ESTEVES, Elisabete de Almeida Esteves. Sujeita a tempestades: cadências atmosféricas e as obras clim

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE BELAS ARTES PROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS LINGUAGENS VISUAIS

SUJEITA A TEMPESTADES cadências atmosféricas e as obras clima da arte

Rio de Janeiro Novembro 2018


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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE BELAS ARTES PROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS LINGUAGENS VISUAIS

SUJEITA A TEMPESTADES cadências atmosféricas e as obras clima da arte

Orientador : TADEU CAPISTRANO Co­orientador : FREDERICO CARVALHO Curso : DOUTORADO Aluno : ELISABETE DE ALMEIDA ESTEVES


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Rio de Janeiro Novembro 2018 "Se queres te salvar, arrisca tua pele, se queres salvar tua alma não hesites, aqui, agora, a entregá­la a tempestade variável. Uma aurora boreal brilha na noite inconstante. Propaga­se com letreiros luminosos que não param de piscar, acesos ou apagados, em clarões ou elipses, passa ou não passa, mas em outro lugar, flui, e irisado. Não mudarás se não te entregares a essas circunstâncias nem a esses desvios. Sobretudo não conhecerás." Michel Serres


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à Elisa Ermelinda Yolanda


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Lista de imagens Imagem 1 ­ Femme dessin de l'eau à la citerne, 1732 ­1740 Tabela 1­ Cadências atmosféricas Imagem 3 ­ Danh Vo, Mother tongue , 2015

81 91 98

Imagem 4 ­ Danh Vo, Mother tongue , 2015

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Imagem 5 ­ Virginia Overton, Sculpture Gardens , 2016

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Imagem 6 ­ Virginia Overton, Sculpture Gardens , 2016

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Imagem 7 ­ Mika Rottenberg, Bowls balls souls holes , 2014

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Imagem 8 ­ Rachel Harrison, Perth Amboy , 2016

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Imagem 9 ­ Caspar David Friedrich, Monk by the Sea , 1809­10

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Imagem 10 ­ Nelson Felix, Trilha para 2 lugares e Trilha para 2 lugares

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Imagem 11­ Nelson Felix, Trilha para 2 lugares e Trilha para 2 lugares

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Imagem 12 ­ Dominique Gonzalez­Foerster, Playground duplo, 2006

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Imagem 13 ­ Dominique Gonzalez­Foerster, Playground duplo, 2006

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Imagem 14 ­ Edith Dekyndt, One thousand and one night , 20167

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Imagem 15 ­ Pierre Huyghe, A Journey That Wasn’t , 2005

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Imagem 16 ­ Ragnar Kjartansson, Take Me Here by the Dishwasher , 2011­2014

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Imagem 17 ­ Susan Philipsz, The Lost Reflection , Munster, 2007

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Imagem 18 ­ Matheus Rocha Pitta, O Reino do Céu, 2016

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Imagem 19 ­ Thomas Hirschhorn, Restore Now , 20066

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Imagem 20 ­ Mark Dion, Xylotheque Kassel , 2016

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Imagem 21 ­ Kader Attia, The Repair... , 2012

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Imagem 22 ­ Orhan Pamuk, Museu da Inocência, 2008­2012

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Imagem 23 ­ Pedra fundamental da estufa, 2017

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Imagem 24 ­ Cúpulas ao sol, 2018

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Imagem 25 ­ Folie à deux , 2017

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Imagem 26 ­ Maquete da estrutura do telhado, anos 1970

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Imagem 27 ­ Primeira ocupação da biblioteca em 2016

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Imagem 28 ­ Frascos encontrados no sótão

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Imagem 29 ­ Equipe de funcionários

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Imagem 30 ­ Imagem tirada do terceiro alagamento da cozinha

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Imagem 31 ­ Moringas de terracota encontradas no sótão

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Imagem 32 ­ Detalhe da bola de sinuca caída no corredor

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Imagem 33 ­ Detalhe dos "ninhos" formados pela água da chuva

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Imagem 34 ­ Músicos ao redor da lareira em meados dos anos 50/60

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Imagem 35 ­ Detalhe dos reflexos e sombras que acontecem nas paredes da sala

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Imagem 36 ­ Detalhe da inscrição no morro em frente a propriedade

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Imagem 37 ­ Evento Primeiras Dobras, 2017

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Imagem 38 ­ Evento Dobras de Dobras, 2017

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Sujeita a tempestades cadências atmosféricas e as obras clima da arte Apresentação

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Capítulo I ‒ Zonas atmosféricas da arte

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1.1 Atmosferas contemporâneas 1.1.1 Entre margens e centros

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1.2 Obras climas

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1.3 Mergulhador

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1.4 Stimmung

4 3

Capítulo II ‒ Estação de escuta e espreita

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2.1 Aparelhagem de escuta

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2.2 Instrumentos de espreita

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2.3 A mesa de montagem

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2.4 Aparelho sensório­motor

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2.4.1 Percepção: afecção e ação

65

2.4.2 Duração ­ memória

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2.4.3 Intuição

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2.5 As pequenas percepções

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2.6 A água da cisterna

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Capítulo III ‒ Cadências atmosféricas e as obras clima da arte 3.1 Recepção 3.1.1 Cadências rapsódicas

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3.1.2 Cadências contraespaços

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3.1.3 Cadências de errância

150

3.1.4 Cadências maquínicas

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3.2 Casa em dobras

19 1

3.3 Produção

20 8

3.3.1 Às cegas

20 8

3.3.2 O fantasma azul

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3.3.3 Gestus sob gesto

21 6

3.3.4 Gestus preliminares

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3.3.5 Gestus intermediários

22 5

3.3.6 Gestus complementares

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3.4 Água em dobras

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Referências Bibliográficas

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RESUMO Esta pesquisa se propõe a refletir sobre o meu trabalho artístico no campo da arte contemporânea através do estudo de atmosferas da arte por meio da ocupação de um casarão antigo – sede da empresa Águas Minerais Santa Cruz – aqui apresentado como estação de escuta e espreita . O seu objetivo é verificar a possibilidade de encontrar uma chave de leitura para apreender trabalhos instalativos da arte, definidos por mim como obras clima , e as matérias que os retêm, Para tal, questiono se o presente estudo, aliado ao levantamento de alguns procedimentos artísticos contemporâneos, são elementos suficientes para criar campo e possibilitar a abordagem de trabalhos artísticos pela via da atmosfera, ou melhor, pelo stimmung recuperado por Gumbrecht. A partir de então, busco captar a presença e a atmosfera que animam as o bras clima , analisando suas latências no passado que se faz presente através da valorização do gesto e das micro percepções. Ou seja, recorro ao modo de percepção que propicia ouvir o silêncio, o emudecer, para notar aquilo que não está escrito, não pode ser visto, mas pode ser sentido evocando o aparelho sensório motor. Essa experiência, por sua vez, demanda a figura de um sujeito, estabelecido por mim, como mergulhador. Atento à maneira como se desloca, o mergulhador tem a escuta apurada e se exercita na arte da espreita.

Palavras­chave: Estação Espreita Escuta. Obras clima. Stimmung . Aparelho Sensório Motor.Gesto. Mergulhador.


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ABSTRACT This research proposes to analyses my artistic work in the field of contemporary art. For such, I study the art atmospheres occupying an old mansion ­ Águas Minerais Santa Cruz company's headquarters ­ named on this work as listening and lurking station. I want to verify if it's possible to finding a reading key to understand the installation works of art – defined by me as climate works – and the material that holds them. To this end, I question whether the present study, combined with the survey of some artistic procedures contemporaries, are sufficient elements to create a field of study and to allow the approach of artistic works through the atmosphere, or rather, the stimmung recovered by Gumbrecht. From then on, I try to capture the presence and atmosphere that animates the climate works, analyzing their latencies in the past that show up at present by the appreciation of the gesture and the micro perceptions. That is, I turn to the mode of perception that allows me listening the silence and realizing what is not written or can not be seen, but can be felt by evoking the motor sensory apparatus. This experience, in turn, demands the figure of a subject, established by me, as a diver. Mindful of the way he moves, the diver is keenly listening and exercising in the art of lurking.

Key­words: Listening and Lurking Station. Climate Works. Stimmung. Motor Sensory Apparatus.Gesture. Diver.


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Apresentação Uma fina camada de realidade imediata espalha­se sobre a matéria natural ou artificial, e quem quer que deseje manter­se no agora, com o agora, sobre o agora, deve fazer o favor de não quebrar sua atenção particular. Nabokov

Esta tese, intitulada Sujeita a tempestades: cadências atmosféricas e as obras clima da arte , se configura como parte indissociável do meu trabalho enquanto 1

artista visual no campo da experimentação em arte contemporânea . A fricção do território da pesquisa a partir do conceito obra clima por mim definido e o interesse no fazer artístico promovem a escrita. Ou seja, diz respeito, nesse momento, ao trabalho de uma artista cuja proposta é refletir sobre a própria obra por meio do estudo de atmosferas da arte e da ocupação de um casarão antigo, sede da empresa Águas Minerais Santa Cruz, protagonistas desta empreitada. Contornado pela Serra dos Pretos Forros, o casarão, desde 1914, carrega um histórico de elementos relacionados ao bairro de Água Santa, Zona Norte do Rio de Janeiro. Abordo justamente a atmosfera produzida pela fricção da arte com esse território que não só funciona como divisor geográfico entre os bairros de Jacarepaguá (Zona Oeste) e do Grande Méier (Zona Norte), como compõe o setor 4 do Maciço da Tijuca, no Rio de Janeiro. Visando à possibilidade de encontrar uma chave de leitura para apreender trabalhos instalativos da arte e as matérias que os retêm , questiono se o presente estudo, aliado ao levantamento de alguns procedimentos artísticos contemporâneos, são elementos suficientes para criar campo e possibilitar a abordagem de trabalhos artísticos pela via da atmosfera, ou melhor, pelo stimmung recuperado por Gumbrecht. O termo se refere, em última instância, a uma disposição ou sintonia 1

Entende­se por arte contemporânea a perspectiva adotada por Hall Foster: flutuação de modelos modernistas, precedentes do pós­guerra e localizados depois do 11 de setembro. Compreende, assim, uma divisão definida entre as décadas de 1960 e 1980, que se tornou­se padrão na academia. Para maiores esclarecimentos, ver FOSTER, 2015.


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sensorial percebida pelos sujeitos no ajuste de suas tonalidades corporais com os ambientes frequentados. Gumbrecht relaciona a recepção estética através do stimmung com determinado conjunto de forças que age sobre o sistema perceptivo, sensorial e cognitivo, modulando as disposições afetivas. Concebe­o, mais exatamente, como um conjunto de emanações recebidas pelo vivente a partir de um evento de fronteira. Um espaço no qual negociam consciente e inconsciente num movimento capaz de fazer sobressair uma espécie de conexão assemelhada à da música, ou ao esforço de afinar um instrumento do qual resulta alguma paisagem sonora. Compara o modo como somos afetados por um clima atmosférico com a forma direta, concreta e física com que a música atua sobre os sujeitos. Trilhar os caminhos gumbrechtianos da oscilação entre produção de presença e sentido não significa acreditar na estratégia da produção como meio único de vivenciar a experiência estética. Entretanto, cabe ressaltar minha confiança nesse desdobramento do conceito de atmosfera, ou stimmung , adotado pelo filósofo alemão para acessar tanto os trabalhos por mim desenvolvidos quanto outros que venho observando. Almejo acessar as obras de arte instalativas, definidas por mim como obras clima , pela emanação da intensidade afetiva por nós captadas. O intuito, nesse sentido, é produzir um corpo que conhece o metafenômeno. Um corpo por meio do qual se pretende eliminar as interferências, negando o impulso automático. Mais ainda, refere­se àqueles cujos processos se propõem a reaproximá­los das coisas do mundo. Por essa via, captar a presença e a atmosfera que animam as obras, analisando suas latências e atmosferas no passado que se faz presente, é o meu maior desafio. A necessidade, hoje, de olhar a arte através de suas proposições espaciais atmosféricas talvez deva­se ao fato de que desde a virada do milênio muitas são as obras que apresentam obliquidade e hermetismo e com isso demandam novas ferramentas para serem percebidas. Poucos trabalhos dos últimos quinze anos tiveram um princípio organizador explicitamente inteligível. Trata­se de uma aposta de abordar e experimentar obras por meios menos esquadrinhados e mapeados


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pela linguagem ou história da arte. Intuo que uma obra percebida através do stimmung possa restituir alguma novidade em termos de originalidade da linguagem ao valorizar as sensações advindas das negociações cintilantes entre os elementos do trabalho, do evento e o público. A escolha da direção dessa pesquisa se deu em função do tipo de atmosfera gerada pela atividade dos mecanismos produzidos por mim. O destaque veio do 2

trabalho Histereses , realizado em 2014. A partir dessa obra, definiu­se, num dos primeiros encontros com a orientação, o ponto de partida da pesquisa de tese: uma casa abandonada. Na ocasião, houve a disponibilidade de utilizar o espaço interno do casarão mencionado, fato sedutor pela facilidade de acesso ao local e principalmente por me fazer vislumbrar a ampliação que minha atividade artística poderia alcançar ao friccionar questões da atmosfera com esse bem imóvel. Além disso, a aproximação marcava o retorno às minhas raízes, a oportunidade de honrar os ancestrais da terra, a natureza e a história do bairro e, sobretudo, a possibilidade, mesmo remota, de escutar os passados e me aproximar da narrativa vinculada ao stimmung local através da produção artística. A tomada de decisão inicial de friccionar minha prática com um casarão abandonado e buscar meios de recepcionar e produzir a arte pela via das atmosferas não significava empresa dotada de direção fechada sobre os passos a serem dados, pois a zona de instabilidades a ser atravessada se fazia notória. A preparação do processo demandava distanciamento e delicadeza para, dentre

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Em 2014, participei como artista visual, de uma exposição de arte contemporânea no Sesi Fazenda da Posse, em Barra Mansa, chamada “ à 32 graus ” – angulação da cor anil no círculo cromático de Newton. A mostra recebeu esse nome pelo fato da fazenda, datada de 1768, ter dedicado cerca de 20 anos à agropecuária através da produção de leite, mandioca e anil. A motivação para o trabalho parte de um texto de H.P. Lovecraft intitulado “A cor que veio do espaço”. Esta "lembrava algumas das faixas no singular espectro do meteoro. Como era quase impossível de descrevê­la, foi apenas por analogia que eles puderam designá­la como tal” (LOVECRAFT, 2011, p. 28). Apropriado o conteúdo do conto de forma alegórica, adotei a estratégia de sobrepor e corromper a história original da fazenda e do texto para intervir diretamente nas fotografias históricas do casarão. Essas imagens, aliadas a um dispositivo lumínico, originaram o trabalho Histereses , 2014. Encapar o material pesquisado com o conto de Lovecraft, para fundi­lo com a história da fazenda e estabelecer sentidos dessemelhantes dos originais, tornou­se uma possibilidade para construir nova realidade. Histereses cria ambiência onde a ficção murmura e questiona as narrativas históricas esgotadas, homogêneas e estabelecidas. Ao intervir em uma história local e particular com outra proveniente da literatura, acredito produzir um desvio, uma certa atmosfera especulativa geradora de desconfiança, uma simultaneidade de tempos nos quais transitam as criaturas reais e imaginárias.


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algumas razões, evitar trazer para o primeiro plano a história familiar e manter a certa distância a própria história da residência. 3

A convivência com tal ambiente industrial e centenário , onde se localiza o imóvel para o qual retorno me acompanha desde a infância, envolve momentos de alguma intimidade, outros de absoluto distanciamento. Desocupado há mais de 12 anos, o casarão ‒ território físico e simbólico ‒ sempre orbitou minhas referências familiares, não como espaço de moradia mas como local de passagem, de visita de fim de semana. De uma forma breve e suficiente para que se faça compreender a pertinência do referido imóvel, o casarão abandonado e decadente pertenceu a meus avós. Foi a casa onde meu pai, entre os meados dos anos 40 a 60, viveu sua juventude. Com seus apetrechos e memórias, o ambiente é envolto por uma grande área de floresta, trilhas de mato alto e bambus. É ex­território de passagem de escravos alforriados e local onde se encontra uma fonte de água mineral. As construções inusitadas, que permeiam e circunscrevem o terreno até o pico da Serra, configuram­se também como a área para onde eventualmente fogem e se escondem moradores das comunidades vizinhas. Eis a cartografia de uma propriedade impregnada de história e de atmosfera fantasmagórica – cuja qual aproximo da noção de stimmung – por sua mera longevidade, suas ruínas abandonadas e assombradas. As passagens intempestivas de meliantes ou os encantados habitantes da floresta são nuances que inspiram a musicalidade da atmosfera local e solicitam a sintonia do visitante. O referido bem, a despeito da inserção urbana e territorial, compreende menos uma conformação arquitetônica e mais um ambiente que conjuga memória e espectralidades ativadas

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O imóvel em questão é sede da empresa Águas Minerais Santa Cruz desde 1914. De acordo com a documentação remanescente, a construção do casarão data da época dos engenhos e teria sofrido três grandes reformas. Ao longo desses mais de cem anos, surgiram nos seus arredores a Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro em 1911, passando em 1918 a se chamar Colônia de Alienados de Engenho de Dentro ‒ hoje Hospital Pedro II e Instituto Nise da Silveira ‒, e o Presídio Ary Franco, construído em 1974. Ao final do século XX, a propriedade tem seu terreno reduzido pela construção da Linha Amarela, via que liga a Baixada de Jacarepaguá à Ilha do Fundão. Essa interrupção altera sobremaneira a paisagem do bairro e o volume de água mineral existente no terreno é desviado.


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por elementos atmosféricos. Abrange um espaço entre o protegido e o intimista da experiência memorial. Nele, a atualização da vivência com a atmosfera local e a exploração dos elementos do campo da arte foram se revelando ao longo da imersão da pesquisa. O lugar a chegar, esse oficial de escrever uma tese, que tem como direção encaminhar pesquisa que revele um ineditismo e com ele algum assunto relevante para o conhecimento geral, trêmula. O próprio andamento do projeto opera como parte fundamental do estudo de campo no curso desses quatro anos. Seu passo a passo moroso corrobora com o fiar da maturidade para o enfrentamento de fantasmas: aqueles que habitam e compõem os espaços percorridos da memória pessoal e outros que emanam como atmosfera do local escolhido. Denomino o ambiente do casarão aqui apresentado como estação de escuta e espreita. Não é outra coisa senão a zona limítrofe entre o espaço que frequento e minha própria aparelhagem sensório­perceptiva, meus sentidos e as atualizações de memórias de passados experimentados em cada presente vivido. No "território" aberto dessa estação que conjuga o ambiente do casarão ‒ seus cômodos, paredes, suas peças remanescentes, seu volume de poeira e abandono ‒ passo a concentrar esforços de observatório. Do seu interior, registro indícios sonoros, visíveis e especulares, intensifico atenção nos movimentos ínfimos, que se configuram como dobras repletas de sombras, ecos e reflexos. A cadência sensorial marca o tom do jogo proposto de escuta e espreita e se apresenta por meio de gesto, como: impregnar os poros com a poeira armazenada e ao mesmo tempo mantê­los desobstruídos; abrir, semicerrar e fechar os olhos para lidar com aparições espontâneas, inclusive as dissonantes e incoerentes; perseguir trilhas que se vinculam a concentrações e resíduos a fim de evitar armar dogmas ou histórias reais. Acolho assim todo e qualquer paradoxo seja para ser capaz de beber diretamente dos acontecimentos da vida, seja para voltar à inocência como a criança que ainda não se apropriou da linguagem e age simplesmente atada ao instante 4

Vale destacar presenças que ecoam de alguns outros pontos na extensão do terreno. São eles: o galpão onde funciona a empresa de engarrafamento de água mineral, as fontes que ficam no cume da Serra dos Pretos Forros, a arena que abriga o local da primeira fonte, o lago e uma gruta construída pelos negros alforriados. Enfim, um conjunto de itens e ruínas num local de memória, registro colonial implantado no bairro de Água Santa, um topônimo da cidade que à fonte se refere.


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vivido. Gesto sugestivo para a abertura de caminho rumo à duração, à memória e ao esquecimento. Pela forma lúdica e experimental de aproximações e distanciamentos aqui explorada, passados revisados tornam­se acessíveis e legíveis, gerando, por sua vez, possibilidades de novos significantes. Para abordar tal experiência estética, recorro ao modo de percepção que propicia ouvir o silêncio, o emudecer, para notar aquilo que não está escrito, não pode ser visto e pode ser sentido. Desloca­se mais em direção ao ato de aquietar e recolher emanações perceptivas, sem esquecer que estamos em movimento. Nessa dinâmica de fluxos contínuos de mobilidade, cada passo é importante, per se . Precisa ser cuidado, processado e nunca instrumentalizado. Afetados pela atmosfera vigente, pensamentos, lembranças e objetos são dispostos sobre uma espécie de mesa de montagem. Nessa superfície não somente cabem os gestos de transpor, rearrumar e recortar, como também o ato de reativar os fatos que saltam entre passados prenhes de futuros e presentes. Ferramentas estas que auxiliam a constelar os elementos tese enquanto um conjunto de ensaios. Nas órbitas da mesa conectados com o clima atmosférico que afeta os estados de espírito daqueles que o experimentam, atentos aos vestígios e saltos temporais, giram Flávio de Carvalho e Walter Benjamin. Pensadores estes que acreditam nas descontinuidades da percepção que opera por modulação ou mutação. Do passado, escutam o não dito e vislumbram o conhecimento que nasce das ruínas. Doam sentido àquilo que falta e modificam o olhar sobre o presente. Benjamin nos legou, especialmente através de sua forma de escrita, um 5

conhecimento que conduz à montagem e nos permite vislumbrar matizes contra o ordenamento histórico linear ou a ordem vigente trabalhada ao longo do texto. Ao seu lado, experimento a desativação de verdades, a qual se soma uma dose mítica ou cosmológica da existência. Os capítulos que orbitam a mesa, platôs que ultrapassam os limites, refluem ao território conhecido do não­saber, negociam com as órbitas preestabelecidas. No 5

O conceito de montagem será devidamente esmiuçado no capítulo 1, uma vez que constitui uma das ferramentas usadas para análise que a tese se propõe a fazer.


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primeiro, intitulado Zonas atmosféricas da arte recorro aos estudos da historiadora Miwon Kwon sobre os trabalhos artísticos em sites alternativos aos museus e galerias de arte, entre os anos de 1970 e 1990, e as correlaciono com as análises de Nicolas Bourriaud. Em seguida, apresento os conceitos de obra clima e mergulhador para contrapor às ideias sob as quais os termos site specific e visitante ativo estão ancorados. Tal perspectiva alude ao potencial da arte de produzir obras segundo a acepção do stimmung. O stimmung instaura um tipo de site extremamente contingente . Agencia um palco ritual que, por sua vez, recebe a agência de objetos e participadores da experiência. Como na dança, no canto ou na poesia falada, a maior parte dos trabalhos relacionados ao stimmung constituem­se in situ e in atu na relação com a materialidade dos corpos. Não são se reduzem a um gatilho para a experiência de uma situação, uma vez que as próprias obras podem suscitar reações no público, promovendo feedbacks . Outra característica marcante é que não têm um começo nem fim. Permanecem na heterogeneidade indeterminada, inclusive em termos topográficos. Como obras impressivas , as que se vinculam ao stimmung , são impossíveis de serem capturadas pela fotografia ou mesmo pelo vídeo. Impõe­se na contracorrente da virtualidade cibernética e deixam­se entender melhor como um tipo de experiência presencial muitas vezes de forma ritualística ou cinemática dirigida pela mise­en­scene . As virtualidades valorizadas pelo stimmung se ligam ao tipo de virtual que "só toma posse de si mesmo se encontrar um mediador ou um intercessor que o torne autónomo6". No caso em particular, o virtual depende de alguém para lhes dar autonomia, alguém que os liberte a existência. Vinculam­se a um criador, seja ele quem for. Tais tipos trabalhos vinculados ao stimmung denominados aqui como o bras clima funcionam justamente provando do benefício da dúvida ou da instabilidade da percepção. A experiência provocada, provocadora e provada durante a apreciação de tais obras demandam um sujeito mergulhador, ou seja, alguém capaz de negociar na porosidade das zonas de fronteira. Alguém que conhece as nuanças da

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LAPOUJADE, 2018.


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respiração enquanto se movimenta no e pelo espaço. Atento à maneira como se desloca, o mergulhador tem a escuta apurada e se exercita na arte da espreita. Não há exigências, além das percepções sensíveis de cada mergulhador. Esses são os apetrechos solicitados durante um mergulho. Não significa que se trate de um investigador mas de alguém que barra o impulso automático da demanda de fundamentos e explicações superiores sobre as relações entre as coisas. O tempo de mergulho e a profundidade que conseguem atingir depende apenas das condições climáticas do stimmung e da aparelhagem sensório perceptiva de cada um. As obras clima não negam a participação de qualquer tipo de materialidade, nem as tecnológica ou da informática, nem as mídias da arte tradicional. Entretanto, operam com mais eficácia ao se utilizarem de meios mais rudimentares possíveis: pessoas andando por exemplo que fazem ecoar um clima de sentido, um alteração do vento ou da temperatura ambiente. 7

Pauto a revisão do conceito de stimmung e "presença" auxiliada pelas reflexões de Gumbrecht. Elejo, no contexto vigente, a abordagem da obra de arte através dos operadores da pequena percepção pelo fato desse conceito revelar o acesso estético mediante uma relação de forças para além do visível. Não diz respeito, por conseguinte, a uma apreensão metafísica mas a nuvens invisíveis de percepção. No segundo capítulo, Estação de escuta e espreita, aproximo o campo investigado das atmosferas a um estudo orientado pelos conceitos de montagem 8

trabalhado por Benjamin e pequenas percepções de Leibniz através de José Gil e aparelhagem sensório­motora postulada por Bergson. São ferramentas sob as quais minhas reflexões se apoiam e dão o tom do meu mais recente experimento artístico, na expectativa de que o leitor deixe­se afetar pela atmosfera deste texto e lugar.

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GUMBRECHT, 2014, p.88. Teria sido Leibniz o primeiro pensador a formular o problema de uma comunicação resultante de partes isoladas ou de coisas que não se comunicam: como conceber a comunicação das mônadas, que não têm portas nem janelas. O tratamento dedicado à questão pelo tratamento monadário é substancialmente diferente, pois a comunicação não é subsumida como princípio geral, mas como resultado de um jogo entre máquinas e suas partes separadas, peças para as quais a comunicação não é imperiosa. BASTOS, 2010, p.114. 8


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A mesa de montagem beneficia­se do balbuciar de textos e imagens. Sobre ela provém pensamentos disparadores e diferimentos, abarcando discrepâncias e descontinuidades para além de uma leitura linear ou de proximidade. Nela, a composição emerge do entrecruzamento de saberes e tempos diversos. Até que se estabeleça uma relação entre as coisas e se defina onde será disposto tal trecho de texto ou imagem, o discurso produzido é acompanhado de hesitações. Resoluções se firmam a partir do burburinho e da contaminação de trechos. O desafio é ouvir o balbuciar das várias captações provindas da colisão de passados com o presente ou o “agora”, de forma a produzir algum encadeamento claro, atmosfera ou até quem sabe algum tipo de poesia, de alguém que reexamina, reapresenta e remonta. Quando um sujeito se dispõe a percepcionar uma obra ‒ seja ela um objeto, situação ou texto ‒ caso abra mão do "já sei" ou do "é isto", em certos momentos de serenidade, amplia­se o campo das percepções no nível macro ‒ que se oferece direto ao olhar ‒ à camada microscópica ‒ identificadas com o virtual. Em poucas palavras, percebem­se pequenas percepções: inquietudes ocultadas na defasagem entre um e outro nível perceptivo quando a macro percepção deixa de ser pregnante e a micro salta para o primeiro plano. Destarte, percepciona­se cognitiva e sensorial as qualidades advindas da obra de arte, um reservatório inesgotável de forças. O capítulo três, Cadências atmosféricas e as obras clima da arte , a órbita da mesa gira em torno da recepção e produção, respectivamente. Pela via da recepção, absorvo e recolho as atmosferas de conjunto de trabalhos instalativos da arte contemporânea. Depois de averiguar a possibilidade da recepção estética através do ferramental do stimmung , desenho um quadro de cadências de trabalhos atmosféricos que, ao fim e ao cabo, comentam as afinidades e influências que absorvo em minha produção artística. Acompanham ainda meu excurso pelo universo da arte contemporânea através da vivência e visitação a exposições de arte. A tábua de tipologias atmosféricas segue quatro orientações distintas, são elas: rapsódicas, contra­espaço, de errância e maquínicas. No encalço das rapsódicas, atento para instalações acumuladoras de elementos heteróclitos numa sintonia e ritmo fragmentado. Já em contra­espaço,


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observo projetos instalativos produtores de musicalidade grave ligada a questões naturais na fundamentação de uma superfície. Com relação às de errância, refiro­me a cadências mântricas de trabalhos geradores de espécie de entorpecimento. Por fim, na maquínica sigo as obras conformadoras de ambientes dominados pela atmosfera de totalidade capaz de confundir os sentidos. A palavra cadência, associada a noção de atmosfera, se aplica como reforço à ideia de que perceber uma atmosfera se vincula aos estímulos corporais suscitados por um movimento similar à afinação de um instrumento. Em sua acepção, o termo cadência, encadeamento, sucessão regular de sons ou movimentos, conecta­se ao universo rítmico e auxilia na "formação de paisagem sonora". Esse terceiro capítulo além de armar espécie de auto arqueologia de trabalhos por mim visitados, é pluri dimensionado por centelhas. Por meio do relato de cada obra e da construção da justificativa de sua pertinência nesta ou em naquela cadência atmosférica, rememoro experiências vividas quando do embate direto com a obra. Dessa forma, recupero tanto as imagens realizadas na época de cada visita, quanto revejo as marcas e impressões se atualizando em novas aparições, vapores e lampejos no ato da escritura. Isto posto, opero rebatimentos de tempos que trazem dos encontros anteriores novos trabalhos e conjugam alimento para nutrir esse capítulo. Já pela via da produção, ao tomar um local que foi lugar de visita durante a infância, "re­monto" uma narrativa a maneira das histórias de marinheiro e cruzo mitos, imagens, objetos, ficções e acontecimentos advindos de cruzamentos temporais. Que fique claro desde já, trata­se de região pantanosa; fontes, poças, riachos, recipientes reflexivos e espectrais confundem­nos. Conhecimento nessa situação indica que, se existe uma experiência, ela não é exclusivamente formulada com base na lógica coerente e raciocinada, antes focada na experimentação sujeita às novas organizações da matéria. O texto demanda do leitor a compreensão de que se trata de uma sinfonia multiplicadora de deslizamentos e mesmo quando anda em retidão, promove o fluxo do ensaio "como quem pega ondas sem a ilusória certeza


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de já estar dominando o mar inteiro". Na água, tudo é sinuoso e parece instável, sujeito a alterações climáticas, reflexos, correntezas e tempestades. Nesse último capítulo, narro como os passados se tornam lampejos de tempos presentes que possibilitam a montagem instalativa da "estação de escuta e espreita". A partir daí, reconheço, reúno e "re­monto" os espectros das fantasmagorias locais: os de cor azul, as invocações das memórias, as emoções atmosféricas e afetivas do lugar e as visitas frequentes dos encantados da floresta. O gesto é a maneira pela qual produzo a experiência do stimmung – a "manipulação" do invisível ou zona de limiares. Através dele, gesto, e das materialidades os ambientes tomam forma. Ao confrontar os acidentes e o contexto, creio ter obtido o resultado de uma obra clima . E porque o stimmung ? Obras vinculadas ao caráter do stimmung se utilizam de materiais e bens que, ao fim e ao cabo, também estão atreladas, em algum grau, a um valor econômico de mercado e a um status mercantil. Considero, porém, haver diferenciais importantes nas propostas de obras condizentes com espaços pautados pelo stimmung. De certa maneira, são proposições que nadam contra a maré, à medida que fazem frente ou colocam em cheque alguns processos característicos da arte regidos pelas forças de mercado enquanto modelares dos valores da obra. Precisamente, desvelam o ato de o museu alterar literalmente sua substância material ou substituir a experiência por certificados ou documentação. Pela via do stimmung penso então em trabalhos que oferecem uma espécie de transação invisível e impalpável, como por exemplo I need a Meaning I Can Memorize [The Invisible Pull] , do artista britânico Ryan Gander10. Em alguns casos, estas obras clima estão relacionadas com as forças da natureza e, por conseguinte, tornam­se mais transações e menos produtos.

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GIL, 2005. Um sistema de ventilação suave e invisível atua sobre nossas peles e sentidos. A coreografia da delicada corrente de vento traduz uma vida ativa não subordinada a teorias ou recintos epistemológicos. Não vemos objetos de arte tradicionais. A materialidade das obras se apresenta em metamorfose nos salões de entrada do Fridericianum durante a dOCUMENTA 13 em 2012. Sobrepuja­se ali, além do vento, um clima inusitado para o senso comum; campo de variação sutil, aleatório e contínuo da atmosfera produzida. Não há referências de matriz letrada onde se possa apoiar a interpretação. 10


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O stimmung cria um modelo de "produto" que, se por um lado, envolve a transformação da natureza do material, por outro, não se orienta no sentido de atacar o status da mercadoria. Os objetos materiais agenciam o stimmung e não são mais importantes que as pessoas fruidoras da obra. Além disso, estabelecem com o mercado um novo tipo de colecionador que não adquire mais um bem material e sim condições de proporcionar a vivência dramatúrgica ou ritual para um público, vide as obras clima de Pierre Huyghe After A Life Ahead11, 2017 e Untilled, 2012. Nesses dois exemplos, os dois trabalhos artístico não são objetos contidos em si mesmo. Funcionam, ao contrário, como ponto de partida para situações na quais a experiência estética da arte e da natureza se tornam o próprio trabalho. Abrem­se possibilidades de reflexão sobre o impacto direto da vida orgânica pois há neles processos por meio dos quais o artista lida diretamente com ecossistemas. Trata­se, em suma, de um vir a ser onde plantas nascem/morrem e seres vivos se reinventam. Tal proposição não implica dizer que são disposições ou obras assimiladas pelo entretenimento puro e simples ou por suas qualidades terapêuticas. Definitivamente, não é isso. O tipo de experiência de arte e suas propriedades materiais específicas proporcionam valores particulares. Os indivíduos envolvidos com essas obras têm agência e assumem responsabilidades. Relacionam­se consigo mesmos e com a existência de forma potente afirmada na instantaneidade. Obras como estas incitam redefinições de parâmetros expositivos e convenções institucionais, inclusive da própria terminologia "exposição". Em muitas obras nas quais o stimmung é percebido, apesar das exposições terminarem, o trabalho continua funcionando. A obra sobrevive e é passível de ser transformada, de sofrer alterações, vide os trabalhos citados de Huyghe e de Theaster Gates caso de Twelve Ballads for Huguenot House . Inspirado na sua própria cidade, no fracasso do mercado imobiliário e nos desafios da deterioração urbana, o artista ativa o pulso

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Para o Skulptur Projekte 2017 de Münster, Alemanha, Huyghe desenvolve um sistema biotecnológico em uma antiga pista de gelo que foi fechada em 2016. O que envolveu intervenções tecnológicas e exigiu extensa desmontagem e reconstrução arquitetônica. Ao quebrar a pista e cavar na terra, Huyghe transforma o solo em uma paisagem montanhosa de vários níveis de altura. Em alguns pontos, concreto e terra, camadas de argila, isopor, detritos de cascalho e areia da "Era do Gelo" foram encontrados a alguns metros de profundidade, intercalados com sobras de superfícies da pista. Esse espaço era habitado, por exemplo, por algas, bactérias, colméias. Todos os processos que ocorrem dentro do grande salão operam mutuamente interdependentes.


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do lugar e aquece a memorabilia de pessoas que vivem ou viveram no bairro, levando pessoas a reinvestirem naquele ambiente. Há nas obras citadas o caráter de elevar o sentido do stimmung ao de um site . Há nelas, o germe de deixar porosa as fronteiras geográficas e culturais, facilitando o trânsito e a permeabilidade, tendendo à nostalgia do homem primitivo, ou ao desejo de fazê­lo voltar à terra. Há neles ecos de Hélio Oiticica. Artista que, desde os anos de 1960, parece evocar o sentido da cosmovisão: uma arte ambiente que lida com a sensualidade das coisas do mundo de forma global na contramão da visão encenada pelo formato tradicional da exposição. No trabalho Penetráveis , um de seus pontos cruciais é "criar ambiente para o comportamento, ambiente este que envolveria as "obras" e nasceria em conformidade com elas12". Trata­se de um espaço engendrador de um sentido global, sugerindo ao indivíduo um novo significado às coisas, um novo comportamento de ordem ético­social. Penetráveis possibilitam indubitavelmente a expansão do lado estético, mas sobretudo das experiências sensoriais, como as táteis e vivenciais. O morro, arrisco, é a fonte e a ponte responsável pelo caráter de stimmung que sinto existir em suas obras. "A informação estava contida na própria ambientação13", afirma Oiticica. De forma isolada, ela não estabelece comunicação. Contudo, não se trata, em absoluto, de uma insinuação superficial ou decorativa. O ambiente empresta à obra uma tonalidade pré­verbal, um clima. Esta orientação de Oiticica compreende um trajeto cujos caminhos tem seu início com a formulação dos Parangolés, em 1964, e com as construções orgânicas e espontâneas das favelas14. O participador, termo utilizado por Oiticica, baseado no seu contato direto com o ambiente, vive a "pura disponibilidade criadora, [...] onde o que é secreto agora passa a ser revelado na própria existência, no dia­a­dia15". Da mesma maneira que os trabalhos de Oiticica, as obras clima estão vinculadas à paisagem e aos afetos. Assim como a dança e o canto, os trabalhos

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OITICICA, 1986, p. 99. Idem, p.101. 14 Ibidem, p.106­107. 15 Ibidem , p.100. 13


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relacionados com stimmung enfatizam a transmutação de atos para além de transformação material. Se há, portanto, produção materialidades elas são imateriais. Se fazem acionar alguma economia, essa passa antes pelo agenciamento na inserção social factual. Precisamente, o afeto passa a ocupar o lugar de uma economia de crescimento produtivo orientada para a eternidade. Protagonizam, com isso, questões que transcendem os campos disciplinares da arte. As obras clima acionam novos modelos de prática, teoria e conceito relativos ao transitar. Nomadismo, deslocamento e fronteiras são possibilidades de marcar uma diferença simbólica ou representacional em detrimento da característica concreta da produção e construção. Pela própria natureza da obra estar atrelada ao experimento ou evento, ela faz trepidar as fronteiras do museu induzindo a eficácia da incorporação do exercício sensório motor. Obras clima convocam o caráter de eventividade. Constituem um momento de delicadeza e singularidade, dado que só existem por um breve e singular momento. Dimensão que convida, como quer Gumbrecht à serenidade, por "estarem ao mesmo tempo concentrados e disponíveis, sem deixarem que a concentração calcifique na tensão de um esforço.16" Dorothea Von Hantelmann, ao comentar o caráter temporal do trabalho de Huyghe, aborda­o como uma composição dramatúrgica com características de evento. No caso específico, um espaço individualizado essencialmente híbrido. Situado entre exposição e evento, tangencia uma modalidade baseada não tanto em espaços, ainda que esteja vinculada a eles. Estar no início de uma frase e comandar, desse lugar, o resto da sentença é tarefa da subjetividade gramatical. Por um lado, lugar do sujeito, em curso, responsável pelo que dele advém, sejam verbos, objetivos, objetos, tempo, lugares, circunstâncias vinculadas a acertos ou falhas heróicas. Por outro, sujeitar­se implica acatar, obedecer, conformar. No título da tese Sujeita a tempestades , quando uso a expressão "sujeita a" convoco a tensão entre a “passividade” e a “atividade”. Indico um sujeito no feminino que, em sua serenidade ou em estado de " calma compostura ", é atravessada pelo

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GUMBRECHT, 2010 p.132.


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acontecimento. Gelassenheit , conceito de Heidegger revisitado e traduzido por Gumbrecht é o termo alemão norteador da postura daquele que se "sujeita a". Para além disso, apresenta­se como pré­requisito para dar tempo de deixar surgir aquilo que se oculta, seja no trabalho instalativo seja na atmosfera circundante. Sujeitar­se à experiência, tornar­se disponível e receptivo ao acontecimento para perceber, pensar e agir. O sujeito não avança sobre o observado de modo a devorar a informação em atividade diante dele, antes, aguarda em pausa, ou em velocidade lenta, até que esteja em sintonia com a atmosfera do trabalho contenedor de informações, ideias e dados técnicos. O sujeito, público de arte, entra em contato com a "tempestade", se sujeita a ela. Tempestades nesse caso implicam todo movimento de raios, rajadas de ventos, brilho de sol e evoluções de pensamentos, imaginações, desdobramentos provocados no embate com a atmosfera artística do trabalho. Sujeita também essa autora, enquanto público de arte. Mais ainda, na condição de artista atravessada pelo cabedal de informações teóricas e no retorno a uma propriedade familiar abandonada. Sujeita a qual se permite ser invadida e entra em contato com o manancial oferecido pelo local. Sujeita passiva e ativa com tudo o que o acontecimento oferece de vulnerabilidade e de risco. Sujeita à experiência estética recebida e oferecida que a toca, chega, afeta, ameaça e ocorre. O que faz sobressair a maneira de “ex­por” 17

mais que por, opor impor ou propor . O trabalho está sujeito a constantes mudanças ocasionadas independente do desejo artista. Os processos da criação abrem campo atmosférico, orgânico, no qual o trabalho está sempre por vir. Essa ontologia inclui processos instáveis, artísticos e não artísticos, biológicos e orgânicos, como ponto de partida. Segundo afirma Serres "Quanto mais penso, menos sou; quanto mais eu sou eu, menos penso e menos ajo. 18

"

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LARROSA, 2002, p. 20­28. SERRES, 2004, p.13.


