritório em movimento. 150
A bicicleta, porém, parece não estar muito afinada com tanta rapidez e escapa do sistema prestes a ser estabelecido, se desprende e se lança sobre as vielas da aldeia. Autônoma, sem o carteiro, parece fugir da ordem postal, do disciplinamento militar que sofrem os carteiros do filme americano. Uma máquina descontrolada cria coreografia e forma
150
RAUNIG, Gerald. Mil máquinas. Breve filosofía de las máquinas como movimiento social, p. 92.
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singularmente nova de circular num mundo cartesiano. Transformadora e democrática, experimenta, livre, o movimento – e, como observa Raunig, Até que a bicicleta roda por si mesma, escapando da força da comunidade fordista, para esperar que seu proprietário a encontre, apoiada contra a parede de um bar como quem não quer nada. 151
A bicicleta, liberada das regras, se assemelha agora à máquina de guerra que foge para não ser capturada pelo aparelho de estado. A paródia, burlesca, vivida na pequena aldeia, encarna um tipo de fantasia que parece não se adequar ao dinamismo do mundo contemporâneo. Outro exemplo de filme pacato que parece abordar alguns pontos em comum com “Jour de Fête” – o tipo de agenciamento com a bicicleta, o receio pela modernidade – é Les Triplettes de Belleville, de Sylvain Chomet152. As bicicletas, protagonistas da trama, perpassam com seus usuários agenciamentos múltiplos de forças e movimento. As nádegas giram a corrente, o pé no guidon desvia do obstáculo, pedala nos olhos, equilibra-se enquanto gira os pedais do braço, dobra joelho na buzina, fadiga. Os ouvidos giram o câmbio de três marchas, o selim imprime a velocidade dos odores, pedais da pele sentem a brisa que vem da via expressa. Movimenta a batata da perna, aciona o freio traseiro, pescoço equilibra o quadro de alumínio. Mais esforço, contorno de rua, transmissão dos pés, manobra de coroas dos dentes da engrenagem. Quando se está nesse ponto já não se sabe distinguir o que é de quem. Não há contornos. São dois ou três em um. Ciclista, bicicleta, rua compõem um discurso abrangente e afinado, uma conjugação de forças. Há mistos de personalidades. Em Belleville existe um menino melancólico que dificilmente poderia se distinguir de seus pedais. Champion era quase um Eduardo Mãos de Tesoura, suas pernas bem poderiam ser os pneus da sua avó, a treinadora. A avó poderia ser a catraca traseira ou os câmbios dianteiro e traseiro da bicicleta. O neto, apaixonado pela máquina, não sonha com outra coisa. Nos rodopios incessantes no jardim da casa, inicia sua comunhão celibatária. Cresce ao som do apito da velhota num sobe e desce de ladeiras. Pedala e cresce. Fadiga das pernas, dos pneus, desgastes do corpo carente de oficina para que lhe apertem alguns parafusos. 151 152
idem 92. “As Bicicletas de Belleville”, filme de animação de Sylvain Chomet.
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Ganha músculos. Preparam-se para participar da Volta da França. Velhota, mecânica, afina os aros pneumáticos de seu músculo cardíaco e o acompanha nos percursos de treinamento e na competição. Pois se também era ela a transmissão, não poderia ficar de fora dessa empreitada. Durante o percurso, imprevistos abrem precedentes para o sequestro do neto e de mais dois ciclistas que, juntos, são levados para o estrangeiro. Ali, entre o suspense e a perseguição, o agenciamento é completo. Mas agora já não se pode mais encontrar Champion pedalando e participando da competição. O ciclista entusiasta, junto com a outra dupla, foi submetido a outro aparelho que os mantinha, sob controle, atados a uma máquina de projeção. Seu sequestrador os aprisionara num dispositivo que, ao pedalar, acionava um projetor e os integrava numa estrada fictícia para serem assistidos por uma plateia de apostadores mafiosos. As máquinas de guerra que circulavam livremente pelas montanhas agora capturadas caminhavam por estrada estriada. As três bicicletas, reféns do aparelho de estado, só mais tarde seriam libertadas, quando a avó de Champion e sua equipe penetram no teatro e conseguem arrancar toda a traquitana do palco. Ao pedalarem, agora pelas ruas e ladeiras da cidade, os ciclistas tomam novamente as rédeas da máquina e ganham horizonte real. Em seu triunfo, possível por uma ação conjugada, uma espécie de corrupção do sistema, fugiam da condição estriada onde se prendiam e voltavam a circular numa velocidade absoluta – aquela de que nos fala Deleuze em Diálogos: A velocidade absoluta pode, também, medir tanto um movimento rápido, como um movimento muito lento, ou mesmo uma imobilidade, como no caso de um movimento sobre si mesmo. (...) A velocidade absoluta é a velocidade dos nômades, até mesmo quando eles se deslocam lentamente. Os nômades estão sempre no meio. 153
Talvez mesmo presos às amarras da máquina capitalista, sem que pudessem se deslocar, já estivessem produzindo uma fuga, um pensamento, uma ideação de velocidade só possível pela rejeição do aparelho de estado. A velocidade dos nômades, expansiva, abala as estruturas fixadas e modeladas do aparelho de estado, e nesse caso faz com que a plataforma, tornada móvel e deslizante pela força motriz dos três conjuntos de pedivelas humanas, fuja e ganhe terreno.
153
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire: Diálogos. Portugal: Relógio D´ Água, 1996. Trad. JGC. p.43
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Fugir não é de todo renunciar às ações, não há nada mais ativo que uma fuga. (...) É também fazer fugir, não forçosamente os outros, mas fazer fugir alguma coisa, fazer fugir um sistema como se cava um túnel. 154
Na fuga, novo território é criado, onde as máquinas traçam as novas linhas geográficas construídas no deslizar da estepe entre a grande floresta e os grandes impérios. Uma quimera se constrói na desconstrução, no desmonte – do nexo, do óbvio, do território, de vir ser em outro – como no inconsciente maquínico revelado no sonho movido a pedais.
154
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire: Diálogos. Portugal, Relógio D´ Água, 1996. Trad. JGC. p.51
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IV. MOTUM CONTINUUM
Eu queria usar palavras de ave para escrever. Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação. Ali a gente brincava de brincar com as palavras tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra! A Mãe que ouvira a brincadeira falou: Já vem você com as suas visões! Porque formigas nem tem joelhos ajoelháveis e nem há pedras de sacristia por aqui. Isto é traquinagem de sua imaginação. O menino tinha no olhar um silêncio de chão e na sua voz uma candura de fontes. O Pai achava que a gente queria desver o mundo para encontrar nas palavras novas coisas de ver assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão de uma pedra. Eram novidades que os meninos criavam com as suas palavras. Assim Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um sapo com olhar de árvore. Então era preciso desver o mundo para sair daquele lugar imensamente e sem lado. A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas pela inocência. O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias para a gente bem entender a voz das águas e dos caracóis. A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias. Porque a gente também sabia que só os absurdos enriquecem a poesia. (Manoel de Barros – in Menino do Mato)
Este capítulo tem por escopo um breve panorama, tentativa de construir uma malha que sirva de guia aos dados artísticos e desdobramentos, até aqui mencionados, na relação arte e máquina. Neste capítulo ficará evidente o experimentalismo e empirismo dos criadores de máquinas como Leonardo da Vinci, dos realizadores de autômatos das primeiras noções de máquina introduzidas como recursos cênicos no início do teatro e da literatura. A literatura (que no início do século XIX divulga uma série de textos que apresentavam máquinas avariadas como tema) e a relação que os artistas estabelecem nos processos de criação de suas máquinas no percurso da história da arte também serão foco de atenção na tentativa de fazer notar que à máquina artística cabe o papel de trabalhar e, não obrigatoriamente, de funcionar. Atenção especial será dada aos autores Alfred Jarry e Raymond Roussel por levantarem questões relacionadas às máquinas celibatárias e desejantes.
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As formas, forças e intensidades diversas com as quais agiram e reagiram os diferentes artistas aos impulsos do momento artístico, histórico e social, também são aspectos que interessam a essa dissertação. Serão retratadas aqui alguns exemplos maquínicos do futurismo, construtivismo russo e dadaísmo como enlaces iniciais de dessa relação máquina e arte. Esclareço, desde já, que o texto que segue contará com apreciações de trabalhos de épocas diferentes. Haverá concatenações de trabalhos modernos com alguns mais contemporâneos, que aproximam-se pelas forças que tracionam, pela forma como abordam o tema ou por seus aspectos formais.
DO EXERCÍCIO EMPÍRICO
A fusão da retórica, do estudo e da contemplação do saber com as operações práticas e mecânicas, o reconhecimento da dignidade do fazer artístico e sua inserção nos programas de educação foram aspectos decisivos que, aos poucos, transformaram os ateliês florentinos do século XV em laboratórios e oficinas, onde se projetavam, pensavam e se inseriam formas práticas de entendimento científico e técnico-artesanal na vida cotidiana. A habilidade manual e menor das artes representadas até essa época, por corporações de pedreiros, carpinteiros, médicos, boticários, artesãos, artífices, arquitetos e tecelões alterou o status dos artistas
155
,
qualificando-os como “mestres experimentadores”. A interseção das concepções científicas com as experimentações unia o discurso à prática. Emergiram dessa união, a partir de conhecimentos rudimentares e através do empirismo, novas técnicas de fazer e construir assim como personalidades artísticas e mentes criadoras de suma importância para o desenvolvimento do conhecimento e aplicação técnica e mecânica renascentista. Exemplo notável desses grandes mestres e criadores foi Fillipo Brunelleschi (1377-1446). O interesse renovado pela geometria e pelas obras matemáticas e técnicas, aliado ao fato de já ter trabalhado como ourives e relojoeiro, quando estudou engrenagens e eixos, fez com que esse “homem sem letras” 155
156
pudesse se dedicar a resolver desafios tecnológicos e
(...) ao lado da arte de talhar as pedras, pintar o bronze, ao lado da escultura e da pintura, ensinavam-se rudimentos de anatomia e ótica, cálculo, perspectiva e geometria, projetavam-se a construção de arcos e a escavação de canais. O saber empírico de homens sem letras, como Brunelleschi e Leonardo, traz na retaguarda esse tipo de ambiente. ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.35 156 Cidadão que não teve benefício de uma educação formal, nem acesso direto à grande cultura. “(…) ignorando o latim e o grego, aprendeu matemática e geometria com Paolo Toscanelli, grande matemático e doutor
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conceber máquinas e dispositivos inovadores que guardavam semelhança com um relógio gigante. O “castello” 157, também conhecido como “guindaste giratório de Brunelleschi” era um guindaste que erguia cargas a pelo menos 20 metros de altura e foi um dos artefatos imprescindíveis na construção do Duomo de Santa Maria dei Fiore, em Florença. O emprego exitoso do “castello” durante essa construção se fez ainda mais notável dada a falta de compreensão da resistência dos materiais naquele momento do Renascimento. A construção da lanterna da cúpula do Duomo, depois da morte de Brunelleschi (1446), colocou em uso, dentre outros artefatos, o “guindaste de três velocidades”, o “guindaste giratório” e uma variação chamada de “guindaste rotativo para a lanterna” – todas máquinas projetadas por ele. Apesar de não ter deixado desenhos ou descrições verbais sobre as máquinas que desenhou, desenvolveu e usou, as características altamente inovadoras desses mecanismos atraíram a atenção dos engenheiros do século XV158, que as registraram intensivamente em desenhos. Um desses engenheiros, Leonardo da Vinci (1452-1519), aprendiz de Verrocchio, realizou muitas anotações em forma de desenhos dessas máquinas, como era seu hábito, em 1469, aos dezessete anos, quando, em Florença, estavam sendo empregadas na colocação da esfera de cobre pesado em cima da lanterna do Duomo de Santa Maria dei Fiore,. Leonardo da Vinci, empirista e experimentador se eternizaria nos ateliês do século XV. Observa-se, nessas anotações, da genialidade, dos experimentos e inventos de Leonardo e sua relação com várias disciplinas e áreas do conhecimento. Sabe-se que Leonardo teve acesso e pesquisou desenhos e projetos dos gregos (a que teve acesso), assim como a publicações documentadas pelos árabes. Em seu Codex Atlanticus159, há um imenso atlas maquinal que contém mais de mil desenhos e fragmentos de Leonardo que abordam os funcionamentos da mecânica, matemática, astronomia, geografia,
paduano.” ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.35 157 Foi provavelmente usado para construir “oculus” da cúpula e posicionar os blocos de pedra pesada do anel de fechamento octagonal, formando a base da lanterna. A carga e o contrapeso foram transferidos simultaneamente (em modo divergente ou convergente) para manter o guindaste em constante equilíbrio em seu eixo vertical. A roda, ao pé do eixo, ajudou a reduzir o atrito causado pela rotação da plataforma base. The Renaissance engineers from Brunelleschi to Leonardo da Vinci - P. Galluzzi - Florence, Giunti, 1996. pag 104-107 158 TACCOLA, Francesco di Giorgio, Bonaccorso Ghiberti, Giuliano da Sangalo. In The Renaissance engineers from Brunelleschi to Leonardo da Vinci - P. Galluzzi Florence, Giunti, 1996. pag 99 159 O Atlanticus Codex (1478-1518) é a maior coleção de papéis de Leonardo já montada, originalmente elaborada pelo escultor Pompeo Leoni. Leva este nome por seu grande tamanho, sendo comparável a um atlas.
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química botânica e anatomia, e que estabelecem estudos relacionados à pintura, projetos de escultura, arquitetura e de engenharia. Nessa grande coleção de doze volumes de anotações, pode-se investigar máquinas de guerra, catapultas, pontes, instrumentos de teclas e muitos estudos incompletos direcionados a automóveis, aparelhos hidráulicos, hidrotécnicos para transporte de água, grua rotativa; desenhos para fabricação e funcionamento de navios, dispositivos de mergulho.160 Enfim, desenhos que são registros gerados a partir de curiosidades e preocupações pessoais, uma espécie de monólogo, ou uma forma de introjetar um problema e solucionar um projeto. São projetos maquínicos, não apenas por se tratarem de funcionamentos, transmissão de forças, tensão de molas que se transformariam em movimento contínuo por meio de cremalheiras, redução de atrito entre mastro e máquina, mas também pela forma peculiar de sua elaboração. Todas as anotações fracionadas e de simbologia obscura, feitas da direita para a esquerda, só poderiam ser lidas como o auxílio de um espelho. Uma fórmula enigmática e secreta, deliberadamente não-transmissível, uma maquinação – no sentido de truque – que funciona poieticamante, que, a partir da origem, se dobra sobre ela mesma, talvez para manter encerrada uma descoberta, evitando eventuais leitores, talvez pela intimidade de estudos em andamento que, por suas falhas e atropelos, não devessem ser mostrados. Ou ainda, quem sabe, para lançar o leitor no mesmo mundo imaginário em que o artista criava suas máquinas. Pela familiaridade com os materiais e pela possibilidade de trabalhá-los nas atividades mecânicas vividas nos ateliês florentinos, parece nascer em Leonardo a necessidade de conjugar o saber teórico com a execução prática e a experiência. Segundo estudiosos, a sistematização e registro desses inventos, se mostrava de forma fragmentada, como exercício de pensamento, em breves anotações de comentários esparsos, sem que houvesse ainda uma preocupação de transmissão de conhecimento. Em todas as épocas, pode-se perceber a conduta artística envolta em empirismo, com afirmação do experimento como forma de conhecimento intimamente vinculada à atividade artística. A importância de Leonardo para a abordagem do trabalho se deve a dois motivos. Primeiro: quando se sabe que as tão admiráveis máquinas, pensadas mais como exercícios processuais, não estavam vinculadas à sistematização ou transmissão de conhecimento nem a 160
ZÖLLNER, Frank e NATHAN, Johannes. Leonardo da Vinci – Desenhos e Esboços. Ed. Paisagem Distrib. de Livros Ltda. v.2I, Tashen Gmbh. Edição exclusiva, 2005.
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uma destinação específica atada ao progresso, mas a um processo e experimento, de onde podia colher uma série de observações, digressões e ideias usáveis para fins diversos. O caráter especulativo desses desenhos e projetos mostra uma mente maquínica, que transitava, nômade, pela pintura, escultura, matemática, mecânica, hidráulica a partir de experimentos práticos. Com o papel como território primordial, Leonardo criava engenhos sofisticados que se movimentam por toda parte; voavam, navegavam acima ou abaixo da superfície da água, atiravam, levantavam peso, deslocavam-se sobre a celulose entre muitos intervalos, operavam na estepe em velocidade absoluta, abstratas e exequíveis na imaginação. O fato dos manuscritos dos mecanismos não trazerem uma explicação clara de funcionamento nem estarem totalmente definidos operacionalmente confere aos inventos de Leonardo um caráter celibatário que coloca em funcionamento uma série de nuances, possibilidades de construções e reconstruções. O segundo motivo deve-se ao fato de essas máquinas de Leonardo serem pensadas mais como prova de inteligência humana, mais como brinquedos para fins de divertimento com intuito de perceber o movimento e o esforço de absorver as minúcias da animação universal, como pode ser observado na passagem do livro de Paulo Rossi, Os filósofos e as máquinas. [...] as inúmeras, famosas máquinas projetadas por Leonardo (que, muito provavelmente, permaneceram quase todas em nível de projeto) também readquiriram suas verdadeiras proporções: mais do que elaboradas para minorar o cansaço dos homens e aumentar seu poder sobre o mundo e a matéria, elas parecem construídas para fins efêmeros: festas, divertimentos, surpresas mecânicas. “Parecem destinadas a assumir, nos carrosséis e nos espetáculos, o papel de instrumentos maravilhosos”. 161
O dado processual, lúdico e efêmero coloca as máquinas de Leonardo muito próximas ao conceito que Deleuze elabora para as máquinas desejantes ou abstratas. Uma entidade complexa em constante tensão de experimentação e trânsito de conhecimentos, que pega o produto de partes e joga dentro de outras, gerando território propício para o desenvolvimento e surgimento de novas ideias e práticas, novas maquinações. A pesquisa que perpassou diversas disciplinas, a elaboração minuciosa dos desenhos, – registro da observação acurada – e a inviabilidade da execução poderiam ter se perdido na
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ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.38
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história ou sidos descartados. Tornaram-se acessíveis, porém, através da peça que faltava para compor a máquina: Dürer162, que publicou os projetos de Leonardo através da imprensa sob forma de tratados sistemáticos, “viabilizando” assim os projetos, que foram absorvidos por artistas e artesãos como instruções sobre o uso do compasso (1525), tratado sobre as fortificações (1527) e as proporções do corpo humano. 163 O registro detalhado que Leonardo executava e sua posterior catalogação e sistematização, publicada por Dürer, a concatenação do saber teórico com a experimentação, a forma sistêmica com que esses artistas consideravam a complexidade, a aleatoriedade e a incerteza da natureza, aliadas à aproximação transdisciplinar, – que considera o sistema como um todo onde é possível o trânsito entre as disciplinas sem delas fazer juízo de valor –, do mundo natural, em conjunto com toda transformação social operante, mantiveram um nível de tensão suficiente para colocar em movimento muitas ideias que se desdobram em descobertas, projetos e máquinas que agitam a trajetória humana.
O EXERCÍCIO AUTÔMATO
Entre o vasto número de projetos de Leonardo, consta no Codex Atlanticus e no Codex Madrid164 o registro de estudo de mecanismos de relógios e de equipamentos hidráulicos que podem estar associados diretamente ao interesse pelo desenvolvimento de dispositivos conectados à categoria de autômatos, como é o caso das fontes musicais, acionadas pelo movimento da água. No entanto, o primeiro autômato atribuído a Leonardo foi o "carrinho de auto-propulsão", uma espécie de motor de robô que ativado por molas de lâmina, produzia força motriz para um rápido e curto movimento. Dispositivo que também foi utilizado no famoso autômato "leão mecânico" que, segundo Michelangelo Buonerotti, teria usado, em 1600, para celebrar o casamento de Maria Medici e Henrique IV, como homenagem a tecnologia e crítica política proposta por Leonardo nesse projeto. Durante o século XV, a demanda de criação de máquinas que funcionassem de forma autoreferencial aumentou. Leonardo tratava também de enfrentar o desafio de criar um robô humanóide. Alguns dos desenhos originais de Leonardo são considerados estudos desse tipo de autômato, capaz de
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Albrecht Dürer (1471-1528) gravador, pintor e ilustrador alemão. ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.38 164 O Codex Madrid I foi descoberto em 1966 junto com o Codex Madrid II. Este é um volume encadernado com precisão, desenhos cuidadosamente trabalhados, principalmente sobre a ciência de mecanismos. 163
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levantar e abaixar as mãos e mover a cabeça através de um sistema de polias e engrenagens. Anathomia Artificialis foi criação de uma máquina humanizada criada graças ao acúmulo de seus estudos sobre o corpo humano. Dada a escassez de informação e a falta de um projeto preciso que apresente o funcionamento desse robô, os movimentos que Leonardo quis dar ao seu autômato são difíceis de identificar. A reconstrução mecânica demonstra que o robô seria capaz de mover apenas os punhos, usando um mecanismo de movimento alternativo igual ao do relógio, e possivelmente utilizado para fins de automatização do ritmo dos diversos tipos de tambores criados por Leonardo. Na tentativa de entender o corpo humano, de recriar a natureza, de dar movimento a objetos inanimados, mesmo antes de Leonardo também surgiram outros engenhosos experimentalistas, alguns relojoeiros, engenheiros e estudiosos de mecânica e hidráulica que lidavam com a precisão de mecanismos e se debruçaram sobre a emulação do funcionamento dos órgãos humanos. Criadores de máquinas que se articulam com engrenagens, piões e eixos para constituir máquinas especulares. Durante o Iluminismo, quando não havia ciência que desse conta ou dominasse a anatomia, estudava-se o corpo através dos bonecos de cera das escolas de medicina e começaram a ser criadas pequenas réplicas com o propósito de conhecer a anatomia humana. Já nessa época, falava-se do homem como uma máquina animada ou um conversor de energia. Assim surgem das mãos dos primeiros “Gepetos”165 brinquedos que reproduziam movimentos e gestos do homem por meios mecânicos. Foram criados, então, autômatos tão ou mais ilustres que os de Leonardo, que tanto destinavam-se ao divertimento como também eram experimentações que agenciavam conhecimentos, ideias, relações e circunstâncias procedentes de áreas diversas, na tentativa de responder aos questionamentos sobre a essência do homem. Ao concluir a introdução do livro “El Rival de Prometeo”, – um compêndio que repassa a fascinação pelos androides na história da literatura, em textos que vão de Descartes e A. M. Turing –, o historiador Patrick J. Gyger comenta: “Pois o autômata (...) conserva uma capacidade inigualável para nos ajudar a delimitar as interrogações sobre a nossa própria natureza (por falta de condições de respondê-las definitivamente). O androide, formidável instrumento de ficção por causa de sua força metafórica, permite-nos entabular uma investigação meta165
As Aventuras de Pinocchio, de Carlo Collodi, conta a história de Gepeto e sua marionete de madeira que ganha vida graças à intervenção de uma fada madrinha.