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Para Nietzsche, afirmar que “algo pensa” é manter o lugar do sujeito. O "eu" carregado de egos e certezas cartesianas imediatas, capazes da interpretação do fenômeno, em lugar de experimentá­lo . Sou sujeita com Nietzsche: menos proprietária de pensamentos e verdades. Antes, alguém a quem sobrevêm e atravessam quaisquer pensamentos. É a memória que se diferencia e entrelaça à minha vida efetiva. Sujeita e mutuamente imbricada com ela, sou um canal, uma via, viela, highway , avenida, bifurcação, trilha, ponte, pinguela, uma distância vencida, ativamente esquecida e recuperada de tempos em tempos. Sujeita, sou canal através do qual o corpo sem órgão sempre apto e hábil, age para me ofertar fogos de artifícios, choques, clarões, pontadas, aguilhoadas, eurekas e brindes, para além do bem e do mal, imprescindíveis, necessários e sempre bem­vindos. Sujeita aqui "relativa a", que não tem identidade e existe como produto da variação pelas atmosferas enfrentadas. Sujeita, conforme evoca Marisa Flórido, "ao abandono dos astros e das distâncias. [...] na coragem e na vertigem de se lançar às estrelas que também somos ‒ em pleno desiderare, em pleno desejo." Se há uma sujeição possível ela se expõe aos dobramentos da instantaneidade, ao artifício que possa conduzir o sujeito a uma instância potente de suas percepções sensitivas. Em minha dissertação "Quimeras maquínicas: conexões entre arte e máquina" problematizo as relações entre máquinas e a arte, dedico o esforço de conclusão aos nove celibatários que me aguardavam. Nessa tese, volto atenção às forças femininas inspirada pelo mesmo Duchamp, que através de suas notações sobre o infra mince, solicita atenção para relações ínfimas as quais inferem diretamente na recepção perceptiva da experiência estética. Agradeço, desta vez, às forças femininas da terra e às forças de minhas antepassadas: Elisa Esteves, Ermelinda Almeida e Yolanda Esteves dedicadas a uma vida de muitas submissões conjugais, lançam luz constante sobre os percursos dessa minha trilha artística que recentemente me trouxe de volta à raiz da Serra dos Pretos Forros. De onde atualmente persigo a arte através de alguns de suas atmosferas e vestígios, poeiras, transudações, odores e rumores. Na esperança de um dia voltarmos a nos integrar às forças da natureza onde não existe 19

NIETZSCHE, 2001, p.26.


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nada que seja isolado. Quando não será mais necessária a batalha que só produz 20

batalha, a dialética que se reduz ao princípio de identidade e à oposição de forças entre feminino e masculino como ainda praticamos hoje.

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SERRES, 2001, p.69.


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Capítulo I Zonas atmosféricas da arte

Todo objeto, se é arte, é recarregado com o correr do tempo, mesmo que seja estático. Robert Smithson

Data de 1997 o texto seminal de Miwon Kwon , One place after another: site specific art and locational identity , a respeito da relação dos trabalhos de arte e seu site . A curadora e historiadora da arte de origem coreana, naturalizada nos Estados Unidos, problematiza e explora a noção de site , a partir da escultura pública e das práticas pós­minimalistas. Aborda também as transformações do conceito de site­specificity em seu momento fenomenológico e sua concepção como site discursivo, no período dos anos de 70 a 90. No mesmo ano de 1997, Nicolas Bourriaud, estudioso que correlaciona arte contemporânea aos aspectos históricos e socioculturais, apresenta um grupo de ensaios sobre as práticas artísticas contemporâneas dos anos 90. Sob o título de Estética Relacional , a abordagem desses escritos estão ancorados na sua prática de curador. Recorro ao entrelaçamento das análises dos dois autores sobre as alterações da arte do panorama para auxiliar o leitor a perceber nuances da atmosfera da arte relativa ao período dos últimos anos onde se situa. Não se trata de abordar toda a miríade de transformações e movimentos desse grande intervalo de tempo. Ao contrário, apenas recorre­se a análises que ajudem a repensar as atmosferas dos novos espaço expositivos e as formas de recepção da arte implicadas sob a égide dessas mudanças. Além da abordagem sobre o lugar das práticas artísticas, comentar­se­á parâmetros que parecem orientar a experiência artística a partir da primeira década de 2000. Auxiliada pelas reflexões sobre espaços expográficos da curadora e historiadora de arte Dorothea Von Hantelmann que tem como foco documenta de


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Kassel, comentarei o trabalho Untilled de Pierre Huyghe de 2012. Ao apontar para novas orientações de sites, segundo uma perspectiva de cosmovisão, pode­se levantar diferentes emanações para o entendimento da arte em termos de tonalidades atmosféricas. 1.1 Atmosferas contemporâneas As mudanças dos espaços de arte assim como as análises que se faz deles sempre revelam as transformações de uma época. Pode­se dizer que os parâmetros básicos praticados e promulgados por tais instituições são espelhos da ordem cultural e econômica de uma sociedade e de seu tempo. O produtivismo, o enciclopedismo, a visão histórica do mundo de ordem e progresso, a ascensão da cultura de consumo, o desenvolvimento, tecnológico e científico demandaram, cada um a seu modo, espaços onde se disponibilizam à visualização de pertences, objetos, descobertas, inovações e conhecimentos de cada momento da nossa história. É possível recontar a história da arte e mesmo a dos indivíduos que a recepcionam seguindo o modo como se altera a disposição e o aumento do espaço entre as pinturas nas galerias dos séculos XIX e XX, por exemplo. É igualmente viável compreender a transição das primeiras sociedades de mercado em sociedades de consumo, ao lado da homogeneização e burocratização de museus em cubos brancos. Neste cenário, em que "o espaço de arte não era mais percebido 21

como lacuna, tábula rasa, mas como espaço real " o artista se desloca em busca de de sites alternativos. As tendências universalizantes do modernismo atrelada ao capitalismo e à indiferenciação espacial dos modos expositivos são atores que impulsionaram as primeiras formas de arte instalativas, site­specific a explorar, de 22

forma ainda nostálgica, "realidades físicas e empíricas do lugar ". É também perfeitamente plausível analisar a sociedade sob prisma da popularidade dos museus e exposições no final do século XX e início do século XXI. O aumento sem precedentes de instituições e construções de espaços 21 22

KWON, 2008, p.167. Idem , p.182


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museográficos cada vez mais sofisticados, a proliferação das fundações bienais, a ocorrência das inúmeras feiras de arte, demonstram a presença coercitiva da mercantilização e o apagamento das diferenças culturais das diversidades. O culto a guerra regido pela ordem estética recebe suas primeiras emanações da arte através do Manifesto Futurista de 1909, por exemplo. "A guerra é bela..." propaga Marinetti. Ao longo do século XX, a obra de arte e a forma de recepcioná­la transformam continuamente os processos criativos e vice­versa. As movimentações socioeconômica e culturais problematizam a autonomia da obra de arte, o juízo estético, a questão da autoria artística, a participação do público, o enquadramento museográfico, as normas hierárquicas das instituições. O que não se tenta fazer aqui é observar o andamento das experiências artísticas como consequência direta do encadeamento linear de movimentos que suplantem outros. Antes, entende­se que a simultaneidade de eventos culturais e socioeconômicos e as alterações de subjetividades surgem no cruzamento de fatores e diferenças entre conjunto de forças. Politizar a arte implica o empenho de reverter a alienação que sofreu o aparato físico­cognitivo e sensorial humano depois de ter sido exposto aos choques físicos do período entremeado por grandes guerras. Fragmentado, múltiplo e descentrado por desejos e preocupações inconscientes, o sujeito estabelece relação 23

interdependente e diferencial com o mundo. Como continuar a pintar o espiritual na arte depois da grande guerra? Como diante da barbárie não se lançar frontalmente ao mundo? Que formas artísticas emergem em consonância com os princípios e manifestações de uma sociedade do pós­guerra? A arte de maneira intuitiva, aos poucos, negocia e retoma seu lugar no pós guerra. Preocupada com o meio social se volta para questões relacionadas mais frontalmente com a vida. O artista moderno incomodado com os excessos das convenções normativas e formais da exposição, com o enquadramento de seus trabalhos dentro de alguma nomenclatura rígida e com o respectivo caráter 23

Segundo Bishop, 2015, ao longo do século XX, os artistas tentaram quebrar esse modelo hierárquico de maneiras diferentes. [...]. Nos anos sessenta e setenta, a relação usada para definir o ponto de vista convencional entre obra e o espectador atrai cada vez mais um discurso crítico de "posse", de "domínio visual" e de "centramento".


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museológico do espaço ‒ invariavelmente sem janelas, dotado de impecáveis paredes brancas, climatizada por aparelhos e devidamente controlados pela luz artificial ‒ começa a notar o ambiente expográfico como um espaço dissimulado a serviço de uma ideologia. Em tal cenário erodido novas subjetividades emergem. Diante da necessidade crescente de formas de percepcionar o mundo, passaram a coexistir pelo menos dois extremos de apatia. Duas classes de anestésico são experimentadas: por um lado, a estetização da política produtora de alienação e, por outro, a radicalização da politização da arte. Como espetáculo, a política, propagada pelo meio televisual produz alienação sensorial e exige da arte a restauração "dos sentidos corporais 24

humanos" a fim de ultrapassar as novas tecnologias. Pode­se inferir que a percepção, a partir de então, vivida como experiência, se conecta ao passado, de maneira a proteger o corpo do trauma de novos possíveis acidentes e a psique do choque perceptual. Para Buck­Morss cenário indicativo de uma “crise da percepção” . Ou seja, a escalada industrial e tecnológica da era da reprodutibilidade representa o simultâneo entorpecimento pela inundação dos sentidos e o estímulo característicos de ordem estésica. A anestética se revela eficaz através da produção de uma série de anteparos intencionais do sistema sinestésico como os medicamentos ou mais comumente o uso de drogas contra doenças como “neurastenia”, nervos “abalados”, “colapso” nervoso. A desordem é causada por “excesso de estimulação” (stenia), e a “incapacidade de reagir ao mesmo” (astenia). Buck­Morss indica que a palavra chave para a elaboração dessa alteração perceptiva surge na Inglaterra em 1802, vinculado aos primeiros aparatos do cinema: a fantasmagoria , aparência de uma realidade que, através de manipulação técnica, engana os sentidos. Conforme se sofisticaram os efeitos fantasmagóricos, mais as pessoas se afastaram da experiência estética. Os recursos tecnológicos disponíveis produzem uma realidade que não existe mais, funcionando como duplos artificiais, ou fantasmas.

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BUCK­MORSS, 2012.


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A arte se afasta também da conexão com a experiência sensorial e não escapa ao evento da fantasmagorias, posto que, como entretenimento, faz parte do mundo das mercadorias. No panorama geral dirige­se à totalização da obra de arte como tendência estética e encobre a preocupação com o social privilegiando­se a visão. A aparelhagem museográfica e expositiva atuam de certa maneira como anteparos. Se por um lado expõe as mercadorias, por outro atua como "ilusão enganosa" camufla a psiquê do contato com as percepções estéticas. Pergunta­se, nesse caso, o que ainda pode o cubo branco? Ou melhor, que outras formas emergem em consonância com os princípios e manifestações de uma sociedade de consumo avançada? A partir de onde pode­se perceber o envolvimento com essas experiências? 1.1.1 Entre margens e centros O incômodo do artista com local de confinamento cultural do cubo inócuo erigido pelos modernistas foi uma das alavancas que o impulsionou em direção ao site enquanto espaço alternativo. A busca por espacialidades, fora das amarras museográficas, implica o contato com a realidade tangível de "elementos físicos como dimensões, escalas, texturas e formato das paredes e salas, proporção de praças, edifícios ou parques, condições existentes de iluminação, ventilação, 25

padrões de trânsito; características topográficas particulares ". Atuando no espaço real, obstinados com a presença, os artistas passam a utilizar materiais efêmeros e móveis na imediatez do aqui e agora. O tempo de percepção se dilata. O lugar da arte se desloca da coincidência com o espaço literal. Os trabalhos artísticos desenvolvidos em espaços alternativos serão inicialmente abordados sob o cunho de site instalativo, conforme relata Julie Reiss no texto " From 26

Margin to Centre: The Spaces of Installation Art " , de 1999. Pórem antes de se firmar o uso do termo “instalação” e de ser assumido como vernáculo da arte contemporânea, “environment” , foi a expressão empregada pela crítica geral para descrever as obras multimídia dentro de um ambiente. Em 1958, o artista Allan Kaprow postula "arte meio ambiente" para descrever suas obras 25

KWON, 2008, p. 167. REISS, 1999. Em "From margin to center" a autora ao atravessar os capítulos I Environments , II Situations , III Spaces passa a abordar o IV Installations. 26


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multimídia no tamanho de um quarto. O termo percorre meados da década de 1970, alterando­se entre arte de projeto , arte temporária e instalação . Em 1971 Daniel Buren em seu ensaio “The Function of the Studio” questiona se o termo instalação não substitui a exposição. Alguns artistas concentram seus trabalhos em áreas remotas ‒ earthworks ou land art ‒ como o deserto de Nevada onde Michael Heizer realiza Double Negative , 1969, Great Salt Lake , Utah onde de Robert Smithson realiza a obra de terraplanagem Spiral Jetty , 1970. Outros criaram instalações em espaços específicos, inacabados ou hostis à arte e estabelecem­se em endereços dentro da própria cidade de Nova York caso de Open House , 1972, conhecido como Drag on ou Dumpster , de Gordon Matta­Clark. Finalmente em 1994, o termo meio ambiente deixa de ser uma categoria e os trabalhos, ainda que inespecificamente, são ainda frequentemente chamados de instalações, passando a figurar em uma lista real de artigos. Cooptadas rapidamente pelos museus de arte e galerias as instalações ou arte site specific realizadas em espaços alternativos, até então à margem do mundo da arte, podem ser vistas em forma de projetos que ilustram os trabalhos e transformam o espectador, dessa vez, em intérprete. A partir daí, críticas foram feitas a esta concepção de arte instalativa. Pela via da experiência de habitar o lugar, são então erigidos novos conceitos para o desenvolvimento do trabalho artístico, como site specific , non­site e outras especificidades como a arte site specific. Absorvendo, processos oriundos das atividades da land art , minimalismo, fluxus, videoarte, performance , arte conceitual e arte de processual, apontam para a prática de arte promotora do relacionamento imanente entre o sujeito e obra. Com isso, inauguram um território do tamanho suficiente para envolver o público e a obra. Esse território artístico ampliado passa assim a lidar com questões como a especificidade do lugar e a efemeridade da obra seja do material de que é feito seja pela temporalidade em que será exibida. O exercício promovido pela arte site specific inventa o artista deambulador e vice­versa. O itinerário ou sequência fragmentária de eventos e ações ao longo dos espaços, a narrativa nômade cujo percurso configuram os site articulados pela passagem do artista. Nela,


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inauguram­se localidades que agem e se endereçam a um espectador descentrado do ponto de fuga único do horizonte do quadro. Alçado à condição de um visitante interativo, penetra o local da instalação. Implicado em negociar com novos espaços expositivos e encaminhamentos dos trabalhos, sua atitude contemplativa ancorada no vaguear entre corredores frios é colocada em xeque. O acesso às instalações viabiliza, por conseguinte, a representação de um visitante que se desloca e 27

encontra objetos "evidentes somente pela exploração de um espaço" . Essa nova entrada funciona como um convite, digamos assim, à exploração de seu caráter dinâmico e ativo. Suscita situações em que, ele como visitante ativo, se vê autorizado a inferir sobre o trabalho, seja completando a peça seja decifrando relações ou encontrando conteúdos já inscritos individualmente ou em coletividade. Interpelados pelos procedimentos dessa dinâmica ativadora de uma presença marcadamente atuante, frontal e sensorial, esse ato interativo pode ser desfrutado transitiva e conceitualmente longe do lugar do sujeito centrado, humanista racional. O visitante se transfere, pela imaginação, para o deserto ou para um campo de raios 28

sem precisar sair fisicamente do lugar. Na companhia de outros visitantes, o

contato com o trabalho se realiza através da consciência e da participação física. Diante das múltiplas perspectivas instalativas e em sua nova condição, o sujeito se desloca numa atmosfera produtora de complexidade e atrito. No site­specific reconfigura­se o próprio espaço. Promovem­se instabilidades: o modo como o lugar age, reage e opera a partir da instalação do site­specific é imprevisto e contingente, não se oferece ao controle, o próprio trabalho lida com 29

indeterminações. O movimento na direção da desmaterialização da arte é crescente. Em oposição aos desejos institucionais como tentativa de "resistir à mercantilização da arte no/para o mercado de arte" a arte site­specific adota estratégias antivisuais e imateriais e ainda limitadas por um tempo irrepetível. O trabalho experimentado a maneira verbo/processo evanescente, provoca a acuidade

27

REISS, 1999. p.xiii Quando abordo o deserto refiro­me a trabalhos de Richard Long. Já quando abordo campo de raios refiro­me ao trabalho Lightning field, 1977, do artista Walter de Maria, realizado no Novo México onde há uma grande incidência de raios que são atraídos pelas 400 hastes de metal dispostas regularmente ao longo de uma milha da região. 29 Ver por exemplo LIPPARD, 2013. 28


33

crítica e física do espectador no que concerne às condições ideológicas dessa 30

experiência. Nesse contexto, a garantia de uma relação específica entre um trabalho de arte e o seu site não está baseada na permanência física muito menos no delineamento ou na separação entre arte e não­arte. O crescente envolvimento com o social e as precondições particulares e locais do site incorpora assuntos que passam por questões da ecologia, sexismo, racismo, política. De uma forma geral, ao pleitear espaços mais exploratórios o artista começa cada vez mais a se desprender da melancolia do local atrelado às condições geográficas e se envolver com regimes discursivos à margem da sociedade com o objetivo de realizar novas espécies de rituais sob a óptica de um discurso direcionado que posteriormente Kwon cunha como de arte site oriented . O site se monta por meio da penetração de lugares recônditos e esquecidos, não como pré­condição do trabalho mas mediante a convergência de uma formação discursiva. Configura­se pelo encaminhamento de assuntos cada vez mais adensados com o intuito de dar maior visibilidade a grupos e assuntos marginalizados, iniciando a redescoberta de lugares “menores” até então ignorados pela cultura dominante. A arte site oriented valoriza discursos vinculados a identidades urbanas. Sinaliza uma mudança cultural fundamental, na medida em que a arquitetura e urbanismo, até então constituíam os principais meios para expressar a visão da cidade, destacando a organização do espaço e seus elementos. Para validar e sustentar a discursividade do trabalho o artista, vinculado ainda ao poder de comercialização das instituições artísticas, orquestra­se com elas através de "curadores educadores e staff administrativo de apoio, que inferem na determinação da base de seu discurso e do foco a ser abordado pelo projeto. A especificidade do lugar, por essa via, se traduz como ato de recodificar as operações no local escolhido. Não é por estar num site specific que o trabalho está desconectado dos espaços e economias que se inter­relacionam com todo o circuito

30

KWON, 2008, p. 170.


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de práticas artísticas. O ateliê, a galeria, o museu, a crítica de arte, a história da arte, o mercado de arte juntos constituem "uma unidade" que não está separada do todo. A “ausência” da presença do artista como manifestação física no trabalho site specific se torna pré­requisito absoluto na apresentação de projetos que Miwon Kwon denomina de site oriented . O aspecto performativo do modo característico da nova operação do artista, sua nova mercadoria, funciona como o veículo principal de sua legitimação, repetição e circulação. As atividades site specific e site oriented não estabelecem entre si qualquer hierarquia como se um modo de expressão artística suplantasse o outro. Não se trata de uma questão evolutiva. As categorias site specificity "não são estádios em uma trajetória linear de desenvolvimento histórico". Não obstante é fato que "a 31

estética da administração , desenvolvida nos anos 60 e 70 pelas experimentações estéticas, land art e earth art , process art , instalação, arte conceitual, performance , body art e várias formas da crítica institucional, converteu­se na administração da estética nos anos 80 e 90" e a partir daí nota­se a tendência maior de operações artísticas discursivas. O artista fazedor de objetos estéticos que se relacionava diretamente com as operações de dobrar, cortar, enrolar, encurtar, raspar, rasgar, lascar, rachar, cortar, romper,

reemerge

passa

agir

como

"progenitor

de

significados" ou

"narrador­protagonista" e processa outra classe de procedimentos verbais como 32

"negociar, coordenar, acordar, pesquisar, organizar, entrevistar ". Como figura central torna­se também um facilitador, educador, coordenador e burocrata. Surgem a partir da noção de orientação novos sites estruturados para serem experimentados transitivamente, uma coisa depois da outra. Operações diferentes de site podem acontecer num único trabalho site specific . De fato pode­se considerar sites os vários tipos de relações estabelecidas entre artista, suas ações em determinada localização e o público. Podem ser considerados como "lugar" o deslocamento e transitividade do currículo do artista seu percurso de exposições que

31

KWON, 2008, p. 178. Benjamin H. D. Buchloh, Conceptual Art 1962­1969: From the Aesthetics of Administration to the Critique of Institutions, October 55, inverno de 1991: 105­43. 32 KWON, 2008, p. 178.


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Kwon a partir de James Meyer chama de site "funcional", a estrutura curatorial de uma exposição coletiva temática, a temporalidade ou prazo de exposição do trabalho, a reconfiguração do trabalho fora do lugar onde foi desenvolvido, as relações específicas com as instituições de arte ou não, as formações particulares do desejo, o processo e a operação que ocorre entre sites, o mapeamento de filiações institucionais e discursivas e os corpos que se movem entre eles, a 33

textualização e espacialização dos discursos. Termos como site specificity , site oriented , functional site ajudam a sentir os ventos que sopram desde que esses termos começaram a ser utilizados ao lado de outros identificados, nos anos 90, por Bourriaud com o vocabulário pós­produção , laboratório, “usina artística ‒ art factory”, comunidade, coletividade, interação. Adequando­se à ideia relacional de arte Bourriaud, assim como Kwon, problematiza o lugar da arte. Espaço, local, localização, território ou o site são palavras utilizadas para recontextualizar a relação do artista e público da arte, com o cubo­branco e as noções instalativas e museológicas. Ao mesmo tempo em que se lida com obsolescência e a efemeridade física da obra presencia­se a ampliação dos lugares e o uso expandido de matérias­primas. O artista passa, desse modo, a habitar e explorar muitas formas, campos culturais e domínios – desde a prática vinculada a princípios científicos, psicológicos, sociais, eletrônicos, computacionais, arquitetônicos, tecnológicos, a cruzamentos entre arte e vida. É bem plausível considerar que muitos de seus trabalhos, o artista é se deslocar como um surfista que destila e sintetiza o passado disponibilizando­o em sua resignificação. A arte dos anos 90 agrega sujeitos em ações momentâneas e participativas. Operam­se conexões espontâneas geradas no e pelo espaço da obra, privilegiando relações intersubjetivas em vez de uma visualidade impessoal. Mais do que um espaço simbólico, autônomo e privado o "espaço" problematizado por Bourriaud, "toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto 34

social" .

33 34

KWON, 2008. BOURRIAUD, 2003, p.19.


36

Em 2002 o antigo pavilhão parisiense utilizado durante a Feira Mundial de 1937 reformado é ocupado de maneira inovadora. O palácio transgressivo e sem paredes desafia o estatuto da burocracia museográfica. Vazio, inacabado e em constante mutação o Palais de Tokyo se transforma em espaço contemporâneo e 35

incita uma nova maneira de viver a arte através da experiência da arte relacional , em todas as suas formas. Para Bourriaud, curador desta instituição de 1999 a 2006, o artista está sujeito às contingências do ambiente. Surfa de significante para significante inventando trajetórias sinuosas entre sinais culturais para serem absorvidas pelo público de arte. Os artistas da arte relacional não só operam nova relação com seus objetos de trabalhos, que agora se norteiam pela economia de serviços, como estabelecem através desse processo uma relação com público enquanto comunidade transitória 36

num "espaço simbólico autônomo e privado ”. O formato dos trabalhos da arte relacional se assemelham com os da instalação. Ambos insistem no uso em detrimento da contemplação. 37

Diante do artista Bourriaud enxerga um semionauta . Mantendo­se sempre em trânsito, ele sintoniza discursos populares, delineia a arte como um campo de 38

conhecimento, seleciona o casting de pessoas, objetos e situações para seus vídeos, fotografias, instalações. Ao ampliar o uso dos suportes, dessacraliza a arte. Atento a cooperação de saberes, o artista dispersa a autoria entre outros artistas, inclui colaboradores, espectadores­leitores, troca intelectual e debate cultural organizando e ultrapassando e borrando fronteiras da arte e de outras disciplinas. Precisamente porque o trabalho se assume processual e aberto ‒ ao invés de concluídos ‒ ao mesmo tempo que se sujeita à reavaliação contínua, faz do espectador uma figura imprescindível.

35

Claire Bishop, crítica à nomenclatura criada por Bourriaud publica um artigo em que acrescenta à forma relacional a necessidade de se pensar os antagonismos ou tensões no interior de práticas artísticas baseadas no campo sociológico. 36 BOURRIAUD, 2009a, p.19. 37 BOURRIAUD, 2011b, p. 168. O artista funciona como um insersor de signos, pragmaticamente, no "cotidiano vivido", produzindo "alteridades possíveis". 38 BOURRIAUD, 2003, p.77.


37

A visão do Bourriaud é criticada por Claire Bishop ao afirmar que as análises sob o prisma dos trabalhos relacionais "parecem resultar de uma má interpretação criativa da teoria pós estruturalista: em vez das interpretações dos trabalhos de arte estarem abertas à reavaliação, diz­se que o trabalho de arte em si está em fluxo 39

perpétuo ." Tal crítica se torna valiosa, posto que entendo­a extensiva à atmosfera geral da arte da primeira década do anos 2000. Destaco essa nuance como um problema a ser ressaltado aqui. Se o trabalho se arma em sua indefinição, sua apreensão pode se dar numa camada superficial, de modo que existe a possibilidade de ser observado com desprezo ou item de consumo rápido. O visitante interativo, assim como faz diante da vitrine de mercadorias, dedica apenas alguns segundos de sua atenção. Colocando­se como um simples componente da instalação, a sua experiência se torna a própria mercadoria. Como sugere Bishop, a economia baseada em bens altera­se para uma economia de serviços. 1.2 Obras clima A partir de agora, destaco a relevância do conceito de obras clima como uma proposta de visada sobre o trabalho de arte. De antemão, deve­se entender o conceito de obras clima como uma referência direta aos trabalhos de arte que estimulam a percepção pela via sensório perceptiva em detrimento da hermenêutica, ou pelo menos por meio da tensão que se pode estabelecer entre as duas. Com efeito, as obras clima incluem definitivamente, em sua palheta, rituais transitórios destinados à produção de efeitos ambientais visuais e sonoros, procedimentos pirotécnicos, performances, instalações, equipamentos, máquinas e outros recursos mais ligados à condução de uma climatologia. Exploram, conforme observadas no capítulo segundo, os dispositivos das pequenas percepções através dos dados imediatos da consciência. As obras clima são trabalhos artísticos que não se esgotam naquilo que mostram. Suspendem os sentidos formais dos materiais e postergam qualquer significação. Acontecem no intervalo instantâneo de força com quem as confrontam.

39

BISHOP, 2010, p.110. Grifo da autora.


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Promovem alianças com momentos de sombreamento e opacidade. Escapam ao âmbito do utilitarismo. Tendem a bascular entre o conhecimento funcional e uma e outra poesia, um e outro animismo ou ponta de mistério. Quando se utilizam de narrativas o fazem não como um discurso paralelo, mas como "espécie de estimulação recíproca entre obras de arte e certos relatos, com intuito de deslocar e 40

postergar uma significação." Exigem a presença de um corpo leitor. Isto é, um corpo que recolhe as vibrações atmosféricas emanadas das obras. Um corpo que ler explorando e deixando­se explorar pelos sentidos. Um corpo sensório que ler com a boca, os olhos, os ouvidos e o tato. Aberto ao mundo, o corpo sensório das obras clima percebe o abismo como aliado. É um corpo que joga e se joga nas e por dentro das obras clima. 1.3 Mergulhador Como bem pontua Bishop ao tecer críticas sobre trabalhos considerados, por Bourriaud, enquanto exemplares da estética relacional, a arte contemporânea solicita uma interação público cada vez mais elaborada. Entretanto, as promessas de emancipação que o acompanham não correspondem, ainda em conformidade com Bishop, uma elevação dos critérios. Estes mesmos continuam retornando de outras formas. Nesse ensejo, nomeio o corpo definido aqui como leitor sensório ‒ comprometido em sentir a vibratilidade das atmosferas emanadas pelas obras clima de maneira independente – de mergulhador. Isento de qualquer convite ou constrangimento para interagir com a obra de arte, o mergulhador, na sua condição de sujeito livre e independente, percebe a obra de forma reflexiva. Percebe o silêncio e a quietude do espaço, o que esse silêncio e essa quietude têm de interrogação e de espera, e também de exigência. Oferecendo sua presença antes de sua palavra, penetra nas obras clima por meio de num jogo entre presença e sentido, a partir do qual podem surgir fulgores, seres abissais reluzentes e doadores de perplexidades.

40

NAVES, 1998.


39

41

O mergulhador experimenta as tensões e limites categorizantes da arte O corpo mergulha. Torna­se peixe ao se recordar da sua condição atávica. O corpo deixa ser atravessado pela energias. Na sua intensidade fusiforme, deixa de ser corpo humano. Deixa se invadir se entorpecer com ausência de definições precisas. Navega em cores e formas as quais prescindem de contornos e consistência definitiva. Assume que a natureza não pode ser comunicada por palavras. Torna­se as cores das superfícies, as texturas sensíveis vistas e observadas: o ponto abstracto desdobra­se em seu corpo numa superfície que se molda à superfície percebida. Torna­se o turbilhão das águas do rio e a pele de areia do deserto sem fim. O mergulhador se equilibra na agitação do movimento, assim como um peixe se move, balanceia e sustenta seus raios ósseos ou cartilaginosos sobre a água. Trata­se, assim, de um corpo que se move segundo as próprias flutuações e vibrações atmosféricas, "desobedecendo às leis objetivas do mundo exterior"42. Nadando nas correntes do Gil, um gesto que inscreve nos movimentos das sensações. O

corpo

do

mergulhador,

sob

tal

perspectiva,

"agencia

a

passagem­articulação do dentro ao fora, em variantes múltiplas do dentro e fora de si"43. Isso quer dizer, parafraseando Gil, que é preciso entender o corpo do mergulhador como um grande metabolizador desse movimento. Suas articulações não devem ser percebidas como dobradiças mecânicas do copo em sua condição anatômica, mas como agenciamentos precisos da corrente incessante que vai do interior ao exterior, acordando forças, acelerando fluxos e expandindo horizontes. Do mesmo modo que o mergulhador nunca desce ao mar desacompanhado, a experiência estética nunca opera isolada. Além das metamorfoses agenciadas no interior do corpo, as tendências relativas às percepções de todos os graus ‒ do 41

Para BISHOP, 2008, " el sujeto observador real (que entra en la obra como un “objeto velado”) y un modelo abstracto del sujeto (del cual idealmente se conciencia al espectador a través de su presencia en la obra). Esta tensión entre el sujeto modelo disperso y fragmentado de la teoría postestructuralista y un sujeto observador autorreflexivo capaz de reconocer su propia fragmentación se demuestra en la contradicción aparente entre las pretensiones de las instalaciones de descentrar y activar a la vez al espectador ". 42 GIL, 2005, p. 326. 43 Idem , p.326.


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visível e do legível ‒ agitam o ambiente externo e todas as suas nuances de instabilidade, de estabilidade, de variações. O que inclui os objetos, os ambientes, as circunstâncias, as formas e as formações. Qualquer domínio sempre são nuvens, poeiras que se misturam, escapam à linguagem, mas não aos sentidos. Mesmo assim, desafiam a experimentação com o objeto artístico. O artista começa onde acaba o humano, inventa o que não existe, aumenta o mundo, acrescenta ao real um irreal contingente. Independente da época na qual se situa, toda e qualquer obra de arte, a meu ver, exige uma atitude de quem se relaciona com ela. Não como alcance de uma verdade, mas como um convite ao uso de um certo grau imaginação que se diferencia na instantaneidade, seja diante da obra seja tempos depois de tê­la vivenciado. A capacidade de distanciamento da vida cotidiana, a suspensão temporária das leis físicas e a natureza o mergulho profundo e sensivelmente superficial, à flor da pele. Nota­se que o objeto de arte não é aquele que nos proporciona o contato com coisas humanas interessantes e conhecidas, ao contrário, ele só é artístico na 44

medida em que não é real . A condição iniludível para a fruição estética é deixar­se repercutir pela ficção, pela irrealidade e pelas angústias que as transparências artísticas apresentam. Certamente a experiência vivenciada em 2012 quando, por duas vezes, percorri o território de Untilled , 2011­2012 trabalho de Pierre Huyghe em exibição durante a dOCUMENTA (13) no Karlsaue Park contribuiu para a elaboração do conceito de obra clima e foi um dos disparadores dessa pesquisa que se interessa tanto por recepcionar como produzir trabalhos que oferecessem experiências atmosféricas. Untilled gera nuvens de percepções que até hoje se atualizam e revelam novidades. A tradução do termo Untilled se relaciona a uma terra não preparada para culturas, não cultivada ou fora de ordem. O site , escolhido para intervenção foi a área de compostagem de atividade funcional do Park e passou a integrar processos artísticos, biológicos e orgânicos, como um grande cenário aberto em sua

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ORTEGA Y GASSET, 2008. p.27


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contingência, sem script. O local opera em sua duplicidade artificialmente produzida num parque também artificial preexistente e uma configuração fictícia artisticamente projetada. Dessa maneira, Huyghe transforma e atua numa espécie de terreno baldio, um local que escapa a algumas convenções institucionais. Durante três semanas o artista instalou ali seu ateliê temporário. Acampado coletou espécies de várias plantas e insetos, assim como penas, cogumelos, ninhos e pedras. A área expositiva de Untilled artisticamente projetada, ocupou ambiente funcional preexistente. Misto de laboratório e área de trabalho de seus funcionários, a captura do espaço com finalidade artística não impossibilitou que o parque o utilizasse de forma funcional. Não se percorre mais o cubo branco, asséptico e controlado que anuncia um novo universo a partir de seu bem demarcado acesso de entrada, com horário para visitação. Isto é, a área selecionada não teve demarcações nem cordas ou fita que impedissem qualquer aproximação ou atitude de quem circulava por ali. Apesar de lugar improvável para uma obra de arte, o visitante notava a placa indicativa próxima a área de "exposição" com o nome do artista e do trabalho. O trabalho se configura como um ecossistema. Agrupa um formigueiro, um enxame de abelhas, algumas plantas, um cachorro de raça branco com um das pernas pintadas de rosa choque, pilhas de lajes de concreto, montes de terra, sulcos profundos deixados na lama, paralelepípedos, pedaços de asfalto quebrado, uma cópia da escultura em pedra de nu feminino reclinado produzida por Max Weber, em 1930. Sua cabeça é coberta por uma grande colméia. Há ainda uma referência à obra de Dominique Gonzalez­Foerster, um carvalho de Joseph Beuys e brotos de plantas alucinógenas, espalhados a céu aberto em área utilizada para compostagem do parque. A processualidade da vida age no trabalho de arte. A forma da obra instável aparece permeada pela contingência de seus organismos, que pode ser observada na estrutura orgânica mais interna de uma abelha, na planta que cresce, no cão que se desloca, no tempo que constantemente muda e se transforma, por exemplo. O trabalho consiste no jogo de variações e alterações naturais da vida orgânica aliado a um evento produzido pela arte. O percurso irregular do visitante tem rédeas


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frouxas. Aos poucos os elementos do trabalho se tornam aparentes. Sobre o visitante atuam a sedução de dispêndio ou recarregamento de uma outra natureza de temporalidade. Os limites não delineados entre vida e arte colocam em xeque a ideia de obra acabada e tornam difícil distinção da arte e da não arte. A arte interpenetra a vida de forma pungente, apresentada como trabalho, uma ficção real sujeita à tempestade , para lembrar o título deste trabalho. Essa natureza de instabilidades autopoiéticas ocupam lugares e processos artísticos e não artísticos. Marcam o site sujeito a constantes alterações. Tanto o artista está integrado à criação de seu trabalho como visitante, plantas e formas animais não são controladas por ele. A direção de trabalhos como Untilled parecem configurar, para Hantelmann, uma compreensão do mundo e da realidade semelhante à uma rede. O que significa dizer que se baseia na filosofia que coloca a relação objeto­objeto no mesmo terreno que as relações homem­objeto. Ou seja, tem como foco de atenção os processos da vida e a superação da antropocentrismo. O que faz cair por terra o sujeito moderno que concebe o mundo como estoque primordial de recursos. Segundo Hantelmann, Untilled, associa elementos através de processos biológicos ou sociais integrados a diferentes procedimentos em relação à compostagem implicada com a reprodução, disseminação e decadência. A arte também faz parte dessa associação. O trabalho de Huyghe dialoga com Beuys, Gonzalez­Foerster, Max Weber com toda a tradição da Land­art e até, pode­se afirmar, com o ready­made. Não como citação ou apropriação pós­moderna mas numa baixa intensidade entrelaçando os processos biológicos do cenário local. O trabalho sem forma estável, permeado pela contingência em sua estrutura mais interna, muda e se transforma literal e constantemente. Huyghe convive em um espaço complexo, inescrutável de vegetação, sem separações categóricas de natureza e cultura, de material animado e inanimado. O próprio artista fala da criação de uma forma biológica: “Eu não penso mais sobre a exposição, mas sim sobre uma forma biológica de criação.” Sabe­se que nem a arte acabou, nem os museus acabaram. Todavia, as mudanças na natureza da obra, ocorridas àquela altura, foram determinantes para a


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arte contemporânea e os modos de relação que ela estabelece com o espectador. Ecologicamente a ideia de compostura implica o processo de decomposição e ativa agentes invisíveis em um plano não hierárquico. Processos artísticos, orgânicos e biológicos, não remodelados por processos industriais, permanecem unidos pela 45

heterogeneidade visível parecem ser caros a Huyghe , referência importante para o capítulo onde examino as atmosferas da arte e expoente da tônica atmosférica em andamento nesta primeira década dos anos 2000. 1.4 Stimmung Sabe­se que a locução atmosfera deriva do grego ἀτμός . Seu prefixo atmós indica gás, névoa e vapor. São camadas de gases retidas pela força da gravidade na órbita do planeta Terra ‒ σφαῖρα, sphaira de esfera e globo. Acompanham os 46

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movimentos de rotação, translação, precessão dos equinócios e nutação com a função de controlar a temperatura, humidade e outras condições meteorológicas da terra e dos demais corpos celestes. Saindo do domínio da geofísica, atmosfera, no seu sentido figurado, está ligada a espaços da natureza e ambientes sociais , por exemplo. Assinala­se, nesse sentido, a atmosfera bucólica e pitoresca de um dado local ou clima pesado de certos lugares como sugere a expressão popular " há algo de podre no ar" indicando a existência de fatos obscuros ‒ político, social ou de outra ordem ‒ não revelados, que fedem . Também aparece associada às condições da água como indicativo de uma situação desfavorável, tal qual "o mar não está para peixe" e um "peixe fora d'água" evidenciando o sentimento de se estar pouco à vontade, desconfortável, mal acolhido. Nesse sentido, o intuito é exprimir determinada circunstância emocional. As expressões proferidas no cotidiano, como estar ou não "no clima" para ir a algum

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Explorados também em trabalhos como De­Extinction, 2016 ‒ um video de uma viagem dentro de uma pedra de âmbar em que uma rede de relações vivas foi interrompida de forma repentina e inusitada acontece ao mesmo tempo em que insetos vivos, descendentes desta mesma espécie se auto­organizam em seu novo habitat ‒ e After a Alife Ahead, 2017 . 46 Movimento de deslocamento do eixo da Terra, dura aproximadamente 26 mil anos para acontecer. 47 Pequena oscilação periódica do eixo da Terra, dura aproximadamente 18,6 anos para acontecer.


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lugar ou fazer qualquer coisa e bad mood assinalando que se estar de mau humor ou de baixo astral são, por conseguinte, tradutores de estados de espírito. Sob tal lógica , fica notório que a atmosfera ou clima de um jantar íntimo à luz de velas se diferencia, em muito, de um mesa de almoço familiar ou com amigos. É nitidamente conhecido que as cores, temperatura, iluminação, aromas, sonoridades do ambiente alteram apetite, inspiram confiança, lembranças, provocam interesse ou completo descaso. Nesses e em muitos outros casos, a atmosfera funciona como um termômetro regulador de comportamentos. Na linguagem cotidiana, o uso do sentido atmosfera se associa à névoa circundante ‒ ao ar ‒ como um espaço indutor de forças. Embora vago e pouco visível, atua de modo presente e palpável sobre nosso aparelho sensório. A atmosfera como aquilo que media fatores objetivos do meio ambiente com sentimentos estéticos de seres humanos. Percebe­se a dificuldade ou quase impossibilidade de estabelecer com precisão os seus limites fronteiriços. É lícito então afirmar que a atmosfera, esse algo difuso entre sujeito e objeto, relaciona fatores quase­objetivos das constelações do ambiente. Do ponto de vista sensorial, funciona como um espaço­tempo a respeito do qual se pode aferir algum tipo de caráter. Existe como produto da variação, de modo que não é um ser, no sentido de uma entidade, e ao mesmo tempo não existe sem que um sujeito a perceba. Portanto, não há situação totalmente desprovida de uma carga atmosférica. Nessa dinâmica, obtém­se uma experiência estética deslocando a atenção sobre “o que” algo representa para “como” algo está presente. Em última instância, além de ser experimentada a todo momento, a priori não prescinde da presença de uma obra de arte. Isso quer dizer que não existe objeto que não possa ser experimentado esteticamente. Uma condição climática, uma paisagem de nuvens densas, uma aurora boreal, odor proveniente de uma flor, uma noite de lua cheia, textos literários, sonoridades, tons de voz, tipos de músicas, peças de teatros ou até mesmo o aspecto visual de um prato podem nos acometer corporalmente de forma tão contundente esteticamente que jamais teremos explicações racionais precisas sobre o motivo pelos quais sorrimos, entristecemos, sentimos prazer ou mal estar.


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Mesmo sendo situações contingentes nas quais não se tem o menor domínio, podem ser agenciadas e consumidas. A produção de tais atmosferas protagoniza as montagens dos cenários de negociações comerciais, culturais e capitalista onde estamos imersos. Afinal, estamos diante da mercantilização de tudo. As esferas da cenografia, do marketing , da arquitetura e do design lidam francamente com a problemática da criação de atmosferas para fazer com que pessoas se sintam dessa ou daquela maneira. Destarte, o centro do interesse deste trabalho a atmosfera é observada como uma qualidade de impressão sentimental apreendida a partir do encontro sensível com o mundo. Tal noção nunca foi estranha ao discurso do trabalho artístico. Ao contrário, frequentemente é abordada sob a óptica do cinema ‒ quando se comenta, por exemplo, um filme ‒ ou pela via da arte através de textos e catálogos 48

descrevendo o clima de determinada exposição. Quando se versa sobre algo que escapa ao domínio da linguagem na sua condição de explicação racional, ou ao entendimento direto, é comum se adotar o uso do termo “atmosfera”. Afirma­se, paradoxal e concomitantemente, tudo e nada. No fundo, não se oferece esclarecimento sobre a natureza do filme em questão ou da obra. Numa época em que se assiste ao triunfo da estética e às transformações da arte, pode­se identificar, com Gumbrecht, algumas condições básicas para se recepcionar e produzir a experiência estética pela via da percepção da atmosfera. A corporalidade extra­intelectual não é secundária nem deve ser submetida à racionalidade ou se aliar à qualquer pragmatismo. Afinal, propriedades sensíveis ou "aparelhos" primitivos de aferição das atmosferas ‒ na condição de qualidades emocionais, sinestésicas e sensório­motora ‒ sobrevém à distinção tardia entre os objetos e os significados atribuídos à atividade humana. Para Gumbrecht, não há cultura ou época em que a questão das atmosferas e 49

dos ambientes estejam ausentes" . Adquirindo a condição de categoria universal, torna­se possível identificar o stimmung característico de cada situação, obra ou texto. A percepção pela via do stimmung na perspectiva gumbrechtiana parece,

48 49

Tratado aqui como atmosfera. GUMBRECHT, 2014a, p. 20.