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física e nos lembra que o homem não tem feito mais do que interrogar-se a si mesmo ao retirar o brilho do seu próprio reflexo.” 166
Ao ofuscar seu reflexo, nessa ambiguidade do ver-se e retrair-se, o homem perguntase sobre a existência, preocupa-se com o futuro, com seu corpo, e constrói aparato que o replica, o qual – para recordar o capítulo I – Sennett chama de ferramenta-espelho 167 e que o ajuda a pensar sobre si mesmo. A aproximação e o regozijo com a maravilha mecânica dos autômatos eram acompanhados de um misto de fascinação e horror, motivo de devaneios, maravilhamento, sonhos e pesadelos do homem. No entanto, o homem continuamente elaborava saídas e aproximações através de experimentos oriundos do seu engajamento, da sua consciência do mundo prático e objetivo, da sua curiosidade e intuição, que colocam-no em constante produção e deslocamento. A inquietação e obsessão pela ideia de criar seres vivos mecânicos ou autômatos não teve início em Leonardo e tampouco parou com seus autômatos. Expresso em fac-simile na Ilíada de Homero, passa pelas mãos de muitos personagens; pelos gregos antigos da Escola Alexandrina168, que adquiriram técnicas de engenharia avançadas e realizavam estátuas parcialmente animadas que trabalhavam movidos a água ou vapor, por Heron de Alexandria (10 d.C.-70 d.C), um dos especialistas mais importantes na criação de autômatos que se utilizava de conhecimentos de hidráulica, pneumática e mecânica169 Giovanni de la Fontana (1395-1455), predecessor de Leonardo que desenvolveu fantoches auto-operacionais e dispositivos automáticos. A partir do oriente e com a colaboração dos autômatos de “Al-Jazari”170 (1136-1206), e dos primeiros relógios mecânicos movidos por pesos e água, até dos autômatos japoneses 166
GÓMEZ-TEJEDOR, Bueno, SONIA Y PEIRANO, Marta. El Rival de Prometeo, Vidas de Autómatas Ilustres. Impedimenta. El panteón portátil. Madrid, 2009 167 SENNETT, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009. p.101 168 Aulus Gellius documenta, em Noctes Atticae, que Arquitas de Tarento (século IV BC) construiu um dos primeiros autômatos: era uma pomba de madeira mecânica que podia voar graças a um sistema ingênuo de contrapesos ativado por ar comprimido. TAGLIALAGAMBA, Sara. Leonardo da Vinci. Automations and robotics. Foreword by Carlo Pedretti. Firenze, Cartei & Bianchi 2010 p. 14. 169 As máquinas de Hero foram usadas para abrir e fechar automaticamente as portas do templo para impressionar os fiéis e criar os aspectos cenográficos e surpreendentes. TAGLIALAGAMBA, Sara. opus cit p.11. 170 Engenheiro árabe, considerado o primeiro projetista de um robô, criou autômatos em forma de brinquedos; uma banda de robôs que tocava música em cima de um barco, uma garçonete que servia chás, e uma máquina automática para lavar as mãos, demonstrando ritmos e padrões musicais; princípios de educação e higiene.
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“karakuri”, “aparelhos mecânicos para produzir a surpresa a uma pessoa”, que nos séculos XVIII e XIX alcançaram um alto grau de complexidade, foram muitos os seres animados pela imaginação criativa do homem. Os do suiço Jaquet-Droz (1721-1790), simularam atividades como escrever, desenhar, beber, espirrar e tocar música. Aqueles através dos quais Jacques de Vaucanson, biólogo, tentou demonstrar processos fisiológicos, tanto o sistema respiratório do “flautista” como o sistema digestivo no famoso Pato Gastroenterology. Os de Von Kempelen, como seu imbatível jogador de xadrez, o autômato mais famoso do mundo, The Turk, que desafiou Benjamin Fraklin e Napoleão, e que guardava em seu interior uma peça humana e que desencadeou inúmeras elucubrações e histórias fantasiosas acerca do que poderia se passar depois que uma máquina começasse a tomar decisões. A ideia da máquina-autômato também representava uma série de truques, falsetes, maquinações, que passaram a ser usados cada vez mais no mundo dos espetáculos e provocaram reações que iam desde o entretenimento ao temor. Ao longo do século XX, e com o agravamento da Grande Guerra de 1914, depois do invento da produção em série, segue-se uma época de tenebrosa animosidade contra o paradigma tecnológico ameaçador que fez surgir as Evas futuras, personagens diabólicas como as Maschinenmensch Rachael
172
171
, Parody, Ultima, Futura, Robotrix, Maria, Franksteins,
ou os replicantes fabricados pela Tyrell Corporation, o rancoroso Hal de 2001
uma Odisséia no espaço, o computador Deep Blue, desenvolvido pela IBM, que prometia ganhar independência completa e destruir quem o construiu. A indústria dos autômatos desaparece e não renascerá até a chegada dos modernos robôs e da cibernética. Seus desdobramentos foram inúmeros e vestígios podem ser colhidos em museus e em reapropriações contemporâneas. No pavilhão da 52ª Bienal de Veneza, uma frase escrita por curiosas e vacilantes mãos surge aos poucos num pequeno monitor. Na tela, em meio a solavancos e sacudidelas de tinta nanquim, a pergunta: “What do you believe your eyes or my words?173. Em seguida, imagens que alternavam entre a caneta de pena de ganso, os olhos atentos aos movimentos do punho, a 171
O ser, denominado em alemão como Maschinenmensch (algo como máquina-humana) do filme de ficção científica Metrópolis, de 1927, dirigido por Fritz Lang. Também apelidado de todos os outros nomes listados a seguir do nome no texto. 172 Personagem por quem o policial Deckard se apaixona em Blade Runner: O Caçador de Andróides, de 1982, filme clássico do gênero ficção científica, realizado por Ridley Scott. 173 What do you believe your eyes or my words? Philippe Parreno, 2007. Pequeno trecho disponível em http://vai.la/1V7Z
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cabeça que acompanha tanto a finalização do texto quanto o recolhimento de mais tinta eram do escrivão174, de Pierre Jaquet-Droz (1721-1790).
Figura 19 - Frame do video “The writer”, 2007. (Philippe Parreno)
Construído no século XVIII, originalmente programado para escrever uma carta de amor, composto por seis mil peças, que possibilitam um grande número de frases, esse boneco lança uma pergunta-espelho que transborda sobre o próprio questionamento: "Em que você acredita, nos seus olhos ou nas minhas palavras?" Ora, os olhos vêm o autômato escrevendo a frase. As palavras escritas pelo autômato questionam a credibilidade dele mesmo uma máquina que se comporta como ser vivo que escreve uma pergunta que checa a veracidade da própria frase e do aparelho de visão. Autorreferência que ao mesmo tempo interroga seu suporte. O artista e cineasta francês Philippe Parreno, que em geral, usa em seus trabalhos materiais já existentes, enriquece-os com uma narrativa própria. Nesse caso, reprograma a ação repetitiva do autômato de Pierre Jaquet-Droz, visto que faz renascê-lo dos inventos das grandes páginas da história. A frase lança um problema espiralado, fala sobre ela mesma, é tautológica. Na repetição autoprogramada reflete sobre a repetição, o movimento artificial dos robôs e o mecanicismo galopante do mundo. Ao lançar a pergunta, parece questionar a veracidade dos fatos, a natureza da imagem, e assim permite uma tomada de consciência sobre eventos e objetos com que se lida no cotidiano. 174
“O escritor” e dois outros autômatos de Jaquet-Droz podem ser encontrados no Musée d'Art et d'Histoire de Neuchâtel, na Suíça.
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Podem-se inferir daí algumas outras perguntas: Você realmente acredita no que está vendo? No que a ciência produz hoje? Como podemos conhecer a realidade? O que faz voltar à cena esse personagem tão verossímil em seus movimentos? Que simulacro é apresentado aqui? Teriam as máquinas vida ou apenas aparência? Escrevem, pensam e administram nossas dúvidas como sugere o questionamento de Parreno? Há humanos que se transformam em máquinas ou são elas que insistem em corromper quem as constrói? Pode pensar uma máquina?175 Podem ter sensibilidades? Podem criar obras artísticas? Como se liberar das amarras da repetição automática? Que potência tem uma máquina? Como se desarrajam? Devem funcionar ou trabalhar as máquinas? Podem os andróides sonhar com ovelhas eletrônicas?176 Para além de entretenimento, esse autômato carrega consigo um grande interrogante. Quando se fala do autômato, fala-se de um imaginário coletivo, de dúvidas a respeito do passado, presente e futuro que assolam o homem. Do futuro como sonho, sonhar que conecta as premissas humanistas fundamentais: saber quem somos, de onde viemos e o que fazemos aqui. Pensa-se também a respeito da ação programada e repetida daquela que se torna refém, utensílio ou instrumento. As figuras dos autômatos, aprisionados nas engrenagens das repetições e ritmos não-humanos impingem movimentos rumo à força do hábito. Assemelhar-se a operários padronizados, maquinados, adormecidos certamente pode ser também reduzir à qualidade de máquina, regra do regime fordista, capitalista. Tornar-se peça com a máquina, na multiplicidade de sua produção, do movimento que estabelece rotas de mutações que se alteram na composição entre partes pode ser promover o solavanco que rompe com o esquema sensório-motor com o qual já se acostumaram os corpos. Para tanto há que se promover enguiços, solavancos, rodopios, invenções, apropriações, movimentos celibatários que não obedecem a outra regra que não a do desejo e que tem a chance de retirar do grau zero as engrenagens, polias e alavancas que não têm outra ordem senão a da repetição do mesmo. É preciso promover o giro do pião ou da bailarina que de tantas voltas na caixinha de música executa finalmente um tal grau de volta desejante, criativa e reflexiva que acaba por flutuar sobre o linóleo do palco ampliado. 175
GÓMEZ-TEJEDOR Bueno, SONIA Y PEIRANO, Marta. El Rival de Prometeo, Vidas de Autómatas Ilustres. Impedimenta. El panteón portátil. Madrid, 2009 In.: Tuning p.317. 176 Romance Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dick, texto no qual se baseia o argumento do filme Blade Runner de Ridley Scott (1982).
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"HOCUS POCUS"
A dança sempre esteve, de certa maneira, alijada do universo das “belas artes” enquanto categoria primordial. Mas, apesar de sempre estar em seu entorno, sua importância não equivalia, em grau, às artes como a arquitetura, a pintura ou a escultura. Sua inclusão era apenas observada na relação que mantinha com essas artes maiores e na compreensão de arte do ponto de vista dos gestos humanos em todas as ações que executam os corpos. Da mesma forma, a literatura também parecia não estar à altura dessa Arte escrita com “a” maiúsculo. No entanto, foi a literatura, em alguns casos reforçada pelo teatro, que incitou os muitos encontros que arte e máquina fariam anos mais tarde. Do Deus ex machina (“apó mechanés theós” em grego) até as primeiras apresentações dos irreverentes textos de Alfred Jarry, que serão observados mais à frente, muita história pode ser contada. Mechane e mais tarde Machina, no teatro da antiguidade, corresponde à fusão entre o significado técnico do dispositivo com o psico-sociológico de truque, e se materializa nos equipamentos usados nas encenações e montagens de cenários, como os dispositivos para imitar raios, sons do trovão e outros ruídos, pilares prismáticos que mudavam o plano de fundo da cena (periaktoi), plataformas de rodas em que corpos de pessoas mortas eram apresentados (ekkyklema), dispositivos para fazer com que os mortos desaparecessem no inferno. 177
Figura 20 - Os romanos utilizaram o proskenion e skene como agir áreas após eles adotaram teatro helênico. O proscênio teatral, termo moderno, deriva desta palavra, e se refere atualmente aos cinemas em que os atores atuam dentro de uma arcada.
177
RAUNIG, Gerald. Mil máquinas. Breve filosofía de las máquinas como movimiento social. Colección: Map22. Tema: Movimientos sociales, p. 40.
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O solapamento desse duplo significado – o da invenção técnica com o do sentido psicológico – se conformou pela primeira vez no drama grego com o uso de um guindaste feito de vigas de madeira e sistemas de roldanas, usado para erguer um ator no ar, geralmente representando voo, uma espécie de grua montada no teto do skene que ficou conhecida como Deus ex machina e que foi usado para levar ao palco as aparições milagrosas de deuses e eventos similares (escape de Medéia ou a aparência dos Dióscuros no final de Electra). Para além do conteúdo dos textos teatrais e das regras mecânicas que o fizeram funcionar, com intuito maior de maravilhar o público, o "Deus surgido da máquina", se configurou um artefato, misterioso, sublime, personagem do clímax da encenação, no drama ou na ficção do espetáculo. “Deus ex machina consistia no desenvolvimento de técnica teatral como uma maquinação e uma maquinaria, um efeito artístico, um truque, uma ruptura, um giro repentino capaz de resolver os enredos do argumento. Sua função era solucionar as confusões mais absurdas” 178
Era Deus que descia por um guindaste até o local da encenação, ou seria a própria máquina, essa Deusa, que colocava em movimento todas as pontas soltas da história? O recurso artificial oferecido pela utilização desses tipos de máquinas apresentava solução mágica na construção cênica e no enredo teatral. Seus efeitos visuais e psicológicos encantavam a plateia e tornaram-se permanentes na história do teatro. Da mesma forma que encantavam, surgiram questionamentos e críticas sobre o uso desses apetrechos e recursos que pareciam ser uma conjugação de Deus e Demônio. Parece ter sido Aristóteles quem primeiro criticou, em sua Poética, o uso dos deuses ou deusas em suspensão e as máquinas que os faziam voar, afirmando que a solução da história teria que estar e ser retirada da própria história e não um deus ex machina. A literatura do final do século XIX e início do XX lidava com a preocupação galopante da inserção da máquina no cotidiano. Foi nessa era industrial, durante a qual as máquinas não interferiam apenas metafórica, mas direta e dramaticamente em todas as áreas da vida humana, que se deu a articulação do primeiro pas de deux, que convocou à cena toda uma espécie de máquinas e objetos técnicos que tanto foram motivo de sonhos e especulações
178
RAUNIG, Gerald. Mil máquinas. Breve filosofía de las máquinas como movimiento social. Colección Map22. Tema: Movimientos sociales p. 41 (trad. livre).
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como também promoveram uma série de desconcertos e desarranjos delirantes que fizeram a imaginação produzir um movimento real, um bailar de arte e máquina, homem e socius. Eleitas por Michel Carrouges179 como “máquinas celibatárias” (mencionadas no capítulo 1), elas aparecem nos textos literários de Edgar Alan Poe (Escaravelho de Ouro, 1842; O poço e o pêndulo, 1842), Villiers de L´Isle-Adam (A Eva Futura,1886), Alfred Jarry (O supermacho,1902; o Doutor Faustroll, 1911), Raymond Roussel (Impressões da África, 1910; Locus Solus, 1914), Franz Kafka (A Colônia Penal, 1914).180 Para Carrouges, essas máquinas são mecanismos que respondem às motivações através de automatismos, mas que não produzem nada além da movimentação de fluxos, e projeção de intensidades. Não representam mitos, apenas criam abstratamente e dão asas à imaginação. São textos nos quais máquinas e maquinarias se apresentam como protagonistas e que, em meio a períodos de múltiplas aliterações e convulsões absurdas, apresentavam impossibilidade de transmissão, indeterminação do motor, ou ainda impossibilidade física de organização dos componentes. Pode-se, a partir dos enguiços desses dispositivos, concebidos pela imaginação artística e literária, confirmar muitos devaneios que colaboraram, mais tarde, para concretizar e abstrair objetos, esculturas e instalações artísticas e maquínicas. Para Deleuze e para o conjunto que chamo de quimeras maquínicas, esse tipo de máquina tem valor por estar conectada ao estado de produção ininterrupta, “esquizofrênica” que sucede à máquina paranoica e à máquina miraculante, e com isso estabelece uma nova relação de produção de quantidades intensivas – como fica explícito na passagem: Há uma experiência esquizofrênica das quantidades intensivas no estado puro, a um ponto quase insuportável - uma miséria e uma glória celibatárias experimentadas no seu mais alto grau, como um clamor suspenso entre a vida e a morte, um intenso 179
CARROUGES, Michel escreveu um interessante estudo que compara artistas que teriam encenado em suas produções o mito da máquina celibatária. Em uma leitura atenta dos elementos constitutivos das obras, o autor aproxima as máquinas de Locus Solus, de Roussel, às de la Mariée mise à nu par ses célibataires, même... de Duchamp. As analogias, feitas ainda entre livros de outros escritores como Kafka e Lautréamont, são traçadas com convicção por Carrouges. 180 Carrouges faz uma relação delas ao final de seu livro, mas há autores que acrescentam outras; tais como o próprio de Micheal de Certau, que inclui “O sinistro” de Freud como mais um exemplo delas. Datas de aparição das máquinas celibatárias 1843: O escaravelho de ouro (Poe) /1843: O poço e o pendulo (Poe) / 1886: A Eva Futura (Villiers de l'IsleAdam) / 1894: Hardernablou (A. Jarry) / 1897: Os dias e as noites (A. Jarry) /1902: O super macho (A. Jarry) 1910: Impressões da África (R. Roussel) / 1911: O Dr Faustrol (A. Jarry) / 1911-1925: O Grande Vidro (Duchamp) / 1914: A Colônia Penal (Kafka) / 1914: Locus Solus (R. Roussel) / l1919: Viagem caleidoscópica (Irène HillelErlanger) / 1927: Ponto Cardial (M. Leiris) / 1946: Aurora (écrit en 17-28) (M. Leiris) / 1950: A Noite do RoseHôtel (M. Fourré).
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sentimento de passagem, estados de intensidade pura e crua despojados da sua figura e da sua forma. Fala-se muito de alucinações e de delírio; mas o dado alucinatório (vejo, ouço) e o dado delirante (penso...) pressupõem um Sinto mais profundo, que dá às alucinações o seu objeto e ao delírio do pensamento o seu conteúdo. 181
Para falar desse tipo de comportamento das máquinas abordarei algumas conexões: o trabalho dos autores Alfred Jarry e Raymond Roussel, cujos textos serviram para alavancar muitas máquinas e maquinações na história da arte.
ARRITMIA PATAFÍSICA
“No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá, onde a criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E, pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
De fazer nascimentos -O verbo tem que pegar delírio. “182
As cortinas se abrem lentamente e a luz vai se apagando. Um foco de luz pontual brilha sobre um personagem trajando uma roupa almofadada em forma de pêra que se escora num escudo de linhas labirínticas183. Do fundo da cena ouve-se: – Merdre184 Ao que o público reage com violência. Durante alguns minutos não se pode ouvir mais nada. A sensação de desconforto é generalizada, a cada vez que se repete tal palavra. O incômodo cresceu diante do que se seguiu: mortes, pilhagens, covardia, tudo sem meias medidas. O absurdo e irracionalismo filosófico talvez tenham sido demais para aquela plateia do fim do século XIX. O personagem, rei da Polônia, um lugar em nada representativo, se apresenta chocante e concomitantemente divertido. Ubu é o primeiro anti-herói da história do teatro. Seus atos visam interesses pessoais, vingança, egoísmo, vaidade, sentimentos que
181
DELEUZE, G., GUATTARI, F. O anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Lisboa: Assírio e Alvim, p. 22-23. BARROS, Manoel de. In O Livro das Ignorãças, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 1993) 183 TOSTES, Theodemiro. O fenômeno Jarry In.: JARRY, Alfred. Ubu Rei. Porto Alegre: L&PM, 1987. 184 Alteração da palavra francesa merde, rigorosamente proibida nos teatros de 1896, à qual foi acrescentado um “r”. 182
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passam longe de qualquer altruísmo ou atitude heroica. Chega ao trono da Polônia por meio de assassinatos e vilezas. No entanto, pela dureza e vitalidade monstruosa, Ubu Rei tornou-se uma das obras fundamentais do início do teatro moderno, pela agudeza e objetividade do texto, pela montagem burlesca que explorava a performance dos atores, o figurino, a maquiagem, o uso de recursos sonoros e, principalmente, pela fusão do espetáculo teatral com a vida pessoal de seu autor. Alfred Jarry, escritor e dramaturgo, pai do Rei Ubu, acabou se identificando com esse personagem a ponto de fundir sua realidade com a de Ubu, num estado que entrecortava arte e vida, estado de vigília e sonho, lucidez e embriaguez, alucinações e percepções. Projeto que parece ter apontado na direção focada pelas e para as vanguardas históricas, fusão de arte e vida. Alfred Jarry, expert na arte da provocação, conhecido por seu excêntrico e quase ficcional estilo de vida e pelo nonsense, transitou pelo teatro, romance, poesia, música e pintura, atividades que se somavam a seus conhecimentos diversos e dispersos, sem se fixar definitivamente em nenhuma dessas áreas. Não foi apenas com o lendário Ubu ou por seu caráter exótico e boêmio que o autor deixou marca. Em outro de seus significativos livros, como Gestos e Opiniões do Dr Faustroll 185,1911, Jarry narra as aventuras do inventor de uma esdrúxula filosofia baseada na superação da metafísica e numa nova compreensão do ser, que classificava como: “Patafísica186 (...) ciência do que se sobrepõe à metafísica, seja nela mesma, seja fora dela mesma, estendendo-se tanto para além desta quanto esta para além da física.”
Para além da tentativa de construir algo entre a física e a metafísica, o que está em jogo na formulação da ‘Patafísica diz respeito a uma concepção do mundo alternativa, em que são revistas a compreensão do Ser, da ciência ou da técnica, do tempo, e do tratamento da linguagem.
185
JARRY, Alfred. TraduciónTeresa Fernández Echeverría, Gestas y opiniones del Doctor Faustroll. Tradución Teresa Fernández Echeverría. Zaragoza: Libros del Innombrable, 2003. 186 Sobre o problema do apóstrofo, ver Faculté Uqacienne de ’Pataphysique. O apóstrofo seria o « é » de é patafísica. cf.JARRY, Alfred. TraduciónTeresa Fernández Echeverría, Gestas y opiniones del Doctor Faustroll. Zaragoza, Libros del Innombrable, 2003. Libro segundo Élementos de Patafísica, Dofinición VIII, p. 29-31.
123
Em face da morte de Deus
187
e, por conseguinte, a do homem, o entendimento
metafísico do mundo se desestabiliza. Torna-se notória a necessidade de elaboração de novos conceitos sobre o desenvolvimento da técnica e da criação poética. Importante, nesse ponto, esclarecer que o Ser e o homem, na metafísica, são observados sob condições gerais, através de leis não contingentes que não dependem do funcionamento do universo. Ou seja, leis absolutas e invioláveis baseadas fundamentalmente no princípio da não-contradição188. Princípio esse que suprime os fenômenos secundários, que só se manifestam na própria observação da aleatoriedade da “dança”, da espiral, do caos e da ordem. Esses são epifenômenos, porções de fenômenos que existem para além das leis da não-contradição. Abordam a equivalência universal contingente onde tem lugar o acaso ou o acidental, casual, fortuito, aleatório. “É, sobretudo, a ciência do particular, embora se diga que só existem ciências do geral. Estuda as leis que regem as exceções e explica um universo suplementar a este; ou, menos ambiciosamente, descreve um universo que pode – e talvez deva – ocupar o lugar do tradicional, já que as leis do universo tradicional são derivadas de correlações de exceções, ou, em todo caso, de correlações de ações acidentais que, reduzindo-se a exceções pouco excepcionais, deixam de possuir o atrativo da singularidade”
A ‘Patafísica é inseparável da compreensão do fenômeno. O fenômeno é a vida, o ente, o mostrador de singularidades notáveis. O epifenômeno, o Ser do fenômeno, nem aparição nem aparência, mas o mostrar-se do fenômeno onde agitam-se variações singulares, inclusive o retrair e o desaparecer, como na morte. Todos os entes superam o princípio da não-contradição. Convivem na ‘Patafísica. branco e preto, o ser e o não ser, o fragmento e o todo, o verdadeiro e o falso. Enfim, todos os entes se equivalem, não se repelem estão em contradição, juntos.
187
A frase “Deus está morto” é uma constatação a partir da qual Nietzsche traçará o seu projeto filosófico de superar Deus e as dicotomias assentes em preconceitos metafísicos que julgam o nosso mundo. A morte de Deus metaforiza o facto de os homens não mais serem capazes de crer numa ordenação cósmica transcendente, o que os levaria a uma rejeição dos valores absolutos e, por fim, à descrença em quaisquer valores. Isso conduziria ao niilismo, que Nietzsche considerava um sintoma de decadência associada ao facto de ainda mantermos uma "sombra", um trono vazio, um lugar reservado ao princípio transcendente agora destruído, que não podemos voltar a ocupar. Para isso ele procurou, com o seu projecto da "transmutação dos valores", reformular os fundamentos dos valores humanos em bases, segundo ele, mais profundas do que as crenças do cristianismo. Disponível em http://vai.la/27zT 188 O princípio da não-contradição foi formulado por Aristóteles em seus estudos sobre a lógica e diz que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo.
124
“Ubu representa o grande ente, a saída da metafísica como técnica planetária e ciência inteiramente mecanizada (…) a Anarquia é a bomba ou compressão da técnica” 189
Em suas peças, Jarry propõe a anarquia para a compreensão solene da técnica planetária da patafísica. A técnica planetária da ‘Patafísica propõe ver o tempo em três estases – passado-presente-futuro – e as máquinas, nesse sentido, se constituem em viajantes do tempo. A bicicleta consiste precisamente um paradigma da ciência, com suas marchas, correias e catracas. Frequentemente usada por Jarry –, na companhia da garrafa de absinto e do revólver descarregado – é o veículo da patalinguagem. Além da bicicleta, Alfred Jarry incorpora com frequência outras máquinas utópicas em seus textos que não produzem eficácia ou têm utilidade, não são máquinas de fábricas, oficinas ou laboratórios. Ao contrário, são ilusórias, inacabadas e, incapazes de operar realmente,- são máquinas imaginárias. No já citado Gestos e Opiniões do Dr Faustroll, recomenda uma máquina que pulveriza as cores primárias nas paredes. Alternando realidade e ficção em seu delírio alcoólico, cria outras máquinas celibatárias em “O dia e a noite” (1897), “O amor absoluto" (1899), 'Messalina' (1901) e no curioso romance "O supermacho”. A edição espanhola deste último o define como "uma mostra dos jogos em que a teoria e prática do amor podem se entregar tendo por rival as máquinas, a velocidade, as fantasias e os avanços científicos do início do século XX”. A máquina-erótica-amorosa que figura em O supermacho e que se traduz numa mistura irônica de erotismo e sadismo com ideias sobre poderes mágicos e de super-homem, faz do Supermacho um trabalho não menos patafísico do que Dr Faustroll, onde figura uma cama-barco-peneira. Das páginas de livros como o Supermacho, observa-se também o que o inquietante destruidor de mitos, escreve a respeito das máquinas: “Nessa época em que as máquinas são cada vez mais potentes, para sobreviver é necessário que o homem se torne mais forte do que as feras.” máquina, assim como ele, tem que se tornar mais forte que as bestas.”190
Mas é sobretudo através do estabelecimento de novos recursos escriturísticos que autores como Jarry apresentaram suas máquinas. O uso da linguagem com combinações 189
DELEUZE, Gilles; Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34 Ltda, 1997. In.: Um precursor desconhecido de Heidegger: Alfred Jarry p. 108 190 JARRY, Alfred. O Supermacho. Editora de Brasília, 1985, p.137.
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estapafúrdias de palavras, o humor pautado no absurdo, a quebra da língua mãe, o nonsense dos roteiros e romances, a fusão do conhecimento da 'Patafísica e das experiências vividas com o absinto e o fluxo de consciência parecem ser peças da máquina escriturística de Alfred Jarry que lideraram vetores e restabeleceram as fronteiras das relações homem-máquina e arte-máquina. Acabou-se o tempo em que a escritura parecia fazer amor com a violência das coisas e alojá-las na ordem de uma razão. O verismo lidava com o aparente, teatro de um verossímil. Depois de Zola, vêm Jarry, Roussel,Duchamp etc, ou seja, vêm as "ficções teóricas" do outro impossível e da escritura entregue a seus próprios mecanismos ou a suas ereções solitárias. 191
O recurso usado por esses autores lidava com o aspecto celibatário, autodestrutivo com relação à linguagem. Tratava-se, a bem dizer, de corromper as palavras e usar recursos que provocassem um distúrbio entre o termo e seu conteúdo expressivo, encontros pouco prováveis que fossem capazes de destruir a escrita estabelecida como verdade e fazer brotar transformações vigorosas. Desencontros, reencontros que rompessem a diferença entre o texto, o corpo e o mundo. O texto abre-se sobre a exterioridade heterogênea, ganha corpo num espaço onde não há leis, mas exceções que preponderam sobre elas. A escritura da aparência e do verossímil é transpostas para o embate direto com outros possíveis, desarranja-se, perde a linearidade, abre espaço para um imaginário maquínico e promove novos processos de subjetivação. As qualidades intensivas produzidas pela ciência alternativa das soluções imaginárias, também produzem nos textos de Jarry ficção que descreve universos paralelos de possibilidades. O texto já não está mais circunscrito, improdutivo sobre si mesmo, não opera a repetição narcísica do mesmo, mas atua em interminável jogo de fabricação. O celibatário, aqui, produz fantásticas máquinas sonhadoras. Ao Colégio Patafísico de Paris - “A Société des Amis d’Alfred Jarry” , fundado em 1948, depois da morte de Alfred Jarry, que perpetua e aprofunda seus ensinamentos especializados e provocativos e onde se maquinam estudos eruditos sobre a ciência do inútil192
191
CERTEAU, Michael de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 223 192 Alguns dos tópicos estudados pela 'Patafísica são a Liricopatologia e Clínica dos Retoriconosos, Cocodrilologia, Pedologia e Adelfismo, Cinematografia e Onirocrítica, Aliética e Ictibalística, Tonosofía Africana, Alcoolismo Estético, Infantilização Voluntária e Involuntária.
126 –
193
, filiaram-se nomes ilustres como Raymond Queneau , Jacques Prevert, Max Ernst, Eugene
Ionesco, Joan Miró, Boris Vian, Marcel Duchamp, Jean Dubuffet, René Clair. Certamente também poderiam frequentar esse colégio os artistas portugueses contemporâneos João Maria Gusmão (Lisboa, 1979) e Pedro Paiva (Lisboa, 1977), que em seus filmes fazem uma investigação sobre a compreensão dos epifenômenos patafísicos, efêmeros e particulares, através do empirismo e da recuperação da magia sobre a inacessível realidade das matérias do cosmos. As situações inesperadas e a simplicidade narrativa dos trabalhos assemelham-se às experiências alquímicas ou físicas, algumas vezes realizadas ao ar livre, onde imbricam-se entes em equivalência indiscerníveis, enigma e ficção, falso e verdadeiro. A supressão temporal da conjunção do passado-presente-futuro da patafísica também aparece em seus trabalhos, visto que a maior parte das vezes, exibidos em projeções 16mm, instalados geralmente em ambientes de escuridão quase absoluta, reforçam a ideia de suspensão temporal do cinema, uma cápsula, casulo ou câmara onde se realizam testes científicos. Avizinham-se, por isso, da ‘Patafísica de Jarry, aluno de Bergson, que recupera a questão da duração. A realização desses experimentos parece levantar questão sobre a tradição intelectual que durante o século XIX suspeitou da racionalidade e do domínio da ciência na configuração das crenças contemporâneas. Em geral esses artistas animam especulativas ficções de aspecto literário e desenvolvem noções que se referem a uma ontologia patafísica. DeParamnésia (2001-2002), Eflúvio Magnético (2004-2006) e Abissology (2008) foram projetos desenvolvidos por João Gusmão e Pedro Paiva. Abissology (abissologia), para citar uma delas, estuda o abismo nas mais diversas formas. De modo geral, trata de estabelecer relações entre a existência e o precipício. Aborda fenômenos do déjà vu, da paralaxe, do sincronismo e do milagre. A proposição abissologista
193
Um dos principais autores do Oulipo. Corrente literária surgida na França no ano de 1960, propõe a libertação da literatura. Seus autores procuram propor regras para suas produções literárias tais como escrever um romance inteiro utilizando uma só vogal (Les revenentes, de Georges Perec), utilizando ao máximo a linguagem oral (Zazie no Metrô, de Raymond Queneau), entre outras restrições. Além de Queneau, também podem ser citados os nomes de François Le Lionnais, Italo Calvino e Georges Perec, entre outros. Movimento semelhante pode ser encontrado na pintura (OuPeinPo). Disponível em http://vai.la/277o
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de que “o mundo sempre se manifesta segundo alguns aspectos indiscerníveis”
194
traduz muito
de perto um assunto recorrente da dupla portuguesa. Na tentativa de enxergar o mundo é preciso apreciar a falta de nexo, de uno. Ou seja, verificar o elemento obscuro ou pelo menos uma sombra do indiscernível que traduz multiplicidades intrínsecas de permutações. Preocupações que estão presentes na 'Patafísica, imemoriais e complexas como essas, integram trabalhos como Pedras Rolantes (2007) ou Acerca do Espírito da Gravidade (2007), Acerca da densidade da água (2009), Acerca da gravidade (2009) e O homem tábua (2007). A aproximação desses artistas a esses assuntos incorporais e ontológicos, raramente apresenta algum tipo de maquinismo concreto, ou seja, são máquinas abstratas. Quando reais, se utilizam de máquinas simples como alavancas, gangorras, polias ou pêndulos. O maquinismo maior se dá mesmo pelo que carregam, na narrativa e na linguagem usadas, de segredo tramado, de conluio, de conspiração e invenção de novos mitos. Eclipse Ocular (2007), por exemplo, é um filme que mostra uma esfera branca que gira em seu próprio eixo. Sua aparência varia entre um ovo, uma lua e um olho. Dos eclipses que se inscrevem na esfera, entre o falso e o verdadeiro, entre presença de visibilidade e privação apresenta-se o ente contingente e indiscernível. 195
Figura 20 - Eclipse Ocular, 2007. (João Maria Gusmão e Pedro Paiva)
Assim como nos trabalhos de João Gusmão e Pedro Paiva, são constantes, nos textos de Jarry, a invocação à ciência que revela potencialidades e virtualidades de um objeto. A 'Patafísica também promove rebuliço no que diz respeito ao tratamento da linguagem; intervem no francês, ao usar o latim ou o francês antigo, para descobrir um francês novo, do futuro. Com língua morta, transmuta a viva, criando signos novos. A
194
GUSMÃO, João Maria e PAIVA, Pedro. In:Teoria do indiscernível. Nada, revista sobre tecno cultura, pensamento, arte e ciência. Disponível em http://vai.la/279y 195 Eclipse Ocular, 2007 - João Maria Gusmão + Pedro Paiva - Filme 16 mm, cores, sem som, 2’40’’ Produção: Galeria Zé dos Bois, Lisboa. Disponível em: http://vai.la/1VbL
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primeira injeta, a segunda gagueja a terceira sobressalta. A língua torna-se signo, poesia e já não se pode definir entre língua, fala ou palavra 196. Gilles Deleuze considera o pensamento de Jarry “avant la lettre”, em relação ao de Heidegger. No livro Crítica e Clínica, Deleuze dedica a esse assunto o tomo "Um precursor desconhecido de Heidegger: Alfred Jarry”, no qual comenta que "Cabe considerar a obra de Heidegger como um desenvolvimento da patafísica”.
EREÇÕES CELIBATÁRIAS
Outros romances escritos incluem a preocupação com a modernização, a mecanização, o envolvimento do homem com seus aparatos que, no início de século XX, tiveram tanta ou maior importância que os de Jarry. Os romances de Raymond Roussel constroem um mosaico de máquinas utópicas, às quais são delegadas funções que até então só eram concebidas quando realizadas pelas habilidades específicas dos artistas. Conforme Rosalind Krauss, foi ao assistir a adaptação teatral de Impressões sobre a África e se deleitar com o espaço maquínico-literário que Guillaume Apollinaire, Francis Picabia e Marcel Duchamp descobrem e contaminam-se com o mundo de Raymond Roussel como um continente de variadas máquinas. Krauss descreve uma delas: (...) uma máquina de pintura: uma chapa fotossensível presa a uma roda com vários pincéis. As imagens das paisagens que incidem na chapa são registradas e transmitidas ao mecanismo que impulsiona os pincéis que, por sua vez, registram a imagem em tinta sobre a tela. 197
Duchamp confirma: “Roussel foi, fundamentalmente, o responsável pelo meu quadro La Mariée Mise à Nu par Ses Célibataires, Même. Suas Impressions d'Afrique me deram a idéia geral. Essa peça, que vi com Apollinaire, ajudou-me muito num dos aspectos da minha expressão. Vi imediatamente que o podia usar como influência” 198
196
DELEUZE, Gilles; Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34 Ltda, 1997. In: Um precursor desconhecido de Heidegger: Alfred Jarry p.113. 197 KRAUSS, Rosalind E. Formas de ready-made: Duchamp e Brancusi. In: —. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 86
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Duchamp, que também experimentou o cubismo, desenvolveu conceitos sobre movimento e máquinas que o levaram a mares nunca antes navegados. Passou dos interesses preliminares do aspecto superficial das máquinas ao desenvolvimento de um novo tipo de concepção, através do desenho que chamou de seco, ou seja, mecânico. Comentando sobre o moedor de chocolate, Duchamp explica: "O lado mecânico influenciou-me, ou pelo menos foi também o ponto de partida de uma nova técnica. Eu não conseguia entrar no desenho fortuito, ou nas pinturas de respingos da tinta. Eu queria voltar a um desenho completamente seco, uma concepção seca de arte, e o desenho mecânico para mim foi a melhor forma dessa forma seca de arte... eu estava começando a apreciar o valor da exatidão, de precisão e à importância do acaso, não mais trabalho manual (...) este foi o verdadeiro começo do "Grande Vidro" 199
O mecânico, o movimento, o deslocamento, como já observado em outros capítulos, exerce muita atração sobre Duchamp. Em sua obra isso se mostra tanto nos trocadilhos de Rrose Sélavy, nos falsos palíndromos do Anemic Cinema como nas máquinas, imaginárias e verdadeiras, na “Roda de bicicleta”, nos Rotoreliefs, nos axiomas pseudocientíficos. Os títulos, “Nu descendo a escada”, “Mariée sendo despida por seus celibatários, mesmo” para citar apenas dois exemplos, carregam com eles um sentido de ação contínua. Sempre conjugadas no gerúndio, agenciando partes internas e externas, essas máquinas celibatárias, delirantes e enigmáticas, colocam em ação uma série de conceitos e associações que delas decorreram. A máquina La Mariée Mise à Nu par Ses Célibataires, Même, a pintura mais complexa e ambiciosa de Duchamp200, é a principal responsável pela disseminação do termo Célibataires aplicado às máquinas e à arte. Ao que parece, temos aqui um sistema de transmissão complexo. Se Roussel influencia Duchamp com sua obra - e foi a partir dela que iniciou o trabalho do “Grande Vidro” - foi esse mesmo que fez circular o uso do termo “Machine Célibataire”, ou “Bachelor Machine”. Michel Carrouges, a reboque desse nome, elabora profunda teoria.
198
DUCHAMP, Marcel. Pintura... a serviço da mente in: CHIPP, Herschel B. (org.) Teorias da arte moderna. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 401 199 Kunstmaschinen Maschinenkunst / Art Machines Machine Art. Edited by Katharina Dohm et al.,Frankfurt; Basel: Museum Tinguely, 2007. apud Conversation with Marcel Duchamp, James Johnson Sweeney p.20 200 SYLVESTER, David – Op. cit. p.472
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Ao se traduzir o termo do francês Célibataire, do inglês Bachelor, do latim cælibatus, celibato, encontramos, em português: solteiro, bacharel, celibatário. Literalmente significa aquele que se mantém solteiro ou solteira, preservando-se casto, improdutivo. Os celibatários, enquanto aguardam o encontro com aquele/a a quem vão se entregar, são seres singulares. Negam a família, afastam-se gradualmente da vida social e de suas convenções, o que faz aumentar a sensação de não-pertencimento em relação ao mundo circundante. Nessa ascese, lidam com métodos e projetos próprios. Encerrados em si mesmos, colapsam, dado que só podem lidar como seus componentes internos, seus funcionamentos, sempre impossíveis, objetos partidos, sonhos incompreensíveis e mirabolantes. Da parte inferior de “O grande vidro” ouvem-se as ladainhas do CARRO trenó Corrediça 201: Vida lenta. Círculo vicioso. Onanismo. Horizontal. Ida e Volta para o batente. Porcaria de vida. Construção barata. Ferro branco, cordas, fio de ferro. Polias de madeiras excêntricas. Voando monótono.
Carrouges 202 identifica uma máquina celibatária por três aspectos distintos: 1 - Aparecem, antes de tudo, como máquinas impossíveis, sem função, incompreensíveis, delirantes. Sem razão de existir, a não ser por suas próprias leis de subjetividade, simulam certos efeitos mecânicos, mas são as do tipo que avistam-se em sonhos, no teatro, cinema. 2 - Com estruturas baseadas em lógica matemática, apresentam um sistema de imagens composto de duas identidades. A sexual, que inclui os elementos masculinos e femininos, e a unidade mecânica, formada também por dois componentes, que correspondem respectivamentem aos elementos masculinos e femininos da unidade sexual. Em Duchamp a máquina celibatária continha nove solteiros que deveriam ser lembrados como frações de 201
Apud SANOUILLET, Michel (org). Duchamp du Signe: Ecrits. Paris: Flamarion, 14. Corrediça 1994.SANOUILLET, 1994, p.81. 202 CARROUGES, Michel. Le macchine celibi/The Bachelor Machines, ed. Jean Clair & Harald Szeemann, following the contribution by Michel Carrouges. p. 21-22.
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elementos masculinos. A unidade mecânica, que também é representada no “Grande Vidro”m corresponde à noiva, por ela mesma, na parte de cima e o noivo solitário, confinado na parte inferior. 3 - Representa a função de elementos aparentemente heteróclitos como apresentado no canto VI de Maldoror, escrito por Lautréamont203, reconhecida na fórmula: “ele é bonito... como o acaso encontrando a máquina de costura e o guarda-chuva em cima da mesa de dissecação”. Representa a função específica emergente dos dois conjuntos do sistema. O guardachuva, símbolo do sexo masculino, a máquina de costura do feminino e a mesa de dissecação, que não é mais elemento mecânico do que sexual. Em vez do leito do amor, que denota a união e a vida, a mesa de dissecação expressa funções específicas da máquina celibatária, que é a solidão e a morte. 204
DE VOLTAS
Como demonstra o próprio Roussel, a articulação de procedimentos se fazia maquínica na sua origem. Ele passava de uma narrativa descritiva à cacofonia de narrativas engenhosas que beiravam o ilegível. Em “Como escrevi alguns de meus livros” as palavras e frases se articulavam como verdadeiros jogos verbais. 205 “Escolhia duas palavras parecidas (que fizessem pensar nos metagramas). Por exemplo, billard e pillard (bilhar e larápio) depois acrescentava palavras semelhantes, mas tomadas em dois sentidos diferentes e obtinha assim duas frases idênticas. No caso de billard e pillard as duas frases obtidas foram: 1° Les lettres du blanc sur les bandes du vieux billard 2° Les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard No primeiro caso, “lettres” tomava-se no sentido de “sinais tipográficos”, “blanc” no sentido de “cubo de giz” e “bandes” no sentido de “rebordos” (o que dá: As letras feitas a giz no rebordo do velho bilhar) 203
DUCASSE, Isidore Lucien, conhecido pelo pseudônimo literário de Conde de Lautréamont (1846-1870) poeta uruguaio que viveu na França, considerado um precursor do Surrealismo. 204 CARROUGES, Michel. Le macchine celibi/The Bachelor Machines, ed. Jean Clair & Harald Szeemann, following the contribution by Michel Carrouges. p. 22. 205 ROUSSEL, Raymond. Novas impressões de África. Trad. Luiza Neto Jorge, Introd. Manuel João Gomes. Lisboa, Fenda, imp. 198?
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No segundo caso, “lettres” tem o sentido de “cartas”, “blanc” o sentido de “homem branco” e “bandes” o sentido de “hordas guerreiras”. (o que dá: As cartas do branco sobre as hordas do velho larápio) Encontradas as duas frases, tratava-se de escrever um conto que começasse com a primeira frase e terminasse com a segunda. Ora, era à resolução deste problema que eu ia buscar todos os meus materiais. No referido conto havia um branco (um explorador) que, sob o título de “em terra de negros” tinha publicado um livro em que, sob forma de cartas, falava das hordas de um larápio (um rei negro). Logo no início via-se alguém a escrever com giz umas letras nos rebordos de um bilhar. Criptograficamente, essas letras formavam a frase final “as cartas do branco sobre uma história de charadas baseadas nos relatos epistolares do explorador”.
Nessa dobra, entre as formulações que lemos e aquilo que está oculto, entre a primeira e segunda frase é onde se dá o laço da linguagem. O desafio, a princípio, parece assemelhar-se ao do mágico desencadeador de coelhos em cartolas. No entanto, logo se percebe que não é caso de magias, mas de maquinações, dado que implica o exercício da imaginação e o esforço do pensamento como presença ativa tanto para compor o texto como para lê-lo. Acredito haver criação onde são estabelecidos limites, assim como acontece nas frases gêmeas quase idênticas de Roussel. Um ponto de partida sutilmente distinto do de chegada, um “entre”. O criador, o “interruptor” das máquinas percebe aí um terreno intervalar, “interlarvar”, onde é possível vislumbrar pontos de mutação. Ou mesmo, o DNA de dois óvulos fecundados quase simultaneamente que introduz a célula germinativa da variação edificadora novos seres narrativos e distingue e engendra uma construção na outra. Deleuze em seu texto “Raymond Roussel ou o horror do vazio”206, de 1963, confirma o “carregamento” de sentidos em seus textos “Duas palavras tomadas em dois sentidos vivem vidas diferentes, ou melhor, são deslocadas para comporem outras palavras (“j’ai du bon tabac...” = “jade tube onde aubade...”)” Especulo sobre o quanto e como puderam repercutir esses recortes, essa combinação de destroços variados, essas peças de montar quebra-cabeças, que despencaram do navioromance e que foram lançados nas costas africanas da literatura de Roussel. Chego a pensar 206
DELEUZE, Gilles. L’Île déserte et autres textes (1953-1974). Ed. preparada por David Lapoujade. Paris: Minuit, 2002, p. 87
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que tais conjuntos de incongruentes misturados podem ter espalhado por décadas milhares de garrafas fechadas e se distribuem viroticamente pelos continentes para constituírem as culturas multiculturalistas atuais. Tanto o texto como os mecanismos do instigante espetáculo de Roussel combinam muitas repetições de jogos de palavras, amenidades, loucuras, extravios, para edificar o vazio onde a linguagem se desfaz e só tem “a oferecer ao olhar o mutismo da página branca”207. Para Foucault, “Roussel inventou máquinas de linguagem que não têm, sem dúvida, fora do procedimento, nenhum outro segredo além da visível e profunda relação que toda linguagem entretém, desata e retoma com a morte”
208
.