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desse modo, holística, afetiva, sensorial e emocional. Nada muito concreto mas algo cheio de força. O uso e sentido do vocábulo stimmung se apresenta em diferentes camadas de significados e para eles convergem sentidos etimológicos que variam de acordo com a perspectiva adotada pelos mais diversos filósofos e cientistas sociais ao longo dos séculos XVIII e XX. Contudo, cabe ressaltar: o interesse aqui não é aprofundar o levantamento histórico do termo outrossim, observar o conceito pela vertente de Gumbrecht para colher as especificidades das atmosferas dos trabalhos de arte, captando a maneira como seus diferentes aspectos nos afetam. Gumbrecht recorre, nessa via, a um conjunto de palavras em outros idiomas. No nível mais imediato, faz uma associação com os termos mood e climate do inglês. Em português, o autor prefere falar em termos de clima, não no sentido das condições climáticas mas como o estado provocado por algum evento. No sentido vigente, o termo é vertido como atmosfera ou circunscrição de um campo de visão e concomitantemente, refere­se àquilo que afeta o sujeito, assim como ao modo como esse sujeito se sente afetado, diluindo a dicotomia tradicional entre sujeito e objeto. Em outros termos, experimenta­se o stimmung sobre os corpos auto­reflexivamente. Reitera­se a acepção utilizada nesta tese. Gumbrecht lembra, ao citar a expressão de Tony Morrison It's like being touch from inside, que se é tocado de dentro . O impacto material sobre o corpo se relaciona e altera a psique, sempre percebida de modo diferenciado e individualizado. Atingindo o corpo em determinada direção, o mundo se altera e a maneira como o este mesmo corpo "sente" também transmuta. Uma situação paradoxal se instala e indica o modo como os toques ligeiros do exterior físico produzem ou despertam reações psíquicas. Quando se vive o stimmung reconhece­se a simultaneidade da percepção e da transformação psíquica. Cada um é forçado a se distanciar das certezas da realidade observável e definível, abandonando­se ao inefável. Sob esta ótica, o autor relaciona alguns procedimentos auxiliares para que se chegue alcançar as atmosferas na recepção artística. Identifica assim atitudes que


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contribuem para a sintonização entre os observadores, seus corpos e as forças operantes na experiência estética, tendo em vista as atmosferas disparadoras. Dessa maneira, deve­se ter em mente que, ao se deparar com uma produção artística, sujeita­se corporalmente a uma gama incalculável de forças que afetam a disposição física dos corpos. A partir daí, Gumbrecht chama a atenção para o que define como advento da epifania no âmbito da experiência estética, tendo em vista três condições fundamentais: a primeira delas diz respeito ao fato de que nunca se sabe quando ocorrerá. Em segundo lugar, não se tem noção de sua intensidade. Não há, diz Gumbrecht, dois relâmpagos com a mesma forma, nem duas interpretações de orquestra, com a mesma composição, que ocorram exatamente da mesma maneira 50

. Por fim, deve­se ter em mente que é um evento que se desfaz da mesma maneira

como surge. Logo, existe a possibilidade de uma mudança de ar alterar a disposição do espírito do mergulhador. A epifania nada mais é que a possibilidade de se viver experiências involuntárias vitais. O funcionamento dos corpos, a atividade dos objetos e situações, artísticas ou não, funcionam como espécies de projéteis dentro dos quais residem forças latentes, virtualidades em atividade que podem ser disparadas a qualquer instante, forças auráticas ou êxtases. Atuam sobre os viventes situações caóticas dotadas de movimentos internos próprios e ininterruptos raios, correntes, fluxos provindos de camadas desconhecidas o escuro. Para além da epifania, o filósofo alemão se atém ao estado de calma e compostura, tomando de Heidegger, como condições indispensáveis à experiência 51

estética. Quando ressalta a necessidade de se ficar quieto por um momento , Gumbrecht propõe uma alternativa à metafísica visando à construção de uma epistemologia cotidiana . Caracterizada como pensar meditativo que se contrapõe ao pensamento calculista e técnico, a calma e a compostura valorizam a condição de se deixar à deriva: não interpretar, não controlar, não colar um conceito. Deixar­se

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GUMBRECHT, 2010, p. 142. Ficar quieto por um momento é não ter a necessidade de produzir novos conceitos o tempo todo e de transformar a mim mesma ainda uma vez. 51


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apenas se desvelar . Pode­se dizer também que é seguir em um silêncio suficiente para inocular o crepitar do fogo. Ou ainda, a habilidade de alimentar a potência criativa, sempre inédita, lisa, incapturável no a priori e intensidade pura. Vê­la brotar, individualizar­se, despertar em volumes intensivos subsequentes. O deixar­se levar pela calma e compostura tem afinidade direta com o aspecto lúdico do jogo ao promover, segundo Gumbrecht, interações por meio das quais os corpos experimentam encontros breves e leves com o entorno material. São afetados sem que se possa aferir uma intencionalidade ou uma motivação consciente do porquê. O jogo envolve autonomia, calma e serenidade, possibilitando a imaginação ser liberada através de uma interação em que não há objetivo predeterminado e tampouco demanda uma estratégia a ser seguida. Trata­se de uma aposta do stimmung como uma possibilidade de recepção estética mais conectada com as impressões sensíveis que com a qualidade racional da interpretação. Sem ignorá­la, o objetivo é resgatar a vitalidade e um tipo de aproximação estética na qual a concentração não se engesse na tensão de um esforço. Isso implica em se colocar disponível a fim de deixar a consciência mais aberta à imaginação. Outra aproximação que o autor propõe para stimmung é com as palavras germânicas stimme – voz ou impacto oferecido por essa sonoridade – e stimmen. Nesse último caso, sua semântica se aproxima do verbo stimmem ou do substantivo stimme enquanto ação de acertar, corrigir ou afinar um instrumento musical. O interesse de Gumbrecht em relacionar o termo à afinação de instrumento parece possibilitar uma melhor compreensão da atuação de atmosfera sobre nossos sentidos. A experiência musical se impõe aos corpos como sensivelmente atmosférica. A duração da escuta promove deslocamentos perceptivos capazes de despertar sensações inusitadas e incitar a criação de lugares imaginados para além da concretude física do corpo. Escuta­se, não apenas com ouvido, antes, as

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E tentativa de construir uma epistemologia cotidiana seria um pré­requisito para deixar acontecer o desvelamento do ser o que significa o mundo sem interpretações, sem significados, sem linhas divisórias, um estado de simultaneidade tão absoluto que absorve inclusive a simultaneidade, a distinção das coisas presentes e ausentes, o que seria para Gumbrecht paradoxal, talvez uma impossibilidade, dado que experimentar algo sempre se refere a uma relação de base conceitual com o mundo ­ de forma que Ser, como ausência de conceitos seria impossível de experimentar.


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impressões sonoras atuam sobre as terminações nervosas do corpo de forma tão ampla que em muitas ocasiões não se pode assimilar racionalmente o que se passa. Muitas vezes atribuídas ao caráter espiritual e metafísico, alcança­se apenas uma alteração íntima ou singular relacionada com forças do exterior. Contudo, não se consegue elaborar em que exatamente consiste, seja em termos de volume de qualidade, seja de intensidade ofertadas por ela. Tais ondas ou frequências sonoras, que se abatem sobre os corpos, são experimentadas mais como "paisagem sonora" e dela não se pode tirar uma síntese imagética. Nesse sentido, cabe ressaltar que tal paisagem sonora, interpretada à luz do conceito de 53

soundscape criado por Schafer , é formada por eventos ouvidos e não por objetos vistos. Pode­se avaliar e interpretar uma cidade pela sua construção arquitetônica, avaliar ou inferir comentários interpretativos ou racionais sobre qualquer imagem mas não se tem condições de mensurar os decibéis ou o quanto nível de ruído ambiente pode ter aumentado durante uma determinada época ou num período de tempo comparável, muito menos fechar as pálpebras dos ouvidos. Desse modo, a utilização do conceito de "paisagem sonora" deve ser interpretada como um alicerce que ajuda a entender as formas pelas quais padrões auditivos afetam, modificam e simultaneamente recebem influência da atividade humana em seu aspecto mais subjetivo. O que acaba por tangenciar as propriedades físicas do som e o modo como esse último é interpretado pelo cérebro humano. Em última instância, o foco incide nos estudos que versam sobre como os 54

sons afetam e alteram o comportamento humano em sua dinâmica social . No caso em particular, como as artes, em especial a música, expandem a imaginação e a reflexão psíquica.

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Raymond Murray Schafer compositor canadense de renome internacional, fundou e dirige em Vancouver o projeto sobre a "paisagem sonora" em todo o mundo. Até 1975, ele foi professor de comunicações na Universidade Simon Fraser, na Colúmbia Britânica (Canadá). 54 O investimento analítico a respeito da paisagem sonora do mundo demonstra, por exemplo, a ação negativa dos ruídos causada pelos excessos sonoros. Envolvido com o crescimento do sons de alta potência, o ouvido humano, fatigado, não pode mais perceber ou distinguir as sonoridades. A apreciação total do ambiente acústico e o que acontece com o homem quando as frequências sonoras e rítmicas de seus ambientes se transformam são o alvo do estudo da soundscape e revelam o vínculo objetivo e subjetivo da relação atmosférica que se estabelece entre o homem e os sons.


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A paisagem sonora consiste, por essa via, em eventos que sobrepujam a aparelhagem de escuta à da visualidade. O ouvido promove um movimento para o interior do ser, espécie de recolhimento de forma descontraída e desinteressada. Acredita­se, assim como se intui a respeito da afinação vinda do stimmung , que com o apoio do ouvido, órgão receptor sensorial, talvez se obtenha uma clareza perceptiva menos viciada ou implicada com a racionalidade ou interpretação. Ao acompanhar o conhecimento de Schafer sobre esse tipo de percepção se nota que 55

"ouvir é uma maneira de tocar à distância a intimidade" e que as frequências mais baixas do som audível, cerca de 20 hertz, fundem­se com as vibrações táteis sempre que um grupo de pessoas se reúne para ouvir algo especial. Abrir os ouvidos e estimular a clariaudiência talvez possa ajudar a relativizar a importância do olhar e da inteligência devolvendo à audição algo de seu sentido primevo, presente desde a ocupação flutuante no interior do útero. Ou, ao menos, estabelecer um acordo claro entre audiência e vidência numa afinação diferencial onde os olhos podem ser também ouvidos para perceber o som em sua constante vibração e ressonância com tudo que se manifesta ao nosso redor. Jaz, os ouvidos alcançam a frequência da luz e vislumbram imagens. Tensão da afinação das cordas esticadas onde a frequência da percepção se expande e encontra a sintonia entre luz e som. Consequentemente, encontrar formas intensas e íntimas para abordar a arte em perspectiva que se aproxima do modo como somos contaminados pela música, suspende o paradigma da representação e interpretação imediata. Uma duração adquire uma carga atmosférica, expressa o genius loci. Por fim, cabe mais uma vez sinalizar que tal conceituação tem como premissa a "cultura de presença" enquanto resgate da relação material e espacial com o 56

mundo das coisas. Esta perspectiva é reiterada por Gernot Böhme sob o postulado

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SCHAFER, 1997, p.29. Filósofo alemão pioneiro no estudo da relação entre cultura e meio ambiente. Gernot Böhme tem contribuído para a filosofia da ciência, a teoria do tempo, a estética, a ética e a antropologia filosófica. Em seu livro Fur eine ökologische Naturästhetik ,# o autor apela pela primeira vez para uma reformulação da estética a partir da ecologia, e assim abre um campo inteiramente distinto da tradição da estética que segue de Kant até Adorno e Lyotard. Para maiores detalhes, ver Böhme, 2017. 56


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de uma nova estética de natureza ecológica na qual o conceito de atmosfera igualmente se erige enquanto "status intermediário entre sujeito e objeto, a partir de um evento de fronteira por meio do qual o corpo é percebido como parte 57

indissociável de nossa existência" . Contudo, a nova estética teorizada pelo viés da ecologia sob a óptica de Böhme deve ser entendida nos termos de uma conexão entre qualidades ambientais e estados humanos. Segundo tal concepção, pensar a estética apoiada nessa correlação por meio de um tensionamento de suas imediações, é refletir sobre a atmosfera. A partir daí, Böhme contorna três fatores que irão caracterizar o que há de inédito nessa nova estética proposta. O primeiro fator diz respeito à revisão da função social da estética segundo o juízo de gosto kantiano, que facilita a conversação sobre as obras de arte. Essa estética fornece vocabulário para a história e para a crítica de arte baseada no julgamento. O que o leva a afirmar que estética se tornou uma maneira de encontrar justificativa para uma resposta positiva ou negativa em relação a algo. O segundo a ser considerado é o predomínio da interpretação por meio de esquemas de linguagem e de comunicação, levando à estética ser apresentada sob 58

o título geral de “linguagens da arte . Um domínio, critica Böhme, da linguagem e da semiótica na teoria estética, que acaba dando precedência à literatura sobre outros tipos de arte. Contudo, não é auto­evidente, declara Böhme, que um artista deseje comunicar algo para um possível observador, nem tampouco que o trabalho da arte seja um signo. Partindo dessa premissa, o filósofo alemão diz, antes de tudo, que uma obra de arte possui realidade própria. Sinais icônicos não reproduzem o objeto, mas indicam algumas condições para sua percepção. Uma pintura, em certo sentido, é o que ela mesma representa. Mais exatamente, o representado está presente na e através da pintura. É claro, continua Böhme, que também podemos ler e interpretar tal pintura. Não obstante, isso significa recortar ou até mesmo negar a experiência da presença do representado. Ou seja, sublimar a atmosfera da pintura.

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BÖHME, 1993, p.36. GOODMAN, 1968.


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No terceiro fator, Böhme rejeita a rapidez com que a estética se torna uma teoria da arte de orientação normativa ao ser utilizada como pano de fundo para analisar o trabalho artístico sob os arautos de uma teoria que classifica a obra. Tal mecanismo se dá através de um julgamento estético, nos limites de uma obra de arte real, autêntica, verdadeira, alta, de distinção, manifesto no conceito de aura introduzido por Benjamin, em seu ensaio “ A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica ”. Na perspectiva benjaminiana, o intuito é identificar a atmosfera de distância e respeito que envolve obras de arte originais, diferenciando­as de suas reproduções técnicas de forma a prover significados para a crítica de arte. Na sequência, Böhme aponta para o fracasso das vanguardas artísticas em 59

tentar eliminar a aura da obra de arte através da reunião entre arte e vida . Salienta que elas conseguiram apenas deixar evidente o fato de uma obra de arte não poder ser entendida única e exclusivamente por meio de suas qualidades concretas. No contexto em questão, a pretensa autonomia das vanguardas é entendida meramente como uma forma específica de obra de arte na qual a mediação do encontro entre obra e observador e a decorrente resposta à atmosfera produzida ocorre de maneira afastada de seu contexto de ação. Isto é, em museus e demais espaços expositivos. Outro aspecto da sua crítica repousa sobre o fato de que as atmosferas podem ser produzidas objetivamente com ajuda de arranjos de iluminação, sonoridades, controle de temperatura. Ajustes que corroboram para fazer com que espaços e seus objetos possam ser percebidos de forma orientada para sua mercantilização através da importância crescente do design na publicidade, no marketing , urbanismo e na decoração de ambientes. Nesse contexto, Böhme considera o design como uma fenomenologia poética, enquanto arte de encenação de mercadorias com vistas a ajudar indivíduos ou grupos a realizar seus próprios estilos de vida. A teoria estética, continua o autor, tem seu pano de fundo material à medida que espelha a verdadeira teatralização da vida por intermédio de encenação

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Bohme aborda a reunião entre arte e vida através dos exemplos como ready­mades de Duchamp, o desencantamento do teatro de Brecht e a abertura para a arte pop.


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política, eventos esportivos, das cidades, de mercadorias, de personalidades e de nós mesmos60. Com base nesta crítica, Böhme propõe o conceito de atmosfera concebida em termos de ecologia enquanto resposta a essa progressiva estetização da realidade. Trata­se, nesse sentido, de um entendimento da atmosfera nos termos de uma síntese, uma vez que passa a designar tanto o conceito fundamental de uma nova estética quanto o seu objeto central de cognição. Ou seja, "é a realidade do percebido como a esfera de sua presença e a realidade do percebedor, na medida em que percebe a atmosfera que está corporalmente presente de uma determinada 61

maneira". Resumidamente, a experiência perceptiva envolve a presença de pessoas, objetos e ambientes. Com efeito, diz Böhme, "é a forma como alguém se encontra corporalmente presente para alguém ou alguma coisa ou para algum estado corporal em um ambiente"62. Destarte, a percepção nos termos de uma nova estética apresentada por Böhme é uma ferramenta sobre a qual eu me apoio para apreender o objeto artístico com a atenção voltada ao stimmung. Delineiam­se, por conseguinte, cenas para identificar como o ambiente influencia, envolve e sintoniza os corpos. Identificar as cadências e os compassos provocadores que se incitam sobre os corpos, em sua relação polirrítmica com a atmosfera, pode fornecer um ferramental que corrobore com a forma por meio da qual nos aproximamos da arte. Nesse sentido, postula­se ainda que a noção de stimmung reflete o modo como determinado conjunto de forças age sobre o sistema perceptivo, sensorial e cognitivo modulando nossas disposições afetivas. Quero, outrossim, observar as especificidades das atmosferas dos trabalhos, captar a maneira como diferentes aspectos das obras de arte nos afetam e participam do processo de produção de presença. Checar, se efetivamente posso 60

BÖHME, 2017. Idem , p.20 Tradução livre. Atmosphere designates both the fundamental concept of a new aesthetics and its central object of cognition. Atmosphere is the common reality of the perceiver and the perceived. It is the reality of the perceived as the sphere of its presence and the reality of the perceiver, insofar as in sensing the atmosphere she is bodily present in a certain way. This synthetic function of atmosphere is at the same time the legitimation of the particular forms of speech in which an evening is called melancholy or a garden serene. 62 Ibidem , p. 16. 61


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criar uma espécie de classificação das obras vinculadas a um ou outro tipo de atmosfera ao invés de privilegiar suas qualidades interpretativas ou tecnológicas. Depois de observar a atmosfera da arte na qual esse trabalho se insere e apropriada do conceito de stimmung encaminho o próximo capítulo. Nele abordo a estação de escuta e espreita e seus dispositivos. A partir do aporte teórico das micro percepções e do encadeamento lógico da intuição postulado por Bergson verso sobre a aparelhagem de escuta e os instrumentos de espreita, estabelecendo um conjunto de correlações entre eles. Embora sejam questões primordiais para o desenvolvimento da sistematização da percepção estética nesse trabalho, vale ressaltar que acredito na existência de pontos de vistas múltiplos para a apreensão da experiência estética.


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Capítulo II Estação de escuta e espreita a fumaça das velas de carnaval é a verdadeira atmosfera da arte Friedrich Nietzsche

Este capítulo tem por objetivo apresentar os balizadores que nortearão a investigação que se pretende realizar sobre a possibilidade de perceber a emanação de tipos de atmosferas, tendo em vista certas obras de arte denominadas por mim como obras clima . Para tanto, elejo a estação de escuta e espreita como observatório por meio do qual exploro os vários cômodos de um antigo casarão abandonado estabelecendo uma articulação entre experiências artísticas, memória e o próprio local. O que exige, por sua vez, um monitoramento constante da ambiência da região e da produção de grupo de trabalhos gerado a partir da escuta e espreita da pletora do ambiente encoberto. estação de escuta e espreita se configura então pelo anacronismo oriundo de sonoridades diversas. A dinâmica que se pretende estabelecer entre os achados e memórias do antigo casarão abandonado ‒ seus intervalos de silêncios ou ruídos que urdem tudo a sua volta, os recorrentes cupins e 63

larvas ‒ é claramente contaminada pelo trabalho Histereses . Recebe também 64

emanações da série americana de televisão True detective de Nic Pizzolatto, 2014 , tanto em termos de instalações quanto nos procedimentos de reunião de pistas. Outra referência é o filme alemão A vida dos outros (“Leben Der Anderen, Das”, 2006, Alemanha) no qual se percebe que quem escuta também se contamina com aquilo que ouve e imagina. Nessa perspectiva, a iniciativa sensória e memorialística caminha no esforço de criar uma instalação através do preenchimento deliberado de lacunas com suposições mais ou menos plausíveis recolhidas da zona entre consciente e inconsciente. São, por assim dizer, fragmentos de memória captados nas 63

Consulte a nota de rodapé 2 para obter obter maior explicação sobre o trabalho Histereses. Durante dezessete anos, as vidas de dois detetives, Rust Cohle (Matthew McConaughey) e Martin Hart (Woody Harrelson), se entrelaçam para dar conta da caçada a um serial killer no estado de Louisiana. 64


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intensidades locais, nas narrativas de contadores de histórias, que carregam a transmissibilidade de quase romance ou apenas um provérbio. Ancoradas em fatos reais ou não, as instalações enquanto convite a um jogo se estabelece. O intuito é avançar nos desvãos onde se engastam fósseis da memória na qualidade de verdadeiros e fabulados achados arqueoafetivos . Tal equação se dá no processo de acionar um conjunto de dispositivos entendidos aqui como um aparato que, de algum modo, abre campo para possíveis discursos, condutas, opiniões e gestos, como: capturar, orientar, determinar, 65

interceptar, modelar, controlar e assegurar . Sendo assim, nessa estação opero com os seguintes dispositivos: a mesa de montagem, o aparelho sensório motor e a intuição, as pequenas percepções, a aparelhagem de escuta e os instrumentos de espreita, no intuito de identificar o Stimmung seja na recepção de trabalhos instalativos, seja na produção do volume de texto, imagens e arranjos dentro da própria estação. Entende­se, via de regra, que uma arquitetura como a de uma casa centenária seja impregnada de carga e vivências expressas apenas por intermédio de sua materialidade. Diverge­se de tal idéia, à medida que o objeto observado nesta pesquisa se refere ao entrecruzamento da estrutura de concreto armado, em temos da longevidade característica da edificação, e os seus agenciamentos. Em última instância, privilegia­se o antigo casarão abandonado enquanto estação não apenas nos termos de unidade independente e autônoma, mas também a partir dos frequentadores atuais e ex­viventes, ainda que circulem por ele de forma espectral. Destarte, não há como pensar essa estação independente do contato com sua vizinhança ou fora de sua circunstância histórica, tanto a oficialmente documentada quanto a narrada através das lendas populares. Portanto, contorno algumas impressões externas extraídas da configuração arquitetônica de sua redondeza, das condições geopolíticas do lugar, das marcas históricas de sua ocupação.

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AGAMBEN, 2005, p.13.


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Localizada em uma área que pertence administrativamente à região do Grande Méier e faz divisa com os bairros do Engenho de Dentro, Piedade e Encantado, a estação erguida no sopé da Serra dos Pretos Forros carrega consigo todo o peso da invisibilidade. Não só está coberta por florestas que a encobrem e escondem os caminhos que lhes dão acesso, mas também o invólucro geopolítico marcam e demarcam o lugar onde está situada como socialmente invisível. Envolta por uma cadeia de 11 morros que a circundam, justo em frente à 66

estação avista­se as duas pistas da Linha Amarela, aberta em 1997 , o largo do pedágio e a sede da concessionária LAMSA, administradora da via expressa que liga os bairros do centro, zona norte e oeste. Outra grande presença são as comunidades. Fazendo fronteira com a estação , encontram­se o complexo da Fazendinha e a Granja Paulo de Medeiros, que crescem em velocidade vertiginosa. A comunidade do dezoito, localizada do outro lado da via expressa, se destaca pela beleza da formação rochosa de suas escarpas, pelo letreiro luminoso onde se lê "CREIO EM DEUS" e pelo conjunto dos casebres que se alastram morro acima. Na subida da rua que leva à estação , observa­se a movimentação frequente do Presídio Ary Franco, também conhecido como "Água Santa". Desde sua inauguração, em 1974, o complexo prisional exibe, em sua cercania, filas de pessoas. Mulheres, em sua maioria, aguardam horário da visitação e, muitas vezes, pernoitam em dormitórios precários do outro lado da rua ou ficam ao relento, sentadas em suas cadeiras de praia. Antes de se atravessar a ponte que dá acesso à linha amarela rumo à estação , lê­se em uma das paredes da penitenciária as inscrições: "Deus faz milagres nesse lugar". Ao passar pelo presídio, seguindo a rota onde caminhões e pessoas circulam diariamente, esbarra­se com uma pedreira desativada, em cuja área seria construído Parque Ecológico da Água Santa, por meio da LEI Nº 3035/2007 que nunca saiu do papel . Nesse terreno, funciona hoje empresa responsável pelo aterramento do local e opera diariamente com caçambas de entulhos. Em muitas ocorrência, vê­se

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A área foi cortada pela Linha Amarela, o que mudou sobremaneira a paisagem, inaugurada em 1997, lá estando a sua praça de pedágio e o acesso ao túnel engenheiro Raymundo de Paula Soares, ou túnel da Covanca, um dos maiores túneis urbanos do mundo, com extensão de 2.187 metros.


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perfiladas ‒ acima do antigo lago em aterramento ‒ caçambas com a inscrição em letras manuscritas "Terra Prometida". Outros dois vizinhos igualmente relevantes: o Hospital Pedro II e o Instituto Nise da Silveira, que sobrevivem nas instalações onde outrora funcionou a Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro, datada de 1911 e renomeada algumas vezes pelo poder público local. Ainda por essas bandas limítrofes, destaco a estação de 67

trem do Méier inaugurada a por Dom Pedro II no final do século XIX , localizada no bairro do Engenho de Dentro. A presença do verde abraçando uma área correspondente a 10,3 hectares de Mata Atlântica, não raro consegue encobrir um eventual desconforto que pode se 68

abater sobre os corpos. O avanço da favelização que cresce em suas encostas e estende­se ao longo do complexo de túneis da Linha Amarela promove doses de ansiedade, fazendo crescer os receios que povoam a realidade e conformam o imaginário da redondeza, assim como de todo Rio de Janeiro, de maneira geral. Dentre as peculiaridades de Água Santa, uma delas se refere ao movimento das águas do Rio Faria­Timbó que entrecorta o referido bairro. O Rio Faria, hoje seco, nasce na Serra dos Pretos Forros e se junta ao Timbó, formando o Rio Faria­Timbó. Com a vertente na Serra do Juramento, deságua no Canal do Cunha de onde as águas seguem para a Baía de Guanabara. Era limpo, navegável e,

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No final do século XIX, a Estrada de Ferro Dom Pedro II vivia um momento de plena expansão. Para dar conta do aumento do fluxo de passageiros e de cargas na ferrovia, foram criadas novas estações e, consequentemente, a companhia precisou construir uma nova oficina para reparos e construção dos vagões, trens e equipamentos necessários à operação ferroviária. O terreno escolhido foi o da Fazenda Engenho de Dentro, no Engenho Novo, na Freguesia de Inhaúma, que, depois de pouco mais de um ano de obras, passou a sediar o principal complexo de Oficinas de Locomoção, inaugurado oficialmente em dezembro de 1871. Erguida para atender a quatro mil quilômetros de vias, setecentas locomotivas e cinco mil carros de passageiros e vagões, em 1881, a rede de oficinas era considerada a mais importante da América Latina e servia também a outros estados. Disponível em <https://oglobo.globo.com/rio/design­rio/historias­do­engenho­de­dentro­antigas­oficinas­de­trem­vao­ ganhar­vida­nova­12962002#ixzz4yVUAtiDD stest>, acesso em 23/0/2018. 68 O bairro sofre com o processo de favelização que ainda se apresenta de forma moderada. São 10 áreas consideradas como favelas de acordo com o IBGE. As comunidades do Dezoito, Engenheiro Clóvis Daudt, Fazendinha, Granja Paulo de Medeiros, Serra do Padilha e Várzea que estão localizadas dentro dos limites do bairro; e Beco do Vitorino, Cardoso de Mesquita e Travessa Bernardo, situadas entre o bairro da Água Santa e Encantado. A área da serra dos Pretos Forros também está sujeita ao processo de favelização como o observado, por exemplo, nas áreas próximas ao Clube Várzea.


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segundo os velhos escravos de Inhaúma, teria sido um canal aberto pelos fazendeiros locais para irrigar suas terras . Na cadência desse fluxo de água pura e cristalina, um escravo recém alforriado, que morava nos entornos da Serra Ignácio Dias ‒ a atual Serra dos 69

Pretos Forros ‒ encontrou uma fonte de água mineral de qualidade. Bebeu. Achou­a refrescante e logo encontrou boa disposição, pois a nascente da qual brotava a água tranquilizava seu esgotamento. Havia encontrado alívio naquele sítio, que até hoje não o celebrou como achador. Maravilhado com tão bom resultado, Domingo Camões miticamente 70

conhecido como Beiçola , constrói um arremedo de fonte. Pouco a pouco, vai transmitindo a notícia acerca dos seus benefícios e passa a se dedicar à venda e distribuição do precioso líquido curador de mazelas. Gradativamente essa fonte d’água conhecida nos arredores como “Água Santa” passa a dar nome ao bairro . De lá para cá, esse pedaço de terra pertencente a escravos alforriados, e de onde há cem anos se envasam garrafas com a nau portuguesa estampada no rótulo, passou por muitos os outros donos até finalmente se chegar aos proprietários devidamente documentados sob os registros da lei. Há tempos, a água pura, intocada, ingênua e limpa, foi colocada em exponencial exploração por meio de uma linha de produção, com vistas à venda em larga escala. Da escura garrafa de vidro reciclada ao insustentável plástico que a embala ‒ tanto o copinho de 200ml, quanto a garrafa de 500ml ou o garrafão de 20 litros ‒ emerge o rótulo que estampa o colonizador rumo à evangelização da lógica do capital. Nesse cenário, já se sabe que água per se não cura mais nem sede nem mazelas. O mítico Beiçola, aparece agora como fantasma: metade registro histórico, metade ficção e 100% invenção. À água se agrega uma marca que sequer sugere

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De acordo com o Portal Voz de Água Santa, Robson Letiere no livro Rio Bairros: uma breve história dos bairros cariocas ‒ de A a Z , o bairro de Água Santa era estritamente de chácaras e uma das chácaras era do doutor Assis Carneiro. Uma das ruas do bairro leva esse nome. 70 “ Os moços teem por costume, desde cedo, furar o beiço inferior ácima do mento, trazendo nelle certo osso bem polido, alvo como o marfim, afeiçoado á moda das carrapetas; e como a parte em ponta resahe uma pollegada mais ou menos, e fica o osso preso por um ressalto entre o beiço e a gengiva, tiram­no elles e põem­no quando o querem. ” (LERY, 1926, p.71) O que indica que não é apenas de negros escravizados ou forros que se faz um Beiçola, mas de nativos de diferentes etnias.


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seu nome, mas o da terra conquistada pelos desbravadores da Santa Cruz . Gradualmente, a sua extração ‒ complexo físico, poético, simbólico e geográfico ‒ se transforma em gerador de conflitos que garantem a disputa de trabalho, a degradação física do espaço, a deterioração das fontes e à escassez da água. Lado a lado, caminham os processos a partir dos quais o valor de uso vai sendo substituído pelo valor de troca, escancarando a violência nua e crua que pulsa pelos nossos mais variados Brasis. Não bastasse a força do topônimo Água Santa, cargas espiritualizadas de proteção efluem por intervenção das entidades locais. Com sorte, o visitante que acessa a estação consegue entrar sintonia com o local e perceber o stimmung da localidade ao percorrer o terreno. Os aromas da mata, as mensagens olfativas das águas remanescentes que escorrem pela pedras dos rios, o ruído da água provocado pelo contato pela tubulação metálica ‒ fazendo a água descer até as caixas d'água ‒ podem ser elementos suficientes para produção de alguma epifania, a despeito das tensões provocadas pelo alvoroço ininterrupto da passagem do trânsito cruzando a via expressa. 2.1 Aparelhagem de escuta Na estação , a audição ‒ em sua complexa forma de percepção ‒ envolve o corpo como uma membrana porosa e não apenas o ouvido interno e externo. Aqui

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As únicas águas descobertas no século XIX de que se tem notícia no Rio de Janeiro foram a Salutaris e a Santa Cruz. A primeira fonte hidromineral do Estado teve sua descoberta pelo português Manoel Marques Lira, no ano de 1887, na localidade chamada Encruzilhada, no município de Paraíba do Sul. Essa água começou a ser engarrafada em 1898, era chamada de salutar, o que deu origem a sua marca – Salutaris. A segunda água a ser descoberta e envasada, foi a Santa Cruz, descoberta entre os anos de 1888 e 1899. O engarrafamento desta iniciou­se em 1909 com a marca Água Santa Cruz (Martins, A. M. et all., 2002).Todas as demais foram descobertas nos séculos XX e XXI. De 1996 a 2001, o interesse pela água mineral no Estado do Rio de Janeiro cresce vertiginosamente. De 47 autorizações de pesquisa concedidas pelo DNPM no Estado em 1996, chega­se a 2001, com 410 autorizações, demonstrando um crescimento de 772% (Martins, A. M. et all, 2002). A água proveniente de aquíferos fraturados no Sudeste brasileiro tem por característica principal baixo resíduo de evaporação. O Estado do Rio de Janeiro é constituído, na maior parte de seu território, por rochas cristalinas que sofreram intenso tectonismo, o que permite a ocorrência de inúmeras falhas e fraturas, que favorecem tanto o armazenamento, quanto a transmissão de água, em quantidade suficiente, para a formação dos aquíferos fraturados. O resíduo baixo não atribui qualquer sabor à maioria das águas provenientes de aquíferos fraturados do Estado do Rio de Janeiro, proporcionando dessa forma, uma reserva de água subterrânea de elevado interesse para a indústria de água mineral. A maior produção de água mineral é proveniente de captação por fontes e não por poços tubulares profundos. No entanto, prevê­se o crescimento da opção “poço” ao longo dos anos.


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ela não entra em contraposição aos outros sentidos mas como membrana perceptiva, um trans , um limiar acionado pelo olhar que espreita. O corpo todo escuta, essa é a aparelhagem. O "olho escuta, saboreia, toca, 72

acaricia" e apresenta o contemporâneo pela percepção acústica. A aparelhagem dos meus ouvidos e de colaboradores se preparam para captura e triagem das incisões rítmicas, do grito, do ruído irregular, das narrativas insólitas, do sussurro dos mitos e dos fantasmas. Escuta cuja forma se dá a partir do confuso e indiferenciado, sem a compreensão antecedendo as impressões sensíveis do ouvido. Ou melhor, escuta que acompanha o movimento geral da sonoridade da fala, dos fragmentos ruidosos e assiste à chegada das imagens que saltam dos caminhos do pensamento. Esse é o tipo de escuta criada no desenvolver de uma experiência na qual se ouve reflexivamente. Coloca­se à disposição do que se ouve para notar o entrelaçamento das camadas de sonoridades ao lado de seu espaço negativo, o silêncio . Para que se ouça o silêncio, há de se obedecer a certas regras de lógica e de retórica. É preciso ouvir os ruídos ocos, o eco do ar, a respiração e o murmúrio da memórias em seu pleno silêncio. Ouvir o silêncio é escutar, das significações mudas da língua, o que não poderá ressoar como um som. Auscultar a instantaneidade do som imediato, perceber o alerta, captar os signos e atentar o que se desenvolve à medida em que se escuta. O relevante é apropriação sonora do espaço, sua conformação através dos sons peculiares de uma habitação: o ranger das portas, o som dos canos, o pingar das torneiras, a constância do ruído do trânsito. Escuta que evoca audição, orelha, escuta pegadas, discerne fragmentos não palpáveis, como um clima ou um perfume. Os rins, essas orelhas do corpo, como os pés, permitem palmilhar no oculto do corpo o território movediço de um sítio arqueológico imaginário. Escutas ‒ nesse caso também rastros, vestígios, traços, pistas ‒ geradoras de fluxos de conexões possíveis, sondam os elementos a partir dos quais pode­se remontar, via narrativas, novos espaços e experiências vividas.

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GIL, 2005.


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2.2 Instrumentos de espreita O exercício da espreita desconfia de dados objetivos e factuais, entende que tudo e nada podem ser o oposto do que parecem ser. Dentro da estação o foco atende à concentração desfocada, à suspensão dos juízos prévios no acompanhamento dos movimentos atuais e virtuais. Portanto, a espreita aciona a visão lateral mantendo o movimento de atenção flutuante. Inverte o fluxo cognitivo habitual. Acredita na atenção suplementar, com a qual pode­se ter a chance alargar a percepção, deslocando os interesses de quem percebe. A apreensão do objeto abre­se de modo desinteressado como aquele com que se entra num jogo. Ou ainda, pode se dizer também que se assemelha ao sentido aguçado dos animais quando usam as orelhas e faro para se deslocar. Quem espreita aprende as particularidades do disfarce. Procede através de princípios de quem delineia o território. Não descarta nenhum resquício, não teme o acontecimento mas retrai­se pelo tempo que for necessário para reorganização dos recursos. Precisamente, aguarda a temporalidade implicada com kairós ‒ o momento oportuno ‒ não se põe a frente das coisas e principalmente é capaz de rir de si próprio se aprimorando na arte da serenidade. À vista disso, lanço mão dos seguintes questionamentos: como enfrentar o agora, que ora se faz espaço deserto? Como enfrentar o tempo diante de nós, o tempo que produz o mundo ao redor da estação que me assola com tanta força que me impede de fixar o que passou e o que passa no agora? 2.3 A mesa de montagem A mesa representa um dos dispositivos que auxiliam na maneira de constelar informações nessa estação . Os corpos, ativados em suas complexidades por esse dispositivo, são convocados a compartilhar nutrientes leituras, projetos e pesquisas. Aprendi a notar a importância desse procedimento quando conheci o que indicava o " Fica ao meu lado, (...), agora!", no texto “Diálogos de oficina” do crítico e poeta


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brasileiro Mauro Faustino , quando discorre sobre o tensionamento entre parcerias afetivas diante do extemporâneo À mesa, gravito a ideia de que escrevo em companhia de línguas sábias com quem procuro estabelecer momentos de “troca de experiência” e reflexões. Compartilho, com eles, pensamentos e espreito possibilidades de elaborar marcadores teóricos que me ajudem a observar com mais nitidez as atmosferas, ajustando frequente e continuamente o foco das minhas lentes sobre o outro. Com isso, nutro a pretensão de criar uma oficina de operação compartilhada em termos de tempo e espaço, armando uma zona de contato, uma zona de fricção. Na planície da mesa, sensualiza­se o lugar de encontros comensais diários. Os convivas, companheiros com quem flerto, se sentam ao seu redor. Ânforas e taças brindam afinidades. Um banquete no qual investem­se libidos e circulam os pratos, as cartas, o jogo, o metal, a alquimia, a unção, o dinheiro, as palavras, as ferramentas, os microfones, os aparelhos, as câmeras e os computadores. Descodificam­se doutrinas, passes, sessões de preces, estudos. Preparam­se aulas, documentos e teses! A mesa acomoda meu cotovelo. Há muitos objetos espalhados, documentos, recortes de jornais, caixas por toda parte, imagens e sobretudo autores. Sua estrutura comporta atos de ler, escrever, estudar, desenhar, criar, contar, brincar, embaralhar, gerir, administrar, transpor, consertar, rearrumar, recortar e comer. Nela o saber faz a festa. Organizam­se debates, simpósios, seminários, discursos e cerimoniais. Dispõe­se de assentos para a política, a cultura e o social numa espécie de banquete sensorial por meio do qual as palavras, os objetos dispostos nos diferentes ambientes do velho casarão, a paisagem que o cerca e o espaço urbano onde está localizado temperam os alimentos dessa mesa: meu olhar, meus desvios e minhas dobraduras exercitadas via imagem dialética benjaminiana.

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Cf. Lima, Manoel Ricardo em "Max Martins, a hora indiferente" destaca o termo “trégua” utilizado por Mauro Faustino em “Diálogos de oficina”, "além de descanso é também um gesto de acordo entre forças contrárias"; e que ali naquela oficina não se pretende nenhuma novidade, nem dar ao outro – enquanto a conversa se desenrola – alguma admiração, mas sim dar ao outro um sentido de acesso, o que Faustino inscreve como uma troca de experiências entre fixidez e tentativas de esclarecimento, a poesia como uma experiência compartilhada. http://www.scielo.br/pdf/alea/v14n1/v14n1a09.pdf


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Benjamin define a imagem dialética como aquela “que lampeja no agora da 74

cognoscibilidade ”. Apresenta­se como raio fulgurante que se torna acessível à percepção em alguma instantaneidade para se perder no momento seguinte. Um diferencial de temporalidades se revela: uma aparição, criada pelo contraste do passado atualizado no agora, se ilumina. Em outras palavras, na formação da imagem dialética, nem o passado ilumina presente nem este lança luz sobre o 75

ocorrido. Esse último "encontra o agora num lampejo, formando uma constelação" de fronteira. A imagem dialética emerge do choque de duas polaridades anacrônicas. Em sua imobilidade, permanece não manifesto e, enquanto isso, incompreensível à inteligência humana. Arrisco dizer, aparentemente imóvel, a imagem dialética em sua complexidade de movimentos é também uma nuvem de virtualidade. Assim sendo, no primeiro instante, há apenas o caos em sua opacidade, até que o crivo luminescente o atravessa e a informação tem a possibilidade de ser alcançada para, em seguida, desfalecer. O choque proveniente da união de momentos isolados provoca o lampejo. Dinâmica essa, que não é outra coisa senão a característica do método da montagem em Benjamin, sua tática de análise. Um método cuja a representação pode se dar pelo desvio, ou, pelo limiar como indica João Barrento. Um saber que 76

admite qualquer imagem como figura­limite . 77

O dialético tem o vento da história nas velas . A montagem seria o exercício de saber dispor essas velas que são os conceitos. O princípio da montagem benjaminiana encontra sua eficácia pela inclusão de elementos minúsculos, resquícios ou ruínas da modernidade. Elementos que dispostos com adequação invocam um caráter arqueológico e podem ocasionar o “relampejar”. Tal método de análise conforma uma maneira de escapar da ideia de progresso linear proposto pela história e promove deslocamento de sentidos em seu anacronismo.