São aparelhos, manipuláveis, mecanismos dos quais operam-se as partes; segundo Deleuze; são “livros-procedimento”209, máquinas que se podem encontrar na viagem de tantos atiradores, máquinas, acrobatas e veículos estranhos de Roussel. Diz Deleuze210: “Como se as máquinas de Roussel tivessem tomado para si a técnica do procedimento: a exemplo do trabalho de turbina, que remete por sua vez a uma profissão que nos força a levantar cedo. Ou o verme que toca cítara arremessando gotas de água sobre cada corda. Roussel elabora várias séries de repetição que liberam: os prisioneiros salvarão sua vida através da repetição e da récita, pela invenção de máquinas correspondentes. [...] Precisamente, estas repetições liberadoras são poéticas, porque elas não suprimem a diferença, mas, ao contrário, a experimentam e a autenticam ao interiorizar o Único. Quanto às obras sem procedimento, obras-poema, elas se explicam de uma maneira análoga. Desta feita, são as próprias coisas que se abrem em favor de uma miniaturização, ou melhor, à custa de um dublê, de uma máscara. E o vazio é agora atravessado pela linguagem, que dá surgimento a todo um mundo no interstício dessas máscaras e dublês. Desta forma, as obras sem procedimento são como o avesso do próprio procedimento. Em ambos os casos o problema é o de falar e fazer ver ao mesmo tempo, falar e dar a ver”
As maquinarias literárias e teatrais se avolumam nos textos de Roussel tanto no que diz respeito ao funcionamento interno da estrutura do texto, como no uso de invenções que “se assemelham a artefatos tecnológicos incipientes na belle époque. Aparelhos, por exemplo, 207
FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Forense Universitária: RJ, 1999 p.48 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p.71 209 DELEUZE, Gilles. Causas e Razões das Ilhas Desertas. In L’Île déserte et autres textes (1953-1974), ed. prep. por David Lapoujade. Paris: Minuit, 2002, p. 87 210 DELEUZE, Gilles. Op. cit., p. 87 208
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como a "planta ávida de assimilação pictórica", que garantia a gravação e "a reprodução imediata de imagens", pareciam anunciar a fotocópia, o scanner e a fotografia digital. As cenas dos "quadros vivos" do romance e da encenação teatral211 durante os espetáculos eram habitadas por pessoas que mecanizavam a rotina de criação artística e demonstravam apreço que os personagens pareciam ter pelas invenções da época. Seria impossível identificar se havia intenção clara, mas são essas as garrafas criptografadas que Raymond lança ao mar. Imagino que a esperança lhe sorriu quando fantasiou que esses frágeis recipientes portadores de provocações pudessem ser encontrados por alguém em alguma orla continental. Certamente, não muito longe dali, houve quem as encontrasse. E, a partir daí, muitas estranhas e insólitas máquinas foram criadas. Os cubistas, diferentemente de Duchamp, não fizeram movimento nem brusco nem mediano em direção ao maquinismo. Sem mencionar o mundo mecânico, ou deixaram de ler as mensagens arquitetadas por Roussel ou simplesmente não lhes atribuíram valor. Picasso, Braque ou Gris divertiram-se, em seus quadros, apenas com a colagem de sortidos materiais mundanos, como prego, corda, jornal, barbantes e outros. Parecem não ter dado cabimento às garrafas e as abandonaram flutuando ao sabor das ondas marítimas acionadas pelo vento. Seria só mais tarde, a arte pop, o dadaísmo, as técnicas de colagem, as de reciclagem, fariam uso de dispositivos, apetrechos de elementos diversos e se aproveitaria da melhor forma, das mensagens grafadas por Roussel em sua máquina literata. Verificam-se assim reações bastante distintas aos diferentes impulsos literários da época de Roussel. O interesse dos futuristas, construtivistas, dadaístas e surrealistas não parece ter sido compartilhado pelos cubistas, ocupados ainda com a crise da representação e com la verité en peinture.
211
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Raymond Roussel e o multiculturalismo. Disponível em http://vai.la/1Vdn. Leyla é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
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DAS CELIBATÁRIAS
"[...] Gostava de desnomear: para falar barranco dizia: lugar onde avestruz esbarra. Rede era vasilha de dormir. Traços de letras que um dia encontrou nas pedras de uma gruta. Chamou: desenhos de uma voz. Penso que fosse um escorço de poeta [...]” 212
Provavelmente os conceitos que abrangem as máquinas celibatárias só poderiam ser encontrados concomitante e fidedignamente em Duchamp e na literatura. Mas, se a própria história da arte, através de seus curadores, já reuniu tantas aproximações artísticas a esse tipo de máquina, também me reservarei o direito de fazê-lo ao abordar principalmente as obras de Jean Tinguely e Mike Landy. Jean Tinguely, lida com ironia e inventividade na criação de esculturas-máquinas que, em alguns casos, oferecem curtos-circuitos e até a autodestruição. Em funcionamento constante e ruidoso, a maquinaria que apresenta instiga o espectador, convocando-o a participar de experiências tão cômicas quanto trágicas. Se, por um lado, essas esculturas chamam a atenção pela complexidade, também comovem pelo amontoado de cacarecos, quase sempre desajeitados e de visível inutilidade. São trabalhos em que o movimento é presente: “Méta-Matics”, máquinas que produzem em série, desenhos abstratos sobre o papel; “Variations”, que incorporam notas musicais; “Constante indeterminée”, que, em rotação, faz com que as superfícies se diluam, para sobreviver à cor pura. Máquinas que promovem labirintos dinâmicos e lidam com o experimentalismo, com o fenômeno presencial de máquina e público, com imprevistos que, de certa maneira, espelham os ritmos e frenesi da vida moderna e do avanço tecnológico. O fascínio pelo movimento e pela nova tecnologia fez com que Tinguely se engajasse, cada vez mais, no mundo mecanizado e na relação entre homem e máquina. A integração do espectador com o trabalho, baseada na cooperação mútua – exemplo de “Méta-Matics”
213
,
onde o vistante escolhe a caneta para ser usada na máquina de desenho – transforma a relação com a máquina em jogo divertido e bem humorado.
212
BARROS, Manoel de. O Livro das Ignorãças, Poema III. Em exibição na primeira Bienal de Paris em 1959, a “Meta-matic No.17” teria feito 40.000 desenhos únicos. SILLARS, L. Joyous machines: Michael Landy and Jean Tinguely. Liverpool: Tate. 2009 p.17 213
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Se, por um lado, o trabalho de Tinguely tem como pano de fundo o modernismo, por outro representa a tentativa de miná-lo através da comunicação direta com a vida cotidiana, a oficina, o absurdo, o nonsense, a vida intensa da cidade grande, liberando a porta de entrada e saída do atelier do artista com o mundo. A redução do intervalo entre arte e vida, artistas e audiência, a desmaterialização do objeto artístico com o uso de máquinas para realizar trabalhos artísticos parecem minar a tendência modernista, cada vez mais presente, de as pinturas e obras de arte emergirem da espontaneidade. As máquinas criadas por Tinguely tornavam-se cada vez mais teatrais214 , como é o caso das “Rotozazas”, que quebravam garrafas e jogavam bolas ou da “Baluba”, que promovia danças e sacudia-se, subvertendo a relação temorosa que se tinha com as máquinas. Em 1960, o artista instala no Museu de Arte Moderna de Nova York sua obra seminal, uma homenagem à cidade em forma de máquina escultórica, composta por uma complexa rede de objetos “trouvés”. Simula, assim, um protótipo da cidade com seus excessos de intensidades, motores e movimentos mecânicos. Era a cidade-máquina de Tinguely marcada pela circulação estridente. 215 A reunião de dezesseis metros de objetos, em desuso, encontrados no lixo – peças avariadas, bicicletas, triciclos, carrinhos de bebê, banheiras, pianos, sinos, garrafas e extintores de incêndio, bombas de tinta, odores químicos, produtores de ruído –, formavam uma imensa máquina de conexões e movimentos variados que trabalhavam interligados e integravam as ações do “happening” “Homage to New York”. 216 No início da ação, a máquina apresentou falhas. Depois de meia hora de espetáculo, toda a peça entra em colapso, começa a desmoronar e atinge a autodestruição. Embora o público soubesse algo sobre a natureza deletéria do evento, esperava que a máquina pudesse executar algo funcional. De certa forma isso aconteceu, esporadicamente, de maneira característica a ação ocorreu de acordo com os termos da máquina e não como de quem a criou. 217
214
SILLARS, L. Joyous machines: Michael Landy and Jean Tinguely. Liverpool: Tate. 2009 p.18 op. cit In: Under Destruction. Ed. Gianni Jetzer, Chris Sharp, Roland Wetzel, Berlin 2010, P. 23 216 Disponível em http://vai.la/2azs ASHTON, Dore. “Historiador da arte e, em seguida, crítico do The New York Times, testemunhou todo o desempenho de Homage to New York”, escreveu em detalhes sobre o valor inestimável desse trabalho reproduzido em Sillars, L. Joyous machines: Michael Landy and Jean Tinguely. Liverpool: Tate. 2009 P.39-43. 217 SILLARS, L. Joyous machines: Michael Landy and Jean Tinguely. Liverpool: Tate. 2009 P. 23. 215
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O fracasso da peça é o êxtase da autonomia da obra de arte. A produção de um acontecimento autodestrutivo era parte de sua maquinação interna. No entanto, o acaso, as ações não intencionais ocorreram à revelia do artista e fizeram parte considerável da dramaturgia operística que foi arquitetada na criação da máquina. Não houve truques, a interação entre partes negociou constantemente com o acaso, e apresentou uma obra cujo processo se encontrava aberto. O acúmulo de agentes heterogêneos coloca lado a lado o projeto e o acaso;, a administração das competências imputadas e máquina em coreografia com as incertezas e surpresas do acaso deixaram perplexo e em êxtase todo aquele que se deparou com ela – inclusive o próprio Tinguely que tinha como plateia personagens como Marcel Duchamp Robert Rauschenberg, John Cage, Mark Rothko e Barnett Newman – pois levaram a cabo a desintegração da máquina celibatária, seu fim, sua explosão por completo. O que pode ser levantado como ponto importante dessa instalação e performance, e que contribui para a reflexão desta dissertação, diz respeito à dupla criação e destruição, utilidade e inutilidade, e também a funcionamento versus trabalho da obra de arte. A destruição teve presença marcante na trajetória do modernismo, de Cézanne, das experiências que buscavam o colapso do plano, da explosão da figura no cubismo. Ou através das profecias futuristas que pregavam a revolução pelo desmoronamento da arte em vigor, até ganhar corpo a partir de vanguardas históricas, com o Dadaísmo - movimento de base anarquista que, ao negar as tradições sociais e artísticas, parece apoiar o lema de Bakunin 218, que anunciava "a destruição também é criação". Liberada das forças acadêmicas e históricas, a arte passava a lidar com as forças criativas que emanavam da destruição. A arte do pós-guerra incorpora o mecanismo autodestrutivo como técnica, como procedimento artístico que faz parte das decisões do próprio trabalho. A inserção de algo que se repudia a si mesmo até os estertores, máquina complexa, concebida para alcançar a autodestruição ao operar apenas uma vez em uma única noite caso de “Homage to New York”– aponta uma questão existencial e parece invocar o exercício da antiga tradição pictórica do Memento Mori, no sentido em que a destruição convoca a lembrança da enfemeridade humana e da obra de arte, instaura um desarranjo que destitui o
218
BAKUNIN, Mikhail (1814 - 1876), revolucionário russo, um dos chefes da Internacional, historiador da anarquia.
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status sagrado da arte e critica a conduta da criação, muito pertinente naquele momento histórico em que, por exemplo, Jackson Pollock já realizara suas “dripping paintings”. O artista que, de modo geral, cuidava até então da criação e manutenção de todo uma sistema de arte – curador, comprador, museus, galerias – preocupado com a conservação, o mercado, a exposição participa da destruição desse território e instituição. Ato que, para além de agressivo se coloca na categoria de fundador, político e renovador. A coreografia do desmoronamento, da quebra, da ruptura coloca em evidência a questão do utilitarismo da obra de arte. Do enguiço de “Homage to New York” que emergiram novas questões vinculadas à inutilidade da obra de arte. Uma vez que a noção moralista moderna, vinculada à acumulação capitalista e produtivista, fundamenta-se na ideia de que as atividades devem ser redutíveis às necessidades materiais de produção e de conservação, a noção de utilidade fica comprometida face a esse parâmetro de utilidade fixo. Não há como definir, dessa forma, o que pode, ou não, ser útil ao homem, visto que não se levam em consideração as variáveis, ambiguidades e linhas de força que estão implicadas no termo. Georges Bataille (1897-1962), escritor e pensador francês, atribui à produção um caráter secundário. Bataille foi um dos pensadores que alavancou a reflexão sobre os riscos de uma sociedade limitada à atividade útil. Para ele, o fundamental, na existência de uma sociedade, é o espaço reservado ao gasto e ao consumo, o que chama de despesas improdutivas219, sejam eles excessos produzidos pelo campo social, psicológico, cultural. Em vez da discussão falseada a respeito da utilidade, Bataille provoca uma inversão do modo tradicional de entendimento a respeito dos constituintes das primeiras motivações da sociedade humana, em que o que passa a ser mais investigado é o consumir, e não o produzir, o despender e não o conservar, o destruir no lugar o construir. “Sempre que o sentido de um debate depende do valor fundamental da palavra útil, quer dizer, sempre que uma questão essencial quanto à vida das sociedades humanas é abordada, sejam quais forem as pessoas que intervêm e sejam quais forem as pessoas representadas, é possível afirmar que o debate é necessariamente falseado e que é esquivada a questão fundamental. Não existe, com efeito, qualquer meio correcto, dado o conjunto mais ou menos divergente das concepções actuais, que permita definir o que é útil aos homens” 220 219 220
BATAILLE, G. A parte maldita: precedido de A noção de despesa. Lisboa: Fim de Século Edições. 2005. idem p.27
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O pensador discute, então, os processos de produção e de conservação da energia através de duas maneiras: a primeira, considerada energia produtiva e útil, conserva a vida e dá continuidade às atividades de produção; a segunda, representada pelas despesas improdutivas, festivas, orgiásticas, excessivas, – o luxo, as guerras, as construções monumentais, os jogos, os espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa que não tende à reprodução –221, que têm um fim em si mesmas e excluem os modos de consumo que servem de meio termo à produção, são desperdícios energéticos. Bataille defende a primazia da fruição, ou seja, da propensão básica do homem para o gozo e para o desfrute. A função de produção, aquisição e conservação seria secundária em relação a essa despesa. A arte faz parte da categoria de despesas improdutivas. Está vinculada às forças que rompem com a condição humana do circuito produtivo do trabalho e da subordinação temporal. Rompe com o tempo útil em que cada instante é aproveitado como produtor do instante seguinte. A atividade artística assume o caráter nobre da noção de despesa, na contramão das concepções racionalistas e econômicas do século XVII. Introduz a descontinuidade, a inutilidade, momentos em que o trabalho é suspenso, gerando indiferença em relação à função que os objetos ou atividades poderiam desempenhar na cadeia da utilidade. Se a razão da funcionalidade ou utilidade é retirada da relação de trabalho, pode-se fazer emergir dados que ela escamoteia como, por exemplo, a indesejável e incompreensível inutilidade ou efemeridade da vida, as atividades excrementícias, a doença e a morte. Não se trata de condenar a inutilidade e convocar a universalização do útil ou a noção de utensílio, mas de, simplesmente, na tentativa de novas compreensões temporais, retirar o véu negativo que encobre o excesso, que Bataille também chama "parte maldita"222, e conjugá-lo com a produção. Talvez um novo tempo em que seja possível combinar utilidade e inutilidade, aceitar essas ambiguidades como não excludentes: tensionar o útil, distensionar o inútil, limitar o inútil, distensionar o útil. Acolher assim tanto o trabalho como inserir nele a descontinuidade, sem que haja subordinação do tempo e subserviência aos utensílios. Dessa forma, o tempo, não mais entendido linearmente, poderia ser sentido numa lógica cíclica, em que seriam oferecidas menos certezas e mais riscos, mas de onde seria possível fugir e retornar.
221
BATAILLE, G. A parte maldita: precedido de A noção de despesa. Lisboa: Fim de Século Edições. 2005 p.30 222 Idem.
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A arte fornece vários exemplos de uma despesa excessiva, não-acumulativa e irracional, na contramão do espírito conservador da acumulação eficaz, da produção e da lógica da utilidade. No que diz respeito à dupla arte e máquina que não para de produzir excedentes, que não tem outra característica que não seja a de produzir sua própria produção incessante, Tinguely poderia inserir quase todos os seus trabalhos, desde o fundante “Homage to New York”, como os ainda mais pungentes em termos de destruição,“Study for an End of the World” (1961),“Study for an End of the World No. 2” detonado, com sucesso, na frente de uma platéia reunida no deserto nos arredores de Las Vegas. Tinguely parece ter usado a destruição a seu favor, como um espetáculo, como um ato de júbilo; visionou ainda o entrelaçamento definitivo do artista com projetos transdisciplinares envolvendo objetos cotidianos e eletrônica, a ciência e as novas tecnologias. Fez movimentar por trás de suas máquinas, nas oficinas e no ateliê, o intercâmbio criativo-produtivo entre arte, ciência, tecnologia e indústria. "Um glorioso ato de suicídio mecânico"223, descreve Billy Klüver (1927-2204) à medida em que apreciava o desmantelamento de “Homage to New York”. Klüver, engenheiro nascido na Suécia e responsável pela montagem do trabalho, apostava que o diálogo entre engenheiros e artistas seria um agente de transformação social e cultural significativo, dado a arte se aproximar cada vez mais da vida e a tecnologia tornar-se inseparável dela. A partir de “Homage to New York”, esse engenheiro sueco passou a ser o principal catalisador do movimento de reunião da arte com a tecnologia. Em 1966, funda com Robert Rauschenberg, Robert Whitman e Fred Waldhauer o “Experiments in Art and Technology” (E.A.T.), uma organização sem fins lucrativos que atendia artistas e engenheiros.224 O artista, ao incorporar em suas criações o pesquisador, o tecnólogo, o hacker, o cientista e o inventor tanto ajuda a ativar e promover a arte rumo a novas perspectivas, como a própria pesquisa artística esbarra em respostas, variações ou mesmo soluções científicas e tecnológicas que ampliam o processo de pesquisa para além dos recônditos dos laboratórios. Para Stephen Wilson, autor do artigo “Arte como pequisa”, ainda resta à arte e à ciência o sentido de confiança mútua na produção positiva da interferência dos dois setores. Na opinião de Wilson, artista e também pesquisador, o papel desenvolvido pelo E.A.T., por 223 224
http://vai.la/2aol DANIELS, Dieter e SCHMIDT, Barbara U. (ed.). Artists as Inventors - Inventors as Artists.
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exemplo, no cruzamento com a arte, não foi tão exitoso. Ainda que o Instituto tenha ajudado a produzir arte interessante durante os anos 1960, não se dirigiu em profundidade aos artistas como pesquisadores. Muitas vezes, os engenheiros desempenharam o mero papel de assistentes técnicos, assim como os artistas foram simples diletantes com as novas tecnologias225. Acredito na fertilidade e contaminação positiva que pode haver na assimilação da pesquisa pelos diversos campos de atuação no trabalho artístico e que a ideia de invenção, seja ela plástica, mecânica ou industrial, esteja no cerne de toda criação. Concordo com Guy Brett quando afirma que artistas e cientistas criam modelos do universo, mesmo que intuitivamente, mas “nem por isso menos válidos ou menos formas de conhecimento”226. Arte não tem origem no acúmulo de conhecimentos sobre ciência e tecnologia, e também ciência não tem ligação estreita com estética ou poética. Podem se acrescentar mutuamente e estabelecer relação multidirecional ao romperem os rígidos paredões que os separam; irrigarem-se mutuamente através de fluxos intercambiáveis, sem que haja impedimentos ou perdas de desenvolvimentos em ambos os campos. Quantos já não foram os filhos gerados a partir da união desses mundos diversos e dispersos compartilhados com a humanidade? Leonardo da Vinci, o pintor francês Daguerre, Samuel Morse são apenas alguns exemplos do quão frutífero se torna o enlace desses universos. O fazer do artista pode provocar nascimentos quiméricos surpreendentes. São exemplos de como é possível fazer nascer pura poesia a partir de aproximações de mecanismos e objetos artísticos com ciência, tecnologia e indústria “Condensation Cube”
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de Hans Haacke, que lida com a umidade relativa da instituição, o isolamento térmico onde o cubo é instalado e a lei física da condensação;“Outside Itself”228, instalação matematicamente programada de Federico Diaz que, através de informação computacional e da robótica, coloca em andamento uma escultura instalativa que cresce e se transforma de acordo com as mudanças na luz ambiente do dia para noite e pela interatividade dos visitantes; “Chance” de Christian Boltanski, instalação de grande porte que explora a brincadeira sobre sorte e destino dos recém-nascidos, cujas origens são sujeitas ao acaso, em que utiliza de um complexo 225
STEPHEN, Wilson. In: Arte como Pesquisa .LEÃO, L (org). O chip e o caleidoscópio: reflexão sobre as mídias. São Paulo: SENAC. 2005 p 241 226 BRETT, G. 2000. Force Fields; phases of the kinetic. London: Hayward Gallery. pag. 9 227 http://vai.la/2an3 228 http://vai.la/2an1
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sistema de andaimes onde estão instaladas máquinas que se assemelham a uma rotativa de jornal. A tendência atual de vincular a prática artística a princípios científicos, psicológicos, eletrônicos, computacionais, arquitetônicos, tecnológicos, a cruzamentos entre arte e vida, remonta à oficina do Renascimento, quando se lidava com a pluralidade dos problemas práticos mundanos e se tentava ir além dos velhos aspectos metafísicos. Mas também aponta os percursos transdisciplinares trilhados pelos artistas que se introduzem hoje, nas palavras de Nicolas Bourriaud, como uma espécie de “semionauta”: um inventor de trajetórias entre os signos229 que passeia além e através dos campos disciplinares, em busca de conexões mais completas sem que haja um domínio único e, sim, plural, transdisciplinar, de cooperação entre vários saberes, num entendimento que organiza e ultrapassa as próprias disciplinas. Abraham Palatnik (1928), artista envolvido também com investigação e descobertas no campo científico, concorda com a troca de informações dos saberes, como fica claro no comentário: “Eu acho que as indústrias deveriam convocar artistas plásticos porque eles possuem um potencial perceptivo que pode resolver inúmeros problemas” 230. O estudo relacionado aos motores de automóveis, física, mecânica, eletricidade, o aprendizado da pintura, o encontro de amigos que o levaram a conhecer artistas esquizofrênicos231, unido ao desejo de acionar algo que fosse além do estático, que implicasse tempo e espaço, foram algumas das forças que fizeram de Abraham Palatnik um dos pioneiros da arte cinética. Graças a interseção dos conhecimentos adquiridos no curso profissionalizante de mecânica e no ateliê livre de pintura, na Palestina do pós-guerra, Abraham Palatnik pôde condensar em seus trabalhos o inventor e o artista. Entre sua chegada ao Brasil e a constatação de que não poderia mais seguir pintando232, o artista debruçou-se sobre a experimentação, o improviso e a intuição e
229 BOURRIAUD, Nicolas. In: O que é o artista (hoje)? Revista Arte & Ensaio - Revista do PPG em Artes Visuais EBA – UFRJ n°10 p.76 230 In: MORAIS, Frederico; Itaú Cultural; 1999 231 Em 1948, no Rio, visitou o Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro com o crítico Mário Pedrosa, conhecendo, assim, o trabalho de arte que a doutora Nise da Silveira realizava com doentes mentais.Entrevista com Osório, Luis Camilo. In: Movimento aleatório disciplinado. Revista Arte & Ensaio - Revista do PPG em Artes Visuais EBA – UFRJ n°11 p.7 232 Ver passagem OSÓRIO, Luiz Camillo (org.). (2004), Abraham Palatnik. São Paulo, Cosac Naif. p. 52
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conseguiu articular suas primeiras máquinas, que de forma geral, dialogam com a pintura, a abstração e as luzes coloridas. Diz ele em entrevista concedida a Luis Camilo Osório: “Queria um objeto que atuasse sobre os sentidos, não só experiência, mas que realmente se manifestasse de uma maneira visual. Fui armando o aparelho, improvisando cilindros, transmissão do motor para as peças, que teria que ser feita com engrenagens” 233.
O viés técnico abriu portas para o aleatório disciplinado, projetado, mas nem por isso menos poético. Ligado à categoria do projeto e movimentando-se pela arte, seu trabalho deu origem a algo inclassificável naquele momento da história da arte (1949-1951). Os “Aparelhos Cinecromáticos” (1965-2000), expostos em 1951, na 1ª Bienal de São Paulo e também nas duas seguintes, fazem parte do projeto de romper com a condição estática da pintura e unir luz e movimento ao pictórico. Palatnik constrói caixas forradas com tela e dotadas de motores que colocam em movimento circuitos elétricos e acendem um conjunto de luzes coloridas em intervalos variados. Trata-se de fenômeno silencioso que combina luz, cor e movimento, e oferece uma experiência de emanação e absorção lumínica. O quadro se apresenta inconstante, transitório, se reinventa a cada movimento do motor, e rege o deslocamento das cores e do próprio observador. O espaço agora se movimenta, a pintura escultórica faz bailar a luz que se transforma em mídia de expressão rítmica sobre a tela. Apresenta-se a máquina que pinta quadros com pinceladas luminosas, emissoras de radiação suficiente para que a cada instante se extraia nova percepção. Sobre Palatnik, escreve Luiz Camillo Osorio: “Opera na produção de Palatnik a tensão entre o devir poético e devir tecnológico, não há nostalgia humanista nem recusa do futuro tecnológico, o que há é uma vontade de inserir alguma potência de invenção, de delírio e de graça nos usos e hibridações com a tecnologia e nesse sentido a intimidade com o interior das máquinas e seus processos de funcionamento é fundamental” 234.
A inquietação experimental de inventor, o rigor na pesquisa de novos materiais, o conhecimento adquirido no meio artístico e o contato fácil com as tecnologias transformaram não só o ateliê de Palatnik em uma oficina artística experimental de ponta para a época, mas 233
Entrevista OSÓRIO, Luis Camilo. In: Movimento aleatório disciplinado. Revista Arte & Ensaio - Revista do PPG em Artes Visuais EBA – UFRJ n°11, p.9 234 OSÓRIO, Luiz Camillo (org.). (2004), Abraham Palatnik. São Paulo: Cosac Naif, 2004.
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também inseriram um novo formato de fazer e pensar arte adaptada à nova era, aos novos equipamentos e às novas mídias. Como desdobramento dos “Aparelhos Cinecromáticos” seguiram-se os "Objetos Cinéticos" (1965-2000), misto de objetos lúdicos e jogos, que operam no âmbito da eletromecânica e utilizam ímãs e eletroímãs, resultado de sua pesquisa com o campo do magnetismo, com as leis da percepção e a física newtoniana. Esses objetos fazem parte de uma série de trabalhos em que se engendram, mais uma vez, o técnico e o lírico. Produtores de movimento desprovido de maiores significados,são como caixinhas de música que exploram o campo sensório do prazer visual e colocam em jogo a utilidade e inutilidade da máquinae da obra de arte. O valor de existência do objeto artístico está nas questões que ele implica e desencadeia com suas peças e entorno, que lidam com o limiar de alguma vantagem útil ou funcional e a total inutilidade. A obra de arte não tem função, não “serve para”. O valioso de uma obra de arte é que ela trabalha, opera, articula um conjunto de conexões variáveis, produz despesas improdutivas, sejam elas fruto de destruição ou de articulações formais ou estéticas, como pode bem ser o caso das máquinas poéticas235 de Abraham Palatnik. Ao delegar a arte para uma máquina, ou melhor, fazer com que máquinas produzam arte, tanto Tinguely quanto Palatnik articulam pelo menos dois procedimentos: projetam tanto máquinas que produzem arte e que assumem assim o papel de artistas, como também erigem máquinas que são esculturas vistas como obra de arte. No entanto, em ambos os casos, o artista não é um ator no centro de eventos. O processo, frequentemente baseado em reações químicas ou fenômenos físicos, se dá sem que o artista participe efetivamente do resultado final. O artista funciona como um start, introduz o artifício e inicia o processo, seja ele destrutivo e/ou estético. No entanto, depois de delegar à máquina a função do artista, qual o próximo passo? Depois de seduzirmos ou sermos seduzidos pela dinâmica da máquina, para onde vamos? Para onde nos orientarão as forças que vêm acopladas ao encantamento? Que feitiço nos lançam a destruição e a criação? A saída seria delegar à máquina a tarefa do gozo? Fazê-la operar de forma interpassiva236 e liberar as pessoas daquilo que poderiam viver diretamente? 235
Máquinas Poéticas foi título da mostra realizada no Museu Casa do Pontal, 2011 que apresenta o diálogo entre obras de artistas populares brasileiros com as de Abraham Palatnik. 236 Interpassividade é o ato de projetar o próprio eu em objetos remotos. A teoria da interpassividade refere-se principalmente à esfera dos prazeres, logo, isso pode ser definido como "gozo delegado." Psicologicamente interpassividade é uma forma sutíl de escapar de um prazer próprio. O sujeito afasta a incerteza que está
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Os projetos autodestrutivos de Tinguely suscitaram contágios e homenagens, como a claramente prestada por Arthur Penn diretor de Mickey One (filme de 1965, de carga surrealista dramática, estrelado por Warren Beatty), que, com a ajuda da câmara caleidoscópica e de atmosfera kafkiana, coloca em cena uma máquina autodestrutiva, que se desmonta em plena apresentação. Tinguely também arrancou elogio de Duchamp pelo senso de humor que apresentavam suas obras, como pode ser observado na citação: “Sinto com ele uma intimidade e um relacionamento que eu tenho sentido com muito poucos artistas. Ele tem esta grande coisa, senso de humor - algo que venho pregando para artistas toda minha vida. Pintores geralmente pensam que são a última palavra em divindade, tornam-se como sumos sacerdotes. Eu acredito no humor como coisa de grande dignidade, e assim também Tinguely" 237
Michael Landy (1963), artista inglês, um dos Young British Artists (YBAs), também foi capturado pelo aspecto lúdico, ingênuo e inventivo das máquinas de Tinguely. Landy, colecionador compulsivo de sucata ficou principalmente impressionado com a articulação do tipo de peças utilizadas nessas máquinas, em geral produto de descarte da sociedade de consumo, que o artista estetizava e fazia funcionar muitas vezes como potente crítica sociológica 238 Quase cinquenta anos depois de Tinguely ter erigido sua “Homage to New York”, o artista britânico Michael Landy presta uma homenagem ao suíço na exposição “Michael Landy H2NY”. Depois de longa pesquisa em arquivos do MoMA, no Museu Jean Tinguely em Basel, Landy tomou como base fotografias, filmes e restos da obra original de Tinguely e produziu uma série de mais de 160 desenhos em papel que tentaram reconstituir a autodestruição lendária da máquina de Tinguely. Através dos desenhos, Landy pôde entrar diretamente em contato com muitos detalhes daquela obra. Antes disso, porém, no ano de 2001, Michael já havia performado seu portentoso projeto de autodestruição.
associada com emoções intensas, e se contenta com a forma passiva e delegada de sentimento. A traumática presença de sentimentos verdadeiros é bloqueada e o distanciamento é mediado pelo outro. Noção criada por Robert Pfaller, professor de filosofia na Universidade de Arte e Desenho Industrial de Linz, na Áustria 237 TOMKINS, Calvin, Profiles, “BEYOND THE MACHINE,” The New Yorker, February 10, 1962, p. 44. 238 SILLARS, L. Joyous machines: Michael Landy and Jean Tinguely. Liverpool: Tate. 2009 p.18
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Se “Homage to New York” foi um marco que provocou estrondo e alvoroço em 1960, “Break Down”, de Michael Landy, também fez barulho em 2001, e atraiu cerca de 45 mil visitantes.239 Break Down não era uma máquina autodestrutiva, era praticamente uma destruição do próprio artista. O “happening” ocupou uma antiga loja da C&A, na Oxford Street, em Londres. Landy reuniu todos os seus bens, de selos a seu carro Saab 900, incluindo todas as suas roupas e obras de arte, dele próprio e de outros artistas renomados. Os 7.227 itens meticulosamente rotulados e catalogados num banco de dados foram colocados na esteira de uma linha de montagem de fábrica e desmontados peça por peça por uma equipe de operários até de atingir o final da linha, onde se encontrava um triturador industrial que os destruía. O interessante dessa articulação de desmontagem é revelar a criação por meio dessa engenharia reversa. A partir da desmontagem da solução pronta, retiram-se todos os possíveis conceitos ali empregados, e revela-se, passo a passo, peça por peça, a criação através de desconstrução do objeto – uma descoberta de como a peça funciona, uma recuperação de dados de um objeto minutos antes de ser destruído. Articulação que, pode-se dizer, está presente, às avessas, na reconstrução da máquina de Tinguely através do desenho de “H2NY”. Nesse caso, Landy constrói através do registro da destruição. A investigação de algo que já fora destruído e reconstituído através do ato do desenho.
Figura 21 - Break Down. 2001. Materiais e formatos variados. (Michael Landy)
A loja, onde aconteceu o trabalho, era aberta ao público como qualquer outra loja de rua. O que o público assistiu, muitas vezes inconsciente, foi à destruição sistemática, parecida com a que acontece com muitos bens de consumo que são feitos para um limitadíssimo tempo
239
op.cit p.45
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de uso. A intenção de Landy era que essa plateia pudesse identificar alguns daqueles objetos como algo recém-adquirido, prestes a ser dragado pelo sistema de consumo. “Com a “Homage to New York” e “Break Down”, Tinguely e Landy respectivamente, fizeram dois dos exames mais enérgicos do consumismo, do desperdício, da destruição e criatividade da sociedade pré e pós-industrial. Ambos os trabalhos, vivendo apenas na memória, na documentação, no rumor e no mito, tornaram-se o máximo em esculturas desmaterializadas de seus tempos. Utilizando os resíduos de suas épocas, eles revelaram que o prazer do consumo, ao que parece, pode estar também na sua destruição.” 240
Os artistas, enquanto usuários e consumidores de mercadorias codificadas e também cidadãos, diante da cidade e suas demandas sociais se colocam como críticos e traçam linhas de ação. Aplicam táticas de guerrilha que se infiltra nos mecanismos da própria linha de produção seriada e fabril não para que sejam produzidas novas peças sob a égide da repetição, mas para destruir o que foi produzido pela própria indústria capitalista. Suas qualidades artísticas variantes, de feras com unhas e dentes afiados, promove uma volta, uma dobra sobre o sistema de consumo e atuam como crítica acirrada. Ao final da completa desintegração de seus pertences e do devido encaminhamento para o depósito de lixo, Landy não tinha mais nenhuma posse, não tendo angariado, inclusive, nenhum dinheiro como resultado direto de Break Down. A criação, em jogo com a destruição, parece ser algo que constrói a carreira de Landy, mas não representar um ato de violência, contraído num momento de insanidade. Numa espécie de rito de abnegação, entre guerreiro, santo e feiticeiro, Landy, com o trabalho Break Down, realiza um espetáculo de desinvestimento absoluto, apaga sua história pessoal. Parece destituir o senso de importância própria para conseguir apreciar o mundo ao redor. Abandonar o ambiente familiar e a fixidez com que se lida com os inventários de memórias e de itens é tarefa nobre. Suspender o vínculo com seus pertences é projetar-se sobre o abismo hostil para fazer renascer novos formatos de abordagem do mundo. Um meio de desapegar-se de obrigações e objetos de consumo a que está submetido. Ou ainda uma estratégia que cria um contorno criativo para fazer frente aos mecanismos de poder. “Break Down” não é apenas de um objeto instalativo e escultórico, mas um conjunto de relações que, implicado com todo o sistema de mercado de consumo, de arte, máquinas 240
SILLARS, L. Joyous machines: Michael Landy and Jean Tinguely. Liverpool: Tate, 2009 p.27
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técnicas, estéticas, econômicas, sociais, a que se está subjugado, traça direções de fuga que implicam novos direcionamentos e lembram também a noção de despesas improdutivas de Bataille. A postura e a obra de Landy remetem também ao homem arcaico que não temia colocar em causa sua sobrevivência com atos destrutivos, como pode ser observado nas cerimônias praticadas pelos índios da costa noroeste americana, o “potlatch”,241 que foi abordada por Bataille em “A noção de despesa e na parte maldita”. Nas celebrações festivas de datas marcantes como batismos, casamentos, funerais, iniciações, esse índio, para adquirir honra, glória ou posição na hierarquia, deveria pegar a parte mais importante de sua riqueza e destruí-la. Dissipar riquezas não era só um ato de sabotagem, mas uma maneira de trocar a perda material pelo ganho imaterial. O poder de perder seus bens, a perda "irracional" de recursos distribuídos aumentava o grau de prestígio do índio. Assim aldeias inteiras eram incendiadas, canoas, armas e reservas e alimentos destruídos. O poder de um chefe passava, a partir de então, a ser qualificado pela capacidade ou poder de perder. A categoria de dádiva absoluta, encontrada no “potlatch”, opera para além da reciprocidade, nada espera em troca, mas também não correspondia nunca a um vazio. Ao estudar esse fenômeno, Bataille que a causa da troca era mais uma exigência de destruição e perda do que uma necessidade de preservação e aquisição, uma inversão do pensamento econômico comum, implicado com o utilitarismo e acúmulo porque “[...] exclui qualquer regateio e, em geral, é constituído por uma dádiva considerável de riquezas oferecidas ostensivamente com a finalidade de humilhar, de desafiar e de obrigar um rival. O valor de troca da dádiva resulta do fato de que o donatário, para apagar a humilhação e rebater o desafio, deve satisfazer a obrigação – contratada por ele quando da aceitação – de responder posteriormente por uma dádiva mais importante, ou seja, de retribuir com usura” 242
Para Bataille, há no mundo, na raiz da vida, uma tendência inevitável para a perda, para a dissipação do excesso em termos biológicos, que se estende à ordem social. O que, no entanto, é abafado pela tendência da aquisição e do acúmulo de excessos, responsável, de 241
MAUSS, Marcel (1872 - 1950) foi um sociólogo e antropólogo francês. Considerado "pai" da etnologia, estudou a instituição do potlatch, apresentando os primeiros resultados de sua pesquisa sobre as noções de dádiva, de compensação e de penhor. 242 BATAILLE, G.. A parte maldita: precedido de A noção de despesa. Lisboa, Fim de Século Edições. 2005 p34.
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modo geral, pela produção de meios danosos que podem se transformar em guerra de destruição em massa e certamente fazem parte do tédio da vida burguesa. O ineditismo do paradigma da dádiva estaria no fato de propor um "antiutilitarismo positivo", que pode ser aplicado às atividades artísticas. As artes trazem, na sua origem, na sua natureza, a inutilidade fundamental, mas que remetem o homem à dimensão do cosmos, ao pertencimento da condição humana, à liberação do mundo dos objetos, à experiência do desapego através da qual o homem se dá conta do seu destino – entendimento da ambigüidade que traz à tona o útil e inútil. Outro artista, um dos protagonistas do movimento da Body Art nos Estados Unidos, afeito ao impulso de aniquilamento que anima o guerreiro trágico, é o americano Chris Burden (1946). Burden desenvolveu uma série de ações nas quais utilizou o próprio corpo como alvo de grande violência e impacto. Em trabalho instalado no Museu de Inhotim, Brumadinho, Sansão, famoso pela sua força descomunal, estica seus braços entre as duas paredes da galeria. Aqui não se encontra personificado o corpo do artista Chris Burden, fazendo força entre as duas paredes, mas“Samson” (1985),
243
um grande macaco-hidráulico instalado, que afasta cerca de 15
metros as duas paredes da galeria, uma da outra. A cada entrada na galeria, o público, forçado a girar a catraca da roleta que tensiona o mecanismo, pressiona um pouco mais o macaco contra as paredes da galeria. Um trabalho que transforma o público em cúmplice do ato de destruição da obra e da galeria, ou, se preferirem, da transformação da obra. Realizado para atingir o desmoronamento, a destruição do espaço expositivo, o trabalho oferece algumas suspeitas. Se, de fato, a instalação se efetivar até as últimas consequências, ou seja, se a máquina, através da passagem dos visitantes, forçar as paredes até que a estrutura desmorone, terá executado seu absoluto poder de máquina destruidora infiltrada no interior da estrutura museológica. Para além da crítica, a obra estaria ela mesma se destruindo, apresentando-se implicada numa destruição catastrófica a ponto de trazer riscos reais de vida. Por outro lado, se o mecanismo, feito para girar milimetricamente a cada passagem de público, girar em falso a catraca, deixando intactas as paredes, que deveriam pouco a pouco
243
Samson foi instalado pela primeira vez na Galeria de Arte Henry em Seattle em 1985. Foi montado em Inhotim em 2005.
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romper, o aparelho museológico terá se sobreposto ao trabalho de forma a barrar seu poder de fera. No entanto, ao pensar nessas hipóteses, para além de me restringir ao fato de pensar em seu funcionamento real ou não, infiro que a obra já trabalhou, ativou a catraca da imaginação e colocou em jogo as peças disponibilizadas pelo artista, o público, a instituição, o circuito de arte e a máquina. Talvez se trate realmente de um jogo de forças entre máquinas, entre titãs que se entreolham, esperando melhor oportunidade para agir. A instalação, vista dessa forma, apresenta um jogo em suspensão, no qual pairam todas as possibilidades de entrega e apropriação dos sistemas econômicos e de arte, da luta entre máquinas de guerra e seus simulacros.
VETORES HISTÓRICOS
Apresento a seguir um pequeno prelúdio cronológico das relações de forças que foram acionadas para dar origem às primeiras máquinas técnicas vinculadas a arte nos movimentos futurismo e no construtivismo russo, com algumas nuances dos momentos que se sucederam. Serão destacadas algumas máquinas teatrais que foram geradas pelas intensidades do momento futurista italiano, quando se estabeleceu a crença de que só através das máquinas a arte teria salvação, sem levar em consideração, no entanto, suas relações de produção. Da mesma forma, as resultantes das apropriações coletivas que se deram no construtivismo russo fizeram os artistas acreditar na arte e nas maquinarias que dela provinha como geradoras de novas relações sociais. Comentarei também algumas das maquinarias dadaístas que operam através de uma desordem, uma produção de desejo operando deslocamentos caleidoscópicos, que chegavam a desintegração, e que seriam abafadas pela escola surrealista que operava por anti-maquinismo. Finalmente, chegarei ao que chamo de pró maquinismo quimérico, pronto para se inserir e reinserir trabalhos artísticos, gerando relações produtivas que agenciam o antigo e tradicional junto ao atual, no intuito de gestar máquinas novas, frutos dos desdobramentos da língua artística
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FUTURISMOS
O paradigma de dinamismo e simultaneidade da proposta futurista impregna diversas atividades artísticas, mas é no teatro e na literatura, dado que o futurismo foi um movimento inicialmente literário que pregava a liberdade para as palavras – “Les mots en liberté” –, que encontram-se alguns dos fatores decisivos para as novas proposições artísticas que se conjugam com as máquinas. A Itália, que no final do século XIX e início do XX, cercada de grandes potências imperialistas, enfrentava grande dificuldade de desenvolvimento, assiste ao nascimento de uma vanguarda artística. Foi na tentativa de romper as barreiras morais, políticas e sociais impostas ao seu desenvolvimento e garantir a expansão e domínio territorial, econômico e cultural que surgiram os ideais de artistas altamente radicais do ponto de vista político e estético. Eles faziam a apologia do crescimento industrial, da inserção das novas tecnologias associadas à indústria, e da exaltação da guerra. Esses ideais foram forças fundadoras para o movimento futurista, um dos mais agitados movimentos de vanguarda que, com vetores idealistas da burguesia imperialista, assumiu, por fim, a forma do fascismo – o que aniquilou definitivamente o movimento. O radicalismo formal, subproduto do político, pode ser notado na pintura, na música e na poesia futurista, mas o foco aqui será o teatro. Escritor e ativista político italiano, Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) foi o fundador do movimento futurista, que cultuava a “beleza da velocidade”, elogiava a máquina, a técnica, a ciência, execrava o culto da tradição, a comercialização da arte. Influenciado pelo Rei Ubu, aventurou-se em uma série de espetáculos como “Roi Bombance”, Poupees Électriques, que também causaram espanto. Com Alfred Jarry, parece ter aprendido a admirar o teatro de variedades, a mistura de cinema, acrobacia, música, dança, o desmantelamento da tradição, do “Solene, o Sagrado, o Sério e o Sublime na Arte com A maiúsculo” e a lidar com “toda gama de estupidez, imbecilidade, parvoíce e absurdidade, arrastando a inteligência para as raias da loucura” 244. Seguiram-se manifestos que puseram cada vez mais avant en, a “miscigenação” dos fazeres artísticos, agora a passos cada vez mais velozes, intensos e frenéticos.
244
GOLDBERG, Roselee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.7
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O Manifesto do teatro de variedades abre caminho à “Piedigrotta”, escrita por Francesco Cangiullo, primeiro exemplo de declamação dinâmica e sinóptica, cujo objetivo era “libertar os círculos intelectuais da declamação antiga, estática, pacifista e nostálgica”245, para o que era necessário uma postura de declamação dinâmica e belicosa. O ano de 1914 viu a apresentação de “Mademoiselle flicflic chapchap”,em que Marinetti apresenta uma bailarina em encenação dinâmica e sinóptica. Daí decorre também o manifesto de “A Arte dos Ruídos”, que nasce de Zang tumb tumb, uma artilharia ruidosa e onomatopéica de Marinetti enviada a Luigi Russolo, pintor e compositor italiano em 1922. Russolo chega a afirmar que com a invenção da máquina no século XIX “nasce o ruído”
246
, que chegara para ser incorporado sobre a sensibilidade humana como parte da
língua. Assim nasce a “família de ruídos” que comporia orquestra futurista e com ela também vê-se a invenção de muitos instrumentos especiais, máquinas de fazer barulhos, como o “Intonarumori” com uma espécie de alavanca que ao girar executava sons surpreendentes, caixas de madeira de quase um metro de altura, amplificadores em forma de funil que lembravam o barulho das máquinas de uma locomotiva a vapor, aparelhos, enfim, projetados especialmente para desempenhos de composições com sons como estouros, explosões, gritos, gemidos, sussurros, sons de matérias como a madeira e o metal, vozes de animais e de homens. A evolução da música acompanhava a “multiplicação das máquinas” ocasionava uma competição de ruídos, “não apenas na barulhenta atmosfera das cidades, mas também no campo, que até ontem era normalmente silenciosa” 247.
245
GOLDBERG, Roselee. Op. cit., p.8 GOLDBERG, Roselee. Op. cit., p.11 247 GOLDBERG, Roselee. Op. cit., p.11 246
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Figura 22 - “Intonarumori”, ou instrumentos ruidosos de Luigi Russolo, 1913.