74

BENJAMIN, 2018, p. 784. [N 9,7] Idem , p. 768. [N 3,1] 76 BARRENTO, 2013, p.114 77 BENJAMIN, 2018, p. 784. [N 9,8] 75


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A montagem, técnica cinematográfica explorada pela arte desde o surrealismo, é procedimento adotado por essa estação. O interesse patente pelo descarte ou objetos menores, sejam citações, lembranças, pensamentos, anotações, provérbios, sejam recortes, trechos de filmes confrontados com "agoras" colaboram são cruciais, assim como postula Benjamin, para a geração de novas cognições. Uma plataforma onde nada se estanca é local passível de apontamentos experimentais. Sobre a mesa acionam­se pormenores, percepções ínfimas, vibrações e atmosferas quando no mínimo duas imagens, palavras, livros, textos, ensaios, anotações se abalroa e produzem terceiras. Abrem­se por meio desse movimento chances para o brilho ou a brisa fresca de um amanhecer acompanhado de perto pelo ocaso ou desfazimento como o da nuvem. 2.4 Aparelho sensório­motor A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético. Jorge Luis Borges

O encaminhamento que se quer explorar na aproximação com os trabalhos artísticos orienta­se com Bergson, a partir do encadeamento percepção como potência de afecção e ação, duração­memória e intuição. Dispositivos esses conformadores do aparelho sensório­motor que serão detalhados a seguir: 2.4.1 Percepção: afecção e ação Para Bergson, a percepção, nos termos de afecção e ação orientadas, se distingue da contemplação, es peculação ou conhecimento. Deve ser entendida, 78

antes de mais nada, como aspectos essenciais do vivo em seu caráter de atenção à vida. Precisamente, como dispositivos que formam e compreendem o seu aparelho

78

Em Bergson, a emergência dentro de um universo de luz de pequenos intervalos, pequenos vazios, chama­se matéria viva, ser vivo. A vida traz para o universo um novo sistema de imagens – as formas que a vida produz.


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sensório­motor. Portanto, não consiste apenas em impressões recolhidas ou mesmo elaboradas pelo ser vivo, em termos de um estar atento ao objeto. Supõe, para além de tal entendimento, que a percepção atenta deve ser apreendida no sentido mais etimológico do termo. Isto é, na condição de uma reflexão enquanto "projeção exterior de uma imagem ativamente criada, idêntica ou semelhante ao objeto, e que 79

vem moldar­se em seus contornos ". A isso denomina­se percepção refletida. Contudo, Bergson atesta que por trás de tais imagens idênticas ao objeto, existem outras, semelhantes ou com parentesco um tanto remoto, armazenadas na memória. Alimentadas pela percepção e dirigindo­se ao seu encontro, as imagens adquirem força suficiente para se exteriorizarem. Esta ação implica em criar e recriar a todo instante. Nesse exercício, as imagens antigas e as percebidas na fugacidade do instante estão de tal maneira imbricadas que não se consegue mais discernir a percepção da lembrança . Na sua tese, a percepção não é, portanto, jamais um simples contato do ser vivo com o objeto presente, pois está inteiramente impregnada de lembranças contraídas que a completam por meio de uma ação imediata. Em outras palavras, manifesta­se por meio de imagens com o potencial de serem reveladas através da relação que se estabelece entre elas e o ser vivo na instantaneidade. Recorrendo à metáfora de um círculo fechado conformado pela imagem­percepção dirigida ao ser vivo e a imagem­lembrança lançada no espaço, Bergson afirma que elas estariam correndo uma atrás da outra. Essa dinâmica processual que configura a percepção refletida é entendida por Bergson nos termos de um circuito elétrico. Nele, todos os elementos, inclusive o próprio objeto percebido, mantêm­se em estado de tensão mútua, de sorte que nenhum estímulo 80

oriundo do objeto é capaz de detê­lo em sua marcha . Partindo do pressuposto de que a percepção refletida sempre retorna ao objeto, o filósofo traz à tona então duas concepções de memória radicalmente diferentes de toda tradição metafísica. Na primeira, as coisas se passam mecanicamente por meio de uma série totalmente acidental de somatórios de memórias que se sucedem contínua e

79 80

BERGSON, 2011, p.116. I dem, p. 119.


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ininterruptamente. A cada momento, novas memórias são ativadas advindas de um ponto abismal ainda mais enraizado, ativando camadas mais profundas da realidade. Nesse processo, há a possibilidade latente de se juntarem às antigas, sem criar uma perturbação geral. Já na segunda, há certa solidariedade entre o ser vivo e seu objeto. Esse processo se caracteriza pela oclusão do circuito, de forma que novas memórias só poderão ser ativadas com a criação de circuitos completamente originais. Na apreensão da imagem, por exemplo, ocorre em primeira instância um processo automático sensório­motor. Por fim, num segundo momento há uma projeção ativa e, por assim dizer, excêntrica de lembranças­imagens. Nesse momento preciso, em vez de a memória fazer aparecer e desaparecer caprichosamente suas representações, pauta­se pelo detalhe dos movimentos corporais de maneira a ampliar, intensificar e aumentar o espectro de 81

ação possível . Resumidamente, nesses dois círculos de memória, o mais restrito é o mais próximo da percepção imediata, uma vez que contém apenas o próprio objeto e a imagem consecutiva que volta a cobrí­lo. O mais elástico, por assim dizer, corresponde aos esforços crescentes de expansão intelectual. Bergson chama atenção para o fato de que é a totalidade da memória que entra em cada um desses circuitos. Como dilata­se indefinidamente, reflete sobre o objeto um número crescente de coisas sugeridas ‒ ora suas minúcias, ora detalhes concomitantes capazes de ajudar a esclarecê­lo. Em outros termos, Bergson esclarece que as lembranças pessoais são rigorosamente localizadas e seu encadeamento retrata a trajetória de nossa vivência passada. Reunidas, constituem o maior invólucro de nossa memória que se encontra toda livre, em camadas de informações flutuantes e virtuais no nosso corpo. Capazes de se espacializarem e mapearem as lembranças, são sempre estabelecida sobre o ponto de vista ontológico da virtualidade no inconsciente. Substancialmente fugazes, materializam­se ao acaso seja como resultado de uma atitude corporal acidentalmente precisa, seja porque tal indeterminação acaba por deixar o campo livre ao capricho de sua manifestação. Logo, a imagem concreta

81

Conceito adotado por Bergson conforme explicitado na nota de rodapé 15.


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vivida pela consciência pode ser vislumbrada como um mecanismo de invocação que faz com que algumas lembranças se atualizem de forma selecionada, reduzida e empobrecida, no sentido vitalmente interessado. Outro aspecto a ser considerado pelo filósofo está intrinsecamente ligado à ideia de que quanto mais as lembranças se aproximam do movimento, e, por conseguinte, da percepção exterior, maior a sua importância em termos práticos. Advindas do devaneio ou do sonho, as imagens passadas nunca são, portanto, reproduzidas com toda sua riqueza de detalhes e coloração afetiva. Para finalizar, diz: "agir é precisamente fazer com que essa memória se contraia ou, antes, se aguce cada vez mais, até apresentar apenas o fio de sua lâmina à experiência onde 82

irá penetrar ". É, portanto, por não se ter conseguido diferenciar o elemento motor da memória que, continua Bergson, ora se desconheceu, ora se exagerou o que há de automático na evocação das lembranças. 2.4.2 Duração ­– memória 83

Viver é durar. Os processos tem seu tempo de duração . Na perspectiva bergsoniana, quanto mais se aprofunda na natureza do tempo, mais satisfatória e acuradamente compreende­se que duração significa invenção, criação de formas e elaboração contínua do absolutamente novo. À vista disso, Bergson afirma o mesmo vale para os estados da vida, dos quais somos artífices. "Cada um deles é uma espécie de criação, uma vez que existir consiste em mudar, mudar em amadurecer, 84

amadurecer em criar­se indefinidamente a si mesmo ". Em certa medida, torna­se lícito dizer o que fazemos depende daquilo que somos. Como num exercício de autopoiesis, deixar­se referenciar pela paciência da duração consistiria o mais alto grau de liberdade. Sob a ótica do referido filósofo, este conceito de duração atrelado ao processo de criação não pressupõe uma ideia de evolução, de progresso, de

82

Idem, p. 121. O que é, para mim, o momento presente? É próprio do tempo decorrer; o tempo já decorrido é o passado, e chamamos presente o instante em que ele decorre. Mas não se trata aqui de um instante matemático. Certamente há um presente ideal, puramente concebido, limite indivisível que separaria o passado do futuro. Mas o presente real, concreto, vivido, aquele a que me refiro quando falo de minha percepção presente, este ocupa necessariamente uma duração. BERGSON, p.161. 84 BERGSON, 2005, pp.19­20. 83


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aceleração do tempo. Ao contrário, duração é aqui o presente concreto real e vivido. Isto é, o presente na sua condição de percepção ‒ sensação ‒ do passado imediato e a concomitante ação ‒ movimento ‒ de determinação do futuro em seu instante. Dito de outra forma, o presente é no máximo sensório­motor, sensação e movimento. Como no presente o tempo escoa, só se pode entendê­lo nos termos de uma abstração. Melhor dizendo, um ideal puramente abstrato, uma ilusão. Na verdade, o presente é a consciência que se tem do corpo como um centro de ação e indeterminação. Já o passado, esse existe como impotente. Contudo, impotência não quer dizer inexistência e sim uma conserva integral em estado latente. Passado aqui é, portanto, uma memória ou lembrança pura. De forma mais precisa, abarca a existência integral de todo o passado em sua virtualidade. Ou seja, um outro tipo de existência: a existência virtual que é real e não inexistência. O presente que escoa opera a síntese sempre atualizada de todo o passado vivido e o qual apenas deixa de ser útil, mas não cessa de existir. Entende­se esse útil no seu sentido de interesse vital das ameaças e promessas. Nesse caso, o presente como transcurso ‒ como ilusão concebida ‒ escorre, não existe. O presente era e o passado nunca se cerra. Sempre presente, diz respeito ao modo da virtualidade num outro plano. Esse plano é ontológico e não o plano psicológico. Com relação ao futuro, esse deve ser entendido como ação iminente. Pode­se afirmar que está sempre presente em sua "pré potência". Em resumo, contrariando qualquer possibilidade de automatismo, o passado é e não age enquanto o presente age e não é. Existe último em sua condição de mecanismo de invocação que faz com que o passado se atualize de forma imediata e constante. 2.4.3 Intuição Pode­se considerar que o método de Bergson seja a intuição, não no sentido ordinário do termo de sentimento, inspiração ou simpatia confusa. Tampouco se reduz a um conjunto de procedimentos intelectuais ou um método racional e preciso da filosofia. Envolve também uma faculdade irracional de conhecimento e pode


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ocorrer espontaneamente. Logo, trata­se de uma faculdade como um modo de conhecimento distinto do intelectual no qual não cabe a interpretação metodológica. Nesse ponto, intuição e vitalismo se correspondem. O exercício exaustivo da inteligência, voltando­se contra si própria, deixa de ser um impedimento à intuição, dado que propicia a distração necessária ao seu surgimento. Em vista disso, constituirá o fio metódico primordial para o desenvolvimento da sistematização da percepção estética. Bergson se refere à intuição como uma faculdade a partir da qual o conhecimento intuitivo é definido como “simpatia”. Logo, intuição nada mais é que a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto visando atingir o que ele tem de único e, consequentemente, de 85

inexprimível. Algo simples que aprendemos de dentro e que de forma também direta implica: a memória como consciência e duração constituintes do que há mais profundo no vivente; a recordação ‒ que toma do passado só o necessário para o presente e a vida prática. Por fim, a percepção como poder de ação que se move com destreza entre as imagens dos objetos. Ou melhor, consoante a um espectro de ações possíveis de nosso corpo sobre outros corpos. Portanto, age­se em relação ao mundo com base no instinto e na simpatia. Se essa última pudesse estender seu escopo e também refletir sobre si mesma, 86

dar­nos­ia a chave das operações vitais percepção , duração­memória e intuição, sugere Bergson. Conforme a ideia de que "o talento do pintor se forma ou se 87

deforma, em todo caso se modifica, pela própria influência da obra que produz" , a simpatia só pode acontecer no processo contínuo de criação de si por si. Ao invés de se analisar, emitir opinião e reduzir os objetos artísticos ao estabelecido e conhecido pela cognição, sugere­se então seguir o caminho da intuição. O conhecimento, por conexão direta com o tempo não mecânico da

85

BERGSON, 1974, p.23. Segundo Bergson, a atenção à vida é regulada pela orientação de promessas e ameaças. Sob esse prisma, a percepção amplia a possibilidade do ser vivo lidar com estas duas inclinações, aumentando o espectro de ação possível. Não tem, por conseguinte, nenhum caráter especulativo. Para maiores detalhes, ver BERGSON, 1974. 87 BERGSON, 2015, p.7. 86


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experiência, constituído através da relação corpo e espírito, pode tornar­se estratégia para a entrada no trabalho artístico. 2.5. As pequenas percepções Contornar as linhas que circunscrevem as pequenas percepções em sua superfície é tracejar os pontos que dão forma ao infinitamente pequeno, trazendo à 88

baila a visão “monadológica da vida” de Leibniz . Filósofo barroco do século XVII, cujo trabalho se detém na especulação de doutrinas relativas à formação das estruturas dos seres vivos e à consolidação das ciências da vida ‒ de quem exploro algumas noções. Mônada é um termo formado pelo prefixo grego "monas", que significa "unidade" ‒ como em monografia, monocórdico ‒ e pelo sufixo “ados”, que indica "relacionado com". O vocábulo é traduzido por “único”, “simples”. No sistema de Leibniz, mônadas são substâncias simples, ativas e indivisíveis de que todos os entes são formados e cuja natureza, por assim dizer, contrária à ideia de uma “estrutura atômica" como noção de algo isolado. Toda e qualquer mônada contém uma imagem ou reflexão do universo. “Cada uma delas, enquanto substância simples, tem relações que expressam todas as 89

outras, e (...) consequentemente é um espelho vivo perpétuo do universo” . Ao entrar em contato com um elemento, as mônadas, finitas, entram em contato com o mundo inteiro, infinito. Todos os seres finitos, limitados por um contorno, têm dentro de si o infinito da natureza.

88

Leibniz parece ter se interessado pela sistematização e formalização do conhecimento acerca da decomposição de ideias em componentes simples, sobre os quais uma “lógica de invenção” poderia operar. Por uma boa medida, ele colocou em um argumento que pretendia provar a existência de Deus. Refinou suas ideias sobre a sistematização e formalização do conhecimento a partir de uma metodologia que designasse signos ou representações simbólicas para as coisas e, com efeito, criasse um “alfabeto de pensamento” uniforme. Ele falou sobre suas ideias sob uma variedade de nomes ambiciosos como scientia generalis (“método geral do conhecimento”), língua philosophica (“linguagem filosófica”), mathématique universelle (“matemática universal”), characteristica universalis (“sistema universal”) e cálculo do raciocínio (“cálculo do pensamento”). Ele imaginou aplicações em todas as áreas ‒ ciência, direito, medicina, engenharia, teologia e muito mais. Clareza do raciocínio sobre estruturas matemáticas, destreza em álgebra e afins, além de processos. Mesmo que Leibniz não tenha chegado à ideia de computação universal, ele entendeu a noção de que a computação é em certo sentido mecânica. Cf. Blog de Stephen Wolfram. Disponível em <http://blog.stephenwolfram.com/2013/05/dropping­in­on­gottfried­leibniz/>, acessado em 15/07/2018 89 §56, Monadologia.


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Eis a cosmogonia de Leibniz: a tese barroca de que cada mônada contém dentro de si o infinito da natureza. Ao entrarmos em contato com um elemento qualquer, de imediato, nos relacionamos com o universo inteiro. Deleuze comenta Leibniz quando diz "compreendam, cada um de nós expressa a totalidade do mundo, só que a expressa obscura e confusamente”. Em seguida, questiona o significado do obscura e confusamente no vocabulário do filósofo alemão, oferecendo­nos como resposta a ideia de que comunicamos tal totalidade sob a forma de pequenas percepções. Estas, por sua vez, são tratadas como infinitamente pequenas. Em outros termos, como percepções por meio das quais eu expresso 90

todo o mundo, mas obscura e confusamente, como um clamor. Portanto, como unidade individual, inclui toda a série. Assim, ela expressa o mundo inteiro, mas não o faz sem expressar "uma pequena região do mundo, um 91

departamento, uma sequência finita " . O mundo está incluído em cada mônada sob 92

a forma de percepção, "elementos atuais infinitamente pequenos [...] um marulho, 93

um rumor, uma névoa, uma dança de poeira" . Sob a forma de câmara escura fechada, as mônadas são dotadas de um interior. Um fundo sombrio sem exterior ocupado por um espaço incessantemente 94

dividido e guarnecido por uma infinidade de pequeníssimas dobras moventes , ao invés de buracos. Constituindo o seu menor elemento, as dobras se movem em múltiplas direções enquanto inflexões, inquietudes incessantes. No molecular, residem assim muitos possíveis. Leibniz entende esses possíveis como pequenas percepções: dobras mínimas de dobras. De acordo com Deleuze esta é a condição das grandes dobras compostas, dos drapeados. Imerso nesta perspectiva, compara as pequenas dobraduras, percepções mínimas, aos

90

DELEUZE, 1980, p.35. Tradução livre. DELEUZE, 2013, p.44. 92 Idem p.149. Op. cit Arnauld, Lettre à Leibniz agosto de 1687 93 Ibidem , p.149. 94 Ibidem . p.54­55. 91


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95

aguilhões de inquietude ‒ representantes do mundo na mônada fechada ‒ que produzem a instabilidade da macro percepção. A partir de uma analogia com estado de espreita do animal, diz que quando "alma está à espreita, significa que há sempre pequenas percepções que não se integram na percepção presente, mas que há também pequenas percepções que não se integravam na percepção precedente e 96

nutrem aquela que advém ". A percepção são diferenciais da consciência . Contudo , pode tornar­se consciente. Nesse caso, Leibniz se serve da palavra apercepção, como elucida Deleuze ao afirmar que apercepção é a percepção consciente e a pequena 97

percepção é a diferencial da consciência que não está dada na consciência . Chamadas de relevantes, apercepções se caracterizam como movimentos moleculares que, uma vez percebidos, alcançam o limiar da consciência. Temos uma percepção relevante quando as micro percepções se relacionam e fazem emergir 98

algo. Tornam­se um clarão ‒ uma percepção clara ‒ uma apercepção. Ulpiano recorre à força de Poseidon e nos oferece pélagos de percepções quando declara que diante do mar ouve­se seu rumor ‒ aquele das ondas. Este nos aparece como aperceptivo porque se tem a percepção clara. Entretanto, das gotas que se reúnem para formar imensa trovoada não se tem percepção. A isso chama­se micro percepções inconscientes. "Então, a nossa vida se dá por esses dois processos: as

95

O aguilhão no animal é uma estrutura que desempenha, fundamentalmente, a função de inoculação de peçonhas para se protegerem e atacarem as presas que caçam. Escorpiões possuem aguilhões. Comumente usada para designar ponta de ferro aguilhada, perfurante que se coloca no meio dos eixos de madeira dos engenhos de açúcar; ponta dos eixos menores da moenda de cana­de­açúcar; fator estimulante, incitador, excitante. Esse termo aparece na expressão bíblica onde Saulo de Tarso perseguia os cristãos mas na verdade enfrentava o próprio Deus dos cristãos. Como em "Durum est tibi contra stimulum calcitrare" "Dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões". Pelo significado das palavras "recalcitrar" e "aguilhão", podemos entender que "recalcitrar contra o aguilhão" é resistir, insubordinar­se (recalcitrar) à Palavra de Deus que exorta e guia (aguilhão) a uma vida reta; O Caminho, A Verdade e A Luz. Ver também nota em Deleuze, Mil Platôs 2, 96 Sobre a distinção de um processo microscópico e de um processo macroscópico na percepção, cf Whitehead . DELEUZE, 2012, p.151. 97 DELEUZE, 2009, p.35. 98 Cláudio Ulpiano Santos Nogueira Itagiba (Macaé, 1932 ­ Rio de Janeiro, 1999) filósofo e professor brasileiro através de suas transcrições e aulas gravadas o autor facilita a compreensão do pensamento de alguns filósofos da diferença.


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micro percepções inconscientes, que nós temos; e as apercepções na qualidade de 99

percepções claras ". Perceber ‒ espreita que também se pratica de olhos vendados ‒ demanda um rompimento de bordas, opera uma mestiçagem no corpo com extra corpos, gera corpos composições. O corpo dentro da desordem escuta. “A orelha cresce nas 100

dimensões do anfiteatro, pavilhão de mármore”

.

As percepções não conscientes se dão quando “[...] nossa atenção está voltada a outros objetos. No momento em que o objeto se torna suficientemente forte 101

para atrair a si, redobrando a sua ação ou por qualquer outro motivo”

. Em outras

palavras, pelo aumento de estímulos ou atenção, as pequenas percepções revelam­se apercepções, fazem reflexão. Caso a demanda de atenção caia, as apercepções se tornam não conscientes. Muitos movimentos moleculares que percebemos permanecem no limiar, não chegam à consciência “assim como as pessoas que moram perto de um moinho d'água não percebem mais o ruído feito por ele”.

102

A percepção clara nos alcança. Aos poucos, identificamos o acontecimento

que nos engloba no espaço­tempo no nível da consciência e percebemos o barulho como aquilo que nos aflige. Gil pontua a existência de uma série de indícios os quais nos autorizam a crer que há, a todo momento, uma infinidade de percepções não consciente em nós. Seriam mudanças que ocorrem na própria alma e não nos apercebemos pelo fato de as impressões serem ou muito insignificantes, ou em número muito elevado ou muito unidas. Desse modo, isoladamente não apresentam nada de suficientemente distintivo. Porém, quando associadas fazem­se sentir, 103

mesmo que confusamente . A todo instante, as pequenas percepções de todos os movimentos do infinito, o universal que nos pertence, nos escapam. Em Novos Ensaios Sobre o

99

ULPIANO, Claudio. Aula transcrita “A força imaterial da vida”, parte 2 (19 de janeiro de 1996). Acessado em 3/11/201 e.disponível em < http://claudioulpiano.org.br/aulas­transcritas/aula­de­19011996­a­forca­imaterial­da­vida­2/ > 100 SERRES, 2001, p.84. 101 LEIBNIZ, 1984, p.62. 102 Idem , p.63. 103 Ibidem , 1984, p.7­8.


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Entendimento Humano , Leibniz apresenta a eficácia das pequenas percepções ao afirmar que em consequência dessas pequenas percepções, o presente é grande e o futuro está carregado do passado. Na sua visão, tudo é convergente ( sympnoia pánta , como dizia Hipócrates). Na mais insignificante das substâncias, continua Leibniz, olhos penetrantes como os de Deus poderiam ler todo o desenrolar presente e futuro das coisas que compõem o universo.

104

Nossa existência é marcada pela operação de forças das apercepções afetivas. Trata­se de uma complexidade. Ocorrência de intensidades e padrões temporais em grau muito elevado e não colmatado. Não se configuram de forma distinta e, às vezes, produzem graus de inquietações. Movimentos de formas de forças que se observam num dado intervalo de tempo e incluem, segundo Gil, o não­visível. Compreendido aqui como aquilo que constitui uma qualidade intensiva de forças, sem traçado, contorno, ou bordas, ainda que seja algo sempre limitado a partir de um exterior. Deve­se ter em mente que ao alargar a noção do não­visível, Gil trabalha com a noção de uma experiência e uma experimentação para além da consciência – não retiniana ou invisível sensível. A partir daí, apresenta­se esquematicamente a ideia de que, no olhar estético, coexistem três regimes de percepção, a saber: O primeiro se refere à percepção trivial das formas – trivialmente cognitiva – por meio das quais são percebidos elementos familiares e representações de forças macroscópicas e/ou molares. Já o segundo diz respeito à percepção não trivial, ao plano em que o olhar estabelece as associações entre as partes, no qual descobrem­se giros de movimento e relações. Cores, formas, volumes, planos, tempos e luzes disparam feixes de forças. Entramos em relação com a imagem enquanto devolvemos parte dela, a partir do que essa nos causou, assim o olhar atravessa, ativa as estruturas aparentes e revela algo que se camuflava na imagem, um não­visível. Finalmente, o terceiro aborda o conjunto das formas ou o intervalo entre os dois planos perceptivos, trivial e não­trivial.

104

LEIBNIZ, 1984, p.8.


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Os três regimes perceptivos coabitam a percepção estética. Ou seja, as percepções trivial e não­trivial se imiscuem em uma terceira percepção, a do seu intervalo. As formas triviais relacionam­se com as não triviais, animam­se. Cada 105

forma se insere numa multiplicidade virtual

em deslocamento dos regimes

perceptivos, puramente plásticos. O que separa e os une é o intervalo entre eles onde surgem as pequenas percepções, modulações de feixes das formas visíveis que remetem às formas das forças não visíveis e coexistem em meio a diferenças. É esse intervalo de signos – intervalos e ausência que, por seu turno, não são signos – que abre o campo das pequenas percepções. Se existe, por um lado, coerência, ela deve ser entendida como uma linha contínua de intensidades que acarreta e faz variar as multiplicidades das percepções da imagem artística. Por outro, há também uma cisão da consciência, dado que intensidades são desencadeadas, a partir do intervalo entre os dois regimes de percepção. A dinâmica da atitude estética suscita sempre um sujeito. O sujeito se divide entre uma atitude trivial do reconhecimento das formas e uma postura na qual tende a forçar um outro ponto de vista ou perspectiva sem abandonar a trivial. Multiplicidades ou movimento das formas e singularidade se situam em dois planos ou níveis distintos que acarretam uma desconstrução e uma reconstrução permanente do objeto. O próprio Gil exemplifica chamando atenção para o momento em que se olha uma marinha de Turner. Durante este instante, surge uma multiplicidade de imagens. Esta não dá acesso ao múltiplo sensível do uno inteligível nem ao diverso da unidade sintética da consciência. Em vez disso, oferece conjunto 106

infinito de imagens­totais de um núcleo singular de diferenciação dinâmica . O nível trivial de percepção parece constituir uma fonte inesgotável de possibilidades que faz oscilar a percepção não­trivial. Ao intervalo trivial se acrescenta o intervalo entre as estruturas não­triviais desveladas e as estruturas

105

A noção de virtual, aqui, quer dizer que são emissões tão breves que são mais passageiras do que o mais curto espaço de tempo que possamos ter consciência. 106 GIL, 2001, p.291.


77

triviais, que "suscitam pequenas percepções e fazem o olhar deslizar mais 107

profundamente em busca de novas estruturas

".

Contrariando o fenômeno que é algo dado à sensorialidade presente ‒ a uma presença ‒ esboça­se aqui, à luz de Gil, um outro espécie de fenômeno ou até um não­fenômeno, caracterizado enquanto uma relação de forças que se estabelece para além do visível. O referido autor define este não­visível no qual o fenômeno não tem lugar como metafenômeno pela sua condição de feixe de forças, cuja ocorrência se dá quando certa conexão se estabelece entre, pelo menos, dois tipos de força. Nessa perspectiva, a obra de arte é entendida como emissora de forças por meio das quais espectadores as captam através de suas próprias forças. Nesse jogo, ainda de acordo com Gil, tecem­se as tramas do movimento entre a obra e aquele que a olha, de tal maneira que já não podemos falar de sujeito e de objeto

108

.

O fenômeno para além do visível, é um metafenômeno. Logo, está para além da fenomenologia. Situa­se em espécie de afora do que realmente é: da intensificação de um corpo necessário a todo artista. As forças operantes do conjunto desse regime de percepções, cada uma à sua maneira e com seu grau particular de relevância, concorre para que o não­visível se torne visível onde a ideia de fenômeno não cabe. Assim, os acontecimentos resultantes dessas relações de forças se abrem e desdobram com a formação do estrato não­verbal. Nesse processo, as imagens­nuas se formam por corte com o estrato verbal. Para Gil, descrever retroação e ruptura da linguagem com os estratos perceptivos não­verbais se torna 109

tarefa essencial da metafenomenologia

.

Experimentar e assimilar trabalhos de arte é observar o intervalo entre as

formas visíveis percebidas e as formas não­visíveis auto­expressas em um topos . Abrange, portanto, o campo englobante de um experimentar, de uma experimentação, que se caracteriza pela dissolução da percepção, tal como entendida tradicionalmente.

107

GIL, 2001, p.293. GIL, 2001, p.302. 109 GIL, 2005, p.20. 108


78

Levando menos em conta os traços cognitivos da percepção visível e trivial, a experiência perceptiva se detém sempre na “presença” do não­visível. Compreende assim outra espécie de percepção, a não­trivial: a não­forma ou os seus silêncios. Logo, o estudo das pequenas percepções requer a observação dos fenômenos de fronteira entre o consciente e o inconsciente manifestos nas formas de percepção do corpo, de inscrição indelével e do não­consciente da obra de arte que constitui um reservatório inesgotável de forças. Na presente conjuntura, pressupõe­se o silêncio como origem da linguagem em sua condição de mecanismo de eclosão do não­verbal. Como nesse silêncio, existem quase­signos aguardando sua emergência, pode­se inferir que, na percepção estética, o silêncio adota o nome de inanidade. Isto é, o espaço ou não­lugar do absolutamente possível onde habitam frivolamente micro percepções. Ainda não individuadas, quase imagens ou imagem nua, são despojadas de significação verbal.

110

111

Ainda por emergir, seu sentido verbal é sempre post verbal

.

Enquanto lugar perdido da não­inscrição, conduz ao lugar do contorno do vazio ou do silêncio onde a arte inscreve seu lugar. Aberto, cercado e expresso, promove uma abertura a múltiplos possíveis entendido por Deleuze devir­outro. Então a percepção ou experiência da obra de arte é o jogo das inscrições possíveis que se desdobram a partir do lugar da não­inscrição. Em termos deleuzianos, um devir­outro no qual a matéria, em sua generalidade, não para de desdobrar suas redobras em comprimento e largura – em extensão. O desdobrar inclui dobrar e redobrar, pontos de inflexão na matéria extensa. Dobrar é produzir

110

José Gil arma toda uma problematização a respeito do paradoxo que se abre quando se aborda o não­verbal A imagem­nua é, como vimos, indissociável da linguagem (porque, precisamente, é dela dissociada). Paradoxalmente, é porque há linguagem verbal que existem imagens­nuas e, de uma maneira geral, estratos não­verbais de expressão, como as artes visuais. Toda a dificuldade está em pensar um não­verbal que seja não um pré­, mas um post verbal: é por retroacção e ruptura que a linguagem verbal constitui o não­verbal como «pré»­verbal, quer dizer como efectivamente detentor de sentido não exprimível por signos verbais. 111 A impossibilidade de realizar plenamente a função semiótica de uma ou outra classe de signos resultaria antes da situação das pequenas percepções, precisamente no limiar de tal função, numa zona pré­semiótica de indeterminação onde as formas hesitam ainda entre os signos e a presença. Zona pós­verbal, contudo, o que explica que o pré­semiótico seja na realidade um pós­semiótico: é enquanto legisignos que as pequenas percepções passam ao regime da primeiridade­secundidade, apresentando uma existência imediata e sem referência fora de si própria, o que faz com que estas primeiridade e secundidade “degenerem” aquém ainda da relação semiótica. GIL, 2005, p.210.


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amolecimentos na matéria e inclui um mundo "infinitamente esponjoso ou cavernoso 112

113

"; a dobra faz de "todo intervalo o lugar de um novo dobramento " . É aí que se vai de dobra em dobra, não de ponto em ponto; é aí que todo contorno esfuma­se em proveito das potências formais do material, potências que ascendem à superfície e apresentam­se como outros tantos rodeios e redobras suplementares. [...] a linha redobra­se em espiral para adiar a inflexão em um movimento suspenso 114 entre o céu e a terra .

“Os deuses se encontram, de repente, no fundo do bosque, é preciso 115

esperá­los ali como um pequeno cervo tímido e amedrontado” . Conhecer as coisas exige mistura, mergulho para além da certeza tátil do olhar. Os barrocos diziam fuscum subnigrum , fundo sombrio de onde emergem as percepções. O barroco introduz a geometria das dobras, e dobraduras que difere da geometria clássica na qual a matéria é constituída por pontos. Nas dobras habita o não­visível. O não­visível da obra de arte é a presença perceptiva das formas. O relevo das cores, a plenitude das superfícies e dos volumes extraem sua pregnância do movimento não­visível de forças que inscrevem um branco. Aparece como uma não­inscrição, um espaço desenhado por forças e do qual elas emanam. Um movimento que nos faz entrar na obra de arte enquanto ela entra em nós e dispara pensamentos e emoções. Toda obra de arte impõe a aliança entre os efeitos de sentido e de presença, compromete corporeidade e materialidade no espaço em um jogo de forças no qual procura­se negociar com o ato de interpretar o mundo. Evoca­se assim a predominância do corpo como parte da cosmologia do mundo. Os possíveis operam para além da anatomia e fisiologia do corpo. Ao comer, penetra­se coisas e corpos. 116

Apropria­se e abre­se o mundo. O sujeito se reconhece atravessado pelas energias e intensidades que

emanam da obra, pelo conhecimento tipicamente revelado pelos "eventos de auto 117

revelação do mundo." A propriedade dos corpos é emitir forças, partículas 112

DELEUZE, 2013, p.35. idem. 114 ibidem. 115 SERRES, 2001, p.84. 116 GUMBRECHT, 2010, p.114. 117 GUMBRECHT, 2010, p.107. 113


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intensivas. Um corpo recebe e acolhe de qualquer corpo, pois recebe e incorpora, 118

pelo menos parcialmente, suas forças envolvidas por um outro corpo . Trata­se de um corpo intensivo para além do corpo objetivo. Mesmo em situação de repouso, como quando contemplamos uma obra, atuam sobre nosso corpo a posição espacial relativa ao corpo, as suas possibilidades motrizes, as suas tensões cinestésicas. 2.6. A água da cisterna Para ilustrar como estes dispositivos são acionados na fricção entre objeto artístico e aquele que o vivencia, trago um exemplo de como é possível apreender o stimmung , inclusive numa obra presumidamente estática. Nesse sentido, recorro mais uma vez ao Bergson para ratificar que a percepção não é jamais um simples contato do espírito com o objeto presente. Está inteiramente impregnada de lembranças­imagens que a completam, interpretando­a seja de forma consciente, no sentido que quem a experimenta aciona as ferramentas para sua apreensão, ou de maneira mais inconsciente que aparece na interação entre um leigo, no entendimento do senso comum, e o objeto artístico. Apresento, de modo esquemático, a classe de metafenômeno experimentado no atrito com a obra do século XVII Femme dessin de l'eau à la citerne do artista 119

Jean­Baptiste­Simeon Chardin, durante uma visita à Barnes Foundation .

118

Trecho retirado da palestra de José Gil durante o colóquio: Corporalidade(s) e investigação em Artes Cênicas: da experimentação prática à reflexão teórica realizado na Universidade de Évora – Portugal em maio de 2010. Esse evento foi uma organização conjunta entre o LUME (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais LUME da UNICAMP e o CHAIA (Centro de História da Arte e Investigação Artística) da Universidade de Évora, Portugal. Disponível em <http://www.cocen.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/viewFile/116/117>, acessado em 119 A Barnes Foundation foi fundada em 1922 por Albert C. Barnes. A coleção conta principalmente com obras de mestres impressionistas, pós­impressionistas, modernistas e outras pinturas de importantes artistas europeus e americanos, bem como arte africana, antiguidades da China, Egito e Grécia e arte nativa americana. https://www.barnesfoundation.org


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Imagem 1 Jean­Baptiste­Simeon Chardin. Femme dessin de l'eau à la citerne (1732 ­1740)

A pintura se oferece ao olhar trivial. Uma imagem de contornos definidos, fundo sombrio e luzes que se espraiam numa superfície de tecido. Apetrechos povoam a lateral esquerda da tela: tina de madeira e tecido. A bacia de cobre brilha. Em diagonais, vassouras de palha e rolos de algum tecido, tapetes, talvez. No topo da tela, um naco de carne pende tocando levemente um dos rolos do tapete enrolado. Na parte de baixo da cena, outros utensílios, mais bacias e potes. No centro da imagem, uma cisterna, um tanque, ou melhor, uma talha reflete. São, ao menos, três planos a ocupar a tela e a auxiliar na profundidade da imagem oferecida pela lateralidade da luz vinda da área externa. Uma mulher, dobrada sobre si, se posiciona ao centro e a direita da tela. Sua indumentária pesada atrai o olhar de quem a observa. Seu corpo se inclina a noventa graus para colher água da talha de cobre refletido pela iluminação ressaltada no centro da tela. Em suas mãos, uma jarra de vidro verde. Abaixo da jarra, um balde de madeira.


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Sobre a cabeça, um lenço esconde seu rosto. A mulher está de perfil. De sua face, só se vê um recorte. De seu corpo coberto por uma camisa branca e uma saia em tons de terra sobre um avental azul, somente as mãos aparecem. No fundo da cena, por trás da porta semiaberta, espécie de coxia, vê­se nesga de luz que ilumina outra mulher. A luz também recorta seu rosto, mostra um perfil. Seu corpo, à exceção de parte do pescoço, vê­se sombreado. Encostado em um umbral, pouco mais ao fundo, um miúdo. Toda consciência é limiar

120

, como um salão de dança onde bailam micro e

macro percepções. A partir da consciência percebem­se contornos e formas. Trata­se de uma percepção ordinária que teima em ser autossuficiente, vira verdade que quase expulsa o olhar para a próxima tela presa à parede. Tomo consciência da qualidade pictural da imagem, suas massas de volume, seus cinzas de fundo que invadem o plano da frente. Aproximam­se, avermelham­se. O olhar oscila na materialidade da pintura. A imagem produz vibrações. Forças reverberam por entre as dobras e amarrotados dos tecidos. Emanam feixes de forças imperceptíveis. São desdobras em todo pano de fundo. A imaterialidade da luz faz objetos e corpos encarnarem com precisão suas superfícies. A iluminação opera transformações nos objetos. Cristaliza­se na pintura sob efeito de matéria e substância. Há infinitas possibilidades ocultas para a percepção trivial enquanto não se relacionam com o segundo nível de percepção. Assim que isso acontece, criam­se intervalos, dobras de dobras, dobras em dobras, conforme dobras nas quais elementos trocam, entre si, brilho, transparência e opacidade. Da miríade de trânsitos imperceptíveis de forças algumas são colmatadas pela imaginação. A poeira não­inscrita recobre o espaço pictórico e a gama de cores atravessa seus espectros de um elemento a outro. Triangulações de luz desdobram­se no esburacado fuscum subnigrum , reflexo e sombra, fundo obscuro e claridade, espaço interno e externo. A pintura se oferece ao olhar não­trivial. Uma imagem sem contornos definidos no qual se interpenetram dobras que mergulham em dobras. A percepção de não visíveis salta ao primeiro plano. Algo sobrevém enquanto unidade, forças 120

DELEUZE, 2013, p.153.


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emanam da superfície dos pigmentos e me atingem. O que estava subjacente no micro movimento, as micro percepções, tornam­se relevantes no macro movimento. Um caminho se abre entre as habitantes do espaço até as dobras dos objetos e as dobras das dobras dos tecidos. Debruço. Ouço a água corrente encher o recipiente vítreo. Saltitam micro gotas de água na passagem para a jarra de vidro. O 121

debruçar da aguadeira ajuda o meu. Traz à tona algo de meu inconsciente

.

Capturada pela experimentação do ambiente, entrelaçam­me sedes de sabores extemporâneos. Inventários dos mais antigos. Fontes de escuta. Sede de rio. Sabor 122

das jarras de louça, do tilintar das garrafas da fábrica, dos lavatórios que

completavam o cerimonial da casa, das bacias utilizadas na higiene, da cuspideira e do penico debaixo da cama. Absorvo­me na experiência de água que sabe a metais ferrosos, vítreos, barrosos. "Uns olham, contemplam, veem; outros acariciam o mundo ou se deixam, acariciar por ele, atiram­se, enrolam­se, banham­se, mergulham nele, e, às vezes, esfolam­se

123

124

". Debruça

quem sabe de duração, quem ajusta o objeto numa

proximidade com o corpo­olho. Corpo sem sentidos definidos, aturdido. Corpo em catalepsia com a memória, com o levante das micro percepções até que alguma se torne consciente. Debruçar, então, para saber melhor, para rememorar melhor, e assim, imaginar melhor. "Debruçar torna­se pensar, pensamento que por sua vez

121

As memórias encontram­se sempre presentes no inconsciente sobre o ponto de vista ontológico da virtualidade. O termo inconsciente aqui não diz respeito ao inconsciente psíquico de Freud. 122 O rio Sabor é um rio que nasce na sierra de Gamoneda na província de Zamora, entra logo em Portugal, atravessa a Serra de Montesinho no distrito de Bragança. Tomei banho nesse rio algumas vezes quando de viagem à aldeia da Cardanha. 123 SERRES, 2001, p.32. 124 Didi­Huberman em Pensar debruçado , através de uma passagem de Proust em Em busca do tempo perdido , distingue a visão sobrepujante, aquela de cima, da visão abrangente essa que debruça e facilita a abordagem do observado de alcançar nossos sentidos a ponto de extrair lágrimas e memórias recônditas. Para o pensador o gesto do debruçar contém três movimentos: primeiro o 'cair com' do sintoma implexo, estratificação de camadas emaranhadas como uma montagem; segundo o 'debruçar­se' para 'saber melhor', para ver emergir algo obscuro, e terceiro o saber paradoxal e anacrônico do 'melhor rememorar', o círculo paradoxal de destruição e sobrevivência. Contradição que ao mesmo tempo reconhece a memória afetiva sobrevivente e constante e por outro lado traz à tona a angústia do nada, a inexistência causadora de uma dor presentificada pela notação da ausência. Dor que justifica o debruçar na tentativa de 'melhor endolocer', respeitar a originalidade do sofrimento sem enaltecê­lo porque sem dor não há memória viva.