Assiste-se, aliado a esse turbilhão de sons dispersos, a uma sequência de inumeráveis articulações maquínicas: cenários móveis de “fogos de artifícios”, em 1917, no qual o público assistiu movimentarem-se, durante cinco minutos, quarenta e nove cenários diferentes248; a instituição de regras para ações corporais, passos e gestos que tinham como base movimentos que lembravam o das máquinas como, por exemplo, dicas de Marinetti para os espetáculos “dança da granada”, onde sugere o movimento de marcar com os pés o Bum-bum do projétil saindo da boca do canhão” e também a recomendação, no espetáculo a “Dança da aviadora”, de que a bailarina simulasse, com contorções e meneios de corpo, os sucessivos esforços de um avião tentando decolar; a “Macchina Tipográfica” de Giacomo Balla249; a Ubermarionette do inglês Edward Gosrdon Graig; os figurinos mecânicos para Balli Meccanichi de Ivo Pannaggi em 1919; sínteses radiofônicas também criadas por Marinetti como “os silêncios falam entre si” e “uma paisagem escuta” que usavam o rádio como “uma nova arte, que começa onde pararam o teatro, o cinema e a narrativa” 250
248
GOLDBERG, Roselee. Op. cit., p.12 Doze pessoas, cada qual parte de uma máquina, se apresentavam diante da tela de fundo pintada como uma única palavra “Tipográfica”. Seis performances com braços estendidos simulavam um êmbolo, enquanto outros seis criavam um roda impulsionada por êmbolos. Cada pessoa “representava a alma das peças individuais de uma prensa tipográfica rotatória” e cada um deveria emitir um som onomatopéico para que acompanhasse seu movimento específico. (GOLDBERG, Roselee. Op. cit., p.12). 250 GOLDBERG, Roselee. Op. cit., p.20 249
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O QUEBRA-MOLA EXIGE A TROCA DE MARCHA
Os ecos que percutiram as máquinas de ruídos futuristas me fizeram lembrar das sonoridades exploradas pelo artista carioca Cadu Costa, com quem gostaria de pegar carona, principalmente sabendo que iríamos passar por muitos quilômetros de redutores de velocidade, que curiosamente fariam nosso veículo produzir sonoridades familiares251. Dentre as muitas maquinarias produzidas por Cadu, existe um trabalho especial que parece mesmo ter saído de um espetáculo futurista do ateliê de Russolo ou das elucubrações de Marinetti. Trata-se de uma gigantesca caixa de música. Um “órgão” composto de foles, martelos de uso corriqueiro, e onde parece esconder-se uma espécie de herói trágico que, atento, espera a qualquer momento a “Avalanche” (2009)
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que o soterrará ou o elevará as
alturas. A obra faz dos visitantes compositores de suas próprias melodias. Para que as forças desse trabalho sejam ativadas por completo é necessário a implicação do visitante que, ao posicionar os pinos disponíveis nos orifícios do tambor da grande caixa de música, constrói uma melodia, ou melhor, prepara-a. Ao girar a manivela, porém, o visitante, impactado pelo volume do som, pode ouvir a avalanche sonora de sua própria autoria.
Figura 23 - Avalanche. 2009. 300 X 420 X 90 cm Toras de guajará, aço carbono, martelos e caixa de redução. (Cadu Costa) 251
Referência ao trabalho Flat Sounds, instalado no estacionamento da 7a Bienal do Mercosul, 2010 que consistia de 800 quebra-molas que com o passar do carro, numa velocidade calculada e que de sete em sete produziam a frase musical: Pã-pã-pã-pã-pã... Tã-tã! materia disponível em: http://vai.la/1Vcu 252 Estamos falando de uma estrutura em aço e madeira de 700 quilos, que ocupa apertadamente uma sala de 40 metros quadrados, e construída – com exceção de quatorze martelos – apenas com matérias-primas. Entre planejamento e execução somaram-se seis meses de trabalho, incluindo: a parceria com um engenheiro mecânico, a consultoria de um profissional da área de som e o suporte financeiro de uma galeria de arte. COSTA, Carlos Eduardo Felix da. Avalanche. Rio de Janeiro, 2009. Artigo acadêmico (Disciplina Laboratório de Experimentação Fotopoética) - Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Sobrevém sensação de estranhamento, um som do vazio, um deslizamento do terreno. A temeridade sobre o que virá a seguir causa a suspensão dos atos. A dimensão e formato da escultura provocam um certo estremecimento. Identifica-se que se trata de algum tipo de mecanismo sonoro, pelos canos que podem lembrar um órgão, pelos martelos que assemelham-se ao mecanismo de piano. Ao primeiro embate com o público, a máquina já coloca em andamento as suas atividades, as forças centrífugas já trabalham a aproximação. O segundo passo é o gesto, o tocar, o encaixar em determinados lugares os parafusos sonoros. Num ato furtivo, diz Cadu, “(...) olhamos cerrado para os lados com o mesmo intuito de quando checávamos desejosos de saber se havia alguém para presenciar nossa mal criação.”253
A expectativa cresce e entre o receio e o desejo pelo quase ilícito, na eminência do acontecimento, roda-se ludicamente a manivela. As pedras que descem, nota após nota, promovem barulho incomensurável. As emanações sonoras são portadoras de um processo irreversível e agressivo que atravessa impetuosamente a carne. Ao aceitar a provocação popular de girar da manivela, os visitantes compositores de “Avalanche” produzem um estrondo que já estava implicado desde a concepção do projeto, dada a exigência de procedimentos técnicos, logísticos, materiais e filosóficos inéditos para o artista. Desse trabalho, pode-se comentar muitas forças operantes e constitutivas das máquinas e de seus operadores; a força sonora que inclui o acaso, a linguagem do inesperado que pode lembrar as poesias futuristas ou os improvisos dadaístas; a construção da parte estrutural que envolveu técnicos e que incluiu o laboratório, os testes, os protótipos, o funcionamento, o envolvimento com saberes diversos; a implicação da obra de arte que tanto é a escultura projetada pelo artista como também espírito criador que fará ressoar a sonoridade musical, seja ela uma melodia caótica, lírica ou erudita. Dos muitos projetos que envolvem máquinas outros ainda realizam apontamentos musicais, caso de “His Master Voice”, (2008)254, instalação de máquinas de furar que tocam 253
COSTA, Carlos Eduardo Felix da. Avalanche. Rio de Janeiro, 2009. Artigo acadêmico (Disciplina Laboratório de Experimentação Fotopoética) - Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 254 His Master Voice, 2008 - furadeiras, caixas de música, sensores de presença, caixa de comando e madeira 140 x 55 x 42cm.
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caixinhas de música, do Hino dos Vencedores (2009)
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e de “Pour Elise” (2008), onde a
música, “Für Elise”, de Beethoven, tocada numa caixinha de música é transformada em uma gravura, criando relevos quase imperceptíveis. *** A “metalicidade da dança futurista” impregnava os atos teatrais, desenvolvia suas performances, alavancava as artes visuais, a pintura, a escultura, articulava os comportamentos humanos, aplicava, enfim, sua genialidade, excentricidade e incoerência às inovações tecnológicas da época. Acontece que, em certa medida, esse fascínio, e a esperança de que através das máquinas o mundo poderia ser mudado, parecia lidar com um certo grau de superficialidade. Foram os metais polidos, as cores vivas, o barulho das máquinas, as inebriantes sensações de velocidade, de altura, de locomoção que foram alvo dos futuristas.256 Seus interesses pareciam estar na aparência das máquinas, de forma que, se tentaram abraçar alguma filosofia que exprimisse o que todas essas máquinas representavam na vida emocional, social, cultural, não se deram ao trabalho de elucidá-las. As forças que embalaram a máquina futurista italiana, depois da guerra, perderam completamente o seu caráter e dissolveram-se em diversas correntes. Os intelectuais e artistas que viram no futurismo e suas máquinas elementos de luta, retrocederam a velocidade de seus motores. Tornaram-se reacionários, republicanos e fascistas. Marinetti passou a se dedicar cada vez menos ao movimento e a apostar que a guerra seria o único remédio higiênico para o mundo. Depois de produzir mutações e singularidades, de ter sido popular entre os operários, as forças maquínicas e os artistas implicados no movimento futurista não conseguiram escapar às ranhuras do regime político e social. Todos os desvios moleculares e velozes, que pretendiam escapar do poder estabelecido da arte foram redisciplinados. Reabsorvidos pelo sistema, tornaram-se molares e reacionários.
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“Então eu peguei o resultado desses 1000 jogos e utilizando o próprio cartão da loteria, eu perfurei os números ganhadores, e por uma estranhíssima coincidência ou não tão coincidência assim, existe uma caixa de música japonesa que tem o mesmo tamanho, a mesma bitola do nosso cartão de loteria. Então eu fui emendando os cartões de loteria e passando por dentro dessa caixinha de música.” Entrevista do Prêmio Pipa. disponível em: http://vai.la/1VcC 256 Kunstmaschinen Maschinenkunst / Art Machines Machine Art. Edited by Katharina Dohm et al.,Frankfurt; Basel: Museum Tinguely, 2007. apud Conversation with Marcel Duchamp, James Johnson Sweeney p. 11
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No entanto, as lutas sociais são, ao mesmo tempo, molares e moleculares . No teatro, visto como máquina de multiplicidades de composições, não há limites para os vetores maquínicos. Não há como saber ao certo que matéria-prima e produto está sendo produzido por essa máquina. A máquina lida com experimentações de forças, gera fugas alternativas, dentre as quais também podem estar incluídas paralisias e estagnações. Máquinas produtivasdesejantes-revolucionárias produzem atravessamentos inesperados, formas, narrativas, línguas, territórios dos quais também fazem parte contornos rígidos, representações, identidades. Ou seja, promovem concatenações transversais entre o molar – campo do estabelecido, do regular, da conservação e da reprodução, o “mundo macro” - e o molecular –, organizante, que processa o existente, do mundo novo, da metamorfose, o “mundo micro”. Entre esse conjunto de forças, agenciam territórios, zonas de vizinhanças que produzem um intervalo. “São vasos comunicantes, agenciamentos fluídos abertos cujos materiais e componentes semióticos combinam-se com forças sociais e ecológicas”. 258 Assim a máquina teatral, não reducionista, continuava a produzir experimentações com o meio social, com a técnica e com a arte - mais especificamente com a mecânica das máquinas artísticas -, a manifestar-se através de agenciamentos maquínicos, que se estenderam aos construtivistas russos, ao dadá, ao surrealismo. Não foram poucas as montagens de peças teatrais e trabalhos artísticos que se seguiram e se articularam a custos de muitos enguiços, vaias, críticas, entusiasmos, brigas, aplausos e contradições maquínicas. Holofotes também foram apontados para o teatro russo, tanto para iluminar a peça “A vitória sob o sol”, 1913 com figurinos e cenários de Kasimir Malevitch feitos de figuras geométricas e peças de máquinas, como para a montagem de “O rapto das crianças”, 1922, onde Foregger259 introduz, além de invenções mecânicas, as teorias da tafiatrenage. Recurso esse que traduzia tanto uma forma de arte como um método que enfatizava a importância da técnica para o desenvolvimento físico e psicológico do ator. No espetáculo as danças que imitavam os movimentos maquínicos:
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GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolíticas: cartografias do desejo. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 149 RAUNIG, Gerald. In: “Revoluciones moleculares y práticas artísticas transversais”. Disponível em http://vai.la/2bAd 259 FOREGGER, Nikolai (1892-1939), diretor teatral russo e mestre de balé. Inventou e ensinou seu próprio sistema de movimento físico, e como diretor de seu próprio conjunto (1921-5) criou sua dança de trabalho altamente controversa de Máquinas na qual demonstrou a sua visão de uma dança moderna, que incorporaria "danças do pavimento, de apressar automóveis... a grandeza dos arranha-céus”. Disponível em http://vai.la/27Fb 258
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"Uma das danças imitava uma transmissão: dois homens ficavam separados por cerca de três metros e várias mulheres, cada uma segurando no tornozelo da outra, moviam-se formando uma espécie de corrente ao redor deles. Outra dança representava um serrote: dois homens, segurando as mãos e os pés de uma mulher, fazem-na balançar em movimentos curvos. Os efeitos sonoros, inclusive o estilhaçar de vidros e o choque de diferentes objetos metálicos nos bastidores. Eram criados ao vivo por uma orquestra de ruídos”. 260
Por sua vez Meyerhold261 desenvolve, em 1920, a biomecânica, - nova pedagogia teatral na qual “o corpo é uma máquina, o trabalhador um maquinista”262 . A apresentação de “O corno magnífico”, que trabalha usando os recursos da biomecânica apresentava, com “transparência”, toda a maquinaria do cenário. Meyerhold encontrou nos construtivistas os cenógrafos que abririam a via de rompimento com o teatro tradicional e obsoleto. O contato com esses artistas daria margem não apenas a desenvolver suas ideias de diretor arrojado, - que iam de andaimes multifuncionais e desmontáveis, tubo de ferro do mar aberto ou alguma coisa construída pelo novo homem, à moinhos de vento, como permitia que o palco dos espetáculos rompesse o encaixotamento teatral e ganhasse o campo, as ruas, os mercados, a fundição, a oficina, o convés do navio de guerra e dinamizasse, assim, a skene transformando a natureza da atuação, e a própria intenção da peça, através da criação de complexas “máquinas de representar”.263 O cenário de “O corno magnífico”, construído por Liubov, Popova e Varvara Stepanova, consistia em superfícies planas convencionais, plataformas unidas por degraus, rampas e passarelas, asas de moinhos de vento, duas rodas e um grande disco com as letras CR-ML-NCK de (Crommelynck autor do texto)264 e tornou-se o espaço ideal para o desenvolvimento da biomecância de Meyerhold. Por um lado, Foregger desenvolvia uma forma de arte puramente mecânica ao afirmar: “vemos o corpo do bailarino como uma máquina, e os músculos voluntários como o maquinista”. Por outro, a biomecânica de Meyerhold consistia no treinamento do ator baseado no gesto como resultado do jogo daquilo que o ator mostrava possuir de técnica. Além de 260
GOLDBERG, Roselee. Op. cit., p.29 MEYERHOLD, Vsevolod Emilevich (1874 - 1940) Conhecido apenas por Meyerhold foi um grande ator de teatro e um dos mais importantes diretores e teóricos de teatro da primeira metade do século vinte. Disponível em http://vai.la/27Fd 262 GOLDBERG, Roselee. Op. cit., p. 35 263 Idem p. 35 264 GOLDBERG, Roselee. Op. cit., p.35 261
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muitas outras regras, o espectador, ao observar o exercício, deveria acompanhar o trabalho de alavancas que funcionam e retornam e sempre experimentar inquietudes. O sucesso das apresentações teatrais que tiveram como forças operantes o trabalho cenográfico construtivista serviu também para estabelecer esses artistas como agentes de transformação social. Meyerhold foi um dos que perceberam o quanto movimentava essa força construtiva que trazia em sua base, acompanhada das mentes criativas da dramaturgia, maquinarias geradoras de deslocamentos de novas relações sociais. CÂMBIO MECÂNICO A alta rotação do motor obriga passagem da marcha Michel Groisman (1972), artista carioca que trabalha com performance, não faz parte do cenário do referido período histórico futurista ou construtivista, mas há algo em comum em sua prática da mecânica de movimentos. Como em suas performances, desenvolve processos dinâmicos que estreitam as distâncias é possível aproximá-lo da biodinâmica ou tafiatrenage. Em “Transferência” (1999), desenvolve através de posturas naturais do corpo – portador de uma série de órteses que sustentam velas e que estão presas as pernas, braços e cabeça –, um balé de movimentos controlados, simultâneos e complementares. Ao acender as velas, de uma órtese a outra, realiza movimentos precisos como uma máquina orgânica. – sistema de tubos interligados, do qual é, ele mesmo, uma engrenagem estética que cria desenhos corporais e lumínicos. Traçantes de fogo na troca de calor do acender e apagar das chamas.
Figura 24 - Transferência. Performance, 1999. (Michel Groisman)
Há algo que não suporta o fortuito em Groisman, como há na biomecânica. Algo que depende de consciência e cálculo prévio, como um objeto técnico instrumental opera com
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base no estabelecimento da precisão, da posição previsível e controlável e análogo a uma máquina, mas onde também se insere o germe do acaso. Cada um de seus membros está a serviço da execução de uma intenção que, no entanto, está sujeita a desajustes que serão realinhados de acordo com a necessidade. Como em Meyerhold, “a qualificação do ator é sempre proporcional ao número de combinações que ele possui em sua reserva de técnicas.” 265 Procedimentos dessa mesma sorte podem ser notados em trabalhos266 como em “Criaturas” (1998), que utiliza dois corpos para manter a energia de lâmpadas; “Tear”
267
(2000-2001), performance em que Groisman trabalha com um “laser point” na boca emitindo um raio que se reflete nos espelhos posicionados em seu corpo; “Sirva-se”(2004), uma proposição performática realizada com pequenos grupos de pessoas que “vestem” elásticos que sustentam copos. Cada participante adapta ao corpo esses copos e enche de água um deles. A partir daí, a água guia os seus movimentos. Na tentativa de passar a água de copo em copo, e para outro integrante da performance, dá-se o balé das máquinas humanas. Michel Groisman não é bailarino nem coreógrafo, e nem trabalha com códigos da dança, embora seus trabalhos naveguem entre a arte de brincar, a performance, a dança contemporânea, a física e a experimentação de instrumentos de investigação corporal que ajudam a reconstruir o corpo a cada minuto. Realiza, com as performances, trabalhos que solicitam um apaziguamento do ritmo interno em interação com a aceleração do desejo pelo ato mecânico. O notório a respeito dessas performances que utilizam esse tipo de acessórios é o fato de que foram desenvolvidos como instrumentos quando o artista frequentava a faculdade de música, mas que não são exatamente musicais, no sentido de produzir sonoridades muito perceptíveis, e, se chegam a fazê-lo, são melodias intimistas demais para serem percebidas como tal. Esse tipo de investigação que usa órteses atreladas aos corpos, produz outras sonoridades e ballets corporais mais do que propriamente sonoros. Faz emanar questões sobre o corpo produzido na atualidade.
265
MEYERHOLD, Vsevolod. Enunciados Sobre a Biomecânica. Disponível em http://vai.la/1Vto Cf. http://vai.la/2aXE 267 O público é convidado a usar um mecanismo que, adaptado aos pés, interfere no modo de cada um se locomover. Com um aparelho de controle da intensidade de luz, programado para fazer com que a luminosidade oscile entre 0% e 100%, o público pode ora ter uma visão parcial, ora total da cena. Nos momentos de escuridão, somente se visualizará o raio laser que sai da boca do artista, criando configurações geométricas nos espelhos. 266
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Com a utilização de órteses, o artista cria um híbrido técnico-humano, um misto de corporeidade real e ficcional, que dizem respeito aos fenômenos ligados a estética de um ser hiper real, e não mera representação. Um novo corpo produzido pelos efeitos do meio social, técnico e cultural. Corpos enigmáticos fabricados a partir de metamorfoses e intervenções cirúrgicas, implantes subdérmicos que multiplicam e potencializam suas personalidades. A auto-investigação corporal de Groisman faz brotar, enfim, jogos corporais e propostas interativas com o público que integram arte visual, movimentos corporais e que promovem habilidades contorcionistas e assemelham-se a brinquedos com que se pode criar sequências de infindáveis movimentos combinatórios. *** O teatro pós-revolucionário russo trouxe ainda outras montagens onde se desenvolveram a técnica biomecânica-construtiva. Em “A morte de Tarelkin”, de Varvara Stepanova com a assistência de Sergei Eisenstein, atores lidavam diretamente com máquinas. Em “A terra irritada”, Popova instalou máquinas reais na cenografia. O trabalho sobre o material cênico, a transformação do cenário em máquina que ajuda a desenvolver o trabalho do ator de forma ampla e diversificada, as técnicas corporais desenvolvidas por Meyerhold, a inserção da máquina e das fábricas reais na cenografia produziram intercâmbios e entrelaçamentos de máquinas revolucionárias com as máquinas artísticas, rompendo de tal forma com a representação e descrição de ambientes do teatro estático que inventaram uma concatenação molecular de atrações sensíveis e independentes com momentos agressivos e arriscados processos de ação268. Tretiakov
269
e Eisenstein chamaram de “teatro de atrações” o conjunto de
procedimentos teatrais que instalou dinamismo e excentricidade no teatro soviético. Para Sergei Tretiakov, a produção maquínica do “teatro de atrações” atingiu o clímax com o intercâmbio entre ele e Sergei Eisenstein, nos anos 20 quando peças foram encenadas em fábricas reais para um público eram de trabalhadores.
268
RAUNIG, Gerald. Mil máquinas. Breve filosofía de las máquinas como movimiento social. Colección Map22. Tema: Movimientos sociales p. 50 269 “Sobre o teatro de atrações de Tretiakov e Eisenstein, e acerca das colaborações entre ambos ver Gerald Raunig, Art and Revolution. Transversal Activism in the Long Twentieth Century, Los Ángeles, Semiotext(e), 2008 [ed. Cast.: Arte y revolución. Activismo transversal en el largo siglo XX, Madrid, Traficantes de Sueños, en preparación]. [N. del E.]”.