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retorna ao gesto de debruçar, como se, de linha em linha, o gesto tentasse obstinadamente retornar ao gesto"

125

Cruzo o ambiente em direção à porta dos fundos. Nesse trânsito, entre as substâncias que o quadro mostra e esconde, no balé do consciente e do inconsciente sinto algo de primitivo vindo daquele espaço­tempo. O aroma continha todas as manhãs da ida à lavanderia. A luminosidade que reforça a ideia de uma lembrança da aldeia. Sobre o foco de luz do back station uma mulher se dirige ao menininho. Uma voz me alcança, “it's like being touched from the inside ” e se desfaz. Essa forma de aproximação com o trabalho de arte incita uma visada não contra a interpretação, mas para além da resultante mecânica. O sentido, a ideia e o significado são forças. A realidade que modifica e se modifica constitui a própria modificação do acontecimento, são metafenômenos, movimentos de forças perceptivas que giram do cosmológico ao microscópico e do microscópico ao macroscópico. Quem espreita, mergulha na experiência, debruça para melhor auscultar o efeito sempre variável, mesmo que seja uma constante. O debruçar aguarda qualquer atualização do passado, convoca uma das memórias acumuladas em camadas de virtualidade para o desencadeamento da ação seguinte. Aproximação. É um tempo psíquico configurado em posição espacial, em postura corporal e em 126

sensações visuais concomitantes.

O jogo dos objetos toca em algo que não está inscrito neles, antes, transitam ali em "brilho em fogo baixo

127

". Percebe­se a acuidade quase cirúrgica na

composição dos objetos, dobraduras e gestos que facilitam a ideia de que na cena existem muitas qualidades de não­inscrição entre os objetos. Mas isso não basta. O metafenômeno exige do observador uma atitude: olhar o que não está escrito, perceber as pequenas percepções se inscrevendo no ato de olhar; deixar­se 125

DIDI­HUBERMAN, 2015, p. 112. Idem , p. 265. 127 Sabe­se que Chardin seguia os gêneros e os modos de representação dos pintores holandeses do século XVII. Na época, evocava­se muito o pintor flamengo Teniers; hoje diríamos que Chardin está mais próximo dos holandeses pós­rembranescos, como Gerrit Dou, Nicolaes Maes, Gerard ter Borch e Gabriel Metsu. As composições desses pintores geralmente eram baseaadas em efeitos de luz sobre um fundo indistinto não como os de Chardin, mas, de todo modo, esse era um dado do problema com que ele lidava. BAXANDALL, 2006. p.136. 126


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absorver pela atmosfera, pelas notações ínfimas. "Olhar é entrar numa atmosfera de pequenas percepções; porque olhamos um olhar, oferecendo, portanto, a outrem o nosso próprio olhar atmosférico

128

".

Compreende­se que a obra de arte, ou mesmo as imagens, produz não ditos ou imagens nuas, forças do não­visível que podem se tornar apercepções. Mergulha­se em movimento cósmico ou, habitamos o “ponto fatídico entre o que muda e o que morre”, o ponto cinzento de Klee, a noção “cosmogenética” que reúne em si a essência do chrôma (a cor) e do chronos (o tempo)

129

. Somos co­autores

daquilo que olhamos. Esquema perceptivo que solicita ao observador se tornar partícipe, não através de ponto de vista único, mas tornar­se ele mesmo a própria transmutação e visibilidade das formas. Um convite à metamorfose a ser experimentada por meio da produção e recepção do que estou chamando e defendo aqui como atmosferas artísticas na contemporaneidade através do conceito de obra clima . O que, por um lado, implica não só a produção de efeitos ambientais, visuais e sonoros, como também de procedimentos pirotécnicos, performances, instalações, equipamentos, máquinas e outros recursos mais ligados à condução de obras climas que apresento no próximo capítulo intitulado Cadências atmosféricas e as obras climas da arte. Por outro, envolve toda a complexidade oferecida na recepção de um trabalho artístico. A mais difícil das tarefas. Exige poderes de pensamento muito peculiares, habilidade em agarrar nuvens ‒ vastas e intangíveis ‒ e organizá­las em disposição ordenada, recolocando­as em processo de forma contínua."

130

128

GIL, 2005, p.52. DIDI­HUBERMAN, 201, p.56 Georges. P. Klee, Théorie de l’art moderne (1912­1935), trad. P.­H. Gonthier, Paris, Denoël, 1964 (ed. «Folio», 1998), p. 56. 130 SANTAELLA, 2007, p.6. Peirce trabalha numa gradação de três propriedades que correspondem aos três elementos formais de toda e qualquer experiência, quali­signos primeiridade, sin­signos, secundidade e lei­signos, terceiridade. 129


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Capítulo III Cadências atmosféricas e as obras clima da arte nem toda hora é obra nem toda obra é prima algumas são mães outras irmãs algumas clima Paulo Leminski

3.1 Recepção Esse capítulo tem por objetivo verificar se é factível definir a atmosfera como um conceito operatório para a análise de trabalhos artísticos intitulados por mim como obras clima . À guisa de tal enunciado, pretende­se averiguar se há viabilidade do procedimento classificatório para a proposta aqui apresentada em termos de cadências atmosféricas ou se questões relativas à ambiência seriam simplesmente emanações percebidas de forma tão particular, entre obra e observador, que impediriam qualquer possibilidade de abordagem em termos de categorização. Sabe­se da complexidade oferecida na recepção de trabalhos artísticos. Diante deles, são mobilizados e rearranjados diferentes aspectos da nossa aparelhagem sensório­motora. Precisamente, são impelidos ou aguçados por meio da força da experiência que atua sobre nós. Esse processo engloba desde componentes eletromagnéticos do corpo, atravessados pelo reconhecimento da linguagem e resgate de memória, até o surgimento da consciência, conforme a abordagem proposta por Bergson. Presume­se que a "doutrina das categorias tem por função desenredar os 131

emaranhados confusos daquilo que, em qualquer sentido, aparece " . Desde Aristóteles, pode­se perguntar que tábuas de categorias seriam adequadas para classificar o que se vê. A tábua aristotélica é aquela do olho grego acomodado

131

SANTAELLA, 2007, p.6. Peirce trabalha numa gradação de três propriedades que correspondem aos três elementos formais de toda e qualquer experiência, quali­signos primeiridade, sin­signos, secundidade e lei­signos, terceiridade.


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pronta para tranquilizar o homem num mundo perigoso e assustador, dando­lhe segurança. Certamente, um estudo que pretende criar cadências atmosféricas da arte, abre a necessidade de aprofundamento vivencial de maneira apurada. Diante do seu amplo panorama, abordo a arte contemporânea dos anos da primeira década do século XXI. Ainda nesse cosmo, observo trabalhos que compõem e contrapõem procedimentos e experiências relativas à minha operação artística. De forma geral, os trabalhos selecionados se desenvolvem, como vimos, num momento de profundas transformações, de reformulação de limites conceituais e expedientes formais. A abordagem de tais trabalhos contemporâneos, segundo suas atmosferas parte do entendimento de que é preciso fazer proliferar novas abordagens e sensibilidades: dar outros nomes aos bois, às artes de forma a romper o consenso que nos quer abduzir à capacidade de articular ideias, pensamentos e ações. A proposta, nesse sentido, é criar novas nomenclaturas, outras microaparelhagens de conspiração cotidiana que possam corroer por dentro as megaestruturas da linguística, da história e da política. Isso só se faz possível porque minhas inquietações e interesses pela prática artística, incluem, na "cozinha" de meu ateliê, além da teoria da arte, a estrada. O que significa dizer que experimento o embate, a real fricção e a convivência com trabalhos de arte através de visitas a exposições, bienais, museus, feiras e galerias como parte integrante de minha investida e interesse no campo da arte. Para mim, estâncias

132

.

Meus primeiros embates frontais com a arte contemporânea, iniciados entre os anos 1998 e 2000, esbarraram, parece natural, em muitas dificuldades vivenciais de apreensão e presença. Contaminada desde que nasci pela razão, afundada nela, procedo de uma escola de design dos anos 80, não menos exigente nesse sentido, onde se superestimava, sobretudo, o valor da dupla "forma e função" e da gestalt .

132

Os poetas do século XIII chamavam "estância" [ stanza ], ou seja, morada capaz de receptáculo", o núcleo essencial da sua poesia, porque ele conservava, junto a todos os elementos formais da canção, aquela joi d'amor , em que eles confiavam como único objeto da poesia. AGAMBEN, 2007, p.11.


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Como aprendiz de mergulhador, percebo, ao longo dessa imersão, que a aposta na academia como alimento, minha libido sciendi, acresce o arsenal de possibilidades do olhar em constante desafio diante da atualização do conhecimento abrangente e do rigor crítico. O exercício da espreita, a apuração do aparelho auditivo e a negociação por um espaço de respiro foram aos poucos apurando minha percepção. A disponibilidade para a atualização da prática fornece, gradualmente, novas experiências, pautadas, hoje, mais na imersão sensível e na recuperação "do sapiens que saboreia", no corpo como suporte, do que na "sabedoria do sapiens " ou no império da razão. A arte como disparadora de saúde aliada à maturidade psíquica em estado de evolução criadora , pôde também, paulatinamente, fazer­me notar as muitas perspectivas possíveis para viver e experimentar situações estéticas sejam elas 133

artísticas ou não. Embalada pela provocação deleuziana

de listar os trabalhos

segundo o humor ou o caráter experimentado mediante as atmosferas das obras de arte ao longo de meu percurso artístico, apresento a seguir, no lugar de tábua de categoria, as cadências atmosféricas que agrupam os predicados dos trabalhos visitados. Elas seguem quatro orientações distintas, a saber: rapsódicas , contraespaço , errantes e maquínicas . De modo geral, todo trabalho de arte promove, em algum grau, regiões de indiscernibilidade. Lidamos com um mundo fulgurante. Não há certezas nem verdades no ar, apenas lampejos. Contudo, existem obras que congregam grande quantidade de energia e reunião de elementos díspares. Conformam uma combinação de objetos heteróclitos dos quais não se pode supor indicação clara nem intenções definidas pela melodia que promovem. Atribuo a esse conjunto de obras o caráter de cadência rapsódica. De modo geral, todo trabalho de arte promove, em algum grau, regiões de indiscernibilidade. Lidamos com um mundo fulgurante. Não há certezas nem verdades no ar, apenas lampejos. Contudo, existem obras que congregam grande 133

DELEUZE, Poderia definir da maneira mais simples as categorias como os predicados do objeto. Você pode então fazer sua lista de categorias de acordo com o seu humor, de acordo com o seu personagem ... [...] O que seria bom é ver se todos estão na mesma lista. Em qualquer caso, eles não têm o direito de trapacear com a palavra: fazer sua lista de categorias é perguntar a si mesmo o que é para você o que está predicado do objeto também.


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quantidade de energia e reunião de elementos díspares. Conformam uma combinação de objetos heteróclitos dos quais não se pode supor indicação clara nem intenções definidas pela melodia que promovem. Atribuo a esse conjunto de obras o caráter de cadência rapsódica. De modo geral, todo trabalho de arte, promove, ou no mínimo implica, uma localidade, determinado locus em algum grau. Todavia, há obras implicadas intrinsecamente na geração, promoção e articulação de topos específicos e ilocalizáveis, como "a grande cama que se descobre o oceano, pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta, pois pode­se nela esconder­se; é a noite, pois ali se pode virar fantasma entre lençóis; é, enfim vírgula o prazer, pois no retorno dos pais, 134

se será punido."

A esse conjunto de obras propositores de heterotopias geografias

e relevos inusitados, imputo a qualidade de cadências contraespaços . De modo geral, todo trabalho de arte se oferece como movente em termos micro ou macroscópico. Não obstante, há obras mandatórias de graus de imersão de, no mínimo, uma caminhada em torno deles em algum grau. Exigem um aracniano, ou deambulador. Acumulam energia peripatética em excesso, quase nos transformando em espécies de sonâmbulos ou derviches ao redor deles. Confiro a esses tipos de obras implicadas em ações obsessivas ou obstinadas a natureza de cadências de errância. De modo geral, todo trabalho de arte emana um certo grau de maquinismo, opera maquinicamente, e não mecanicamente, isto é, implica agregações múltiplas de máquinas social, teórica e estética. As máquinas artísticas são desejantes, pois exprimem o desejo que se constitui não pela falta, mas pela produção que produz atualizações constantes. Se pautam muitas vezes em colecionismos, agrupamentos de livros e objetos, ficções culturais ou ficções de ficções, nada incomum na história da arte. Mas, nesse caso, a atmosfera oferece ambientes de ativação ao mergulhador que pode simultaneamente sentir­se submerso em sua profundidade e

134

FOUCAULT, 2013, p.20.


90

perfeitamente consciente de estar na presença de obras clima das quais emanam cadências de maquínicas. De modo geral, os trabalhos de arte abrigados sob as cadências sugeridas acima podem transitar entre elas. A tábua de cadências, elástica não oferece nenhuma rigidez. Os muros aqui, se existem, são rasteiros. Tratam­se de contornos antes de mais nada, pois o esquema movente não é marcado pelo essencialismo, muito menos pelo uno. Para além de elencar trabalhos através de suas cadências – tarefa em si a cargo de simpatias e racionalização – ensejo abrir campo para o vislumbre de abordagem menos implicada com significados e mais aberta à presença e ao sensível, a partir de uma abordagem ancorada no stimmung . Faz­se necessário esclarecer que ao longo da descrição dos tipos de cadências, comento destaco dentre eles um ou outro com um pouco mais de contorno. Em alguns casos, aponto ressonâncias e sopros de familiaridades com trabalhos mais antigos, não como origens ou pontos de partida fixos vinculados à historização. Ocasionalmente, cito artistas visionários cujos trabalhos já anunciavam a emissão de cadências da obras clima analisadas aqui. No diagrama a seguir, apresento as obras climas eleitas que se encaixam nas cadências propostas.


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Cadências

Rapsódicas

Contraespaço

Errância

Maquínica

Características sonoras

improviso

sons da terra

mantra

ambiente

Obras climas

Mother tongue , 2015 Danh Vo

Trilha para 2 lugares e trilha Take Me Here by the para 2 lugares, 2017 Dishwasher: Memorial Nelson Félix for a Marriage , 2011­2014 Ragnar Kjartansson

Restore Now , 2006 Thomas Hirschhorn

Sculpture Garden s, 2016 Virginia Overton

Playground duplo (pavilhão­marquise) , 2006 Dominique Gonzalez­Foerster

The Lost Reflection , Munster, 2007 Susan Philipsz

Xylotheque Kassel , 2016­2017 Mark Dion

Bowls balls souls holes , 2014 Mika Rottenberg

One thousand and one night, 2016 57 a Bienal de Veneza Edith Dekyndt

O Reino do Céu, 2016 Matheus Rocha Pitta

“ Repair , 2012” Kader Attia

Homebound, 2000 Mona Hatoum

Journey that wasn't, 2005 Pierre Huyghe

Fix it , 2004 Mona Hatoum

Museu da Inocência, 2008­2012 Orhan Pamuk

The Boat is Leaking The Captain Lied , 2017 Alexander Kluge, Thomas Demand e Anna Viebrock

12 Ballads for Huguenot House Theaster Gates

Tabela 1 ­ Cadências atmosféricas

É amplamente conhecida as distâncias entre o relato e a experiência vivenciada em qualquer que situação. Sabe­se que a imagem fotográfica de um trabalho experimentado não concorre nem expressa o modo como é vivenciada/percebida. Reconheço a palidez das imagens e do relato em contraste com aquilo que saboreio. O ponto de ancoragem do relato além de contar com as contribuições de críticos e pensadores se apoia reiteradamente nos resquícios atualizados da memória, na proximidade com o fogo e na relação com o mistério através de uma abordagem que remetem às análises do Bergson. Por se tratarem de rememorações ou atualizações de passados, muitas vezes redescubro os detalhes e as riquezas da vivência em si: a satisfação do olho, o coração taquicárdico, a sensação de bom ou mal humor, as calores, os calafrios, odores, os efeitos sensoriais as sensações térmicas, o vento quente ou a massa de ar fria.


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A partir de então, o exercício será acessar alguns trabalhos artísticos, via cadências. Para tanto, conveciono apresentá­los através do cruzamento de dados lançados de modo mais orgânico, digamos assim. Isto é, não necessariamente obedecem rigidamente a ordem a seguir: a) o que o trabalho e suas características irradiam. Ou seja, o que nele pode ser considerado gerador de atmosferas, b) de que maneira altera e determina as disposições da percepção e como tais obras clima são corporalmente recepcionadas e atualizadas c) como o procedimento do artista demonstra a criação de atmosferas.


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3.1.1 Cadências rapsódicas 135

Em carta aberta a John Ashbery

– poeta estadunidense da "Escola de Nova

Iorque" – Waly Salomão apresenta uma leitura para a memória. Nesse caso, desviante e casual ( nonchalant ) de onde pode surgir qualquer animal ou imagem. Metaforicamente, retratada de forma semelhante a uma ilha de edição. Uma memória tensionante e tensionadora que costuma operar a montagem de repertório variado sem reduzir o registro de traços. A memória é uma ilha de edição ­ um qualquer passante diz, em um estilo nonchalant, e imediatamente apaga a tecla e também 136 o sentido do que queria dizer .

A arte da montagem não linear – vinculada ao aleatório, estabelece ligação com a memória reconfigurada a partir do gesto – traz à tona o passado e lhe garante lugar no presente, conforme sugere Benjamin. Montagem, atividade de seleção, corte, cópia, colagem. Gesto também do poeta afeito a acrobacias. "Um idioma – uma colcha de retalhos, uma rapsódia

137

".

A citação deste último termo me atravessou enquanto estudava o ensaio "Ler para frustrar a formalização", apresentado por Raúl Antelo durante o “XIII Seminário Internacional de Estudos de Literatura: o papel da crítica na literatura e nas artes contemporâneas Jankélévitch

138

. O referido autor recupera as considerações de Vladimir

139

e confronta as composições de variações rapsódicas com o mundo do

legislador que adota a forma sonata do homo symphonicus . Estudava qualidades de regimes que pudessem abranger trabalhos cuja atmosfera frustra a simbolização. Trabalhos nos quais o real não se submete ao simbólico, dado que acontecem no intervalo, no corte entre uma frase e outra, entre uma cena e outra, no local onde operam dobras, por onde se ingressa com nossa carga pessoal, aprecia­se a criação e cria­se com eles. Representante da poesia da chamada "Escola de Nova Iorque", escola estética predominantemente dos anos 1950 e 1960. 136 SALOMÃO, 2007. 137 BARTHES, 2013, p.33. 138 O seminário aconteceu em 2015 na na PUC­Rio e contou também com a conferência de Hans Ulrich Gumbrecht. 139 Idem , p.5. 135


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Embora acredite que é sempre nesse meio atmosférico, nos intervalos dos trechos de músicas, gibis, "viagens, voos, assassinatos, dissertações filosóficas, cenas libidinosas, fugas, narrações secundárias, programas de orgias, descrições de máquinas

140

", que se monta no dispositivo da mesa a preensão do trabalho.

Reconheço no estilo rapsódico ecos com a noção residuais. A noção de resíduo me interessa, no entanto os trabalhos que associo a essa categoria nem sempre são residuais. Desse modo, a ideia do ofício do rapsodo me pareceu mais adequada. O termo grego rapsodo refere­se àquele que, na Grécia antiga, ocupava a função de escritor ou declamador profissional de poesias épicas que iam de cidade em cidade propagando a Ilíada e a Odisseia. Nos domínios literários do séc. XIX, a palavra "rapsódia" continha o sentido de compilação, numa mesma obra, de temas ou assuntos diferentes e de várias origens. Sabe­se que a transmissão das histórias ou poemas, na tradição oral, não é estável. Repetir nunca é dizer a mesma coisa. Os cantadores e contadores de histórias operam por produção de diferimento, modificam as histórias e as narrativas que, dessa forma, não guardam entre si natureza fidedigna. Os rapsodos traduzem pensamento a pensamento, e não palavra a palavra, o que fortalece a instabilidade como acompanhante da rapsódia. A narrativa abre­se ao movimento de apropriação e, por sua vez, a tradição apropriada na rapsódia alia­se à desapropriação simultânea. Antelo entende a rapsódia como "a liberação de forças libertárias dionisíacas" que pensa a si própria como uma tradução. Na música, a rapsódia também consiste em citações ou variações de alguma obra. Agrupamento, nesse caso, de trechos melódicos extraídos de outras obras vocais ou instrumentais. Em La música y lo inefable, Jankélévitch aposta que a natureza real penetra vazios e pausas da música povoando seus silêncios. Permeável, a música funciona não como um mundo fechado, mas como o universo e 141

a vida

140 141

.

ANTELO, 2015, p. 7. JANKÉLÉVITCH, 2104. p.44.


95

Por essa via, o conceito musical para pensar a literatura funciona também como ideação poética para se pensar as o bras clima . Para Antelo, a rapsódia se apresenta como gesto inibidor da formalização ao "frustrar a estrutura paradigmática do relato segundo a qual cada episódio tem seu 'fiador' em alguma parte mais à 142

frente, que o compensa e o repara

"

Considero o elemento da rapsódia como um dos predicados a ser observado nas cadências encontradas nos trabalhos aqui agrupados. A leitura rapsódica suporta a "discordante reunião dos contrários". O campo de abrangência desses trabalhos aceita, portanto, qualquer hóspede. Por meio deles, reconhece­se a riqueza do intruso, o seu incômodo, hostilidade, os benefícios que a falta de afinidade de uma visita pode introduzir como surpresa agitando assim as nuvens micro perceptivas. Encontro, no gesto rapsódico da montagem, a apropriação que conjuga a expropriação enquanto capacidade de narrar uma história pelo uso de vocabulário abrangente e enigmático. A atmosfera gerada pelo conjunto díspar de elementos originados pelo fluxo combinatório de imagens fragmentadas demanda um corpo corajoso afeito a condições de mergulho mais ou menos hostis em águas profundas com correntezas e forças adversas. O leitor precisa chegar e se apresentar em corpo e presença. Com a coragem para mergulhar em zonas escuras e desconhecidas, deve estar apto e aberto para flutuar sobre abismos, tolerar certa queimação no estômago, no afã em reunir partes disparatadas, encarnando o papel simultâneo de intérprete e detetive sujeito às interferências advindas das profundezas do mar. Arrisco que algumas das forças que antecederam trabalhos com essa qualidade de atmosfera instaladora de assombros, a partir de união de díspares encontrados na seleção de trabalho a seguir, tenha precedentes ou pelo menos familiaridade, com muitos dadaístas, a começar pelo próprio Marcel Duchamp. Deve­se ter em mente os ares primevos gerados pela Roda de bicicleta , 1913, a instalação 1,200 Sacks of Coal, apresentada em 1938, e de Étant donnés .

142

ANTELO, 2001, p.7.


96

Estar em frente de qualquer imagem é achar­se diante do tempo no qual presente e passado não param de se reconfigurar. São sempre entendimentos cruzados, dinâmicos, portadores da esperança de uma nova leitura, de um novo embate, de um recomeço. Nessa cadência atmosférica, afasta­se da esquina da imagem fixa e orientada. Opta­se pela via de mão dupla , onde se encarna o prestidigitador que se lança no jogo dialético da memória, tal qual sugere Benjamin. Operando por saltos acompanho, à mesa, Flávio Carvalho e seus Ossos do mundo . O arqueólogo mal comportado adota a visibilidade do homem em voo. Distante do alvo encontra, ao acaso, resíduos e iluminações para o pensamento. O perceptor dos graus de sugestibilidades dos objetos coletados reúne climatologias. 143

Notam­se objetos menos em sua forma

e mais em sua formação e

transformação como parte de uma cadeia de sentidos dotada de potencial permanente de ressignificação. Emprestar aos objetos significados é proceder a um escrutínio, como sugere Flávio de Carvalho. Faz­nos ativadores da atmosfera que deles emana. Algo jogado no mundo ao caso se transforma numa coisa transbordante de sugestibilidade, adquirindo “atmosfera”.

144

Não se trata aqui da “atmosfera” mensurável pela física moderna, mas da soma algébrica de todas as sugestibilidades perceptíveis no objeto

145

, como um

stimmung , qualquer que seja ele. Atmosfera que apresenta as recordações mais dramáticas da alma do homem, fora da ideia cronológica de tempo. A noção de “atmosfera” ilustrada pelos comentários de Flávio de Carvalho compreende forças que incidem no momento do acontecimento. Justamente aquelas que procedem da atualização temporal diante daquilo que se apresenta ou se enfrenta. São aquelas acompanhadas pelos passados que em virtualidade emergem no agora, no momento em que se "estabelece uma ligação entre as camadas profundas do inconsciente. Tais camadas, por sua vez, ressoam o aspecto do objeto 143

Recorro, neste ponto, a duas das ideias centrais da obra de Goethe através de Maria Filomena Molder. A natureza percebida como um organismo vivo em permanente mutação, e a ideia de que na natureza as partes e o todo se relacionam segundo um paradigma morfológico. Ver MOLDER, 1995, p.25. 144 CARVALHO, 2005, p. 53. 145 Idem , 2005, p. 54.


97

e surgem à tona pela consciência. No caso, não propriamente como uma imagem, 146

mas na sugestibilidade de uma recordação longínqua

. O arqueólogo na condição 147

de mergulhador mal comportado alcança a "atmosfera" de um objeto qualquer

por

148

seu grau de sugestibilidade, seu êxtase ou sua natureza cosmogônica

.

Seguindo as trilhas de Gil, afirmo que o mergulhador não se posiciona face ao objeto, antes flutua com ele. Isso quer dizer que divaga com o objeto, viaja em pensamentos com ele. Esse divagar é o poder de construir visões através do devaneio enquanto estado livre da imaginação. Ou seja, "desrealizando a percepção, desimaginando a imagem e desintelectualizando o pensamento para os 149

integrar em outro espaço"

Tal geografia, por assim dizer, indica o trajeto das intensidades extremas do sentir, conforme sugere Gil. A força e o vigor da visão, audição e tato se transferem para imaginação, obrigando a imagem simples se transformar numa espécie de super imagem. Nesse contexto, a imaginação é uma faculdade que percebe as relações íntimas e secretas das imagens e dos objetos, as correspondências e as analogias. Vincula­se não a uma fantasia, mas ao processo de conhecimento, à produção de um discurso. A imaginação, malcomportada por excelência, desmonta a continuidade dos objetos e faz surgir “afinidades eletivas” estruturais. Compreende atmosferas, como já vimos em Gil, compostas "de miríades de pequenas percepções 150

[…], turbilhões, direções caóticas, movimentos sem finalidade aparente"

.

A atmosfera muda, então, toma­se clima, define­se, assume determinações e formas visíveis. As obras­climas dessa cadência pré­anunciam o teor rapsódico e se Idem , 2005, p. 53. CARVALHO, 2005, p. 44. 148 Em seus primeiros trabalhos, Vom kosmogonischen Eros , Ludwig Klages demonstra que as aparências, ou as imagens, possuem uma realidade e um poder de influência relativamente independente em relação às suas fontes. As imagens são as almas das coisas. Almas do passado remoto acolhem e compõem o mundo da consciência. Klages conceitua um “eros da distância”, eros que não deseja proximidade nem posse, mas mantém sua distância por participação contemplativa do belo. Com Klages se pode avançar na elaboração do conceito de atmosferas. A "realidade" das imagens em Klages funciona como expressão, aparência, caráter e essência. O poder de sentir as aparências expressivas, a percepção da alma ‒ por vezes confundido com demônio ‒ funciona através de uma simpatia afetiva. 149 Gil, 2016, p.11. 150 GIL, 2005, p.52. 146 147


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monta ou se faz pré­sentir nos trabalhos detalhados a seguir que parecem explorar esse tipo de composição rapsódica, quais sejam: Mother tongue , 2015, de Danh Vo; Sculpture Gardens , 2016, de Virginia Overton; Bowls balls souls holes , 2014, de Mika Rottenberg. 151

Mothertongue , 2015 | Danh Vo

Imagem 3 Danh Vo Mothertongue , 2015, Bienal de Veneza, 2015. Judas, 2015, L ick Me Lick Me , 2015, branco torso de mármore grego de Apolo, madeira, unhas. Vista da instalação, pavilhão dinamarquês, Veneza. Foto: Kate Lacey

Acesso o Pavilhão Dinamarquês durante a 55 a Bienal de Veneza em 2015. À entrada da galeria percebo a quase ausência de objetos. Um caixote de madeira contendo um pedaço de mármore precisamente fatiado apoiado no piso limpo e homogêneo do espaço ocupa a sala principal próximo a uma mesa onde se vê alguns objetos. A luz e o brilho do sol invadem o ambiente, não se recorre a qualquer recurso artificial de iluminação. Abre­se um intervalo entre o conteúdo de brancura opaca e a caixa de madeira escura e seu continente. Entre o continente, o 151

https://www.youtube.com/watch?v=6A­GKr1vRE0


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conteúdo e seu contingente, o sol e as janelas envidraçadas o espaço é penetrado por heterogeneidades. Caminho pelos ambientes contíguos e observo fragmentos. Parecem fósseis de uma cultura material. Atravesso as salas que se deixam invadir pelo meio externo através de grandes vidraças e apresentam suas poucas peças espalhadas pelos cantos, piso e vidros. São pedaços de galhos de árvore secos e tortos, uns com fungos e outros com alguma peça incrustada, pedaço de santos de madeira que lembram ex­votos. Os itens descritos se espalham pelo ambiente e, à primeira vista, guardam grandes distâncias espaciais entre si assim como conceituais e conectivas.

Imagem 4 J udas, 2015 – mesa de Jacarandá projetada por Finn Juhl em 1949 com trinta moedas de prata circulares incrustadas –, Untitle d, 2015 – árvore de cera (Ligustrum lucidum), carvalho (Quercus lepidobalanus) Madeira originária da Cidade do México –, Cópias do livro On Distance , 2015 do artista de Heinz Peter Knes – e uma das 150 garrafas de tequila Danh Vo Edição Especial Punta della Dogana 2015. Fotografia Nick Ash.

Isto é, as peças152 se apresentam de modo esparso pelo ambiente. De imediato, parecem não promover uma unidade clara. Dado a ausência de informação direta, não se fecha uma ideia sobre o conjunto. Intuo: a atmosfera agenciada pelos objetos, ou pelo próprio artista, se aproxima da cadência do rapsodo, no sentido de incluir uma variedade de motivos. O conjunto pode ser

152

Outras imagens dessa montagem podem ser visualizadas http://www.contemporaryartdaily.com/2015/05/venice­danh­vo­at­the­danish­pavilion/

em


100

absorvido como uma união de peças anacrônicas que emprestam ao ambiente um caráter onírico. A opacidade de informações pode também dar margem a uma certo ar irônico pela simplicidade e estranheza da combinação de objetos. É ainda capaz de estimular um misto de curiosidade e espanto, ressaltado pelo conjunto de objetos não só enigmático como um tanto sombrio. Precisamente, troncos e galhos retorcidos, garrafa de tequila, de produção manual, na qual se lê " Lick me, lick me153 " e inscrições enigmáticas gravadas, em letras góticas, sobre duas das vidraças como " Do you know what she did, your cunting daughter?" e " You’re gonna die up there/ Keep away!154". Percebe­se, com o decorrer do tempo de permanência, que as peças, aparentemente muito distantes, começam a falar umas com as outras. Esboça­se alguma familiaridade entre os heterogêneos. O conjunto sugere um certo aspecto religioso emprestado tanto pelo caixote com um pedaço de anjo

155

quanto pelo

querubim incrustado nos troncos, num dos cantos da galeria. No corredor, a imagem talhada na madeira do corpo de cristo 156 apoiada sobre fundo de vidro e outra da Virgem Maria, igualmente em madeira, sobre uma pedra – num misto de imagem religiosa157 e ruínas – unem nitidamente o medieval e o moderno. O sagrado e o profano também se fazem presentes através do fundo vermelho das paredes e das referências ao Diabo e ao divino. Compondo o clima, o ambiente de entrada é marcado pelas moedas de prata incrustadas no tampo da mesa de jacarandá158.

153

Lick Me Lick Me , 2015. Torso de mármore grego­cristalino branco de Apolo, oficina romana, c. sec I­II dC, madeira e unhas. Título extraído de linhas entregues pelo demônio em The Exorcist (1973). 154 Trechos de: O Exorcista. Roteiro: William Peter Blatty. Diretor: William Friedkin. Apresentações: Mercedes McCambridge, Linda Blair. Warner Bros, 1973 155 Your mother sucks cocks in Hell , (Sua mãe chupa paus no Inferno), 2015 A cabeça do querubim em carvalho do século XVII, madeira, pregos 28,5 × 26,6 × 34,2 cm. 156 Do you know what she did, your cunting daughter? (Você sabe o que ela fez, sua filha enlouquecida?), 2015. Imagem de Cristo em castanheira policromada no estilo flamengo, produzida em Portugal no entre o século XV e XVI sobre vidro com inscrições gravadas por Phung Vo, pai do artista. 157 Trata­se de uma escultura de madeira da Virgem da Anunciação (1350) – um pedaço de álamo quase fossilizado, fragmento orgânico da natureza transformado atribuído à escola de Nicola Pisano – instalada sobre uma base formada por outro artefato, parte de um Sarcófago romano esculpido em mármore grego. Madeira e pedra borram contra o pano de fundo vermelho de seda preciosa, antiga e nitidamente moderna, redesenhando o espaço na sala. Θεός μαύρο (Deus Negro), 2015, é a obra mais fotografada em “Mothertongue”, é tanto uma escultura quanto o ambiente onde ela se encontra com as paredes circundantes cobertas de seda tingida de vermelho de cochonilha. 158 A mesa projetada por Finn Juhl em 1949 é uma peça sofisticada da modernidade do norte da Europa.


101

Com isso, Vo parece fazer referência à imagem evangélica das 30 moedas de Judas. Tentação, traição e pecado criam nos ambientes uma atmosfera de apelo cristão. "Mothertongue" também oferece ares míticos. Algumas peças parecem vir de tempos romanos ou medievais. Ao mesmo tempo, fazem referência à arte conceitual ou até ao minimalismo. Ao lado de um caixote, cujo interior abriga parte da cabeça de um anjo nitidamente seccionada, encontra­se presa à vidraça a cópia manuscrita de uma carta em francês, de cunho político, datada de 1861. O clima um tanto sombrio e lúgrebe justapõe não só o privado com o público como aproxima temporalidades distintas ao associar fatos l ongínquos ou remotos com o imediatismo do aqui e agora, por meio do seguinte texto159: "JMJ 20 de janeiro de 1861 Querido Pai muito honrado e amado Como minha sentença ainda está esperando, quero lhe enviar uma nova despedida, que provavelmente será a última. Os dias da minha prisão passam pacificamente. Todos aqueles que me cercam me honram, um bom número me ama. Desde o grande mandarim até o último soldado, todos lamentam que a lei do reino me condene à morte. Eu não tive que suportar torturas, como muitos dos meus irmãos. Um leve corte de sabre vai separar minha cabeça, como uma flor de primavera que o Mestre do Jardim escolhe para o seu prazer. Nós somos todas as flores plantadas nesta terra que Deus escolhe em seu tempo, um pouco antes, um pouco mais tarde. Outra é a rosa púrpura, a outra o lírio virginal, a outra a violeta humilde. Vamos nos esconder de agradar, de acordo com o perfume ou brilho dado a nós, ao soberano Senhor e Mestre. 159

Tradução da carta 03.06.1965, 2015 Gravura em papel. Impressa por Niels Borch Jensen, Copenhagen. J.M.J. 20 janvier 1861 / Très Chers très honoré et bien­aimé Père. Puisque ma sentence se fait encore attendre, je veux vous adresser un nouvel adieu, qui sera probablement le dernier. Les jours de ma prison s’écoulent paisiblement Tous ceux qui m’entourent m’honorent, un bon nombre m’aiment. Depuis le grand mandarin jusqu’au dernier soldat tous regrettent que la loi du royaume me condamne à la mort. Je n’ai point eu à endurer de tortures, comme beaucoup de mes frères. Un léger coup e sabre séparera ma tête, comme une fleur printanière que le Maître du jardin cueille pour son plaisir. Nous sommes tous des fleurs plantées sur cette terre que Dieu cueille en son tempo, un peu plus tôt, un peu plus tard. Autre est les rose empourprée, autre le lys virginal, autre l’humble violette. Cachons tous de Plaire, selon le parfum ou l’éclat qui nous sont donnés, au souverain Seigneur et Maître. Je vous souhaite, cher père, une longue, paisible et vertueuse vieillesse. Portez doucement la croix de cette vie, à la suite de Jésus, jusqu'au salaire d’un heures trépas. Père et fils se reverront au paradis. Moi, petit éphémère, je mène vais le premier. Adieu Votre très dévoué et respectueux fils J. Théophane Venard"


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Desejo­lhe, caro pai, uma longa, pacífica e virtuosa velhice. Levai a cruz desta vida gentilmente, seguindo a Jesus, até o salário de uma hora de morte. Pai e filho se encontrarão novamente no paraíso. Eu, pouco efêmero, eu lidero primeiro. adeus Seu filho muito dedicado e respeitoso J. Théophane Venard" É curioso pensar num artista nascido no Vietnã como representante do pavilhão da Dinamarca, mesmo sendo ele naturalizado dinamarquês. A partir desse dado, pensa­se num espaço no qual se conjuga o pessoal, uma língua mãe – Mothertongue – e o francês. Um stimmung de insinuações e nuances ricos em significado afetivos, religiosos, míticos e históricos me envolve. A exposição da tragédia anunciada na carta escrita por Saint Jean­Théophane Vénard – um missionário francês enviado para evangelizar vietnamitas, mas que foi decapitado – para seu pai faz­nos supor tratar­se de algum dado da história pessoal do artista160. A navegação sem cartografia precisa ofertar objetos e informações num reconhecimento de variedades. Há indícios de detalhes biográficos ou históricos das peças de cunho religioso, retiradas de alguma temporalidade remota, que roçam algo entre o melancólico e o nostálgico. Embora todas as pistas não ofereçam elementos notórios, fica no ar tratar­se de uma historiografia marcada por certo envolvimento com questões políticas.

160

A edição da carta, 02.02.1861, 2009 exposta na exposição Slip of the tongue , 2015 na mesma época que Mothertongue –, é feita por Phung Vo, pai de Danh Vo e escrita em uma fonte caligráfica precisa cuja linguagem ele não entende. Representa uma das cópias que continuará sendo produzida enquanto Phung puder continuar a fazer isso. A carta é central para a obra de Vo e indica o quanto o artista sente­se em dívida com seu pai. Phung se converte ao catolicismo e foge com a família do Vietnã, em 1979, em um barco construído por ele mesmo. Durante a travessia, é interceptado por um petroleiro dinamarquês, que os leva para a Escandinávia. Esta história pessoal aliada às cartas e toda a composição da montagem liga os diversos elementos da prática de Vo que adquire níveis quase míticos de entendimento.


103

Ainda acima da mesa em Jacarandá outro enigma que ajuda a compor a atmosfera rapsódica é o livro do artista de Heinz Peter Knes, On Distance , 2015161. Curiosamente paradoxal, o título implica o distanciamento entre as imagens da viagens realizadas por Knes e os demais objetos expostos no ambiente, além de marcar a distância corporal entre esses dois artistas. Em ambos os casos, categorias subjetivas e associativas incomuns são atadas à distância, uma vez que dão margem para que se estabeleça conexões entre elementos díspares e fisicamente apartados. O percurso geográfico por entre as salas não obedece a cronologia. Os objetos, suas filiações e ordenações refletem sobre temas culturais amplos, impulsionados por interesses, desejos e acaso pessoais. Dobram­se sobre os ares rapsódicos em um sistema de familiaridades em aberto. Devido ao aspecto visual de intrigante materialidade, fragmentos de diferentes corpos escultóricos, a iluminação, o caráter minimalista, a limpeza e o silêncio do espaço pode­se pensar também numa atmosfera de design de ambientes. Por outro lado, a combinação de madeira, pedra, cerâmica, caixote, e inscrições parece revelar o grau de transitoriedade entre os objetos e as notas de interesses do artista pelo catolicismo e por coisas efêmeras e recônditas relacionadas mais genericamente à história. A seleção e a maneira de combinar os elementos estéticos afetam o modo de pensar e o pensamento afeta a forma. No cruzamento entre as esferas pública e privada, há bastante provisões para devaneios. Especulo se as peças pertencem a algum antiquário, leilão ou igreja. Permaneço no ambiente inconclusivo entre o

161

On distance é um livro de fotografias de Heinz Peter Knes, que apresenta uma pequena seleção de seu extenso arquivo de fotografias de viagem que remonta o ano de 2010. Ao contrário de uma abordagem convencional para um registro pessoal de viagens, indexando lugares e situações, ordenados de acordo com cronologias ou geografias, fotos e seus pedidos refletem temas culturais mais amplos, movidos por interesses, desejos e acasos pessoais. Knes, em conversa com Julie Ault, ordenou as imagens influenciadas pela "lei do bom vizinho" de Warburg, a principal organização de bibliotecas de Warburg baseada na troca e engajamento mútuo entre livros colocados lado a lado, em vez de agrupamentos clássicos que se ramificam de categorias gerais tais como “fine art” ou “photography.” O livro é publicado por ocasião da exposição: Mothertongue de Danh Vo, Pavilhão Dinamarquês, 56ª Exposição Internacional de Arte, La Biennale di Venezia, 9 de maio a 22 de novembro de 2015. A publicação é apoiada pela Danish Arts Foundation. http://www.mottodistribution.com/site/?p=37653


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constrangimento e a curiosidade. Percebo, muito mais, uma vagueza na variedades dos elementos, uma natureza atmosférica que se deseja quase impenetrável pelas vias tradicionais da interpretação. A cada aproximação como essa, acumulam­se os benefícios da navegação desprovida de bula. Monto e remonto histórias possíveis. Ou melhor, ao contato com a atmosfera gerada pelas combinação de relíquias e atualidades demanda presença e atenção. Espreito a possibilidade de movimentos mínimos dos corpos incomodados pelas pequenas aguilhoadas produzidas. Penso em Leibniz desdobrado por Deleuze quando afirma que "o animal está à espreita, a alma está à espreita". Então relembro que trata­se mesmo de perceber que "há sempre pequenas percepções que não se integram na percepção presente, mas que há também pequenas percepções que não se integravam na percepção precedente e 162

nutrem aquela que advém

."

Pode­se dizer que a percepção estética do conjunto das formas ou o deslocamento do nível trivial e não trivial de percepção sejam, talvez, vetores insuficientes para estabelecer comunicação intersubjetiva com o trabalho. Outra divagação parte da simples ideia de que a montagem rapsódica do trabalho possa eventualmente servir para deixar abertos espaços concorrentes de nossa atenção. Ou seja a obra clima oferece aparências e significados, objetos reconhecíveis e configurações estranhas, alguma história pessoal ou coletiva na presença esparsa de artefatos

163

.

“Mothertongue” é nome da exposição individual do artista vietnamita Danh Vo 164

apresentada durante a 55 a Bienal de Veneza em 2015, na qual exibe "achados" e

pertences de procedências variadas. Tratam­se de aquisiçoes por Danh Vo e Marian

162

DELEUZE, 2013, p.150­151. A crítica de arte Claire Bishop compara as peças expostas a diamantes em um colar ou ainda a cristais pendurados em um lustre. http://conversations.e­flux.com/t/claire­bishop­on­danh­vo­at­the­2015­venice­biennale/2372 164 Danh Vo (1975) é graduado da Kongelige Danske Kunstakademie, Copenhagen (1998­2002), e em Städelschule, Frankfurt (2002­05). Sua família fugiu do trauma do Vietnã do pós­guerra em 1979 em um barco feito à mão: embora destinado aos Estados Unidos, seu navio foi resgatado por um cargueiro dinamarquês e levado para Dinamarca, onde lhes foi concedido asilo político e cidadania. https://www.artforum.com/print/201507/claire­bishop­54492 163


105

Goodman

165

em leilão da Sotheby's: móveis modernos dinamarqueses, azulejos de

Oaxaca. Há detalhes que só descubro através da leitura de alguma informação 166

oferecida

. O release167 da mostra oferece legendas estendidas, assim como um

ensaio da historiadora de arte Patricia Falguières e uma declaração do artista fazendo alusão ao colonialismo e ao catolicismo aparecem intercalados com histórias sobre pai. Nele, Vo conta sobre a conversão secreta de seu pai ao catolicismo em detrimento confucionismo como protesto contra o assassinato do líder do Vietnã do Sul, Ngô nình Diêm, em 1963. No entanto, esses textos são tão aleatórios e fragmentados que acabam por reforçar a opacidade poética da instalação. Tais objetos, agora, abrigados no mundo da arte, apresentam o projeto arqueológico que arma o trabalho, entre a história coletiva conturbada do Vietnã e o atravessamento da educação transcultural do artista. Ao lembrar do modelo da montagem benjaminiana e pensar a história através de fragmentos preexistentes, intuo que haja, talvez, espaço para a imaginação ou um estremecimento sacolejar de novas consciências. Giros sobre a justaposição de objetos utilizados. Se para Benjamin a imagem constitui o fenômeno originário da história é porque a imaginação, segundo ele, designa outra coisa para além da fantasia subjetiva. A imaginação não é uma fantasia. A imaginação é uma faculdade perceptiva das relações íntimas e secretas das coisas: seus metafenômenos, suas possíveis correspondências e analogias. A imaginação – vinculada ao processo de conhecimento, à produção de um discurso – montadora por excelência, desmonta a continuidade das coisas e pode fazer surgir as “afinidades eletivas” estruturais. "A imagem sempre é flutuação acima do abismo atualiza uma ordem de conhecimento essencial no aspecto histórico das 168

coisas" . Em qualquer dos casos, sempre caberá a nós reconstruir narrativas,

165

Marian Goodman é proprietária da galeria de arte contemporânea Marian Goodman, aberta em Manhattan, New York em 1977. 166 https://www.artforum.com/print/201507/claire­bishop­54492 167 Release disponível em "mothertongue Danh Vo ­ Kunst.dk." 30 abr. 2015. https://www.kunst.dk/fileadmin/_kunst2011/user_upload/Dokumenter/Danish_Pavillon/Press_kit_2015/ Exhibition_folder_­_Mothertongue.pdf. Acessado em outubro. 2018. 168 DIDI­HUBERMAN, 2008, p.178.


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refazer jornadas, operar transmutações seja qual for o agrupamento de objetos, metamorfoses capazes de transformar fósseis em mísseis.

169

O surpreendente, no entanto, do trabalho de Vo é revelar uma prática de sobreposição de heterogêneos, cuja qual funciona também como espécie de montagem. A pavimentação feita em cerâmica encomenda de Oaxaca, México, do pequeno jardim, localizado na parte de trás do pavilhão da dinamarca, é um exemplo dessa prática explorada pelo artista. Utilizando material originário desse país onde fixou residência, Von mistura o tradicional design asteca com geometrias mouriscas. Em duas das salas de “Mothertongue” , o banco de madeira – do designer Finn Juhl170 que também desenhou e projetou a mesa usada na mostra – destinado ao descanso serve como base para objetos e obras. Nele, Vo exibe almofadas e um outro objeto. Num banco, vê­se tais almofadas finas alaranjadas ao lado de um bolo feito de papel e dobraduras dotados de enfeites: um laço e uma vela vermelhos. No outro, as almofadas de igual tamanho e espessura acompanham um objeto escultórico que aglutina nove pratos chineses. Incrustados no calcário, formam uma única figura mineral e marinha171. Os pratos recuperados, em 1985, do naufrágio de um navio da Companhia Holandesa das Índias Orientais, operam como testemunho de um passado colonial e são apresentados na exposição contemporânea sobre a madeira de um banco moderno. Vo desenha, no conjunto dessa obra clima, uma arqueologia histórica a ser espreitada que envolve questões de conquistas, colônias, trocas comerciais e pressão cultural. Ao abordar o trabalho de Vo, Claire Bishop lembra uma das tendências da arte contemporânea adotadas desde os anos 90. Práticas nas quais artistas se valem de pesquisa de arquivos para remontar histórias marginais negligenciadas. O

169

Cito Waly Salomão "Eu não sou um fóssil, sou um míssil". PERRONE­MOISÉS, 2004. Banco com almofada, desenhado por Finn Juhl em 1953 Palisander (Dalbergia nigra) e bordas de latão, almofada dobrável amarela. 40 × 182 × 45 cm cada 171 03.01.1752, 2015. Nove pratos de porcelana, depósitos marítimos, conchas 24 × 37 cm. "Nanking "Nanking Cargo" é o nome dado pela casa de leilões da Christie aos itens recuperados em 1985 do “Geldermalsen”, um navio do século XVIII holandês East India Company que afundou quando partia de Guangzhou conhecida no Ocidente como Cantão, o paraíso da “pirataria”. Capital da província de Guangdong a cidade fica localizada no sul do Hong Kong. 170


107

trabalho que realizo dentro da estação de escuta e espreita apesar de não abordar direta e exclusivamente com trauma pessoal, recupera, de certa maneira, uma região esquecida da história dos engenhos e da escravidão, além de englobar também um área de subúrbio onde se confrontam questões negligenciadas como as visitantes dos presídio e figuras marginais como os traficantes e meliantes dos morros das cercanias. Durante a pesquisa esse trabalho, me despertou o interesse pela sua característica de ambiente doméstico aparentemente simples e silencioso alinhado com enxertos de objetos de temporalidades díspares. Sculpture Gardens , 2016 | Virginia Overton

Imagem 5 Virginia Overton Sculpture Gardens , 2016, vista interna da galeria. Whitney Museum , NY

Entre os muitos estranhamento vividos no embate com o trabalho artístico, ter 172

experimentado Sculpture Gardens

de Virginia Overton figura como um marco.

Desde que círculo no ambiente da arte contemporânea, essa montagem, assim

172

http://whitney.org/Exhibitions/VirginiaOverton


108

como "Mothertongue", passou a ocupar lugar de destaque pelo aspecto desconcertante e intrigante de seus elementos. Visitei a mostra em setembro de 173

2016, nas novas instalações do Whitney Museum of American Art

, em Nova York.

O agrupamento de objetos díspares e herméticos pela fisicalidade e falta de objetividade das peças definem uma montagem, arrisco, com qualidades ilusionistas. As peças vistas, na sala do museu, poderiam fazer parte de uma garagem, um celeiro ou simplesmente uma fração do mundo comum dos objetos. Numa das amplas salas envidraçadas dos últimos andares do prédio, experimenta­se a estranheza de um grupo de peças elaboradas com materiais industriais e naturais. Um presunto seco pendurado no teto acima de um pedaço de madeira, um feixe de tubos de metal suspensos por fitas amarelas, um tronco lixado de pinheiro cortado em 4 pedaços e disposto como se tivesse em seu lado avesso, uma caixa Kleenex sobre uma outra caixa maior, apoiada diretamente sobre o piso e decorada com a imagem de uma cachoeira de onde podia se ouvir som da água. De dentro da sala envidraçada, avistava­se, ao ar livre, o outro conjunto de peças de Sculpture Gardens. A atmosfera provocada pelo trabalho empurra o senso comum. Experimento o nonsense . O ar difuso embaralha partes, conecta e desconecta objetos. Entro no ambiente como quem entra num jogo de maneira desinteressada, mantendo­me em estado de suspensão de sentido em meio a objetos simultaneamente familiares e incompreensíveis. Os materiais processados e industriais associados a cultura cotidiana reforçam a sensação de colisão de ideias diante do apuro e assepsia da organização e do design das próprias peças. Não há síntese da consciência, interpretação ou verdade. Não há redução. Dessa experiência sensível não se extraem ideias totalitárias, apenas rastros. O trabalho desafia o público que certamente, como eu, indaga sobre a constelação heterogênea de sentidos daquelas peças reunidas na

173

Novo prédio no Meatpacking District, projetado por Renzo Piano. O espaço de 50.000 pés quadrados abriga uma extensa coleção de arte contemporânea do século 20 dedicada a obras de artistas vivos.


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sala do museu. A combinação e o reconhecimento dos objetos encontrados se mostram em atrito com a estranheza dos mesmos.

Imagem 6 Virginia Overton Sculpture Gardens, 2016, vista externa da galeria. Whitney Museum , NY

A montagem com ares rapsódicos acontece nos dois ambientes. São duas as áreas marcadamente separadas entre si pela arquitetura e pela vidraça que se estende na largura da galeria. O blindex separa os ambientes. Plano e contraplano funcionam, de modo concomitante, como obstrução e possibilidade de avistar as paisagens dos dois ambientes. Ou seja, uma área da instalação opera a céu aberto de onde se vê a parte interna através do vidro e da outra, a do cubo branco, se avista a paisagem da instalação externa. Os jardins­escultura – Sculpture Gardens é o título do trabalho – incluem os dois ambiente e compartilham imagens. Conjugam a expansão e o recolhimento, o aberto e o fechado, além de coparticiparem de uma intermediação. O trabalho insere o corredor que dá acesso ao lado de fora, de forma a estimular o deslocamento pelos jardins, a circulação e ainda abrir­se ao firmamento sobre o qual se experimenta a área externa. Ao atravessar o corredor, que liga a sala do museu à


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área externa do terraço, experimenta­se uma grande foto panorâmica. A passagem mostra a paisagem no estilo das imagens do sudoeste americano. Vive­se então nos limiares de, no mínimo, três tipos de atmosferas. Dentro do cubo branco experimenta­se o vantajoso espaço entre os elementos que operam em curto­circuito e geram de uma experiência de ares ocultos e misteriosos. Ao passar pelo corredor, vivencia­se o clima predominante subtropical do deserto do Grand Canyon. A artificialidade da imagem plotada e aplicada sobre a parede divide­se em duas partes. A área do deserto vista de cima ocupa a parte de baixo da parede do corredor. Interceptada pela iluminação, a imagem em sua parte superior apresenta um céu azul cheio de nuvens. O corredor dá o tom do trânsito e da transitoriedade entre os jardins. Nessa região americana, atuam cinturões de ventos. Aqui, eles nos empurram em direção do jardim de inverno, que se contrapõe à instalação e ocupa o terraço. Espaços, todos eles, de construções artificiais, atam objetos e ideias de valores orgânicos permeados por materiais novos e reciclados. Uma outra espécie de natureza se monta do lado de fora. Do terraço, de onde se avista a High Line Park , área verde e artificial da cidade, estão instalados dois cataventos. Conectados a três grandes tanques circulares, esses moinhos de vento arejam a água que alimenta e faz florescer as plantas aquáticas. Em termos gerais, experimenta­se ambiência rapsódica onde pairam ares agenciados por elementos naturais, orgânicos e fabricados pertinentes a qualquer jardim. Os espaços se afirmam em suas diferenças mas conectam­se por intermédio de visibilidade construída pela arquitetura, organização e fatura do design dos objetos heteróclitos. Reunião de díspares em áreas extremamente clean provoca certa atmosfera surrealista como percebi inicialmente. Por isso mesmo onírica e, até certo ponto, reveladora de graus de erotismo. Experimento essa sensação a partir da união da carne do pernil, do lenço de papel acima da caixa kitsch com imagem e som de cachoeira, do tronco desmembrado e unido – revelado em seu avesso ou em sua nudez – e até mesmo pela própria incitação ao voyeurismo, dado que os espaços se avistam simultaneamente. Esse conjunto surge com traços eróticos interferindo, de maneira fantasiosa, na imaginação.


111

Tanto a disparidade dos elementos quanto o caráter ascético, marcado pela quantidade de espaço vazio entre as peças adensadas pelo silêncio do ambiente, corroboram para a criação de um clima misterioso. Por um lado, coexistem no ambiente espaços, embora harmônicos, frios e indiferentes caracterizados não só pela simplicidade e ausência de excessos das formas e cores como também pelos arranjos internos e externos da obra. Esse impacto, ao invés de imprimir uma sensação bucólica ou selvagem, impõe uma personalidade aliada ao zeitgeist do design contemporâneo. Precisamente, certa atmosfera que estabelece conexões com uma espécie de paisagem quase industrial. Por outro, o procedimento da artista aponta para o mal comportamento do arqueólogo, enquanto alguém que examina o universo no qual vive visando à busca de conhecimento e ao estabelecendo conexões. Em outras palavras, alguém que reúne os ossos e resíduos abandonados de seu próprio mundo atualizando a "ligação anímica entre o indivíduo e o objeto examinado174", o incompreensível e familiar. A partir de referências de seu universo particular, ele se abre para novas possibilidades conectivas. Apesar de estranhos, de modo geral, as formas e objetos esbarram fatalmente em itens pertencentes à cultura material de quem visita o trabalho e contempla a natureza dos jardins. Depois da experiência que opera menos na instância da racionalização e não fecha uma interpretação, sabe­se que os itens utilizados foram recuperados da fazenda da família da artista e incorporados a elementos de fotografia e objetos. A composição particular dos itens ali expostos, a coloração e cheiro levaram vários comentaristas e críticos a descrever o trabalho como uma espécie de representação abstrata do sul rural dos Estados Unidos. Curioso saber que Overton, sobrenome da artista, é também topônimo de uma cidade localizada no estado norte­americano do Texas. Overton aborda a sala que reúne os objetos descritos acima – localizada na frente do jardim – como uma máquina de pinball. Para Benjamin, as obras não somente podem ser apreendidas

174

CARVALHO, 2014, p.53.


112

como se expressar para além de seus contextos, por sua aura. Enigmáticas, deixam mensagens para épocas futuras, quando talvez possam ser percebidas. Pensando em retrospecto, entendo que o conjunto de Sculpture Gardens de Virginia Overton, apresentado pela atmosfera rapsódica, pessoal e heteróclita da sala envidraçada , me revelou espécie de pista convincente para a possibilidade de abordar um universo pessoal deslocado da história do "pequeno eu". Dito de outro modo, uma forma de organizar e deslocar objetos apropriados e expropriados da história pessoal que remontam a prática com Benjamin e Flávio de Carvalho. Hoje, noto que talvez a plasticidade do conjunto, a precisão na escolha dos objetos ou o silêncio estrondoso provocado pela que fulguração dos itens de Sculpture Gardens acarretaram uma mudança de paradigma fundadora tanto da minha percepção quanto do meu fazer artístico. Isso significa dizer que o resultado do procedimento da artista e a própria escolha dos objetos me habilitam a recorrer aos objetos e imagens do ambiente da estação e montar tipos de atmosfera, que mesmo carregadas de itens pessoais, possam alcançar notas mais genéricas e contagiantes. Esse exemplo de trabalho, o clima de concisão e confiança na inclusão de peças tão herméticas e conjugação de objetos tão particulares e estranhos,me autoriza a recuperar alguns dos "ossos" da estação . A partir do mergulho nessa obra, mesmo a posteriori , repenso achados e começo a incluí­los ao stimmung que reflexivamente vai se organizando.


113

175

Bowls balls souls holes , 2014 | Mika Rottenberg

Imagem 7 Mika Rottenberg Bowls balls souls holes, 2014, Andrea Rosen Gallery in Chelsea, NY

A musicalidade entre díspares pode ser ouvida também através da conjunção

de algumas peças dotadas de movimento cinemático, engenhocas, "quimeras maquínicas" operadas por pedal, correia transportadora, remo, elástico ou corda. Objetos dessemelhantes, máquinas de acabamento grosseiro, são elementos que protagonizam os vídeos de Mika Rottenberg. Neles imperam corpos fora do padrão estético dos cânones da moda, mobilizados na produção de objetos absurdos e fúteis. As personagens são mulheres usando uniformes, vestidos de garçonete ou roupas de jogging . Elas trabalham em ambientes nos quais coabitam personagens encantados e experiências excêntricas.

175

Mika Rottenberg, 1976 Buenos Aires, Argentina, criada em Tel Aviv, Israel, trabalha e reside em Nova York.


114

Neste trabalho de poros um pouco mais abertos do que nos trabalhos citados anteriormente, misturam­se bolas, almas e buracos. Sente­se mais claramente a temperatura do teor de comicidade. Há notória carga de humor espalhado pela atmosfera. No vídeo, " Bowls balls souls holes" , mulheres colhem suores dos corpos, outra mulher chama os números na sala de bingo, usando uma máquina que seleciona aleatoriamente bolas numeradas. O clima do trabalho faz o absurdo parecer plausível e o mundano mágico. No ambiente expositivo, habitam um ar condicionado que pinga em cima de uma frigideira aquecida por um fogão de uma boca – Tsss , 2013 –, bolinhas de bingo que giram dentro de uma máquina conectada a uma parede igualmente giratória, rabos de cavalo que sacolejam presos à parede da sala – Ponytails , 2014 –, onde se projeta o vídeo que dá nome à mostra. Há igualmente no ar, cargas de observações e comentários de ordem política. O vídeo mostra materiais produzidos mecanicamente por corpos desajeitados que mal cabem nos espaços de confinamento nos quais trabalham. Ocupam­se ambientes ambíguos, com uma porção extra de charme, quando se mergulha nas instalações de Rottenberg. Experienciei três deles. Bowls balls souls holes

176

foi a primeira montagem que exibia o vídeo Tropical Breeze , 2004. A

essa seguiram­se duas mais, " NoNoseKnows

177

" na 56 a Bienal de Venezia, em 2015,

e Cosmic Generator , em 2017, d urante o Münster Skulptur Projekte.

De forma geral, os três trabalhos citados dialogam entre si. São universos de

linguagem e imagens disruptivas. A abordagem multimídia que se utiliza de espaços reais para criar o impacto físico sobre quem assiste o vídeo, ao mesmo tempo, confronta recursos e objetos esculturais de qualidade surreal. Se há uma preocupação em narrar uma história, ainda que às vezes pareça tortuosa, essa narrativa segue uma lógica interna e se conecta a sentimentos abstratos e ritmos dissonantes. Sobre os trabalhos, Rottenberg comenta que as peças, de maneira abstrata, sempre obedecem a uma forma básica, uma espacialidade e narrativa, em

176

A mostra tem o mesmo nome da peça central, um vídeo de 28 minutos Bowls Balls Souls Holes . É uma viagem que se estende no tempo e no espaço, desde a ação em um salão de bingo no Harlem até o derretimento do gelo em um mar polar e hotel sob a lua cheia das profundezas subterrâneas de um universo paralelo. Além do vídeo Squeeze (2010) e do trabalho Tsss (2013), a instalação de Rottenberg, Bowls Balls Souls Holes (2014), instalados na Andrea Rosen Gallery , Chelsea, NY 177 https://www.youtube.com/watch?v=kqIWVD1Xbg4


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muitos aspectos, inextricáveis. Alguns têm estrutura horizontal, como o Tropical Breeze , onde personagens dirigem um caminhão sobre faixas lineares. Outros são circulares, como o trabalho Cheese , 2007 . Alguns são verticais. Outros como Bowls Balls Souls Holes funcionam como uma espécie de sistema solar, baseado em estrelas, campos magnéticos, elétrons. “A estrutura atual de toda a peça é como um prédio estranho que tem esses diferentes compartimentos ou ideias que zumbem em torno um do outro178” conclui a artista. Rodados em ambientes especialmente construídos para esse fim, os vídeos, em geral, exploram um colorido intensamente visceral. Ou seja, os personagens de Rottenberg são também suas ferramentas. Em seus aspectos visuais são como dimensões, texturas, sons ou formas e implementam a uma sensação contínua de prazer das narrativas nas quais transbordam em espécie de atmosfera pop. Nesses ambientes as personagens se ocupam com uma produção contínua de mercadorias. Cenas nas quais são negociados e transacionados estados de fluidos e materialidades: suores, mucos, gosmas, líquidos. A interação dos fenômenos biológicos e industriais – as ostras vivas e carnudas em NoNoseKnows , por exemplo – fornece um tipo de sistema organizador imerso em espaço estranho e até erótico produzido pelo confronto entre a natureza e a indústria. “É uma coisa engraçada e muito feminina. Tem todo esse muco, toda essa vulgaridade, tem algo bonito por dentro179”, comenta Rottenberg sobre o trabalho. Parece que a taxa de comicidade que comparece nos três trabalhos diminui em relação à sua data de realização sem deixar de explorar a sensualidade. Quero dizer, o que parecia cômico no trabalho de 2014 ganha uma carga de seriedade e espessura política nos trabalhos dos anos subsequentes. Ao entrar na instalação " NoNoseKnows ", 2015, antes que seja possível assistir ao vídeo, notam­se recipientes plásticos – peneiras e sacos lotados de pérolas – organizados em

178

“The actual structure of the entire piece is like a weird building that has these different compartments or ideas that buzz around each other” "On Irritation and Pearls: Mika Rottenberg's Latest Film Installation ...." 9 mai. 2015, https://www.blouinartinfo.com/news/story/1151906/on­irritation­and­pearls­mika­rottenbergs­latest­film. Acessado em outubro de 2018. 179 “ It’s a funny thing, and a very feminine thing. It has all this mucus, all this grossness, and then it has something beautiful inside. ” idem


116

estantes de metal ao redor de uma bancada de trabalho ou balcão de atendimento. As luminárias baixas de luz fria sobre a bancada compõem e antecedem as portas industriais que levam ao vídeo.

A taxa de comicidade decai e aparece um componente frontalmente revelador

na obra, a maior tensão entre as partes. Ao apontar para o mercado global entre a China e Estados Unidos e o trabalho escravo, a artista oferece uma visão pouco animadora do futuro. A instalação apresenta uma realidade pesada, mulheres chinesas confinadas inserem pequenos pedaços de tecido em moluscos nas ostras. Atualiza­se a monografia que escrevi, em 2014, intitulada Da irritação da 180

mucosa é que surge a pérola .

O que produz a pérola é a irritação de sua mucosa.

Alergia, nesse caso, produzida pelas mulheres que encetam, com agulhas de tricô, material estranho no interior dos moluscos. A alergia surge como protagonista e provoca espirros causados também pela alergia ao pólen das flores. A grande operária, instalada no piso acima da produção de pérolas, espirra de forma explosiva, gerando pratos de comida chinesa e macarrão, alimento das trabalhadoras. Uma cadeia alimentar de excrescência. O abjeto produzido por nossos corpos, e pelas ostras, lembra também os maus hábitos alimentares. A presença desses tipos de fluidos incrementa as taxas sensuais de seriedade da instalação. São figuras tão tatéis que transmutam o ar do ambiente. A comicidade decresce ainda mais em Cosmic Generator . A experiência, aberta ao mundo, instalada numa antiga loja, impõe­se, dessa vez, em 360 graus. Ou melhor, a instalação temporária ocupa uma loja decadente na rua Gartenstraße 29, na cidade de Munster, Alemanha. Asian shop é o nome do vídeo de 20 minutos instalado num dos setores da loja, que problematiza a circulação livre de mercadorias entre a cidade mexicana de Mexicali e Calexico, a cidade californiana do outro lado da fronteira. Um sistema de túneis acessados através de lojas e 180

Neste trabalho monográfico produzido ao término da disciplina "Trauma, trauma, trauma" – ministrada pelo Prof. Dr. Cezar Bartholomeu –, mesclo considerações sobre arte e psicanálise, naquilo que algumas obras de artistas como Mounira Al Solh e Vandy Rattana tangenciam noções psicanalíticas como libido, pulsão, trauma, sintoma e perlaboração. A partir de Bernard Stiegler, e da ideia mesma do fazer artístico como processo político­estético de ressingularização numa sociedade hiperindustrializada, reflito o que sejam novas formas de combate ao que o autor chama “miséria simbólica”, resultante do esgotamento dos investimentos libidinais sobre objetos genéricos, padrão, em detrimento das singularidades que nos constituem como sujeitos, artistas ou não.


117

restaurantes na Chinatown de Mexicali aparece como uma possível conexão entre os dois lugares. Ao passo que a própria loja se correlaciona à localidade onde se inscreve a obra clima homônima ao vídeo. A montagem em ambiente de comércio tradicional degradado, bem como as prateleiras com pouquíssimos itens dispostos contribuem muito para a afirmação da atmosfera fantasmática que parece figurar mais artificialmente nos outros trabalhos. A loja abandonada, extinta pela exploração capitalista, encarna os espaços desocupados aparentemente sem proprietários. Assim como nas instalações anteriores, funciona como um simulacro de uma existência social indigesta. Os trabalhos de Mika citados e visitados por mim começam a partir de ações 181

física de corpos

ao estabelecerem diálogo com a desmaterialização do mundo e

se conectarem através de algum tipo de mecânica ou maquinaria. Embalam, empacotam, giram em torno da produção de itens abstratos e espirituais. Os protagonistas, imersos em sons onomatopeicos, usam a sedução do movimento dos fluidos, peles, commodities e rebatimento do mundo onde todos os itens, mesmo os mais obtusos, são comercializados e se misturam à decoração kitsch ou pop .

A atmosfera tátil confere forma a transações em ecossistemas apocalípticos e

labirínticos. Reinventa espaço e tempo na produção de mundos paralelos através de narrativas fantásticas em geral operadas no feminino, dentro da estrutura, sem dúvida poderosa que alimenta perpetuamente a máquina consumidora alimentícia. As atmosferas impressas pelos vídeos e engenhocas arquitetônicas comprimem e eletrificam corpos, funcionam como ponteiros desorientadores, bem humorados, grotescos e sensuais sobrecarregados pelas economias globais interconectadas do mundo das mercadorias. 181

Em dado momento da pesquisa descubro, através de entrevista com a artista, que existe um forte comércio de corpos deformados e de pessoas que vendem ou alugam aparências e parte dos corpos.


118

Notas finais

Imagem 8 Rachel Harrison Perth Amboy , 2016, MOMA, NY

Dentre algumas outras obras clima as quais tive a oportunidade de aferir 182

atmosferas rapsódicas, destaco o trabalho Perth Amboy Harrison.

183

, 2016, de Rachel

Em uma das salas do Moma, NY, a artista arma um labirinto constituído

por paredes de papelão cru que conduzem a pedestais conjugados de objetos estranhos. Dentre outros, noto o bibelô de monge que observa a pedra. Um pouco do maior que ele, uma boneca de brinquedo se encontra sentada numa cadeira de 182

As fotografias foram tiradas em Perth Amboy, Nova Jersey, depois que a artista leu no jornal que a Virgem Maria apareceu em um painel de vidro na janela de um apartamento no andar de cima. Em vez de documentar o espetáculo do evento, as fotografias concentram­se na janela onde a aparição teria acontecido. A série narra um ritual que surgiu tão espontaneamente quanto a aparência da Virgem Mãe: o toque do vidro. A face do participante é raramente vista, ao contrário, o que surge é a representação da identidade pessoal através da especificidade e expressividade do toque. 183 http://www.greenenaftaligallery.com/exhibitions/rachel­harrison6. http://www.greenenaftaligallery.com/attachment/en/53da626f69921a805e010656/TextOneColumnWith File/54b0816ba1c138c47be1b34f


119

rodas em miniatura. Ela olha para uma fotografia presa à parede. O bibelô de um índio, ao lado de um par de óculos ray ban em tamanho real, contempla uma pequena fotografia de pôr de sol que se encontra apoiada sobre um mini cavalete de pintura. Elementos díspares deflagradores de reiterada desorientação e orientação. Nas quatro paredes da sala, que circundam o labirinto, são exibidas fotografias justapostas da fachada de uma casa. Todas as imagens apontam para a mesma fachada e revelam uma atmosfera de mistério. Essa obra clima de cadência rapsódica exalava fluxo de peregrinação. A inquietação entre fiéis ávidos por tocar lugar do milagre se presentifica. A sala labiríntica onde, através das fotografias, se testemunha os resíduos da aparição coincide com o ambiente no qual se cumpre promessa com a oferenda de objetos. Certamente, outras obras clima de características semelhantes poderiam ser abrigadas nessa categoria na qual a fricção entre o mergulhador e o objeto artístico, munido de aura, auxilia a produção de um clima. Objetos agem, atuam sobre os ambientes, irradiam­se no espaço e contribuem para formação das atmosferas. Em outras palavras, a maneira como as coisas causam uma certa impressão sobre o vivente e modificam seu humor alteram o modo como se sentem ou percebem o ambiente. Isto é, as qualidades das coisas, em si mesmas, não pertencem às coisas, exceto que estejam em relação a um sujeito. Espaços, na medida em que são “tingidos” pela presença dos objetos, pessoas ou constelações ambientais, são esferas da presença de uma realidade no espaço percebida pelos sujeitos. Articulam sua presença através de qualidades. 184

Vale também lembrar os procedimentos da artista Camille Henrot

. Dentre

muitos trabalhos, Grosse Fatigue (2013), desenvolvido durante o período de 185

residência no Smithsonian Institution National Museum of Natural History,

narra

uma cosmogonia através de montagem de trechos gravados dentro de um dos maiores acervos de informação do mundo por meio da exploração de estratégias de coleção e acúmulo de objetos

184

186

187

. " Cremaster " de Matthew Barney,

" Grandville and

Nascida em 1978, Camille Henrot vive e trabalha em Nova York. Disponível em http://www.mnh.si.edu. Acessado em 11/03/2015. 186 O desafio do trabalho consistia em abordar a teoria do universo e tratar os excessos do progresso globalizante que podem levar a uma grande fadiga. 185


120

the decision at Grandville" e " Who's Exploiting Who in the Deep Sea?", de Cosima Von Bonin

188

são também exemplos de cadência atmosférica rapisódicas. Entre nós,

chamo atenção para algumas obras clima como "Mágico Nú ", 2010, de Laura Lima e “Fruto Estranho”, 2010, de Nuno Ramos. Abordar esses outros volumes seriam outras dobras. Uma piada que indaga sobre qual seria a diferença entre um gato e um tijolo tem a seguinte resposta: para diferir um do outro, basta jogar os dois na parede. O que miar é o gato. O feedback a uma pergunta de natureza semelhante se aproxima do questionamento presente na piada: como as ideias viram trabalho, ou melhor, no universo de muitas ideias, em que ideia apostar? Quais recursos precisam aparecer numa escolha? O raciocínio dos artistas desse núcleo rapsódico parecem acompanhar a 189

piada. "Jogamos as ideias na parede, a que permanecer grudada é a escolhida.

"

Virginia Overton inicia a apresentação do " Sculpture Gardens" com tal afirmação. O intervalo entre essa sentença despretensiosa e a proferida pela alemã Cosima Von Bonin "I'm many" "I catch everything that is in the air" não é muito grande. Lembra também o excessivamente debatido poema de 1897 de Mallarmé "Um lance de dados que jamais abolirá o acaso". No entanto, todo o resultado aleatório que provenha do jogo de dados, uma vez produzido, singulariza­se como irreversível e contingente.

187

Como referência à atmosfera criada pelo trabalho de Matthew Barney, lembro da exposição no Museu Peggy Guggenheim em Veneza durante a Bienal de Veneza de 2007: All in the Present Must Be Transformed: Matthew Barney and Joseph Beuy s. Além do trabalho dos artistas, procederem de forma rapsódica, a exposição, acreditamos, utiliza­se desse mesmo procedimento ao aproximar as preocupações estéticas e conceituais de dois artistas, separados por uma geração e pela geografia. A mostra explorou nos trabalhos dos dois artistas o uso dos materiais, seus interesses em metamorfose, seu emprego de estruturas narrativas, a relação entre ação e documentação, e ainda o lado performativo das práticas, evidenciando a maneira como ambos performam sua produção escultórica. Organizada por Nancy Spector, a exposição estreou no Deutsche Guggenheim em Berlim antes de viajar para a Coleção Peggy Guggenheim. 188 A artista alemã conjuga em entrevista a euromaxx afirma " I'm many. "I catch everything that is in the air" https://www.youtube.com/watch?v=zfari6sbAjk&app=desktop 189 " I threw a lot of ideas at the wall to try to find something that would take root here " https://www.youtube.com/watch?v=8I2P1Z9cOAw


121

3.1.2 Cadências contraespaços Como apresento no capítulo primeiro, experimentos e procedimentos artísticos têm oferecido maneiras de tratar a localização espacial. O acesso ao trabalho de arte além de contemplativo, frontal e tridimensional foi vivenciado em termos físicos, interativos, imersivos, sensorial dentro de uma perspectiva econômica, política e cultural. Nesse cenário de diversidades, tornaram­se importantes as características topográficas intimamente vinculadas a trajetos e ao trânsito em uma determinada superfície – um corpo no espaço – de projeção. Recorro ao termo topologia para essa categoria de atmosfera. O vernáculo topos , do grego, indica "lugar" e logos, “estudo”. Ramo da matemática atento às relações qualitativas das formas no espaço, a análise situs , preocupada­se menos com a medição de área de superfície, ângulo e perspectiva – propriedades euclidianas – do que com as relações entre pontos no espaço e no tempo.

190

Duchamp estava lendo os ensaios de Poincaré sobre topologia algébrica e teoria dos conjuntos na década de 1920. O termo surgiu repetidamente nas revistas de ficção científica americanas e britânicas publicadas a partir de 1930. Aparece novamente nas palestras de Lacan, na década de 1960, e nos primeiros escritos de Deleuze. Sabe­se também da importância desse conceito para a estrutura da mente, levantada por Freud, no começo do século XX, ao afirmar que "o eu não é mais 191

senhor em sua própria casa

". O inconsciente retira do consciente qualquer

garantia, desaloja a razão. A referência espacial, tomada para abordar a relação do

190

BARIKIN, 2012, Kindle Locations 3359­3369 " The historical context for the development of analysis situs (topology) by mathematician Henri Poincaré in the 1800s was marked by a radical reconfiguration of both the conception of history and the philosophies of time. The aftermath of such historico­temporal innovations has since been addressed – with explicit reference to topology – by a small but dense selection of European and American artists over the course of the last century, including Marcel Duchamp, Roberto Matta, Dan Graham, Robert Smithson, Vito Acconci, and Stanley Brouwn. For the most part, these engagements with topology were responding to literature published outside the discipline of mathematics, in fields such as science fiction, art criticism, philosophy, and psychoanalysis. Freud was thinking about topology and the structure of the mind in the early 1900s; Duchamp was reading Poincaré’s essays on algebraic topology and set theory in the 1920s.4 The term cropped up repeatedly in American and British science fiction magazines published from the 1930s onward, and appears again in Jacques Lacan’s lectures during the 1960s and the early writings of Gilles Deleuze." 191 FREUD, 1917/1944, p.295.


122

inconsciente, revela a importância do lugar e do espaço na concepção do aparelho psíquico. Lacan, no desenvolver de sua teoria psicanalítica, encaminha a topologia para além de uma figura de metáfora. Trata­se de literalmente tomar o espaço e sua configuração na reflexão sobre o sujeito. A ideia fundamental na topologia lacaniana é que a verdadeira subversão do espaço acompanha a subversão do sujeito. A 192

"torção da superfície como na fita de Moebius no que diz respeito ao inconsciente

" , a topologia vira o imaginário pelo avesso e o eu se torna fita moebiana. A fita de Moebius, figura cara à Lacan, subverte em sua geometria a representação comum do espaço. Com Tania Rivera, acompanha­se o percurso dessa fita , passando o dedo por 193

sua superfície, de dentro para fora, em continuidade, de fora para dentro

. Com

esse gesto deslizante, identifica­se a torção de uma "cambalhota no cosmos sobre si mesmo", como lembra Rivera através da afirmação de Mário Pedrosa. O método terapêutico delineia terrenos de questões comuns com a arte ao conjugar a "reversão do eu e do mundo, [...] que nos convida a reconfigurar a relação com nós mesmos e com outro". O espaço aqui entendido não aparece como um simples fundo, sobre o qual se destacam corpos. São sempre lugares que "só aparecem como paradoxos em atos nos quais as coordenadas se rompem, se abrem a nós e acabam por nos incorporar"

194

.

Para Michel Foucault nossa época talvez seja, acima de tudo, a época do espaço. Espaço multiplicado e simultâneo da rede que conjuga outras formas de espaço: público, privado, sagrado, familiar, social, espaço cultural, de trabalho, de lazer. Há também o espaço torcido da casa desfeita, do consciente e inconsciente, o espaço interno onde se sonha e vive paixões. Foucault pensa tais espaços seja como de posicionamentos de repouso, fechado ou semifechado, seja em termos de suspensão; neutralidade ou de inversão. Estes últimos são de dois grandes tipo: as utopias sem lugar real e os espaços reais onde as utopias são realizadas. Denominados pelo pensador francês como contra­lugares ou heterotopias, são 192

RIVERA, 2013, p.11. idem. 194 DIDI­HUBERMAN, 2005, p.178. 193


123

espécies de lugar fora de "todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição geográfica na realidade195". Neles se pode viver uma "espécie de experiência de união ou mistura análoga à do espelho196". Com Foucault pode­se rever heterotopias capazes de assumir múltiplas formas. Podem ser de crise, de desvio, acumulativas, ligadas a pequenas parcelas do tempo – heterocronias como museus e as bibliotecas, por exemplo. Podem ser de festival, fugazes, transitórias lugares onde se organizam eventos, feiras, resorts , a ritos religiosos e de compensação. Lugares como o celeiro ou fundo do jardim – espaço supra­sagrado no centro, ocupado pela fonte de água, heterotopia feliz e universalizante desde os princípios da antiguidade. E também podem ser os contra­lugares como, por exemplo, a grande cama dos pais onde se descobre o oceano, o céu e a floresta

197

.

As cadências topológicas aqui, ganham esse contorno. De certa maneira são instalações "cósmicas" a meio caminho das questões espaciais da land art . Estão entre o parque e o deserto, em alguns trabalhos são utopias, em outros, distopias, e sempre contra­espaços . São extensos territórios que nascem "na cabeça dos homens, [...] no interstício de suas palavras, na espessura de suas narrativas, [...] no 198

lugar sem lugar de seus sonhos, no vazio de seus corações

". Fabulados,

assumem formas variadas. Podem ser experimentados, por exemplo, no cruzamento com a Ilha grega de Cítara e a cidade argentina de Santa Rosa – provincia de La Pampa. Entre a Fundação Bienal e o parque do Ibirapuera, ou ainda no percurso que cobre o Central Park, Nova York até o continente da Antártica. Também é possível experimentá­los na versão de pequenos continentes, como o tapete das mil e uma noites ou atendendo aos chamados da igreja Reino dos Céus. As obras clima referidas aqui cadenciam contra­espaços pela carga de inventividade e diversidade positiva com que se montam. Contrariam o status quo e operam provocações. Não existem apenas em sua fisicalidade, são também mentais. No caso, vividos por um conjunto de combinações de palavras, respostas,

195

FOUCAULT, 2013, idem 197 ibidem , p.20. 198 ibidem , p.19. 196


124

reações, paródias, relações, ações e contra ações. Durante a pesquisa, encontrei uma imagem de uma pintura que estabelece afinidades primevas com esse cadência de natureza topológica: " Monk by the sea " de David Caspar Friedrich.

Imagem 9 Caspar David Friedrich, Monk by the Sea , 1809­10. 110 x 171.5 cm. Nationalgalerie, Staatliche Museen , Berlin

199

O monge medita diante do "numinoso."

O homem, embriagado em sua

verticalidade, se mistura ao movimento livre do universo. A atmosfera engolfante espiritualiza o monge que nota "a terra a dar voltas". Percebe a terra fazer coitar animais e homens, os mesmos que "quando coitam fazem dar voltas à terra". Uma imagem da força natural é repartida e agrupada pelo som de seu silêncio retumbante

199

BRAUER, 2007, p.48. O entendimento do "numinoso" aparece pela primeira vez na literatura moderna, na obra de Rudolf Otto "O Sagrado" e diz respeito a qualidade incomum e perturbadora que nos escapa e entorpece a imaginação. Otto incorporou também outro termo: mysterium tremendum et fascinans , a sensação avassaladora de admiração de pavor e horror.


125

200

diante da verticalidade do ser. Em jogo, os dois eixos da vida terrestre apropriado de sua condição vertical, "deixa­se polarizar pelo céu

". O homem

201

"

Na atmosfera da obscura faixa­continente, escondem­se clarões. São impulsos assim como informações pessoais, históricas e culturais. No misterioso horizonte do monge e do mar, habita o princípio da capela e das pinturas de Mark Rothko. O artista, creio, recebe desse espaço as primeiras emanações que o ajudarão na sua construção acústica. Lugar que conjuga a síntese do pensamento, a experiência física e a imaginação espiritual de sua capela, constituindo, por essa via, um contra­espaço. De outra maneira, considero Rothko o inventor do monge de Friedrich. O último que repete o primeiro.202 "Nada consegue travar a descrição fantasmática e aventureira da existência". O sujeito participa do silêncio e atinge a malha de espaço­tempo causada após o colapso gravitacional de uma estrela. Volto a gravitar o buraco negro característico do período no qual frequentei as quatorze telas da Capela ecumênica de Rothko, inaugurada em 26 de fevereiro de 1971, na cidade de Houston, no Texas. A verticalidade teológica é interceptada por horizontais, como ilustra George Bataille ao descrever "a consciência imediata e variada da vida humana e os dados que se 203

consideram inconscientes, mas são constitucionais dessa vida"

.

Os menires pictóricos de Rothko são os eixos perpendiculares que encontram em Bataille o intuito de carregar também com eles uma mitologia que não se impõe

200

BATAILLE, 1985, p. 20. A repartição das vidas orgânicas pela superfície do solo deu­se em dois eixos, vertical um deles, que prolonga o raio da esfera terrestre, e o segundo horizontal e perpendicular ao primeiro. 201 idem . Só o ser humano, [...], soube fugir da horizontalidade calma e animal, conseguiu apropriar ‑s e da ereção vegetal e em certo sentido deixou polarizar ‑s e pelo céu. 202 [...] um alcoólatra é alguém que está sempre parando de beber, ou seja, está sempre no último copo. […] É um pouco como a fórmula de Péguy, que é tão bela: não é a última ninféia que repete a primeira, é a primeira ninféia que repete todas as outras e a última. Pois bem, o primeiro copo repete o último, é o último que conta. […] E o que quer dizer o último? Quer dizer: ele não suporta beber mais naquele dia. É o último que lhe permitirá recomeçar no dia seguinte, porque, se ele for até o último que excede seu poder, é o último em seu poder, se ele vai além do último em seu poder para chegar ao último que excede seu poder, ele desmorona, e está acabado, vai para o hospital, ou tem de mudar de hábito, de agenciamento. De modo que, quando ele diz: o último copo, não é o último, é o penúltimo, ele procura o penúltimo. Ele não procura o último copo, procura o penúltimo copo. Não o último, pois o último o poria fora de seu arranjo, e o penúltimo é o último antes do recomeço no dia seguinte. DELEUZE, 1997, “letra B de Beber” (posição 00h29m55s) Disponível em <https://youtu.be/s8mWAj3ufmQ?t=29m55s>, acesso em 23/03/2018. 203 BATAILLE, 1985. p.21.