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Meyerhold considerava o corpo do artista como uma máquina. Eisenstein, preocupado com o lema “cultura para todos” – Prolekult –, via no público do teatro a própria máquina. Vladimir Tatlin, (1885-1953), por sua vez, ávido para colocar sua arte a serviço da revolução, empregava os termos “construção” para designar suas peças feitas de materiais industriais e processos eminentemente mecânicos, e “tectônica” para enfatizar a conexão entre a investigação formal e os princípios políticos do comunismo270: "Vida longa para as artes que usam máquinas"271, dizia. Apostava que a arte seria a expressão espontânea do dinamismo da nova sociedade rumo ao desenvolvimento da ciência e da indústria e também fusão de arte e vida. Se existe, porém, algum marco temporal que seja decisivo na introdução dos aparatos cinéticos na arte, penso que seja o ano de 1920. Ano em que Vladimir Tatlin, preocupado com o poder das máquinas e imbuído da tarefa de emancipar a sociedade de suas restrições materiais, desenvolve o projeto do “Monumento da III Internacional” (1885-1953). O projeto, encomendado em 1919 pelo Comissariado do Povo para a Educação, tornou-se o símbolo principal para a redefinição da arte revolucionária, fusão de uma arrojada estrutura arquitetônica com um escultura motorizada. Foi o interesse, desde seus relevos de canto, pelo uso de material real - madeira, ferro, vidro e concreto -, com associação direta com a construção, que aproximou Tatlin de uma nova concepção de arte implicada com seu idealismo revolucionário. Pela primeira vez na história da arte parecia realmente possível que um artista pudesse levar a cabo a tão desejada integração entre arte, escultura, estética, engenharia, arquitetura e sociedade. 272 O modelo em espiral remetia a uma máquina contorcida: uma torre projetada para ser 300 metros mais alta que a Torre Eiffel, refletia o dinamismo da época e apontava para a unificação do utilitarismo e da pureza da forma, além de representar o centralismo democrático que organizava o partido. “A estrutura em espiral fechava quatro câmaras rotativas de paredes de vidro. O cilindro menor girava uma vez ao ano e seria usado para conferências do conselho legislativo da Terceira Internacional; acima desta uma pirâmide inclinada, girando uma vez por mês, para conter atividades executivas. Superior a este 270
FARIAS, Agnaldo. Lição das coisas. Publicado na revista da pós-graduação na FAUUSP. JUSTIN, Hoffmann. Artist becomes machine becomes artist. Kunstmaschinen Maschinenkunst / Art Machines Machine Art. Edited by Katharina Dohm et al.,Frankfurt; Basel: Museum Tinguely, 2007 p. 26 272 HULTÉN Cf., PONTUS K. G.. The Machine as seen at the end of the mechanical age. New York, Museum of modern art, 1968 p.108 271
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havia um cilindro de altura, e acima disso, um hemisfério; o cilindro se volta sobre seu eixo uma vez por dia onde haveria um centro de informação.” 273
A explicação de Tatlin para o movimento das câmaras que compunham os três andares da III Internacional foi que a torre deveria assemelhar-se a seu coração. Como Marinetti, Tatlin dizia ter uma "máquina-coração", o que demonstra sua incomensurável devoção às máquinas. No entanto, ou o ideário artístico de Tatlin não foi convincente ou não houvematerial e recurso suficiente para “Monumento da Terceira Internacional” dos protótipos realizados. A construção dessa escultura arquitetônica nunca foi levada a cabo. Tatlin ainda desenvolveu “Letatlin” (1929-1932)274, um planador alimentado por energia muscular do próprio homem, selecionado por ele como um objeto de interesse, dada sua composição artística que lidava tanto com a forma dinâmica, a resistência dos materiais constitutivos, o princípio utilitário de uso social, como também com aspectos estéticos. O modelo da máquina voadora com base no vôo dos pássaros, funcionou com a ajuda de um cirurgião e de um instrutor de vôo, o que aponta, já em Tatlin, a importância da troca de saberes entre áreas diversas como tendência artística. Foram os seguidores de Tatlin na Alemanha, Lissitzky275 e László Moholy-Nagy
276
,
que fundaram um grupo construtivista, em Berlin, em 1922. Moholy-Nagy, artista e professor da Bauhaus, elaborou um programa para a escola baseado principalmente nas ideias de Tatlin, que vislumbrava um meio otimista de integração entre tecnologia e indústria no design e nas artes. Mas, 1920 foi também ano em que Naum Gabo e Antoine Pevsner publicam o Manifesto Realista no qual proclamam: “(...) a partir de hoje a percepção, o mais importante elemento da arte são os “kinetic rhythms”. Nesse mesmo ano de 1920 em que se anuncia a “morte da arte”, acontece a primeira Feira Internacional de Arte Dadá, que repercute em meio a manifestações anti-burguesas e anti-militares. Duchamp e Man Ray terminaram suas placas de vidro rotativas e motorizadas, 273
Idem,108. Originalmente, Tatlin preparou três versões do modelo com a cooperação de seus colegas Sotnikov e N Pavilyonov, e a ajuda de Zelensky e Schipitzyn. 1929-1932. 275 LISSITZKY, El (1890-1941) artista, designer gráfico, fotógrafo, tipógrafo, arquiteto e professor. Fez parte da vanguarda russa, seu trabalho influênciou a Bauhaus, o construtivismo e o De Stijl. 276 MOHOLY-NAGY, László (1895-1946) designer, fotógrafo, pintor e professor de design pioneiro, conhecido especialmente por ter lecionado na escola Bauhaus. 274
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“Rotary Glass Plates” e Naum Gabo propõe as “Kinetics Sculpture”. O dado comum entre os trabalhos desses artistas se observa no fato de estarem lidando, através da manipulação desses objetos cinéticos, com questões que se relacionavam com nada além da visão, dos efeitos óticos e do ritmo cinético. Tratava-se, pois, de objetos cuja função era de simples demonstração. Anos mais tarde, Duchamp aperfeiçoaria o trabalho, criando um conjunto que ele mesmo intitulou de “Precision Objects”. Seguiram-se o “Rotary Demi-Sphere”(1925) e os “Rotareliefs”(1935), que marcaram o abandono da pintura convencional e retiniana para outra ótica, com a adoção do movimento motorizado. Ainda no ano de 1920, Duchamp afirmou que "As únicas obras de arte da América tem feito são suas canalizações e suas pontes" 277 O “Light-Prop” ou “Light-Space-Modulator”(1922-1930), de László Moholy-Nagy entrou para história da arte como um dispositivo expressivo e autônomo que transforma-se num evento. Escultura rotativa movida à eletricidade, utilizando metal, vidro e feixes de luz, capazes de criar um jogo de luzes no espaço ao redor.
CÂMBIO AUTOMÁTICO Dancer-Danger (1920), de Man Ray é a imagem que aparece na contracapa da edição portuguesa (2004) de O Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Felix Guattari. O desenho de Man Ray que figura na capa – aerógrafo sob vidro –, foi inspirado em movimentos de um dançarino espanhol durante a encenação de um musical e apresenta dois conjuntos de engrenagens, que sugerem um esquema que transmite uma aparente precisão. Mas a natureza esquemática e aparentemente precisa guarda muitos segredos que com atenção pode ser notada numa multiplicidade de agentes.
277
HOFFMANN Justin. Artist becomes machine becomes artist. Kunstmaschinen Maschinenkunst / Art Machines Machine Art. Edited by Katharina Dohm et al.,Frankfurt; Basel: Museum Tinguely, 2007 p. 28-29
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Figura 25 - Dancer-Danger or L’impossibilité, 1920 Airbrush sobre vidro e engrenagens. (65.5x40cm - ManRay)
O desenho mostra riscos aerografados acima do vidro que criam a ilusão de que ele esteja estilhaçado. Sobre ele, além das engrenagens lemos a palavra DANCER. Porém, a curva da letra C de DANCER, coincide com uma das engrenagens da cena e faz com que essa palavra possa ser lida como DANGER. Juntas, essas palavras formam o nome da obra, acrescida do subtítulo, L’impossibilité. O que resulta no trabalho Dancer-Danger or L’impossibilité, uma máquina esquemática, misteriosa e perigosa. A impossibilidade de antagônicos, a dançarina rendida pela imobilidade. A máquina programada para resolver problemas, paralizada, cria problemaspara seu criador ao aprisionar conexões entre seus componentes. O arredondamento e a aparente fluidez das engrenagens sugerem a forma feminina no movimento incessante da dança, porém, a fixidez da cena impede os possíveis movimentos dos conjuntos de engrenagens. Percebe-se uma estrutura bloqueada. Apesar dos conjuntos separados serem passíveis de funcionamento, aquilo que seria a transmissão ou acionamento entre eles parece congelar sua mobilidade. Como muitos artistas do século XX, Man Ray começou sua carreira como técnico e parece ter concebido esse trabalho como uma espécie de vingança contra toda a racionalidade,
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sem inspiração, que ele normalmente usava em seus trabalhos. Três rodas dentadas unidas e presas seriam uma atrocidade mecânica e, claro, elas não poderiam girar. A roda maior é outra infração às leis mais básicas da mecânica; seus dentes não são do mesmo tamanho das outras engrenagens. Portanto, fica estabelecida a impossibilidade. Seria mais uma noiva, despida, à espera do seu celibatário? Arturo Schwarz, em livro intitulado Man Ray, faz uma colocação requintada. Ele sugere que as três engrenagens se assemelhariam a uma vagina dentada278 e que o fato de não funcionarem representaria uma interdição, o que levanta o tema sobre a frustração e o risco que surge numa relação entre os sexos e entre o homem e a máquina. Porém pode-se elucubrar que trata-se de uma máquina celibatária, à moda do “Grande Vidro”. Veja: a peça é feita de vidro e apresenta um rachadura como componente, sugere um aspecto feminino e outro masculino; mostra engrenagens como ingredientes mecânicos matemáticos, porém improdutivos. Mas antes de imaginar que seja representação, ou metáfora, é possível pensar em outro tipo de relação entre as partes. As máquinas celibatárias funcionam no cérebro, realizáveis ou não, nada alteram por sua natureza peculiar, nada alteram do mundo: são máquinas imaginárias e é através do pensamento que operam. A essa altura do texto, não restam dúvidas de que o tema relacionado às novas formas de arte, ao movimento mecânico e seu conteúdo erótico foram assuntos que arrebataram Francis Picabia desde a apresentação do teatro de Roussel e acirrada pelo contato que teve, num curto espaço de tempo, com os trabalhos inicialmente enjeitados de Duchamp. Mas seria a dança de Mademoiselle Napierkowska, a quem assistiu em visita a Nova York, em 1913, que o entrelaçaria ao mundo mecânico. A dança, a ritmografia, conquista a arte que já se encontra investida de forças mecânicas. A partir desse momento, quando retorna a Nova York, Picabia inicia um período no qual desenvolve desenhos e pinturas de máquinas com morfologias de rodas, engrenagens, bombas e compressores, combinados com textos e pensamentos. Afeito a mulheres, provocador, engraçado e anti-artista por excelência, buscava a aniquilação da razão e dos valores e ideais humanísticos. A máquina, progenitora de tantos produtos, transforma-se em várias: Fille née sans mère (1917), Voilà la femme, (1915), Prenez garde à la peinture (1916),
278
SCHWARZ, Arturo. Man Ray: The Rigour of Imagination, Rizzoli International (New York, NY), 1977, p. 214.
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Ici, c'est ici Stieglitz (1915), Parede amoureuse (1917), Le Fidèle (1917), Novia (1917), Les lles Marquises (1916-1917), L'Enfant Carburateur (1919). Nesse período todos os seus quadros, livres de qualquer responsabilidade ou restrição, apresentavam desenhos mecânicos com títulos sugestivos. A julgar pelos nomes, os trabalhos eram mais objetos subjetivos do que pinturas. Funcionavam mais como uma espécie de catapulta mental atirando fantasias e variações plásticas. Máquinas literárias que lançavam o simultâneo, o absurdo, o livre e o recorrente. No entanto, o que parece curioso é que esses desenhos figuravam uma representação, como demonstra o comentário de Max Goth publicado no jornal 391, de Barcelona: "[...] O que poderia ser tomado nele como uma afetação do cômico é puro resultado de uma ingenuidade, um desejo forte e sincero para expressar tudo o que é humano, dos meios mais diretos. Seu único objetivo era apenas acreditar, projetar, nas formas dos materiais, realidades do seu interior. Assim, cada obra de arte torna-se a representação de um mundo privado, recriado à imagem de um homem".
Máquinas eram traçadas como metáforas, zombarias, do mito tecnicista do mundo, composições que parecem codificar imagens. São anti mecanismos. Fazem sentido apenas para um pequeno núcleo de amigos, fecham-se sobre si mesmas. Picabia mais tarde, se uniria a um grupo dadaísta. Os experimentos escultóricos e as ideias originais que se utilizavam de maquinarias para tratar assuntos estéticos, poéticos, líricos ou criticar o sistema vigente se difundiram enquanto prática artística que desembocou, mais tarde na arte high tech; Op Art, Arte Cinética, Arte Cibernética, Art by Computer. Antes, porém a tentativa de fecundar a arte com as novas tecnologias ativou a máquina social do “teatro de atrações” e antecipou a concatenação dos órgãos humanos, aparatos técnicos e máquinas sociais fazendo com que os artistas levassem adiante os esforços do préguerra. Os protagonistas do construtivismo proclamam que os artistas deveriam ser engenheiros, deveriam adquirir conhecimento tecnológico e trabalhar como máquinas. Da incessante produção maquínica da arte, das forças moleculares do teatro construtivista, do “barulhismo” de Marinetti, do uso do conceito de simultaneidade nas leituras de poemas, entre danças, cantos e poesias surge no Cabaré Voltaire, em Zurique, o movimento Dadá.
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Sob a influência de uma expressão autêntica que não levava em conta a imitação da natureza, mas uma livre associação de ideias, sem seguir as orientações de uma cartilha fixa, ou sistema fechado de regras, o dadaísmo operava uma desordem esquizofrênica de letras, silabas, palavras, sentenças, diferentes tipos de materiais. Sem temer as orientações das forças do absurdo, a máquina abstrata dadaísta, era alimentada por Arp, Ball e Tristan Tzara, um de seus fundadores, que afirmava: “Se continuo a fazer alguma coisa nesse movimento, é porque ele me diverte, ou antes, porque tenho uma necessidade de atividade que utilizo e satisfaço sempre que posso" 279.
As forças que implicavam aversão a tudo quanto fosse explicação ou lógica e colocavam em jogo a espontaneidade, o ato de dar forma, - mais importante do que o material a ser usado num trabalho. O dadá representava aquilo que diverte, que apresenta incoerência, que, como os atos da vida, não tem um começo nem fim, são tolos, pura produção de produção, nascem livremente. “A poesia automática vem diretamente das entranhas do poeta ou de qualquer outro de seus órgãos que tenha reservas acumuladas. (…) Ele fala, pragueja, resmunga, gagueja, cantarola de acordo com seu estado de espírito. Seus poemas são como a natureza: cheiram mal, riem e rimam como a natureza. A tolice, ou pelo menos o que o homem chama de tolice, é tão preciosa para ele como uma sublime peça de retórica. Pois na natureza um ramo quebrado tem a mesma beleza e importância que as nuvens e as estrelas” 280.
As intermitências anacrônicas da máquina abstrata dadaísta e os vetores contorcidos traçados pela máquina artística em operação acabam por fundar o movimento surrealista que voltou-se contra a produção desejante incutindo, em seu lugar, uma razão edipiana que vê valor no automatismo psíquico e coloca em jogo o inconsciente que para os artistas surrealistas era o motor de automatismo psíquico. Ainda que acreditasse que o dadaísmo funcionou como um tipo de purgante, Duchamp, não se interessava muito por seu aspecto metafísico, que se acirraria ainda mais com o Surrealismo. Seu desejo seguiria outras direções: o distanciamento do aspecto físico da
279
Conferência sobre o Dada. In: H.B. CHIPP, Teorias da Arte Moderna. SP: Martins Fontes. (pp. 389-393). ARP, Jean."Arte Abstrata, Arte Concreta", c. 1942 - De Art of This Century, org. Peggy Guggenheim - Nova York, Art of This Century, s.d., c .• 942, pp. 29-31 280
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pintura e a atração por ideias revelam um Duchamp interessado na dinâmica das maquinações: “Naquele tempo a cronofotografia estava na moda. Os estudos de cavalos em movimento e de cavalos saltadores de obstáculos em diferentes posições, como nos álbuns de Muybridge, eram bem conhecidos por mim. Meu interesse, porém, na pintura do Nu estava mais próximo do interesse dos cubistas na decomposição da forma que do interesse dos futuristas em sugerir movimento ou mesmo das sugestões de movimento do Simultaneísta de Delaunay. Meu objetivo era uma representação estática do movimento - uma composição estática de indicações das várias posições tomadas por uma forma em movimento -, sem qualquer intuito de obter efeitos cinematográficos por meio da pintura.“
Apesar de tratar de automatismo, que se insere na lógica mecânica das máquinas, a corrente surrealista volta-se contra ela, desenvolvendo uma estratégia de ação baseada na escrita automática que só admite feitos relacionados à experiência psíquica, vinculadas à imaginação que se expressa com os sonhos. A máquina abstrata se vê castrada, restrita ao sonho, apartada do mundo real, das forças advindas dos meios culturais, dos meios de produção. Pautadas pela psicanálise que subordina o desejo à expressão simbólica, as forças do surrealismo derrubam a espontaneidade dadaísta em função de uma ordem onde estão patentes os vetores antirealistas, antinaturalistas, antiracionalistas, e sobretudo antimaquinista. Nesse período, e no bojo desse movimento, foram inexpressivas as quimeras maquínicas. No entanto, desde a origem do homem, impera o pro-maquinismo desejante, abstrato e quimérico pronto para conjugar as inviduações.
intensidades disponíveis do epifenômeno, das pré-
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MOVIMENTUM PERPETUM
“O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e escura madrugada. Há muito já não sou gente. Quiseram que eu fosse um objeto. Objeto sujo de sangue. Sou um objeto que cria outros objetos e a máquina cria a nós todos. Ela exige. O mecanismo exige e exige a minha vida. Mas eu não obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita pedindo socorro. Me faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um objeto sem destino. Sou um objeto nas mãos de quem? tal é o meu destino humano. O que me salva é grito. Eu protesto em nome do que está dentro do objeto atrás do atrás do pensamento-sentimento. Sou um objeto urgente.”(Clarice Lispector281)
Num tempo em que se dissolveram tantos limites da arte, em que novos formatos de diálogos são estabelecidos, acirram-se as conjugações entre o singular e o social. Negociam entre mortes e ressurreições, estética, política, pensamento, incorporais, ficções, ritmos de configurações e reconfigurações, hibridações, público e privado no mundo da arte. Concatenam-se partes no interior e exterior de máquinas. Partes sempre entre tensões, vetores de força, contenções e entregas de sensibilidades que devem ser apreciados com reticências. Ora, pensar essas linhas de força artísticas é também imaginar os campos de atuação da máquina arte. Aí mesmo, pode-se revisitar a dupla espelhada e caleidoscópica, arte e máquina, máquina e arte, que de certa forma traduz uma das questões ciclópicas da história do homem e da civilização. A História da arte provocou, ao longo das décadas, alguns desses encontros memoráveis entre máquina e arte que só puderam ser vistos depois de tomada uma certa distância de suas produções. As primeiras curadorias que avizinharam arte e máquina cobriram desde desenhos, dos mais diversos, a concretizações colocadas sob suspeita, das quais destaco: Machine Art , curada por Alfred Barr e o arquiteto Philip Johnson no MOMA, em 1960, para enfatizar a beleza dos objetos de produção em massa, exibiu objetos comercialmente produzidos como arte moderna,. Apesar de controversas considerações sobre o status de arte dos objetos em exposição, Machine Art, é expandida e a discussão entre “arte alta e baixa” se institucionaliza. Na exposição The Machine as Seen at the end of mechanical Age, 1968, K.G. Pontus Hulten, apresenta a influência da máquina e sua estética na criação artística. Hultén investiga como a sociedade e a filosofia relacionada à máquina e seus efeitos sobre criação artística havia caminhado até então e antecipa: “Por volta do ano 2000, indubitavelmente, a tecnologia 281
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 11. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, pp. 91-92
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terá feito tantos avanços que nosso meio ambiente será tão diferente de hoje quanto nosso mundo hoje se distancia do antigo Egito.” The Bachelor Machine, uma das exposições seminais organizada pelo suiço Harald Szeemann, para a Bienal de Veneza de 1975, onde muitos pensamentos e desdobramentos teóricos foram discutidos. Michel de Carrouges, Arturo Scharwz, Michel Certeau, Marc le Bot, Michel Serres apontam, em textos que fazem parte do denso catálogo, discussões que marcaram as investigações e montagens sobre a conjugação arte e máquina. A abordagem pauta, a partir da obra mestra de Duchamp La Mariée Mise à Nu Par Ses Célibataires, a poética do absurdo, das rupturas, das arritmias, das máquinas disfuncionais, e muitas outras nuances maquínicas. Todas as exposições que a partir daí emergiram carregaram consigo o teor dessa extensa investigação. De 1975 até os dias atuais, certamente muitas dessas montagens foram feitas sobre esse tema. É incontável o número de artistas que, em mostras individuais e coletivas, puderam apresentar seus afetos e desafetos por maquinarias, desde as cibernéticas e informáticas até as mais simples e mecânicas. Em 2008, em Basel, na Suíça, no Museu Tinguely, Machine Art/Art Machine teve como leit motiv máquinas que produzem sua própria arte. Dependendo do processo mecânico envolvido, os visitantes puderam estabelecer contato com certas obras, tais como desenhos produzidos pelas Meta-Matics de Jean Tinguely, folhas carimbadas e certificadas produzidas por Damien Hirst ou máquinas de Olafur Eliasson.
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V. MÁQUINA/ARTE ARTE/MÁQUINA
Poema de número XIII: As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul – Que nem uma criança que você olha de ave282
Nesse último capítulo apresentarei três das máquinas que criei e venho aperfeiçoando nos últimos meses. Sob o guarda-chuva de máquinas neonatas apresentarei a máquina de fumaça, a máquina de abrir estrelas, “Allstars” e a máquina autopoiética “Uroboros” de modo geral ainda nomes provisórios. A introdução de cada uma delas contará com uma seleção de frases soltas que poderão auxiliar o devaneio e a entrada em cada um deles. Também para cada uma delas será apresentado, em anexo ao final do volume, um desenho esquemático que explica seu funcionamento e como trabalha. Como peça final apresentarei uma forma poética de identificação de quimeras maquínicas para que o leitor colete mais pistas de inserção nesse sonho miraculante. O fazer artístico talvez exija um caminho solitário. Possível por algum tipo de solteirice, aliada a um misto de desejo de produção e vontade de frequentar os incorporais. Invólucros de sentido que exprimem muito além das palavras, embora nelas envoltos, sejam mais que sua soma, que Cauquelin283 chama de incorporais familiares. Perseguir o invisível, visitar o inefável, desejar o nada, tal como a autora citada propõe. Pretender-se transparente, apagar histórias pessoais, como sugere Castañeda em Viagem a Ixtlan, talvez seja isso que eu procure na arte. Talvez por isso use máquinas. O recurso do mecanismo, ou de resultados que surgem a partir de seus produtos, oportunizam respostas criativas menos subjetivas, menos pessoais. Menos mãos de dândis, menos seres supremos. Assim acredito na arte. Máquina que comete impropérios, metonímias e não metáforas.
Nem
identificação
subjetiva,
nem
cosmologia
metafísica.
Sistemas
especificamente desenvolvidos para se comunicarem com seu em torno. Formais, na medida em que precisam se materializar, mas não objetos puramente estéticos ou contemplativos. Máquinas que se fazem na sutileza de sua condição desejante, abstratas. Máquinas que espreguiçam poeminhas, encontros.
282
BARROS, Manoel de. Poema XIII in O Livro das Ignorãças, 1994. CAUQUELIN, Anne in Frequentar os Incorporais - Contribuição a uma Teoria da Arte Contemporânea, Martins Editora, 2006.
283
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Capaz de dialogar, essa máquina, faz uso dos próprios aparelhos existentes, cybercientíficos, telemáticos, tecnológicos, e pode subverter sua ordem ao romper sua camada mais superficial. Não como forma de vingança ou contestação. Ao fazer micropolítica na urdidura dos mecanismos mais sofisticados pode penetrar, aí, um germe de outra origem, brincar de jogador de dados que combina novas e armazenadas informações. Promover desencontros de desiguais, criar rodas de novas articulações, inventar mundos que prometam novas formas de pensar, fora da programação dos canais e das redes. Arte como máquina ciberpirata, que usa seu caráter destruidor para agregar, para reerguer, para sobrepujar o que é dado pela cultura, economia e política e apresentar novas maneiras de olhar para o mundo. Maneiras que reativam campos disjuntos, surfando transdisciplinarmente pela rede de informações numa espécie de inventor de trajetórias e signos. Arte máquina, mix de épocas, estilos e signos pertencentes a espaços-tempos distintos. Almejo essa arte, capaz de fazer uso das engrenagens dos pensamentos maquínicos. Que desenvolvam a capacidade de sintetizar informações para resultá-las em novas organizações, novos diálogos, assim como propõe o já menciona, Vilém Flusser: “[...] o artista deixa de ser visto enquanto criador e passa a ser visto enquanto jogador que brinca com pedaços disponíveis de informação. Esta é precisamente a definição do termo “diálogo”: troca de pedaços disponíveis de informação. No entanto o “artista” brinca com o propósito de produzir informação nova. Ele delibera” 284.
QUIMERAS
Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma. 285
Das coisas naturais, sempre me fascinou a ação entre partes que não pensam, as que colocadas em contato mudam percursos, temperaturas, formato, escala; madeira molhada que expande com água e se movimenta, imãs que se atraem e repulsam, substâncias que se contaminam gerando terceiras, planetas que giram. Enfim, coisas que em contato carregam 284 285
FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas, 2008, SP: Annablume, p. 93 BARROS, Manoel de. Poema II in O Livro das Ignorãças, 1994.
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em si pontos de possíveis subversões, a ruptura do esquema sensório-motor. Não fosse a feminidade talvez pudesse ser alquimista. Tenho vontade de pesquisar os interstícios do movimento, de especular sobre esse universo onde se faz notar o ritmo, o pulsar, o desejo, onde funcionam pequenas maquinarias. Acho que é por isso que penso e construo máquinas como se praticasse uma espécie de verborragia que me ensinasse o “como funciona” do silêncio, como se desvendasse os afetos que lubrificam as fissuras íntimas dos motores. Como se, numa “com junção” verbal, tivesse mais chances de constelações dialógicas. Como se enfrentasse aí também um inventário como o de Richard Serra286, uma lista exaustiva de verbos: enrolar, diminuir, dobrar, armazenar, curvar, encurtar, torcer (…), cortar, seccionar, enlaçar, despejar, abrir, suspender, apreender, ligar, serrar, cavar, acender, laminar, com os quais possivelmente começou a erguer seus “corténs” escultóricos e com os quais também me embaralho nesse vocabulário ensaístico na tentativa de novas conjugações.