126

à uma observação dedutiva. Mark Rothko valoriza a imersão no sem­forma do cosmos que excede a representação. As atmosferas contra­espaços também podem ser percebidas e absorvidas, com apuro, em trabalhos que deslocam ou esmaecem o privilégio da experiência retiniana. Montam um conjunto de sonoridades, não uma plataforma física, mas espacialidades concretas. Acompanhadas muitas vezes de narrativas, provocam sombras, ecos e reflexos por meio do real e seus duplos ou fantasmas caros a Rosset. Montam territórios de imersão, piscinas profundas ou poças rasas. Na perspectiva de Rosset, colocamos anteparos diante dos fatos reais para nos defendermos. O caráter traumático do real nos leva, enquanto sujeitos, a sobrepor realidades. Tal processo gera duplos que acabam por privar o sujeito do imediatismo do real num processo de depreciação do presente enquanto real. Para o autor, ilusão metafísica por excelência. Inatingível, o real, além de insignificante e único, será sempre um duplo do qual nunca se saberá o original. A realidade, sem poder fornecer significados além dos que se apresentam de modo singular no aqui e agora, é idiota. Por esse motivo, demanda um anteparo. Em resumo, não há duplo capaz de captar o real. Do real não se consegue sequer conceber uma imagem. Além dos mencionados, há também duplos os quais foram denominados pelo pensador francês de “duplos menores” ou “duplos de proximidade”. São aqueles produzidos pela pintura, pela fotografia e pela reprodução sonora, e que não constituem duplicações ilusórias do real. No caso, a fotografia com a reflexão, a reprodução do som com o eco e a pintura com a sombra partilham da qualidade de duplos que, ao contrário de encobrir o real, o afirmam. Em Impressões fugidias,

204

Rosset toma a sombra, a reflexão e o eco como

inerentes ao real. Complementos esses que, entre a existência que se deixa ver e tocar e sua suspensão, garantem uma proximidade imediata com o real. Ao mesmo

204

ROSSET, 2004. p. 21. De acordo com o autor, no final do prólogo "Este livro pode ser considerado complemento e conclusão de um ciclo de obras sobre a questão do duplo que começou em 1976 com o "Real e seu duplo" do qual se seguiu uma série de livros que giram em torno da mesma questão, sendo o mais recente o Regime das Paixões publicado em 2001"


127

205

tempo, disparam ou se afastam sem que tenhamos tempo de os apreender.

Para

Rosset, a proximidade desse duplo “menor” tem uma grande semelhança com a fantasia erótica que desaparece ao ser perseguida, dando lugar a outra que se tentará alcançar em vão. Semelhante a um fogo­fátuo, assim que se tenta 206

apreendê­lo e imobilizá­lo, desvanece

.

Esses três duplos fugidios – a sombra, duplo imediato do homem; o reflexo, acompanhante do homem; e o eco, ao contrário dos anteriores, duplo puro, sem mestre – são companheiros próximos ao real. São espécies de assinaturas do real, na sua condição de fontes inesgotáveis de fantasmagorias, tão caras à arte. Ao mesmo tempo são, contudo, fiadores da materialidade que duplicam. Perfeitamente privado(s) da materialidade e constitui(em) apenas a “impressão passageira” de um corpo que acompanha o corpo.

207

Duplos paradoxais e fantásticos possíveis, graças aos recursos da pintura, do cinema e da música, vinculam­se à imaginação. Não são fidedignos ao modelo. Não correspondem ao sobrenatural ou ao divino. Extraordinários e habituais a um só tempo, são subversões. Não guardam, em absoluto, qualquer semelhança com a ilusão inerente à ideia dos duplos em geral: recursos de ilusão oracular, ilusão metafísica e ilusão psicológica que alteram e perturbam profundamente a razão . 208

No livro Fantasmagorías, seguido de lo real, lo imaginario y lo ilusório,

Rosset afirma que as reproduções do real são fontes inesgotáveis de fantasmagorias. A fotografia, a reprodução sonora e a pintura são de fato “fiéis aos

205

Provavelmente será objetado aqui que uma vibração sonora é sempre material, seja um som emitido ou esse som ecoado pelo eco. Mas precisamente: é o mesmo som, e a materialidade do som reproduzido é apenas um simulacro da materialidade do som emitido. O eco é o mesmo som, alterado é verdade, como o que é ecoado. On objectera sans doute ici qu'une vibration sonore est toujours matérielle, qu'il s'agisse d'un son émis ou de ce son renvoyé par l'écho. Mais précisément: il s'agit du même son, et la matérialité du son reproduit n'est qu'un simulacre de la matérialité du son émis. L'écho est le même son, altéré il est vrai, que celui dont il est écho . 206 Cette proximité du double «mineur» présente une grande ressemblance avec le fantasme qui lui aussi s'évanouit, tel un feu follet, dès qu'on essaie de s'en emparer et de l'immobiliser; tel un fantasme érotique qui disparaît dès qu'on le traque, pour faire place à un autre fantasme qu'on s'essaiera tout aussi vainement à traquer, etc. 207 Si le double est le garant de la matérialité de l'objet qu'il duplique, il est en revanche parfaitement privé lui­même de matérialité et ne constitue que l “impression fugitive” d'un corps accompagnateur de corps. Il n'est pas corps mais illusion de corps. ROSSET, 2003 p.18. 208 ROSSET, 2006.


128

duplos de que derivam. Põem em questão real, seja fazendo­lhe justiça seja pelo 209

não compartilhamento do destino usual do duplo.

Nesse ponto, é oportuno refletir como a experiência estética de obras clim a pode produzir duplos de proximidade e se distinguir da experiência que estimula seu bloqueio e produz a anestesia. Será que a arte, porque produz atmosferas menores – reflexo, sombra e eco – pode fazer com que o sujeito, e suas impressões sensíveis, deixem­se levar pela imaginação? Que atmosferas ou cadências seriam essas? Há bons exemplos desse tipo em Janet Cardiff & George Bures Miller

210

,

211

como a série walks Drogan’s Nightmare , 1998, apresentada na XXIV Bienal de São Paulo, ou a obra clima Alter Bahnhof Video Walk , 2012, disponível durante a dOCUMENTA 13. Ambos se utilizam dos sistemas de audio­tour próprios de museus e instituições de arte. Orientados pelas instruções do áudio, propiciam a construção de territórios atravessados por fragmentos, ruídos de rua, como eu mesma pude experimentar. Tendo em vista que tais obras clima se organizam com a colagem sonora de heteróclitos, diálogos recolhidos do cinema, estratos de histórias policiais, eróticas, novela de rádio, trilha sonora de filmes, considerei inicialmente incluí­los na categoria das atmosferas rapsódicas. Entretanto, a mudança dessa intenção se deu ao perceber a forte aparição de platôs constituídos de indistinguíveis dentro e fora, imaginação e percepção externa, ambiente expositivo e mundo exterior, coletividades e individualidades a um só tempo­espaço. Há outros exemplos de sonoridades graves que recolhi de forças provindas da natureza, uma vez que auxiliam na evolução dessas "construções" contra­especiais . Alguns trapaceiam ao pecar pela excessiva presença de componentes arquitetônicos. Contudo, trabalham igualmente questões atmosféricas profundas. Embrulham o estômago, invadem o labirinto, mareiam, vide o ROSSET, 2008, p.10. Há muitos exemplos de trabalhos dessa dupla de artistas que poderiam ser comentados como The Murder of Crows 2008, The Forty Part Motet , 2001, trabalho solo de Janet Cardiff, FOREST (for a thousand years...), 2012, no entanto preferimos nos dedicar a exemplos de outros aspectos. 211 Catálogo da exposição Roteiros. Roteiros. Roteiros..., parte da 24ª Bienal de São Paulo ­ Um e/entre Outro/s (1998). 209 210


129

experimento com som e ruídos da terra na obra clima Sonic pavillion , 2009, de Doug Aitken, exibida no museu Inhotim, em Minas Gerais. Destarte, esse contra­lugar característico da cadência contra­espaço reporta, de algum modo, ao sentimento de visibilidade e ausência provocado pela experiência do espelho apontada por Foucaulti212. Trata­se, em última instância, de um espaço irreal que me permite ver onde sou ausente, de forma semelhante ao duplo da sombra enquanto imediato do homem, do qual fala Rosset. Este processo incorpora, de acordo com Lacan, uma série de gesto na qual o sujeito experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos da imagem com seu ambiente refletido: o próprio corpo, as pessoas e os objetos que estão à sua volta. Isso quer dizer que a partir do olhar que dirijo a mim mesmo, começo a me auto reconstituir tendo como base o lugar onde estou. A atmosfera emanadas por estas obras clima remete, por assim dizer, a uma reconfiguração do próprio espaço . Pode­se, portanto, auscultar atmosferas que relacionam espaço e sonoridade através de tempestades, ventanias, reverberações de tremores de terra, barulhos das ondas. Ao incluir e mixar sons técnicos – ruídos cotidianos, mundo dos sons naturais, vida acústica de uma cidade, natureza sonora da tecnologia e do trabalho – a música do século XX se transformou em arte que molda deliberadamente ambientes afetivos. Apoiado no estudo de espaços acústicos do World Soundscape 213

Project , fundado na década de 1970 por Schafer

, é possível verificar que a

sensação do som de uma região, ou a sensação evocada por um estilo de vida rural 214

ou urbano é fundamentalmente determinada pelo ambiente acústico específico

.

Tais atmosferas acústicas estão diretamente relacionadas com trabalhos dessa cadência. 212

FOUCAULT, 2009, p. 411­422. BÖHME, 2017, p.131. One of the studies, for example, by the founder of Soundscape, Murray Schafer, dealt with the city of Vancouver. Soundscape researchers distinguished between an acoustic background (which of course changes in the course of the day) and characteristic sound events. It was discovered that, to communicate the character of a soundscape, it is not sufficient just to present a recording; it is necessary to condense and above all to compose. Um dos estudos, por exemplo, do fundador da Soundscape, Murray Schafer, abordou a cidade de Vancouver. Os pesquisadores da Soundscape distinguiram entre um fundo acústico (que, claro, muda no decorrer do dia) e eventos sonoros característicos. Descobriu­se que, para comunicar o caráter de uma paisagem sonora, não é suficiente apenas apresentar uma gravação; é necessário condensar e acima de tudo compor. 214 BÖHME, 2017, p.171. 213


130

Instalado no mesmo museu mineiro, lembramos de Promenade

215

, obra na

qual Dominique Gonzalez­Foerster monta o frescor da floresta numa das galerias do parque. A experiência do caminhar ao som da tempestade tropical amplia o vocabulário sensível imerso no ato de cruzar ou habitar as salas. Cria zonas de intermezzo acompanhadas de impressões perigosas e úmidas, zonas de circulação que contrai mundo interior e exterior. O deslocamento ou percurso é também criador de ambiências intervalares. Pode­se auscultar atmosferas que relacionam espaço e sonoridade através de tempestades, ventanias, reverberações de tremores de terra e barulhos das ondas. Há exemplos em Cildo Meireles, que com toda a contundência material, nos empurram mar adentro, caso de "Marulho ", 1991­2001, e das algaravias das estações de rádio que se avolumam em " Babel". “Missão/Missões ­ Como construir uma catedral” , 1987, é também outro exemplo vindo desse artista que inaugura universo atmosférico na subversão do espaço. "Estudo para o Espaço" e "Cruzeiro do Sul" , ambos de 1969, igualmente desconstroem a relação espacial estabelecida . Subvertem a geometria euclidiana em seus espaços virtuais que variam em escala, valor, energia, territorialidade e maneiras de medir. No caso do Cruzeiro do Sul, especificamente falando, um cubo de 9 milímetros dividido em duas secções – uma macia de pinho e outra dura de carvalho – encontra­se disposto em uma área de 200m 2 da galeria. A união desses extremos funciona como uma ínfima centelha que provoca o deslocamento do sujeito em relação ao próprio eixo . "O eu não tem mais lugar. O pequeno bloco mostra­se capaz de sugar as coordenadas do espaço ilusório e homogêneo. Tornado­se uma espécie de sumidouro, convida o sujeito a 216

atravessá­lo

" O cosmo criado por essa constelação é mais um belo exemplo da

cadência contra­espaço. O contra­espaço opera tanto ao se constituir como experiência temporal quanto ao se impor como espaço de invenção e experimentação de rituais que se

215

Promenade passeio, em francês e em inglês, é uma instalação sonora, 16 alto falantes, oito amplificadores e oito MPEG players Em colaboração com Christophe van Huffel a obra é composta por várias caixas de som que emitem os ruídos de uma tempestade tropical, a obra revela­se no ato de caminhar pela sala de exposição, num passeio ao mesmo tempo cheio de sensações e radicalmente separado do exterior. 216 RIVERA, 2013, p.156.


131

produzem pelo deslocamento corporal. Isto é, agem como provocadores de movimentos dotados de espessuras, inflexões, contornos, dilatações, potências de vida. Neste sentido, as cadências contra­espaço se configuram enquanto afirmação de um espaço ativo onde se experimenta a produção de lugares os quais se tornam reais e virtuais, rituais e corporais através da experimentação e da invenção de outras experiências. Uma espécie de laboratório implicado não produção de verdades, mas na criação de experiências espaciais como novas possibilidades de composição da vida. A partir dos exemplos que se seguem pode­se seguir os demais exemplos que considerei abrigar sobre essa cadência contraespaço . "Trilha para 2 lugares e trilha para 2 lugares" de Nelson Felix; " Playground duplo (pavilhão­marquise)", 2006, de Dominique Gonzalez­Foerster; " One thousand and one night ", 2016, de Edith Dekyndt e " A Journey That Wasn’t: From Antarctica to Central ", 2005, de Park Huyghe.


132

217

Trilha para 2 lugares e trilha para 2 lugares, 2017

| Nelson Felix

Imagem 10 Nelson Felix Trilha para 2 lugares e Trilha para 2 lugares. O Método Poético para Descontrole de Localidade, parte 4. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2017. Foto: Gabriela Carrera

O pensamento também compõe cadência contrespaço material que, aliado ao silêncio e à loucura, engloba e constrói os trabalhos de Nelson Felix. Entro no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde está exposto o trabalho Trilha para 2 lugares e trilha para 2 lugares . Cabos de aço atravessam o vazio do segundo andar. Uma espécie de trama feita com esses cabos tensiona duas das colunas externas ao Museu. Em pouco minutos, o silêncio é duplicado pelo espaço estrondoso. Talvez dobrá­lo seja a orientação indicada pelos trabalhos de Felix. A postura mais precisa diante da demanda de improvisação sensorial é feita no ambiente intimidador

217

"Trilha para 2 lugares e trilha para 2 lugares" é a última parte da série “O Método Poético para Descontrole de Localidade”, iniciada em 1984. O trabalho faz parte de um pensamento sobre espaço semelhante a estrutura de uma ópera composta por atos, quatro trabalhos compõem o trabalho em si. O primeiro desenvolvido em Portugal chamado "quatro cantos", o segundo realizado em São Paulo "verso" e o terceiro em Brasília "um campo para onde não há canto" e o apresentado no MAM­RJ foi o quarto trabalho da série, "trilha para 2 lugares e trilha para 2 lugares" http://visit.rio/evento/trilha­para­2­lugares­e­trilha­para­2­lugares/


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através do gesto de compor e simultaneamente auscultar suas trilhas de silêncio. O vazio ativa o pensamento. Solicitando quietude, na escuta do ausente não coloco nada no lugar. Percebo a produção do sussurrar da obra clima . O território acumula abstração, opera por vetores vibrantes de forças. Apesar do estabelecimento de coordenadas dos cabos de aço não ajudarem muito a orientação dentro do espaço do grande salão, ao menos, nota­se o esforço e nível de tensão no ambiente. No salão praticamente desabitado, existem apenas o percurso do cabo de aço que o atravessa para se atar a duas colunas externas. Quando se mergulha na sala do museu, aprofunda­se sobre o abismo edificado e livre. O silêncio persiste. Ao longe ouço ut pictura poeisis . Quero dizer com isso que reconheço algo sobre a inclusão da poesia no trabalho de Felix. Afinal, o título entrega uma dobra poética na própria linguagem dois lugares sobre outros dois lugares, trilha sobre trilha. A cadência silente e dobrada revela contra­espaços. Ao mesmo tempo que se percebe uma atmosfera esvaziada de elementos sabe­se plena de informações e direcionamentos inaparentes. Diante da suspensão de informação lembro do 218

conceito de auto­poiesis

cuja noção essencial discorre sobre a capacidade de todo

ser biológico de se autocriar em relação com o meio vivente. Com essa ferramenta aliada à ideia da evolução criadora de Bergson, que compreende a matéria como um corpo em fluxo mais do que uma coisa, disfruto a duração. Vetores de tempo e espaço e manifestações da mente inventam de contra­espaços navegáveis, emergentes de combinações de poéticas, geográficas ou cartográficas. O contra­espaço acontece no deslocamento de coordenadas. A quietude e o isolamento se impregnam na sala expositiva. A escassez de elementos e a interação com a atmosfera suave e desabitada mostra­se extremamente rítmica. Sinto o espaço museológico como um território a ser desbravado como um "um pedaço flutuante de espaço", sugerido por Foucault. Isto 218

Para os biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, seres vivos são seres autopoiéticos se mantém abertos ao fluxo de energia e matéria, enquanto sistemas moleculares. Viventes se distinguem de outros por sua capacidade de autoproduzir­se, que nada mais é do que a ação de criar­se a si mesmo continuamente mediante a vida plena de promessas e ameaças. Essa capacidade de auto­criação está presente desde o início de nossas vidas. Possuímos redes de moleculares que produzem a mesma cadeia que as produz, numa relação autogestionada que se reorganiza, solucionando­se diretamente com suas partes. Creio necessário investir e acreditar na capacidade autopoiética e singular de nos criarmos a nós mesmos a cada momento e deixarmos de nos fiar que aprender apenas a partir do que está pré­determinado e externo a nós.


134

é, "vive por si mesmo, que é fechado, em si e ao mesmo tempo lançado ao infinito do mar219". O interior de um navio, um instrumento de cordas, o bojo de um caixa acústica impregnada de sobreposição de notas silenciosas – que vai de acorde em acorde e de melodia em melodia de micro percepções superposta – dão a tonalidade da expansão gradual de uma aventura. No ambiente, a única construção existente transforma­se na cabine do capitão sob a uma "concha" de madeira revestida de espuma acústica onde se abrigam as imagens. Um segundo bojo dentro do qual três monitores exibem vídeos de deslocamentos e percursos feitos pelo artista, ao som da trilha para dois lugares. A sonoridade provocada pelo estiramento de um cabo de aço é executada dentro da sala. Experimento imageticamente outros dados sobre a amplitude sonora do instrumento que se transformou o salão do MAM. Para o artista o espaço, se tornou uma decorrência clara de coisas simultâneas e atemporais. Em termos plásticos, o som corresponde poeticamente o espaço, também matéria viva, que em maior ou menor intensidade emite som por si. O que vive, tem energia e vibra, logicamente emite um som. O contra­espaço formado pela interseção de três localidades simultâneas convivem no museu, onde um cabo de aço exerce um potente estiramento na arquitetura e reúne três lugares: o local da exibição a arte, no caso o MAM do Rio de Janeiro, a direção na qual esse cabo é estirado orienta­se pela bússola de acordo com um pequeno percurso previamente definido pelo artista e o som emitido pelo estiramento do cabo e sua vibração. O instrumento de arte cria uma trilha sonora, para três vídeos feitos nos lugares visitados. O cabo de aço aponta para duas direções: a ilha grega de Citera e a cidade de Santa Rosa, no pampa argentino, tornando o museu um instrumento duplo de navegação. Ou seja, um musical e outro geográfico que se organiza como espécie de bússola indicativa da mesma distância percorrida pelo artista no globo terrestre.

219

FOUCAULT, 2000, p.421.


135

Contudo, o contra­espaço fundador do trabalho acontece no deslocamento da tensão, que nas colunas funciona originalmente de cima para baixo. Por conta do conjunto de amarração com os cabos de aço, os vetores de força passam a operar entre elas por torção lateral. "Resolvemos amarrar dois pilares de cada lado, o que achei escultoricamente uma das melhores coisas que fiz. A amarração dos dois cabos de aço gerou uma “cama de gato220" conta Felix. O intuito era fazer coincidir a colocação dos cabos com a direção que o artista percorreu no mundo para armar o trabalho. O trabalho parece demandar a ativação da autonomia original, um rearranjo interno que se acha perdido em meio à sobredeterminação na qual vivemos. Uma confusão espacial embaralha o pensamento. Como se os pensamentos acumulados, no trabalho e pelo trabalho obrigassem o mergulhador a gerar trilha sobre trilha, significado sobre siginificado, desenho sobre desenho até turvar a folha, até que de tão enfurnados e aturdidos o eu e o próprio trabalho não tivesse outra opção a não ser saltar de qualquer maneira fora dele e de quem lida com ele. Confirmo o procedimento que se afina à minha intuição quando ouço do próprio artista: "são tantos significados que no final não tem significado nenhum. O significado se perde por acumulação, se amalgama no emaranhado de todos eles. Perde­se e ao mesmo tempo abre chance para as percepções corpóreas e devaneios ativos de alguma memória

221

"

O "Método poético para descontrole de localidade" adota como bússola alguma poesia – agente desestruturador do espaço – escolhida pelo artista, no caso de 2 trilhas, " copdedes" de Mallarmé. Dois outros componentes são um mapa e um dado de bronze com o mesmo número seis em todos os lados. O que abole alguns dos acasos, mas não todos. O dado, lançado casualmente sobre o mapa, aponta o local de onde sai a reta, que unirá os outros lugares. Nesse caso Cítera, uma ilha na Grécia, de onde a reta segue até encontrar o MAM RJ como segundo ponto,

220

"o trabalho é como um buraco negro: você fica ... ­ Revistas UFRJ." https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/download/14578/9752. Acessado em novembro de 2018. 221 Trecho composto a partir das falas de Nelson Felix durante a entrevista com Rodrigo Naves disponível em https://www.youtube.com/watch?v=YkPiyhPXWX4


136

chegando a Santa Rosa no pampa argentino. Além dos três pontos pelos quais passa a reta, Felix ainda escolhe uma quarta localidade para deixar o dado, Closerie des Lilas , famoso restaurante de Montparnasse, frequentado por artistas e escritores da Paris de 1860. A aparência simples do trabalho não revela o esforço da operação matemática em questão. Um pilar se atrela a outro numa tensão que, segundo os engenheiros, chega a 15 ou 20 toneladas para aquela espessura de cabo de aço, daí o som. Para o artista, a sobreposição de significados e situações dos espaços é o cerne do trabalho. Amalgama as tensões e produz um quase nada que, ao mesmo tempo, constitui um todo de possibilidades222. A compulsão à repetição gera sobrecarga de significados, traços e pensamentos no trabalho. A prática de desenho de onde sai o pensamento sobre a instalação expressa um certo caráter lisérgico. Poderia, por essas razões, acolher tal qualidade de trabalho na cadência denominada aqui como de errância. Entretanto, talvez pela própria contaminação a qual o desenho induz – as sobreposições de tracejados e coordenadas – o espaço, em sua lisura, acumula tantas sonoridades, imagens e elementos poéticos que a obra se configura nitidamente como atmosfera contra­espaço capaz ainda de, pela sobrecarga, abrir campo para novas linhas de errância.

222

FELIX, entrevista, 2017, p.27­28.


137

Imagem 11 Nelson Felix Trilha para 2 lugares e Trilha para 2 lugares. Fotografia Gabriela Carrera

Além das mencionadas sobreposições espaciais e das sugestibilidades que o espaço vazio abre, embaralham­se ainda acúmulos de outros habitantes. O artista conta, em entrevista, sobre os encontros alegres acarretado pelo simples acaso do lance de dados sobre o mapa. A partir da da aproximação com a Ilha de Citera, Felix redescobre algumas referências ao arquipélago em livro de Norbert Elias, nas pintura de Watteau, no poema “Peregrinação à Citera” de Verlaine, no conto de Gérard de Nerval e em Debussy que fez a música “L’Isle Joyeuse”.223 Há uma atitude filosófica na construção dos espaços, um pensamento tão singular quanto um lance de dados, uma atitude pensamento que se dobra sobre outra sem que seja necessário procurar origem ou destino. Um pensamento como " exercício constante, serve para mantê­lo na linguagem224, suspendê­la num espaço onde não se sobreponha o discurso mas o gesto, o desenho, as sonoridades e o

223 224

FELIX, entrevista, 2017, p.42. Idem p.20.


138

vazio capaz de fazer vibrar a linguagem que não procura o verdadeiro, mas repete o pensamento. Playground duplo (pavilhão­marquise), 2006 | Dominique Gonzalez­Foerster

Imagem 12 Dominique Gonzalez­Foerster, Playground duplo (pavilhão­marquise), 2006. Marquise do Parque do Ibirapuera, SP . Foto Juan Guerra

Aos sábados, domingos e feriados, a marquise de aproximadamente 620 metros de comprimento com largura variando entre 15 e 80 metros do Parque Ibirapuera abriga coreografias flutuantes de frequentadores do parque. Espaço urbano para horinhas de descuido

225

, a área de 28.800 m² e 121 colunas conformam

o "fulcro" para onde convergem seus apêndices: o Museu Afro Brasil, a OCA, e o Pavilhão das Culturas e Bienal. Descanso os olhos embaixo da demarcação de território projetado por Oscar Niemeyer. Espécie de contenção/abrigo: um interior extenso aberto ao exterior intenso ou vice­versa. Nessas extensões, exibem­se intensidades: giros arriscados,

225

"Felicidade se acha é em horinhas de descuido" é uma das frases mais conhecidas de Guimarães Rosa.


139

pequenas quedas, tombos acidentais, jovens e adolescentes, tribos de skatistas, patinadores, ciclistas, ou simples transeuntes em deslocamento a esmo. O olhar do skatista transmuta o espaço urbano, reconfigura, reformula, converte obstáculos em estímulos, abre novos perímetros. Bordas de canteiros, rampas de acesso, escadas e vãos, pisos de cimento queimado, mármore e qualquer outro material ou acabamento que ofereça superfície lisa, magnetiza a relação entre o skatista e o espaço. Em dias chuvosos, a equação que garante o magnetismo inclui um terceiro elemento – uma área protegida. Trechos da cidade onde marquises, pilotis ou qualquer outro tipo de cobertura abrigam pisos de textura suave são especialmente redentores. São ocorrências raras que libertam o desejo de subir no skate da intransigência e ubiquidade da água que cai de uma marquise. No locus versátil da marquise, percebo alterações de sons, temperaturas, velocidades do vento, passagem eventual e atemporal que se reedifica a cada reunião de jovens, turmas de bairros específicos com suas gírias e trejeitos. A marquise propulsora de modulações atmosféricas convoca o espaço a se ocupar e a 226

se inventar continuamente

. Vivemos ali, em metamorfose, entre aventuras

modernas, pequenos mini circuitos, manobras de rua, volteios, zigue­zagues, compartilhados, muitas vezes, com execuções de orquestras, apresentações de coral, demonstrações de dança, "rolezinhos", break , stands de feiras eventuais, rituais, ginástica, meditação. O ambiente se inventa a cada presença "com seus limites curvos a perder de vista, a misturar o coberto com o descoberto, o sombreado com o solar, o seco com o molhado, o aqui com o ali da paisagem recortada em sua interioridade sem fechos

227

".

Marquise então se apresenta com fisicalidade e atributo de evento, espaço liso, em branco, pronto a marcar fatos passageiros e banais da vida em hora de folga, passagem, disposição ou imersão de seus frequentadores. Página em branco também para a arte que indaga: Como viver juntos , ao mesmo tempo que? Com

226

JORGE, Antonio Luis. Um parque e um país sob a marquise. 2014 https://www.sp­arte.com/noticias/um­parque­e­um­pais­sob­a­marquise­por­luis­antonio­jorge/ 227 idem.


140

quem compartimos a contemporâneo? Penso sobre o tipo de ambiente arquitetônico gerado pela marquise moderna. Visito a atmosfera de um playground estendido de Dominique Gonzalez­Foerster, em 2006, na 27ª Bienal de São Paulo. Vibro na tensão da massa de concreto, sua volumetria, sombra, extensão com bicicletas deitadas no chão, encostadas nas pilastras, capacetes e mochilas apoiados nas paredes. Ouço a amplificação heterogênea do aparelho de som ligado, desvio dos cones arrumados no piso, das da manobras radicais, dos passos ensaiados dos aglomerados de sujeitos em suas atividades distintas. Recupero a relação de tatibilidade com o mundo das coisas. Noto nomes nas pilastras onde se estabelece outra espécie de relação de presença. Estranho a concentração de colunas no meio da área da marquise. Um volume diferenciado intercepta o espaço simétrico dos elementos brancos por onde transito. Recorta o meio interno e externo, o que acaba por revelar novas 228

possibilidades de desenhos

. Uma grade aberta para o verde. Encosto, negocio o

corpo numa das colunas centrais. O que se esconde por trás da proliferação desses pilares? Valores? As ruínas do projeto moderno nunca efetivamente realizado? Nova integração entre homem e natureza? Ou a simples provocação de tornar mais física nossa percepção do mundo? A linguagem se abre ao mundo das coisas, "atitude dêitica onde palavras são experienciadas como se apontassem para as coisas ao 229

invés de estar 'no lugar delas'".

230

Entrevejo, verdejo

na cosmicidade da natureza

recortada. Olho para fora, estou na Gávea, nos pilotis frequentados nos anos da 231

universidade. "it's a park; it's a plan for escape

228

"

Playground duplo (pavilhão­marquise), 2006. Instalação site specific com 36 colunas de compensado dimensões variáveis da artista Dominique Gonzalez­Foerster . 229 GUMBRECHT, 2015. p28. 230 "Houve uma primeira vez em que o acontecimento foi julgado digno de ser elevado ao estado de conceito: isso ocorreu graças aos estóicos, que faziam do acontecimento não um atributo nem uma qualidade mas o predicado incorpóreo de um sujeito da proposição (não "a árvore é verde", mas "a árvore verdeja..."). DELEUZE, 2013. p.95 "Verdejar indica uma singularidade­acontecimento na vizinhança da qual a árvore se constituí" 231 "é um parque; é um plano de fuga" Comenta a artista a respeito de seu trabalho Park­A Plan for Escape (2002) em BIRNBAUM, Daniel. Chronology. N.Y. Sternberg Press, 2006. p.81


141

"Será que um artista vivo pode retomar a uma de suas obras quando ela já é 232

pública?

"

Niemeyer

ainda

era

vivo, em 2006, quando Dominique

Gonzalez­Foerster se questionava a respeito do espaço que ocuparia no Parque Ibirapuera. A marquise, coração propriamente dito do parque, se apresenta para a artista como foco de atuação onde viventes circulam como querem, entram e saem quando querem sem mesmo perceber ou se relacionar com o espaço diretamente. Ali nem tudo permanece claramente codificado. Em muitas de suas instalações, Foerster afirma fisicamente o vazio. Isto é, faz uso de grandes espaços livres e abertos. Ocupa­os, não os ocupando. Opta por uma maneira misteriosa de marcar territórios.

233

Agora, além da alteração do espaço

agenciada pelo conjunto de performances dos sujeitos que se utilizam da marquise para a manutenção de suas identidades, há também um outro conjunto de possibilidades. Junto aos pilares subversivos se rearranja novo manifesto de atmosfera que acredito inibir, de certa maneira, a intelecção do discurso ou argumento, catalisando manifestações. Nuvens de virtuais que se atualizam e se desdobram. Apresentam­se sob a forma de superfície sensual que se oferece a multiplicidades de experiências, aglomerações, interferências e percepções. De fato, é a respeito dessas atmosferas que o crítico e curador Daniel 234

Birnbaum, em seu ensaio Nothing

, se refere ao abordar os trabalhos de

Dominique Gonzalez­Foerster: "[...] percebe­se que o trabalho é menos um espaço ou meio específico, circunscrito do que uma atmosfera melancólica inerente aos objetos do mundo e "A partir desse momento atmosférico carregado veio sua arte [...] Gonzalez­Foerster tem como alvo aquelas sensações requintadas que são tão

232

27ª Bienal de São Paulo (2006) ­ Guia p.64. BIRNBAUM, 2006, p. 82. Ao comentar o trabalho Park­A Plan for Escape trabalho que visitei em munster no ano de 2007 Foerster afirma “ I like the idea that you can enter the park by chance and encounter these elements in a rather mysterious way without immediately thinking about art,” says the artist. “It’s all not so clearly coded or framed. You can come across these things anytime during night or day and have a very different experience. It’s not even clear where it all starts or stops. Beyond this tree, after this cloud...? 234 BIRNBAUM, 2006. 233


142

evasivas que não têm nomes, mas são distintas o suficiente para serem lembradas por toda a vida.

235

"

Em visita ao Pavilhão da 27ª Bienal de São Paulo "acompanhada" da leitura expositiva da montagem da curadora Lisette Lagnado – "leitora" da "forma de 236

écriture

" de Dominique – subo ao segundo pavimento do Pavilhão Ciccillo

Matarazzo. Ali percebo outro conjunto de colunas que se assemelham em tamanho, acabamento e quantidade às pilastras instaladas na marquise do Parque. A atmosfera abre espaço entre as colunas. A artista promove encontros que são sempre desvios. Seleciona certo conteúdo e o move de seu contexto original para um outro, produzindo assim novos espaços acionadores de contra­espaços ligados tanto ao objeto deslocado quanto ao novo contexto no qual está inserido.

235

BIRNBAUM, 2006, p.81­83. [...] one senses that the work is less a particular, circumscribed space or medium than an atmosphere that draws out the melancholy inherent in its pieces" . "Out of this charged atmospheric moment came her art, and in work after work[...] Gonzalez­Foerster tem como alvo aquelas sensações requintadas que são tão evasivas que não têm nomes, mas são distintas o suficiente para serem lembradas por toda a vida." 236 Ao aproximar a utilização dos vazios na obra de Gonzalez­Foerster a um tipo de escritura, Birnbaum comenta: What exactly is Park­A Plan for Escape (2002)? A curious sculpture garden, an installation, or an outdoor cinema equipped with exotic props? Probably it's all of these things, but it's also one more example of what French theorists would recognize as a form of ecriture. que exatamente é Park ­ um plano para escapar? Um curioso jardim de esculturas, uma instalação ou um cinema ao ar livre equipado com adereços exóticos? Provavelmente são todas essas coisas, mas também é mais um exemplo do que os teóricos franceses reconheceriam como uma forma de écriture. BIRNBAUM, 2006, p.82.


143

Imagem 13 Dominique Gonzalez­Foerster, Playground duplo (pavilhão­marquise), 2006. Pavilhão do Parque do Ibirapuera, SP. Em Playground duplo, mergulha­se numa atmosfera única e universal, a um só tempo. Modernidade e vegetação se entrelaçam tanto sob a já mencionada marquise quanto dentro do pavilhão da bienal onde outra reunião de colunas divisam a artificialidade do concreto moderno e a distância da vegetação obstruída pelas vidraças do ambiente. A dobragem das colunas entre o artificial e o natural, entre a liberdade do espaço aberto e o engajamento do ambiente fechado interceptam e contrastam os dois espaços, multiplicando possibilidades de contra­espaços. O conjunto de colunas instaladas dentro do pavilhão dota o ambiente de graça e arejamento do parque. Do lado de dentro, o agrupamento gera uma atmosfera que, de certa maneira, oblitera e esquadrinha a paisagem. Ana Pato,

237

na tese sobre a artista, revela­a como a criadora de ambientes

radicalmente novos, evocando atmosferas de distopia da paisagem. Um mundo onde não há nada de espetacular, nada muito excitante ou exótico, aberto à dimensão temporal capaz de surpreender pelo espaço que nos envolve. Entre o

237

PATO, 2013, p.39.


144

poético e o político, o gesto de Gonzalez­Foerster cria também um espaço transitivo. No distanciamento físico entre os conjuntos, no espaço aberto entre as duas concentrações de colunas institui­se uma outra cadência contraespaço que espelha e vira do avesso a obra, transformando­o também em verdadeiros Playgrounds . One thousand and one night , 2016

238

| Edith Dekyndt

Imagem 14 Edith Dekyndt One thousand and one night, 2016, 57a bienal de Veneza, 2017

" O jardim, desde os recônditos da Antiguidade, é um lugar de utopia

239

",

lembra Foucault, "[...] o tapete é um jardim móvel através do espaço. Era parque ou tapete aquele jardim descrito pelo narrador das Mil e Uma Noites?

240

" Em 2017, no

Pavilhão do Tempo e do Infinito da 57 a bienal de Veneza, visito o trabalho de Edith Dekindt. Ao atravessar a cortina que delimita o ambiente, dentro e fora, percebo um recorte no piso desenhado por luz e uma fina camada de poeira. Um spot de luz branca define precisamente o tapete retangular. A luz, invisível em seu trajeto, descreve o caminho quando encontra com matérias em suspensão. A circulação de pessoas suspende a materialidade das partículas de pó do ambiente e faz projetar o

238

https://www.youtube.com/watch?v=PYXwXYQsrQo FOUCAULT, 2013, p. 24. 240 idem 239


145

cone de luz entre o chão e o altar . Percebo um assistente vestido de preto. Presa à uma das paredes da sala uma vassoura. A percepção trivial cuida dessas aparências. Pouca coisa acontece no visível. Intrigada, permaneço no local. Dentro de pouco tempo, percebo a mudança do desenho do retângulo no piso. O foco de luz fez um pequeno giro, projetando outro tapete sobre o piso. Nesse momento, o assistente pega a vassoura e varre a poeira para colocar a sala novamente em "ordem", ou em outras palavras, atualizar a imagem do tapete. O ambiente imprime sobre os corpos circundantes tonalidades fantasmáticas. Abrigado por trás da grande cortina, o espaço onde se aprecia o tapete voador configura uma atmosfera intimista, escura, silenciosa, quase provocando claustrofobia. A cortina estabelece os limites de acesso à obra. Ao mesmo tempo, ela própria, um tecido de linho coberto com papel alumínio , é um outro trabalho. As propriedades físicas do alumínio e a fisicalidade da cortina demarcam dois territórios, o de passagem brilhante do lado de fora e o do nicho obscuro por trás delas. A poeira suspensa pelo movimento das massas de ar evidencia o caos inerente ao mundo oculto, incerto e microscópico dos corpos. São notórias, ao rés do chão e em suspensão, as mudanças dos estados da matéria, a irradiação de luz, a dança da poeira e mesmo os movimentos do ar. A dimensão da beleza do mundo molecular abala as certezas do ambiente abrigado. A conservação do tapete e o repetitivo giro da iluminação faz com que muitos tapetes se dispersem ou, se quiser, voem. Em consequência da rotação limínica, o assistente volta a varrer as "franjas" do tapete. Uma ritmicidade coreografa o ambiente onde se percebem notas sutis de graça e leveza. Alinha­se ao clima, a diferença de grau da iluminação e da disposição do formato do tapete. Uma espécie de mecanismo temporal organiza a tarefa que lembra a de Sísifo. Sob o ambiente operam teores meditativos e melancólicos vinculados ao trabalho humano. O encadeamento dos movimentos acontece com interrupções temporais até o fim da mostra. Um deslocamento promove outros. A rotação da iluminação produz uma reação motora implicando diferentes sentidos sem que haja


146

uma prioridade entre eles. Cada giro da luminosidade parte do gesto de varrer e retificar a formas, estabelecendo­se um novo do caos no espaço. Pode­se dizer que essa movimentação constante revela uma torção da superfície como na fita de Moebius no que diz respeito ao deslocamento e ao assentamento do tapete conferindo a obra uma cadência contra­espaço. Isto é, o próprio topos do trabalho é ao mesmo tempo continente e contingente do tapete que se figura e reconfigura. Nesses limiares entre a existência e seu desfazimento guarda muito tapetes em potencial. Esses tipo de sutileza gestual que se desmorona entre as mãos e a mente traz à tona qualidades intrínsecas e frágeis dos materiais além da potência do universo das micro percepções. Atuam como experiências laboratoriais. São quase como estudos de fenômeno físicos, químicos ou mesmo meteorológicos. Nesse sentido dizem muito sobre a natureza de alguns de meus trabalhos por pelo menos dois motivos. São trabalhos que destacam conexões invisíveis e densas entre as quais organismos vivos ou inanimados se interligam. E, acima de tudo trabalham pela lógica do deslocamento da posição dominante da autoria a respeito da criação experiência estética o que encoraja um novo e mais humano conjunto de ética sobre a natureza ou ecossistema. A Journey That Wasn’t: From Antarctica to Central , 2005 | Pierre Huyghe

Imagem 15 Pierre Huyghe A Journey That Wasn’t: From Antarctica to Centra l, 2005, Fundação Louis Vuitton, Veneza, 2017


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Na "Viva arte viva", 57 a bienal de Veneza, a Fundação Louis Vuitton apresenta três obras da sua coleção, entre narrativa, ficção e memória fugidia do artista francês Pierre Huyghe: " A Journey That Was Not" , 2005. Trata­se de um filme dividido em duas partes: a jornada ao Círculo Polar Antártico e a representação dessa aventura, 241

em Nova York

. "Criatura", 2005­2011, trata da encarnação de um pinguim de fibra

de vidro com pele e som sintéticos. " Silence Score ", 1997, parte da atmosfera musical ou pontuações musicais transcritas por Huyghe com auxílio de software 242

especial captado durante a expedição Antártica

.

A "jornada que não foi" se centrou na busca de uma ilha desconhecida e na procura por uma criatura única e solitária: um pinguim albino. Os rumores a respeito dessa criatura ameaçada de extinção e os problemas ecológicos pelos quais passava a região insular onde o pinguim supostamente vive exerceu fascínio sobre Pierre Huyghe. O artista organiza uma expedição a bordo de um navio polar de pesquisa científica rumo a uma determinada ilha do Círculo Polar Antártico. A busca pelas áreas desérticas onde poderia ser encontrada a ave partiu do Ushuaia. Para Huyghe, ponto estratégico tanto por se tratar da “borda do país de Jorge Luis Borges” quanto por se constituir uma região desconhecida, onde as 243

coisas não têm nomes e a linguagem pode ser desdobrada

. Parte para essa

jornada munido de “equipamento experimental destinado a facilitar contato com a 244

criatura” e um transmissor de rádio portátil que transmitia o “registro do navio” 241

.