Às vezes me dá vontade de desaprisionar as coisas do mundo dos conceitos, dar um jeito de desaprender o objeto, "desvê-lo", enlouquecer seu sentido, tirá-los dos lugares comuns em que se encontram no mundo. Um pouco como diz Manoel de Barros ao "desacostumar as coisas" ou fazer "inutensílios", fazer as coisas “pegar delírio”, inverter, brincar com a lógica tradicional dos objetos e das coisas. Daí, nascem minhas pequenas máquinas; de tentativas de união de mundos divergentes, de desajustes, de combinações entre os muitos possíveis, das circularidades, do último suspiro, do sopro de vida, da existência material e incorporal, de todos os objetos encontrados no fundo do meu quintal, no meu mato maquinal e orgânico, eletric circus celibatarium dos movimentos. São quimeras, no sentido de serem criaturas mistas, como são as quimeras lendárias e míticas representadas pela combinação do leão, da serpente e da cabra. Nesse caso, porém, não mais personagens ficcionais e imaginários mas criados a partir de organismos reais, com “células” de duas ou mais máquinas que saltam da lenda para gerar novos territórios. Combinações improváveis, que invento na tentativa de semear poesia, de lançar pequenas faíscas ao relento, lúmen de vaga-lume. Não são gadgets, aproximam-se mais de “torções” mecânicas, junção de coisas deixadas de lado. Versam sobre o brincar de encostar uma membrana em outra, de tangenciar 286
SERRA, Richard. Lista de verbos [Richard Serra, "Verb List Compilation: Actions to Relate to Oneself" [1967-1968] citada in catálogo de exposição Drawings 1971-1977, Stedelijk Museum, Amsterdam, 1978.
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micromundos distintos e gerar miniaturas brincantes e extraterrestres. Não são produto do acaso ou da inspiração de ordem divina, mas do deliberadamente escolhido para formar uma combinação improvável numa ação dirigida e estratégica que funda DNAs imprevisíveis. Montam-se e desmontam-se no encontro de funções e rearranjos disfuncionais, da engenharia reversa, da física quântica, da biologia, da eletrônica. Acredito no atravessamento de tempos, conceitos, impressões, na poesia, na invenção de universos fantásticos que nos desvendem novidades. Não tenho tempo para o absoluto, a verdade, o certo. Creio na transversalidade. Gosto de olhar o mundo e ver mistos - cruzamentos de pernas, mãos, braços, dedos, pés, ruas, avenidas, cidades, países, pessoas, parentes, amigos, informações, sinais, vidas... -, coisas moles. Expresso-me nessas pequenas percepções, ensaio traduções. Traduzir algumas ralas ideias, coisificar, colocar no mundo, a fim de fazê-las respirar, tomar uma fresca, circular por meios inusitados até pegar forma, ganhar contorno, densidade, espessura e gerar filhos,
outros
trabalhos,
outros
pensamentos.
À
moda
de
Simondon,
conjugar
simultaneamente, algo entre a transmissão e a tradução. Articular superfícies, inventar códigos, veículos. Às vezes em forma de vídeo, composição que aprendi durante o tempo que trabalhei com televisão, outras em imagem fotográfica, que aprendi enquanto assistia meu pai fotografar e me admirava com os resultados. E, mais recentemente, essas traduções ganharam corpo, se dão, agora, em forma de pequenos apetrechos, trechos de trecos apalpáveis, que engendram observações. São como objetos máquinas, simples, que parecem carregar na corrente sanguínea a ideia de mutabilidade, de configurações inusitadas, não concebidas, que por vezes falam do nada, mas que ao fazer isso comentam Sísifo, apontam deslocamentos feitos por pura intuição. Simultaneamente máquinas e arte.
As máquinas tratadas aqui não concorrem à estética da gambiarra, do reaproveitamento de coisas usadas e velhas. Isso me atende enquanto ensaio, me servem durante o processo de alavancar pensamentos. De modo geral minha produção é processual e já parece veicular algo que reincide, que retorna, zonas de vizinhança, que se interpõem entre os objetos e máquinas criadas. Invenção de umas máquinas por outras, dispersão de umas para formação de outras, também elas máquinas de máquinas, produção de produção. As próprias máquinas entre si contorcem-se num elo de relacionamentos. Algo do diferente retorna sobre
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elas. O espreguiçar, a água, a corrente elétrica, os disparadores, as almas de invenção, a cadência rítmica, os imãs, o meio aquoso, a fumaça. A água, elemento fundamental, sem o qual não há vida, move algumas de minhas quimeras maquínicas, essa modernidade de Baumann que deságua no meu vir-a-ser aguadeiro. AS MÁQUINAS QUIMÉRICAS NEONATAS
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. Etc. etc. etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios. 287
A confluência dos conhecimentos da eletrônica, mecânica, engenharia de controle e automação, controles digitais me auxiliam nos caminhos para desenvolver minha poesia. Não que essa forma seja obrigatoriamente um componente daquilo que faço, mas nos casos dessas máquinas, a fusão desses conhecimentos se faz premente. No primeiro capítulo, comentei sobre como me influenciou o fato de ter frequentado o universo mecânico na infância. Não se trata, porém, de uma justificativa para meus procedimentos até agora, mas tão somente uma das linhas de fuga que me atravessaram e me remetem a esse aspecto mecânico no qual também estão presentes a propulsão, o arremesso, a antecipação, as hesitações, as indeterminações e as suspensões. Máquinas que trabalham se utilizando de partes mecânicas que lidam com operações concretas como também acoplam partes eletrônicas que lidam com impulsos elétricos, que destituídos de velocidade, formato ou força são apenas virtualidades, sensores que captam informações e as repassam para as partes mecânicas capazes de fornecer produtos, sistemas e processos poéticos. Nesse sentido, não há muitas restrições quanto ao tipo de recurso a ser utilizado. Sempre levo em consideração as soluções que melhor se adaptam ao projeto. A pesquisa de soluções pode apresentar respostas onde haja necessidade de algum sistema mecatrônico, ou 287
BARROS, Manoel de. Uma Didática da Invenção do "O Livro das Ignorãnças" ed. Civilização Brasileira.
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simplesmente a ação de uma alavanca mecânica, a utilização de leds, sensores eletrônicos ou parafusos e fios que funcionam segundo contrapesos. Enfim, soluções que tanto podem estar inseridas na ordem do projeto quanto da programação. Em geral, esse tipo de trabalho implica um espaço para fazê-lo, para projetá-lo, mais do que uma oficina. Implica também testes, protótipos que muitas vezes demandam uma bancada de laboratório, ou um gabinete de cientista. Mais do que lúdico, há algo de ambíguo nos três trabalhos, comum em minhas quimeras maquínicas, que serão referidas a seguir. Expressam-se numa lógica invertida do “less is more”. São construções híbridas complexas para realizar tarefas muito simplórias. São conjuntos que contrastam peças, traquitanas eletrônicas, elétricas e mecânicas para realizar tarefas cotidianas. Talvez façam muito barulho por nada, muito parafernália para realizar tão pouco quanto o sopro de vida ou o burburinho dos insetos Ao comentar as três máquinas a seguir, abordarei questões distintas. Para a máquina de fumaça, reservarei o assunto dos imateriais. Para a de abrir flores, “Allstars”, tecerei alguns comentários sobre o processo de criação e o projeto de construção da peça, que contou com uma etapa de testes e ajustes. E, em “Uroboros”, a questão do encadeamento da ação.
MÁQUINA DE FUMAÇA
Agenciamentos de fumaça eletroquímica das festas rave eletrônicas, das baladas grunge, trance, rap, que se mesclam com a trepidação da máquina de lavar supersônica que enxerga com seu olho rotatório alucinado. Estampido da madrugada que se escuta dentro do ascético cubo branco, envolvido em glamour e suor do líquido que escorre pelas paredes transparentes de outro cubo que vê o outro girar do redondo, lento e macio. Flecha de cupido que acerta o alvo. Hora do anjo, hora do encontro possível, do espreguiçar das sementes ejaculadas das vagens que explodem, como as do sésamo. Gergelim espreguiçador das mais de 1001 noites.
Os volumes acumulados em dois recipientes, dispostos um em frente ao outro são como pulmões que inspiraram, repletos de ar. Desejos de respiração concentrados para o que ainda está inexpresso, aguardam as vias de efetuação da expiração. Nesse momento preciso condensa-se, excita-se o infinito, o encontro, o desencontro, a distância, a proximidade, o romântico, o acaso, Apolo e Dionísio. Tudo transpira num ambiente já um pouco embaçado pela bruma que consegue escapar pelas arestas e frestas das máquinas. A uma dada altura, as portas dos recipientes começam a abrir-se e finalmente ouve-se o estampido da expiração invadir toda a sala e carregar consigo dois elos de fumaça, cada um
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originário de um dos lados que poderão se encontrar, tangenciar, distanciar, integrar-se em algum momento do percurso e com certeza rumo à desintegração. Pregarão peça à percepção consciente que, de um segundo para o outro, se transformará numa inconsciência ilusória, numa fantasmagoria. Uma máquina híbrida que circula entre a ciência e a mágica, que lida com a vontade de completude, com o desejo de criar laços, de fundar o infinito. São máquinas que projetam anjos, às vezes cupidos, outras baforadas de fogo, ou assobios soprados. Em sua constituição estrutural, a máquina é uma caixa de acrílico que contém uma outra máquina de fazer fumaça, programada para encher o êmbolo de tempos e tempos. Também fazem parte da estrutura, um sistema disparador e um motor que abre e fecha a tampa redonda instalada na parte da frente da caixa. Aparência que lembra algum recipiente de laboratório químico, mas também uma pequena câmara lambe-lambe ou uma câmara de orifício. Frequentemente trabalho com o tema da efemeridade, dos ritos de passagem amorosos, dos encontros obsolescentes possíveis apenas por átimos de segundo.
Figura 26 - Máquinas de fumaça. 2010-2011 (Bete Esteves)
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MÁQUINAS DE ABRIR MARIAS-SEM-VERGONHA
Estrelas espreguiçantes, gotejadores que apavoram marias-sem-vergonha, favas que explodem sementes, pingos. Gotas de suor escorrendo da fissura que antecede o desejo de ver saltar o balão de gás hélio, ou do dedo que encosta as mimosas pudicas, bochechas inchadas que sopram todos os dentes de leão, mecanismo que espalha sementes e espelha as letras de código-genético.
Uma vez me pediram que eu regasse plantas288. Tarefa aparentemente simples, deixoume paralisada. Como fazer isso sem recorrer a metáforas ou cair no lugar comum? Pois bem, numa dessa visitas a uma loja de departamentos, encontrei um apetrecho que me interessou muito. Um gotejador que talvez pudesse me ajudar nessa tarefa. Pensei: o meu “regar plantas” poderia ser feito em doses homeopáticas e isso pareceu ser bastante interessante, poderia pingar acima de algo que aos poucos fosse se alimentando daquele pingo. Foi aí que veio à tona a flor do bar que virava estrela. Aquela pequena mágica poderia ser colocada em jogo. Instalei, de início, um protótipo: três gotejadores presos a um cano que uma vez aberto pingava uma gota bem no centro das flores de palitos, localizadas num plano logo abaixo do cano, e que depois de molhadas se transformavam em estrelas. O projeto era mambembe, mas um bom embrião que se transformou num aparato eletrônico.
Figura 27 - Imagens das primeiras experiências do trabalho Allstars 2009-2011 (Bete Esteves)
Para que a poesia aquática tomasse corpo precisaria de interfaces técnicas, auxílio especializado. A exemplo de Jean Tinguely, ou como fez André Marcueil em O Supermacho, quando assume a necessidade do engenheiro, do químico e de um médico para lidar com suas máquinas.
288
Proposição feita pela professora Lívia Flores durante o curso de mestrado UFRJ, Linguagens Visuais, 2009.
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“Se André Marcueil era uma máquina ou um organismo de ferro movido mecanicamente, pois bem, a coligação do engenheiro, do químico, do médico, para a maior glória da ciência, da medicina e da sociedade burguesas, oporia mecanismo a mecanismo. Se o homem estava convertido em máquina, para que fosse restabelecido o equilíbrio do mundo, uma outra máquina fabricar-lhe-ia a alma.” 289
Depois de algumas investigações e auxílios técnicos especializados do Laboratório de eletrônica da Coopetec, (UFRJ) e de posse de um corpo de impressora usada, um gotejador, um motor de passo, uma solenoide de máquina de lavar, um microcontrolador (PIC-"Programmable Interface Controller"), e alguns palitos de dente dispostos em bandejas de plástico, elaboramos o primeiro protótipo. A partir daí, desenvolvemos a peça maior, aparelhada ainda, com uma câmara de segurança e um monitor. Ao carrinho da impressora estão acoplados o gotejador, um cano que é o reservatório de água, a solenoide e a câmara de segurança. O motor desloca e para acima do primeiro núcleo de palitos. As ações são lineares e relativamente controladas. O desarranjo pode acontecer na formação estelar. O processo aqui não é complexo nem violento. O acaso cobre a cena, o espermatozoide roça o óvulo e forma desconcertantes seres. Um jardim constelar de formas efêmeras e ocasionais. Pensei no nome “Allstars” para o trabalho pela totalidade, pelo conjunto daquilo que são, “as modificações propagadas na imensidão do universo”. Celebridade e fragilidade, espreguiçadeiras e dormideiras, solitárias e constelares, molares e moleculares, ilhas desertas e continentes. O curioso da obra, sua carga ambígua, não se apresenta apenas no nome que também pode indicar as estrelas high society, ou decadentes Para que se dê um acontecimento, que não tem nenhum apelo do espetáculo, absolutamente comezinho, são necessários ajustes eletrônicos, matemáticos, computacionais, elétricos e todo um conjunto de itens que muito bem poderiam ser substituídos por uma gota na ponta de um talher liberada displicentemente sobre um pires. A dimensão da parafernália contrasta com a singeleza do pingo d´água, que ao verter sobre os palitos causa movimento único, dificilmente repetido. A sequência que descreve o processo ou encadeamento de ações de Allstars, sua razão de ser poiética, abriga uma dimensão aleatória, no momento em que o gotejador libera a água sobre os palitos, fazendo-os inchar e produzir o articular da madeira que aqui chamo de espreguiçamento estelar. A estrela é resultado dessa possibilidade de desarranjo, da mesma 289
JARRY, Alfred. O Supermacho. Editora de Brasília, 1985, p.133
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forma que um registro cinematográfico não dirigido por um clichê embutido na montagem clássica, pode abrigar um desempenho ou reação não esperada, não coreografada. AllStars abriga essa dimensão mista que se instaura entre a ordem e a máquinaesquema que abriga uma dimensão aleatória. Ainda que limitada por mecanismos que lhe oferecem uma narrativa, a trajetória pode se dar de modo sempre analógico, sempre em fluxo não inteiramente controlado. Associo a relação dessa sequência de acontecimentos à “imagem concebida como elemento de um encadeamento natural com outras imagens dentro de uma lógica de montagem análoga àquela do encadeamento finalizado das percepções e das ações” 290 “O trabalho voluntário da arte devolve ao acontecimento da matéria sensível as potencialidades que o cérebro humano lhes tomou para constituir um universo sensório-motor adaptado a suas necessidades e submisso a seu controle.” 291
Figura 28 - AllStars, 2010-2011 (Bete Esteves)
290
RANCIÈRE, Jacques. De uma imagem à outra? Deleuze e as eras do cinema (Trad. Luiz Felipe G. Soares, de La fable cinématographique, Paris, Le Seuil, 2001). Intermídias 8, p.2. 291 RANCIÈRE, Jacques. Op. cit. p.8
182
MÁQUINAS AUTOPOIÉTICAS
Bootstrap aquoso de descargas acopladas, do jogar água abaixo, sempre a diferença do mesmo, retroalimentação, interdependência, acoplamentos tipo espiral que sugere moto-contínuo.Reciclagens indefinidas do diferente.
“Uroboros”, títulos desse último trabalho prático me ocorreu já quase no final da escritura deste texto. Título significativo pelo fato de comentar o funcionamento do trabalho no sentido da sua circularidade, o cachorro que corre atrás do próprio rabo, o consumo canibal da vida cotidiana, a máquina que toca ciclos aquáticos de invenção e reinvenção, de repetição não identitária, mas sujeitas as variações de temperatura, pressão e com possibilidades de pane. Igualmente curioso pelo fato de se relacionar com o desejo atual de retornar ao início do texto, para me assegurar do conteúdo. Voltar a ler com fins de ouvir em voz alta, convencer-me, ou apenas me render ao impulso autofágico de querer deglutir e regurgitar para comer de novo e sentir novos sabores. Para entender os excessos, as necessidades de cortes, de acrescentar mais teoria, de reduzir os delírios com cheiro de mato fresco. O problema é que a cada volta vem o novo, a cada descarga tocada desliza o vir a ser, a produção incessante dos diferentes ciclos aquáticos, sucessão de descargas que em sua mágica mecânica, coloca em funcionamento a água primordial da origem da vida e do movimento de que falava o pré-socrático Tales. O movimento circular da série de caixas de descargas que construí e que desaguam numa sucessão de descargas cujo “recalque” ainda lucubro. No universo da psicanálise292, encontrei o recalque como conceito associado à descarga, à idéia de satisfação pulsional, à evitação de um prazer pelo desprazer que possa advir da descarga que o satisfaça. Em sentido estritamente hidráulico, o recalque corresponde ao sistema que opera a condução da água de uma cisterna em direção a uma caixa d’água no alto. Entre um sentido e outro, essa caixas ligam-se entre si através de canos de PVC. As caixas de descargas do tipo acopladas, essas das mais simples e baratas que encontramos em muitos banheiros públicos, são ativadas por um dispositivo mecânico que faz com que elas funcionem num sistema autorreferente. Sem interromper o círculo vicioso.
292
LAPLANCHE E PONTALIS in Vocabulário da Psicanálise, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 430-435.
183
Depois que a primeira descarga é acionada – o que só acontecerá ao se iniciar o processo durante a exibição da peça –, todo o volume d’água que se encontrava na primeira caixa passa para a de baixo que, ao se completar, aciona o mecanismo que libera o sifão e faz com que a água que se encontrava neste passe para a caixa logo abaixo. Quando a água atinge o nível máximo da última caixa, o mecanismo, desta vez, aciona um interruptor que liga a bomba e que leva a água para a primeira caixa e a partir daí se reinicia o processo.
Figura 29 - Uroboros, 2008-2011 (Bete Esteves)
184
Destituídas de suas funções originais e remanejadas para outro universo onde ainda opera o funcionamento básico, essas caixas e sua concatenação com as outras peças, assim como os muitos personagens que figuram nos trabalhos de Fischil and Weiss, reinventam um modus operandi, uma relação entre partes que provoca risos, reajustes e refuncionalizações, sequenciais e interruptas Máquinas produtivas que se inserem na tentativa de minar as verdades absolutas, regras práticas, senso comum. Máquinas que prometem, apontam, lançam, cagam, cospem, arrotam e também inspiram, oram, rolam, brincam, calam. Máquinas poéticas que comunicam quimeras, inauguram novas singelezas, fundam subjetividades. Não as utópicas, que surgiram em meio ao incêndio da contracultura, do Dadá, do construtivismo, das irreverentes apresentações teatrais, das engrenagens comunistas e anarquistas, das revoluções sexuais, hippies, punks, beatniks, que não temos mais tempo para isso. Mas aquelas das pequenas 184 manifestações, das micropolíticas, as que comem pelas beiradas, que corrompem o organismo por dentro, que fundam novos modus, novas ideias, comunicam transformações do dia a dia, do cotidiano, a da repetição, da reinvenção, da conquista feita tijolo sobre tijolo. As que prometem quimeras. As que se espreguiçam. Talvez sejam possibilidades de espreguiçares que me mantenham em movimento e me embalem no vento que levanta a capa do Herói de Wagner Tavares e me fazem voar em sua companhia, ou que abrem as asas de Rebecca Horn, ou que, a muito custo, abre asas de ferro forjado instaladas nas varandas dos prédios onde vivem cubanos. Ou ainda aquele que atrapalha a menina que leva em suas pequenas mãos um enorme saco de pipocas que acabou de comprar no pipoqueiro da esquina, mas que ao entrar na galeria se atrapalha com o degrau e vê desprender do saco as pipocas, que ao tocarem o chão se transformam em porcelana e eternizam aquele instante em sua memória numa lembrança de giro e de fantasia. “a arte nos oferece enigmas, mas, felizmente nenhum herói” 293.
293
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
185
REGRAS PARA RECONHECER UMA QUIMERA MAQUÍNICA. (Tabela 1)
I Para reconhecer quimeras é preciso saber-se máquina, no sentido mais amplo, saber que tudo é máquina. II É preciso saber-se máquina e saber-se quimera, sonho, fusão mítica de muitas fontes. Para reconhecer máquina quimérica é preciso infinita capacidade de sonho. III Sonhador de final de semana não adquire certificado de reconhecedor: É preciso não temer pesadelo. Quem teme pesadelo não sabe como destarrachar a torneira do sonho bom.Sonho bom é devorar coelhos na orientação dos gatos que só se aprende lendo Cortázar no original; IV Para reconhecer uma quimera maquínica é preciso tomar chá com o coelho de Alice servido no bule de Keaton preparado com a graxa do desejo. V Máquina quimérica se reconhece na sobriedade da ontogenia da Diferença na falta de sentido, na vertigem do delírio na inútil e precária e movediça e intersticial e formidável existência. Toda beberagem alucinógena libera o contorno nítido de uma quimera maquínica, mas é preciso estar despedaçado. VI É preciso apagar o Inferno e queimar o Céu recitar de trás para diante os Cantos de Maldoror reconhecer toda a humana (ou divina) possibilidade como sendopartepeça-engrenagem combustível de si e com esse Todo sentir-se Um, assim se reconhece uma máquina quimérica: VII Nos inutensílios da poesia nas teorias-ficções de todos os campos na falível concepção dos conceitos inventados para produzir uma história que se nos contam na hora de dormir em volta da fogueira que projeta sombras no fundo da caverna. VIII Para reconhecer máquina quimérica ou quimera maquínica é preciso prescindir de todo manual ou roteiro de modo a descasar para sempre o que jamais haveria de ter par. Tudo que pulsa, mesmo no pulso lento de milhões de anos, como o ciclo do sol, das galáxias e do universo inteiro é máquina e quimera na imaginação de toda criatura-criadora. IX. Para reconhecer uma tal coisa é preciso dar descargas em sequência conversar e casar com anéis de fumaça derreter o desejo um minuto antes da meia-noite voltar e tornar a voltar eternamente para o lugar que é teu e seguir para sempre exilado e transformar grades de ferro em asas na ausência de louça como o amor que partiu numa fatia fina de fala reconstruída com cola feita de luz e água mineral capaz de espreguiçar estrelas arquivadas em neon por quarenta anos em caixinhas de isopor e de sonho de menina. X. Para reconhecer uma tal coisa é preciso desistir de buscá-la pois está em toda (p)arte.
186
ANEXO A Desenhos esquemรกticos das mรกquinas neonatas
DETALHE 1
DETALHE 1
DETALHE 2 DETALHE 2
02/2
01/2
O MECANISMO DE PESO DESCE E ACIONA O INTERRUPTOR DA VÁVULA
192
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