O projeto " A Journey That Wasn’t: From Antarctica to Central " compõe­se de duas partes: a própria expedição ao Círculo Polar Antártico e a tradução da topografia da ilha em som. Os sons foram transformados em partitura musical executada por uma orquestra sinfônica na pista de patinação no Central Park de Nova York. O filme mergulha os espectadores em mundos opostos: natureza pura e sem proteção e uma sociedade urbanizada. Disponivel em: http://press.whitney.org/file_columns/0000/2732/october_2005_a_journey_that_wasn_t_.pdf 242 Visitei esse trabalho por ocasião da 57 a Bienal de Veneza em setembro de 2017. Embora tenha experimentado muitos incômodos e impressões, preferi, pela complexidade da narrativa do trabalho abordá­lo de forma mais direta com base no capítulo 6 "Topological Systems: An Economy of Time do livro de Amelia Barikin "Parallel Presents: The Art of Pierre Huyghe" 243 BARIKIN 2012. Kindle Locations 3577­3578. In Huyghe’s words, this was the “edge of Jorge Luis Borges country.” 244 BARIKIN 2012. Kindle Locations 3584­3588. The journey took one month. The boat moved slowly past Cape Horn and the ice floes of the Drake Passage, toward the Polar Antarctic Circle and the Anagram Islands. The vessel was buffeted by storms: sails broke, systems froze, and the ship’s computer was damaged, resulting in memory loss. For days the travelers were stranded on an ice shelf amid raging blizzards. When the storm passed, “the cloudy sky produced a milky green light that reflected off an icy ground, uniformly illuminating the air around them . . . the falling snowflakes appeared almost black against their luminous backdrop.”


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Depois de um mês de viagem, que contou com velas quebradas e nevascas violentas, a tripulação estabelece a complexa estação de som e luz projetada para traduzir a forma física da ilha em som. No retorno da expedição e de posse do material gravado, Huyghe organiza uma performance pública no Central Park. Enquanto exibia um vídeo com imagens da sua expedição à Antártida, uma ópera encenada ao vivo tinha como fundo sonoro uma partitura baseada nos dados extraídos da topologia da Antártida. O deslocamento do território Antártico se revelou em meio à escuridão e ao nevoeiro. Não se tratava da representação de um lugar, mas de uma paridade topológica da Antártica no Central Park. O evento contou com a colaboração do compositor americano Joshua Cody e com a presença do pinguim em meio ao show pirotécnico. O historiador George Baker

245

entrevista Huyghe interessado em identificar o

porquê da atração pela topologia, da ideia de traduzir um objeto em outro tipo de 246

objeto, ou da prática relacionada a outro campo de prática

. Pierre Huyghe

responde: “É uma maneira de traduzir uma experiência sem representá­la. A experiência será equivalente e ainda assim será diferente. Quando você traduz algo, você sempre perde algo que estava no original. Em uma situação topológica, pelo 247

contrário, você não perde nada.

O fluxo de som de código Morse produzido pela estação criada não difere das emissões sonoras que os animais usam para se comunicar entre si. A esperança do artista seria chamar a criatura. O território que se arma a partir da música é a espinha dorsal que liga a expedição, a ilha e o encontro com a criatura. Em Huyghe, a topologia facilita uma forma de dessincronização do tempo concomitante a um tipo de liberdade temporal. O apelo das equivalências topológicas fundamenta­se em capacidades temporais e não espaciais. A transformação topológica de uma figura deve ocorrer sem destruí­la ou duplicá­la, 245

Entrevista HUYGHE [outono/2004]. Why there is this attraction to topology, to do with choosing a model of practice that has to do with translating one object into another type of object, one practice into another field of practice. 247 George Baker, “An Interview with Pierre Huyghe,” October 110 (Fall 2004), p81. It’s a way,” Huyghe replied, perhaps with a hint of exasperation, “to translate an experience without representing it. The experience will be equivalent and still it will be different. When you translate something, you always lose something that was in the original. In a topological situation, by contrast, you lose nothing; it is a deformation of the same.” 246


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"pois se uma figura precisa ser completamente quebrada para se transformar em outra, ela mudou de gênero." O navio, espaço de suspensão e contradição, é inseparável de sua tripulação. Os marinheiros, por sua vez, são impensáveis sem suas histórias. A ficção oferece uma espécie de mapa discursivo para o planejamento de seu próprio projeto de viagem. A ficção seria, então, a própria fita de Moebius temporal, uma forma especial de traduzir uma experiência sem representá­la. O site não é uma pré­condição para o trabalho, mas é gerado no trabalho e pelo próprio trabalho. As atmosferas que aqui chamo contraespaço, desde os desertos negros de Rothko até as ficções que incluem Dominique Forester, Nelson Félix até chegar a Pierre Huyghe, gravitam em torno de noções de espaços despovoados, terras que se impõe a si mesmas em seus pressupostos ficcionais. Inventam seus próprios desertos, ou seja, criam a partir de torção, ou combinação de duplos novos limiares territoriais, possibilidades de invenção e deslizamentos de ideias. Cada um com seu tipo de fita de Moebius, algumas espaciais, caso de Nelson Felix e Dominique, outros temporais, caso de Pierre Huyghe.


150

3.1.3 Cadências de errância As cadências sedutoras se disseminam aqui pela prática da repetição oriundas da dança em que seu praticante, com braços estendidos e ao girar sobre seu eixo, executa o bailado dos planetas, a fim de alcançar algum deserto e nele um ato de vidência

248

. Lembro dos Parangolés de Hélio Oiticica e identifico nessa prática

inspiração fundamental para essa série de obras clima por dois motivos, pelo menos. O primeiro diz respeito ao fato de Oiticica considerar a relação do corpo com objeto através do movimento, da ação, da experiência emocional ou do transe. O segundo ponto se refere à ideia de que, em Oiticica, o espaço­tempo ambiental se transforma numa totalidade “obra ambiente”. Ideias que no fundo se amalgamam. Isto é, suas obras estabelecem com o ambiente "relações perceptivo­estruturais249" de tal forma que a estrutura e organicidade dos elementos da obra constroem o ambiente. Através da evolução do movimento, do uso da capa – por exemplo, do Parangolé – o participante faz brilhar no espaço as cores e luzes que soltas são levadas ao ambiente. De maneiras diversas, por meio de evoluções e de danças no envolvimento corporal, o participante se utiliza do artifício estrutural da obra para a liberação do pensamento, da fantasia e ainda para “participação ambiental” na diluição das fronteiras entre obra e espaço. O foco de Oiticica, inspirador para essa cadência, acompanha a ideia da renovação e integração do espaço pictórico com o extra­espaço. Trata­se, para Oiticica, da busca por " 'totalidades ambientais' criadas e exploradas em todas as suas ordens, desde o infinitamente pequeno até o espaço arquitetônico, urbano etc" 250

. Soam como aspirações de adentrar o grande labirinto rumo a uma nova etapa da

arte ou à antiarte por excelência. Ou seja, o foco do artista ultrapassa a contemplação e a recepção estética que privilegia o sentido da razão aliado à visão. A integração ambiental, o interesse pela dança, o estímulo às sensações sonoras, visuais e táteis, o contato e manuseio com elementos da obras, através da experiência direta e concreta, parece concorrer ao sentido atmosférico e ao stimmung tão caro a esse trabalho, e cuja presença é acirradamente marcante

248

LAPOUJADE, 2015. p.291. OITICICA, 1986, p.68. 250 idem p.67. 249


151

nessa cadência por intermédio do fluxo e do ritmo dos movimentos. A dança ou o deslocamento – inspirados na transfiguração do ato, na instantaneidade, na expressão que se contamina – influência e eclode o próprio movimento. Movimentos inebriantes de natureza similar aparecem em trabalhos que incluem a deambulação ou que inscrevem trajetórias aleatórias e repetitivas como a prática de desenhar e recobrir o desenho com o próprio desenho, gesto compulsivo e incessante procedimento de Nelson Felix ou prática cartográfica e pedagógica 251

adotada por Fernand Deligny

. Desenvolvida a partir de traçados de linhas

inimagináveis dos movimentos do cotidiano dos autistas, essa prática registra os trajetos das crianças autistas em seu cotidiano, suas “linhas de errância”. Segundo essas cartografias levantadas e de acordo com o acúmulo de mapas de percepções e gestos costumeiros e erráticos, Deligny abre campo para abordar o vivente por meio de estruturas de rede de linhas que se cruzam, sobrepõem e superpõem. A criação de ambiências apoiada no gesto, no corpo, no rastro acompanha o modo errante de estar no mundo em detrimento do recurso da comunicação oral. Por acreditar na ancestralidade humana conectada com o movimentos das aranhas que tecem redes movidas pela "atração pelo vago" ou pela "busca do acaso", Deligny explora estímulos visuais como desenhos de mapas, fotos e gravações de filmes, na tentativa de vislumbrar teias gestuais. Para ele, a rede se configura como um modo de ser que fica claro na afirmação: “os acasos da existência me fizeram viver mais em rede [réseau] do que de modo distinto, isto é, de outro modo.252” A tessitura das redes e sobreposição de fios e linhas de errância – liberada de finalidades ou objetivos fixos – revelam caminhos insuspeitos, assistemáticos e heterogêneos. Abrem campo para a construção de novas relações com o meio externo diante das quais passa­se a ver todos os elementos e composições de gestos e divagações a partir de uma perspectiva renovada. Isto é, novas linhas nos

251

Deligny, que desde 1927, trabalhou com crianças e adolescentes classificados como inadaptados socialmente ou considerados “à parte da sociedade”. Trabalho aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial e desdobrou­se na experiência pedagógica na clínica La Borde com o grupo de estudos do psiquiatra Félix Guattari. A partir de 1967, ele se instala na região de Cèvennes, construindo coletivamente uma rede de espaços de acolhimento e de investigação, que ele denominou de “rede aracniano” O termo vem do campo da etologia que estuda os animais, dentre ele as aranhas. DELIGNY, 2015. 252 DELIGNY, 2015, p.15.


152

mapas, novos fios na teia significam a variação de toda a série. Uma formação da rede habilita o desenvolvimento de um fora que permite o humano sobreviver. O elogio ao gesto, ao traçado desinteressado, a prática ligada ao movimento autista e aberrante, que não se deseja possuir ou adestrar, garante um ritmo fora da amarras da finalidade. Dado este que se afina tanto à prática de recepção atmosférica da cadência errante – referente ao uso do gesto repetitivo, sobreposto e diferencial – quanto inspira a produção estética apoiada também nessa espécie de mapa gestual gerador de narrativas que originam e compõe atmosferas da estação de escuta e espreita . Produções gestuais como essas, de errância, disparadas a partir de trabalhos de arte ocorrem em maior número nesse núcleo de trabalhos e partem de movimentos ritualísticos nos quais pode­se ouvir a música repetitiva e dissonante da flauta ou dos tambores, assim como o mantra e a figura musical do eco. Ouvimos através deles as reverberações do delírio, e seus estados de transe – as tradições sons mântricos, nomes sagrados e orações que auxiliam a mente a se conectar com o sagrado som primevo – capazes de deixar entrever as potências ou dados empíricos da imagem antes que desvaneçam. "É preciso que os corpos se desorganizem para se tornarem figuras de luz."

253

A simples provisão de luz, a intensidade de seu brilho, a coloração e temperatura de seus raios são os responsáveis pela geração de um determinado ambiente, sintonizam forças sedativas. O caráter confortável, agressivo, sombrio, charmoso ou dispersivo pode ser entonado de acordo com tipo de luz que emana do ambiente. O espaço com luz homogênea produz um humor mais uniforme. Talvez um ambiente de mais placidez ajude a contemplação. Já a luz intermitente provoca ambientes onde experimentamos um certo nervosismo ou agonia. As diferenças cromáticas também influenciam o ambiente. Para Goethe, a cor é um fenômeno de efeito sensual que se apresenta ao olho. As cores também comunicam ao espaço um certo humor em termos de sentimento. Objetos também emanam cores e refletem luzes.

253

LAPOUJADE, 2015, p.295.


153

A frequência de luz e seus variantes coloridos são relevantes em trabalhos enquadrados aqui. Percebemos que deles emanam forças sedativas de qualidade lumínica. Seu volume englobante nos remete a um oceano atmosférico. Nesse ponto, tenho em mente todos os trabalhos geradores de frequência de luz constante. Em Dan Flavin, encontro muitos exemplos, como a primeira de suas "barreiras" Greens Crossing Greens: to Piet Mondrian Who Lacked Green , 1966. Além delas, seus “cantos” e “corredores” no projeto Untitled, (Marfa Project), 1996

254

, trabalho de

grande escala instalado nos seis prédios na Fundação Chinati, na cidade de Marfa, Texas. Outros trabalhos de merecido destaque são os Robert Irwin e naturalmente os do artista James Turrell. Ambos são criadores e provocadores de ambientes sedativos e errantes. Conformam totalidades abrangentes de campos de visão, enquanto um fenômeno espacial pelo qual os sujeitos se sentem cercados. Em toda linhagem de trabalhos dos artistas citados, a luz define espaço e promove a contemplação, a fruição prazerosa e o embarque sonâmbulo. Em James Turrell, destaco as emanações luminosas originada de retângulos recortados dos céus. Os exemplos mais expressivos são as obras clima PS1, em Nova York e o “Unseen Blue 2002”, pertencente à Coleção de Arte Hess. Esse último é o maior skyspace do mundo situado em um pátio interno com vista para o céu no Museu Turrell, em Colomé, Argentina. A obra atinge a sua intensidade máxima no amanhecer e entardecer. A experiência sensorial emocionante pode ser desfrutada como resultado luminoso que as obras transmitem no ambiente natural que circunda o museu. Os dois artistas citados quebraram um paradigma a partir da apropriação do efeito da luz na atmosfera.

254

Os trabalhos iniciados nos anos 80, concluídos em 1996 e abertos ao público em 2000 Fundação Chinati na cidade de Marfa, no Texas. São ambientes luminosos, corredores inclinados paralelos construídos nos braços de conexão de cada edifício em forma de U. Estes corredores contêm barreiras feita com luminárias fluorescentes de oito pés de comprimento, ocupando toda a altura e largura do corredor instaladas no centro ou no final de cada corredor. As barreiras nos seis edifícios utilizam quatro cores: rosa, verde, amarelo e azul. Os dois primeiros edifícios usam rosa e verde, os próximos dois amarelos e azuis, e os dois últimos edifícios unem as quatro cores. Duas janelas no final de cada braço longo do U permitem que a luz do dia entre no prédio e permite uma visão da vasta paisagem. Disponível em https://www.chinati.org/collection/danflavin


154

A iluminação por si produz fluidos entre os componentes de uma instalação e pode ser experimentada como beleza e sensualismo. Os efeitos de luz e cor não estão na imagem, surgem na visão do mergulhador devido às condições estabelecidas pela imagem. Outro destaque importante que não poderia deixar de ser citado é The Weather Project de Olafur Eliasson, tanto pelo aspecto luminoso quanto pelas novas formas de pensamento que sancionou. "Desatou a rigidez da era das exposições museológicas e reinventou noções que se achavam perdidas ou em declínio: o encanto pela arte, pela beleza, a contemplação, a duração, a arte como 255

plano de imanência."

Quando alguém fecha os olhos diante da luz do sol,

encontra­se em um hemisfério de tons intensos de laranja avermelhado a amarelo, sem horizonte visível. A iluminação também estabelece e define um espaço, como é claro em alguns dos trabalhos mencionados de Flavin, Irwin e Turrell, em "One thousand and one night", incluído nas atmosferas contraespaço, ou como veremos adiante, na cadência da atmosfera maquínica . A diferença aqui está na iluminação de carga frequente que promove fixação ou ofuscamento e seduz o mergulhador por completo pela insistência como os límpidos oceanos caribenhos, como as chamas do fogo, como as telinhas de nossos gadgets ou como faíscas ou intermitências de luz, caso notório da instalação eletrificada de "Fix it" , 2004,

256

de Mona Hatoum, que provoca

humor agonizante e flutuação entre espasmos de falência e processo de regeneração. Mergulho nas linhas de errância provocadas pelas obras clima Take Me Here by the Dishwasher do artista islandês Ragnar Kjartansson, The Lost Reflection, Munster 2007, da escocesa Susan Philipsz vencedora do prêmio Turner, em 2010, e em O Reino do Céu , 2016 do mineiro Matheus Rocha Pitta vencedor do Illy Sustain Art Prize, em 2008.

LAGNADO, 2011, p.173. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=P9OG25MCwDI. Trabalho exposto na documenta 14, Kassel, 2017, Alemanha. https://www.documenta14.de/en/artists/22264/mona­hatoum 255 256


155

" Take Me Here by the Dishwasher: Memorial for a Marriage", 2011­2014 | Ragnar Kjartansson

Imagem 16 Ragnar Kjartansson Take Me Here by the Dishwasher: Memorial for a Marriage, 2011­2014, New Museum , 2014

Rapazes relaxam em sofás e colchões espalhados pelo chão, bebem cerveja, dedilham violões e não sabem a hora de parar. Cantam a mesma canção

257

de

aparência melancólica durante todo o tempo da exposição. A temperatura da luz suave oriunda dos abajures se espalha pelo ambiente, arranjando cômodos caseiros e aconchegantes. No clima letárgico, casual e de descontração, os habitantes do espaço vagam entre a geladeira abastecida com garrafas e os sofás, trocam de lugar de forma indiferente, deixando o espaço periodicamente para usar os banheiros.

257

Kjartansson, Ragnar. Me, My Mother, My Father, & I. edited by Massimiliano, Gioni and Margot Norton New York: New Museum, 2014. A música foi escrita por um membro da Sigur Ros, uma banda islandesa famosa por suas longas composições melodramáticas e uso de linguagens fictícias. A letra da música é o diálogo do filme: "Mom: (housewife): This is it / Dad: (plumber): Is this it? / Mom: Yes, this is it. Do you think it can be fixed? / Dad:Yes, I am afraid so / Mom: I'm desperate. / Dad: Don't you worry now. I'll fix it. / Mom: Show me what you can do! / Dad: Here? / Mom: Are you a man? Show me can do to me! Take off my clothes! Take me, take me here by the dishwasher!"


156

A projeção numa das paredes do ambiente mostra cena de uma dona de casa em meio a fantasias sexuais na tentativa de seduzir o jovem encanador na cozinha. O diálogo do filme "mostre­me o que você pode fazer", "me leve até a máquina de lavar louça" aparece na letra da música. No filme, a alusão ao desejo sexual embalado pelo movimento da máquina de lavar remonta à dona de casa cativa em afazeres diários num clima anos 70. Ao entrar na sala do New Museum em Nova York, antes mesmo de poder perceber onde estou, sou atingida pelo caráter hipnótico e profundamente emocional do trabalho. O ambiente disponibiliza o deambular, provoca uma certa letargia que negocia entre a orientação e a possibilidade de escape para especulação do ambiente, conduzindo­me à descontração. A calma emanada pela atmosfera da obra clima me convoca a permanecer naquele espaço. Embora nada me prenda, posso continuar ali por muito tempo. Característica essa que pela aferição, fornece margem suficiente para considerar essa obra clima dentro dessa cadência errante. O conjunto de dispositivos midiáticos – o refrão da música pop entoado pelo conjunto das vozes, a cena do filme que incita o sexo, o apelo dos corpos jovens caminhando à meia luz pelo espaço – armam a captura. O mise­en­scène melodramático faz apelo direto ao mergulho. Ao mesmo tempo se apresenta como uma sátira de recurso eficaz. O cenário, a repetição dos movimentos lentos e a intimidade e familiaridade do grupo – afinal pai e mãe estão presentes na projeção, e também no nome da exposição " Me, My Mother, My Father, & I ", conferem um ar desconcertante ao espaço, ainda que apele para nossa permanência no local. A organização acústica produzida pela obra clima aliada à influência da luz ajusta o desempenho dessa cadência. Gerada pela luz e pelo som, sua atmosfera engloba e sintoniza a aparência do ambiente enquanto “tecnologia da impressão” 258

( Eindruckstechnik ).

Esse termo polêmico encontra reverberação no que Walter 259

Benjamin chamou de “estetização da vida política

258 259

BOHME, 2017, p.33. BENJAMIN, 1996, p.195.

”. Trata­se de um recurso que se


157

configura como uma característica básica de nossa sociedade, tanto na encenação do teatro, nas campanhas de marketing ou política, quanto em eventos esportivos. A sonoridade e o livre deslocamento pelo espaço gera um vendaval de gestos e rotas. São disparos criadores, cartografias do vagar, mapas do acaso. O Gesto sem finalidade, longe de procurar uma origem ou destino, se repete. Viventes entram em relação com a obra através do movimento e da motivação sonora ambiente aliados à vivência e atitudes repetidas de seus integrantes. Essa articulação gera uma rede de intervalos que contribui para fazer emanar a atmosfera de errância. O que implica dizer que, entre um deslocamento e o novo deslocamento, vem à tona, através da repetição, da diferenciação, do inominável, da novidade, uma nova linha que se abre mantendo ativa a rede deambulatória e instável do ambiente bem como da imaginação. Deixar­se levar pela sonoridade é constituir também a atmosfera local. Construir teias sustentadas na instantaneidade dos movimentos pautados pelo acaso. É trabalhar, como intui Oiticica, numa "obra ambiental", que se arma a partir de "núcleos participador­obra" e criam um "sistema ambiental" ao se relacionarem com esse determinado ambiente260. Enredada por filamentos complexos tecidos, em face da constante mutação gestual dos integrantes do espaço, geram outras surpreendentes conexões do pensamento e ainda novos gestos e narrativas sempre imprevisíveis e erráticas. Esse movimento constrói a multiplicidade ambiente que ata o vivente, em suas mudanças de natureza. Assim, a rede de acaso não deixa de lembrar um ato de montagem. A condição de existência da atmosfera errante implica no não fechamento do movimento, uma vez que habita as franjas responsáveis por trazer e levar lembranças e percepções temporais.

260

OITICICA, 1986, p.72.


158

The Lost Reflection, Munster 2007 | Susan Philipsz

Imagem 17 Susan Philipsz The Lost Reflection , Munster, 2007, Alemanha, 2017 261

"O som aniquila a grande beleza do silêncio"

, disse Charles Chaplin. O som

provocado pelo fluxo de carros acima de uma ponte é contido pelo arco de cimento. Contudo, algo do ruído escapa e atinge a audição de quem se localiza abaixo da ponte. Do som que sobra, organizam­se dados suficientes para intuir o pavimento obliterado. Afetada pelas impressões sonoras, imagino e vivencio situações nos espaços que escapam a minha visão, ao longo de um certo período de tempo. A escuta auxilia, portanto, a construção dos espaços. Sob o ponto de vista antropológico, afirma Barthes, a audição "é o próprio sentido do espaço e do tempo, pela captura dos graus de afastamento e dos regressos regulares da excitação sonora."

261 262

262

LYNN, K. Charlie Chaplin and His Times . New York: Simon and Schuster, 1997. BARTHES, 1982, p.217.


159

263

Estamos bastante familiarizados com a atmosfera sonora

de uma cidade.

Trânsito, buzinas, sirenes, música dos rádios, motores de veículos automotivo, ofertas de mercadorias, conversas de transeuntes (con)formam seu soundscape.

264

Evoluções sonoras fugazes, condensam a impressão dos modos particulares dos viventes. "Experiência subjetiva da realidade urbana compartilhada por seu povo, a atmosfera é vivenciada como algo objetivo, como uma qualidade da cidade."

265

Há algo de nostálgico em espaços intermitentes da arquitetura como soleiras, marquises, abrigos de ônibus e pontes. Espécies de refúgios funcionam como passagens, áreas fronteiriças entre o público e o privado, lugares de fluxo sem retenções. Tudo vagueia na tensão imperceptível entre um quase interior e exterior. Sob a projeção de uma ponte, circula a fugacidade de diferentes tipos de transeuntes, ciclistas. Vez ou outra serve também como refúgio para namorados, esconderijo de meliantes, teto que abriga do sol, da chuva ou da nevasca e de local onde se monta casa. Em geral, a construção de uma ponte acontece dos dois lados da margem concomitantemente. Ou seja, as duas bordas fundam seus pilares de um lado e do outro para se encontrarem no meio. No momento em que uma parte de concreto atinge a outra, dá­se um encontro e abre­se a possibilidade de fluxo para a outra margem do rio. O mais belo encontro amoroso acontece na ponte, na sua construção quando os dois lados se fundem, e abaixo dela, quando se encontram os amantes. Ouço Louis Armstrong, um b eijo para construir um sonho

263

266

.

O que condensa as impressões do soundspace que acompanha essa escrita. Na madrugada de ontem foi o funk, por vezes o ventilador do apartamento de cima. As 9 da manhã ouço sino insuspeito de alguma igreja. Antes disso o despertador insuportável da algaravia das crianças da creche ao lado do lugar onde escrevo, barulho diário infalível. Pela manhã também acontece o som do aspirador do apartamento de cima e diariamente a presença intragável. Somado a isso, claro, os decibéis de volume grave de todos os críticos e autoridades que habitam meu corpo, igualmente inoportunos. 264 The worldwide project “Soundscape” has done excellent preparatory work in researching into the city as an acoustic space. In this project it was composers and sound engineers, above all, who were concerned not only with the recording and composition of natural sounds but also with the acoustic profile of cities. One of the studies, for example, by the founder of Soundscape, Murray Schafer, dealt with the city of Vancouver. Soundscape researchers distinguished between an acoustic background (which of course changes in the course of the day) and characteristic sound events. It was discovered that, to communicate the character of a soundscape, it is not sufficient just to present a recording; it is necessary to condense and above all to compose. 265 BÖHME, 2017, p.132. 266 A Kiss to Build a Dream On © Sony/ATV Music Publishing LLC. Compositores: Bert Kalmar / Harry Ruby / Oscar Hammerstein Ii / Oscar / Ii Hammerstein


160

Há bons exemplos de cidades cuja composição atmosférica atravessa muitas pontes, como Paris, Praga, São Petersburgo e Veneza. A profundidade histórica dessa última empresta uma qualidade romântica a sua atmosfera. Mesmo que não se conheça seu valor para humanidade, o encanto da água, a qualidade dos edifícios antigos na iminência de tombar, as ruelas estreitas, as igrejas, os palácios, as pontes de onde pode se ver os canais e onde se prende o cadeado em juras de amor irradiam sobre o visitante qualidades raras de atmosfera. No caso particular, me sento sob os arcos de concreto da ponte de Tormin sobre o lago Aasee, na cidade de Munster. O tráfego gira em quatro faixas na parte de cima, enquanto sob a proteção de cimento as vibrações líricas têm hora marcada para acontecer. Sob a descontinuidade dos apoios, no rebaixo da semi abóbada, paro para ouvir a melodia de uma canção interpretada por voz feminina proveniente de alto­falantes de ambos os lados sob a ponte. Não conheço a procedência da música, nem posso acompanhar sua letra. Contemplo, a velocidade do rio, os reflexos da água, o chiado do trânsito e o silêncio das pessoas que se aproximam. A composição sonora cria esferas sensuais e se infiltra em minha veia cardíaca. O som se propaga na distância entre as margens. Os signos disponíveis das características do trabalho são qualidades suficientes para me fazer sentar e aproveitar até que a melodia do dueto cantado a uma só voz termine. Depois de me envolver com as primeiras dobras da contemplação, me informo sobre a linhagem da canção de amor interpretada pela 267

artista Susan Philipsz: Barcarole de The Tales of Hoffmann ,

de Jacques

Offenbach. A partitura é baseada em "O reflexo perdido" do escritor Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, expoente do romantismo alemão. A artista grava sua interpretação do canto em duas faixas separadas, em uma ela canta de Giulietta e

267

The Tales of Hoffmann , de Jacques Offenbach Barcarolle: Lovely night, oh, night of love Smile upon our joys! Night much sweeter than the day Oh beautiful night of love! Time flies by, and carries away Our tender caresses for ever! Time flies far from this happy oasis And does not return Burning zephyrs Embrace us with your caresses! Burning zephyrs Give us your kisses! Your kisses! Your kisses! Ah! Lovely night, oh, night of love Smile upon our joys! Night much sweeter than the day Oh, beautiful night of love! Ah! Smile upon our joys! Night of love, oh, night of love! Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah!


161

noutra Niklaus, personagens do conto. O efeito das vozes dobradas, uma por sobre a outra, através do lago, se unem para se perderem a cada vez que a melodia é acionada. As narrativas de Hoffmann dão lugar ao mistério, ao casual, ao nebuloso e ao imprevisto, constituem o limiar entre o possível e impossível, o estado de vigília e de sono, o acontecido e o sonhado a história factual e a ficção criativa marcada, 268

ademais, pela presença do duplo.

No reflexo perdido o autor se duplica. O conto é dividido em duas partes, na primeira o próprio Hoffmann, personagem, conta seu reencontro com Júlia que o atormenta e deseja seu reflexo. A segunda parte narrada pelo personagem cujo o reflexo fora capturado pelo charme sedutor e irresistível de Giulietta. A personagem feminina também tem um duplo. Julia e Giulietta apresentam semelhanças e são tratadas da mesma forma, enfeitiçam. São fontes da desgraça na vida dos homens que sucumbem a elas. O espelho inaugura evidência falsa, ilude a visão, mostra um duplo e não o eu. Não reflete nenhuma imagem, nem mesmo invertida, simboliza aqui o destino de qualquer pessoa e de qualquer coisa: não pode provar a sua existência por meio de um desdobramento real do único e, portanto, só existe problematicamente. A verdadeira infelicidade, no desdobramento de personalidade, é no fundo jamais poder de fato desdobrar­se: o duplo falta para aquele que o duplo persegue.

269

A ausência do reflexo remete um desaparecimento e dispara uma busca constante. A música por sua natureza auto­reflexiva emerge, ecoa, ressoa, se altera, funde, muda e desaparece. Duplica­se na letra da ópera e por seu caráter provisório, perde seu eco enquanto ouvimos Giulietta e Niklaus pronunciarem: “o tempo voa e leva para longe nossas delicadas carícias para sempre! O tempo voa longe deste feliz oásis e não retorna." À essas dobras, seguem­se inúmeras outras no trabalho de Philipsz. A história da ópera Offenbach, que cita Hoffmann, é ambientada em Veneza. A cidade italiana de muitos canais se duplica sob a ponte de Tormin através do lago Aasee,

268

Outras obras do autor entre as quais se destacam “Os elixires do diabo” (1815), “O homem da Areia” (1816), “O coração de pedra” (1817), “A escolha da noiva” (1820), “Princesa Brambilla” (1820) 269 ROSSET, 1985, p. 91.


162

em Munster. Mergulhadores doutos, sob essa ponte, podem ser arrastados para a varanda de um palácio no Grande Canal. A mônada está fendida. Há duplicação por toda parte: personagens masculinos e femininos, do conto de Hoffmann, reflexos, canais, pontes, Veneza sobre Munster, vozes da artista cuja sonoridade do canto altera completamente a experiência nesse espaço. A ópera corresponde ao ideal da grande arte, estando na base da visão das obras de Richard Wagner da segunda metade do século XIX. A ideia da "Obra de arte total" – Gesamtkunstwerk – integra música, poesia, dança e outros elementos visuais num único meio de expressão dramática. A música induz experimentação afetiva com os espaços. A percepção do espaço moldado pela música atinge diretamente os corpos, "modela a maneira como o ouvinte se encontra no espaço, intervém diretamente em sua economia física."

270

Seu efeito expansivo alcança a

percepção física do espaço a partir de nossos corpos e proporciona consciência, em geral, gratificante de estar no mundo. Philipsz molda o espaço usando gravações de sua voz ou composições instrumentais. Há outras esculturas sonoras em sua trajetória que exploram o desaparecimento, a obscuridade e a ausência. O traço comum a todas elas é esse seu ato de fundir as atmosferas do local com uma profunda perspectiva histórica, o que me leva a incluí­las na cadência de errância. A maneira como ressoam em um determinado ambiente e sublinham memórias imediatas e coletivas oferecem classe de rebatimentos melancólicos e sedativos sobre quem se aproxima. Fazem parte de um repertório. Evocam emoções pela alteração de canções populares e temas de filmes. Já outros estilos de músicas criam a suavidade de um momento de pausa. Ao mesmo tempo em que transportam o ouvinte para longe, focam um momento em particular. Algumas vezes, parecem relativizar o problema camuflando­os, outras destacam a sua amplitude. Cito mais uma obra clima da artista Philipsz, que vivenciei no dOCUMENTA 13, em 2012. Da plataforma da estação de trem Kassel Hauptbahnhof , ainda em atividade, foram deportadas as famílias judias remanescentes no distrito de Kassel. No período de tempo que cobre

270

BÖHME, 2017, p.171. "Music shapes the way the listener finds him­ or herself in space, it intervenes directly in his or her physical economy."


163

os anos de 1941 e 1942, centenas e mais centenas de judeus eram encaminhados para os campos de concentração de Theresienstadt e Auschwitz . De posse dessa informação ralento o caminhar. Acompanho a paisagem cercada pela montanha até extremidade mais distante da plataforma de espera onde se encontram os alto­falantes de Study for Strings

271

. O som das cordas, gradualmente se acumula e

se espalha. A sinfonia tem hora certa para ser auscultada. A composição fragmentada se espalha no final da ampla plataforma de embarque. O efeito de expandir as gravações de áudio a céu aberto é acompanhado pela abstração da notas individuais da composição. No início, a trilha sonora parece tratar de uma reminiscência da indústria ou ruídos de trens se movendo ao longo dos trilhos, ou mesmo composição minimalista. Penso que funciona também como sinalizadores para os comboios. Sinais de alerta. Percebo o rebatimento: da plataforma de trem, ouve­se barulhos familiares. Parece que ouço a animação dos cabos elétricos acima dos trilhos. De certa maneira, são notas individualizadas ou apartadas do conjunto do arranjo como um todo. Cada tom parece provir de seu próprio alto­falante. A visão é preenchida pelo desenho estriado das dormentes entre pedras e o céu recortado pela malha elétrica exacerbada. Não há espaço liso. Poças d'água refletem o céu. Um pouco de vegetação daninha, sinais vermelhos luminosos, estruturas de metal e postes. Pessoas se aproximam em silêncio e permanecem ao redor, já no final da plataforma. A espera barrada por grades, a ausência do trem, o esquartejamento da música, a natureza ao redor imprimem o tom sobre os corpos . O desaparecimento, a obscuridade, a ausência e os silêncios entre as notas e pessoas fundem a atmosfera do local à profundidade de um recorte histórico em sua perspectiva acentuadamente forte e sobrecarregada. Os corpos alí são comprimidos pelo seu ar pesado e sombrio. O quadro se adensa ainda mais quando se descobre, via leitura, a autoria de Pavel Haas. O autor de Study for Strings , 1943, viveu no campo de concentração de Theresienstadt , localizado na atual República Tcheca, onde ele escreveu a peça. O

271

"Music and the Holocaust: Haas, Pavel." http://holocaustmusic.ort.org/places/theresienstadt/pavel­haas/. Acessado em out. 2018.


164

estudo foi realizado pela Orquestra de Cordas de Theresienstadt, em 11 de setembro de 1944, para uma audiência cativa durante as filmagens para propaganda do campo. O compositor foi assassinado no ano de 1944, em Auschwitz e suas partituras originais foram perdidas no campo. Posteriormente reconstruídas, foram retornadas aqui como um acordo fragmentado de cordas separadas. De fato, animais se escondem no fuscum subnigrum nas sonoridades de Philipsz. Revela­se um potencial ambivalente ao saber que, ao norte da estação, estão as salas de fabricação da empresa de engenharia Henschel & Sohn , um dos fornecedores mais importantes de armamentos durante a Segunda Guerra Mundial. As duas obras climas citadas tem a qualidade sonoras de sobressair em meio ao barulho da urbe, seja o do trânsito acima da ponte seja dos ruídos dos trens passando lentamente pela estação. Não são completamente obscurecido por outros sons. São ondas sonoras fortes em suas frequências. Além de demandarem corpos que caminham se impõe às localidades e inebriam os corpos e ouvidos plenos em estado de atenção e presença ouvindo fragmentos fugazes que saltam do passado para se atualizarem no presente.


165

O Reino do Céu , 2016 | Matheus Rocha Pitta

Imagem 18 Matheus Rocha Pitta O Reino do Céu, 2016, Glória, Rio de Janeiro, 2016

Talvez não existam lugares mais atmosféricos do que a nave central de uma igreja, as salas de ex­votos, os lugares sacros, milagrosos ou os ambientes onde se praticam cultos africanos. São evidentes as manifestações celestes e metafísicas observadas através das faixas de luz que atravessam as janelas ou vitrais e se lançam sobre as imagens religiosas. Deus parece habitar os raios luminosos dos altares e das paredes das igrejas onde também se encontram nuvens, névoas flutuantes ou partículas de poeira. Quando atingidas pela luz, tais partículas tornam­se evidentes, mas nem sempre. Em geral, o que se vê é o todo. A luminosidade, os raios e as formações de nuvens configuram um fenômenos que acometem mesmo quem não é crente. Recordo aqui o interesse pelo o metafenômeno. Sabe­se do êxtase da partículas dos raios de luz, sabe­se das micropercepções que ali se escondem sem serem notadas num primeiro encontro. A visão obnubilada pela névoa contra um fundo


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minimamente mais escuro é o suficiente para fazer excitar espectros entre elas. Em meio à bruma surgem personagens do reino do céu. Matheus Rocha Pitta investe na criação de uma igreja na rua Barão de Guaratiba, no bairro da Glória. Na fachada lê­se: "Reino de Deus". Atravesso as paredes brancas da casinha que atende como sede da igreja. Encapsulada por acordes profanos, noto a concorrência entre um espaço interno frio, limpo e organizado. Ao mesmo tempo sua aparência de abandono revela um ambiente prestes a entrar em obra ou mesmo colapsar. À medida que me aproximo da porta de entrada do site , as forças tensionadas dessa obra clima me afetam corporalmente: o perdido e sua atualização, a igreja e a galeria, o espaço abandonado e a ocupação marginal, o externo e o interno, são espectros que orbitam a cena. A iluminação fria da assembléia instalada a menos de um metro de altura demandava uma inclinação do corpo que o obriga a reverenciar as imagens. As placas de cimento com imagens de jornal – peças frequentes no trabalho do artista – o alinhamento de copos preenchidos com líquido amarelado no perímetro da primeira sala, as televisões antigas, a pia e o poço de leite de magnésia, da última sala, os blocos de cimento revelam uma dicção mística envolvendo as imagens de jornais cobertas por nuvens de gás. Identifico a excelência da obra clima . Matheus coleciona recortes de imagens de jornais e faz combinações. Dessa vez, utilizou as que retratavam manifestações nas quais o gás lacrimogêneo era lançado sobre civis. À devoção, conjugam­se parcelas de nostalgia. “O público é convidado a percorrer a instalação, em caráter imersivo, semelhante a "caminhar nas nuvens”. Uma aposta singular e anódina do "reino do céu" impõe um percurso circular e um certa obnubilação. O mergulhador aqui precisa manter a máscara e o tubo de oxigênio. Interessante ressaltar a tensão que armam as matérias primas e como problematizam também alguns circuitos materiais, políticos e econômicos. Nesse caso, o circuito material dos recortes de jornais, descontextualizados, articulam­se no ambiente da igreja apontando leitura perturbadora do nosso cenário político. A política aparece no fazer e não no panfleto. No lugar das nuvens celestes da


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iconografia cristã, nuvens de gás da polícia. Em vez da água benta, leite de magnésia e vinagre para proteger o manifestante dos poderes agressivo da polícia. Não se ouvem gritos, antes, a algaravia em fogo baixo. Um circuito silencioso por meio do qual o linguístico põe em marcha o vocabulário cristão, tais como cruz, lápide, pia batismal, primeira pedra. Além dessas circulações materiais, que em outros trabalhos como "dois reais 272

" costumam questionar valor de uso e de troca, o circuito da arte volta a frequentar

lugares excêntricos. Esse circuito não só transmuta a origem e destino do objeto de arte, mas também problematiza a ideia de sacro através da realocação do espaço erigido da galeria­igreja. Tais práticas artísticas inscrevem Rocha Pitta e sua prática no domínio da micropolítica enquanto enfrentamento aos processos produtores de 273

espaços, maneiras de viver e subjetividades no sentido focaultiano

do termo. Suas

obras clima não são projetos fechados, constituem sites abertos que tocam em questões políticas a nível capilar. O "reino do céu", numa ação de levante, curto circuita as manifestações calorosas e corrompe, por dentro, arte e política sem que para isso seja necessário realizar comícios ou manifestações. Segundo Rocha Pitta é o fazer artístico e as relações que ele acarreta que precisam estar implicadas politicamente: como se trabalha, a forma de lidar com os assistentes, com a audiência, com o galerista. Essa é a política reivindicada: a que lida com as coisas do mundo e entende sua complexidade de uma maneira não redutiva, a que acontece entre a intimidade e o palanque, possível apenas através da poesia. Essas mais algumas das qualidades de um obra clima: se há humores e cadências de errância e políticas elas nunca operam frontalmente.

272

"Dois reais" foi uma instalação concebida para o Paço Imperial em 2001. No título o primeiro real diz respeito ao valor dos fragmentos do que fora o Hospital Universitário do Rio de Janeiro vendidos pelo valor de um real à empresa paulista Britex do ramo da material de construção. A venda da pilha de detritos resultante da demolição do prédio, pela quantidade simbólica de um real, levou o artista a pedir que a empresa desviasse temporariamente três caminhões de entulho. O segundo real, introduzido por Matheus, pode ser entendido simbolicamente como o pagamento já simbólico dobrado pelo artista mas também como dois "reais": duas realidades. 273 Para maiores esclarecimentos, ver por exemplo, FOUCAULT, 2003.


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Ao deixar a igreja, escuta­se o crepitar do fogo baixo unido aos mistérios do 274

relato

. Nesse espaço de tempo, aciono a alavanca política da elevação do

pensamento sobre a imagem, para que a raiva seja transvalorada e abordada com calma e inteligência. A isso, alia­se uma montagem mental de imagens densamente críticas: uma montagem de pensamento acelerado ao ritmo da raiva que busca 275

denunciar tranquilamente a violência do mundo.

3.1.4 Cadências maquínicas Nesta cadência, as obras clima ativam­se maquinicamente. Isto é, em sua estrutura não obedecem a um sistema de relações progressivas, de causalidades necessárias, automáticas e previsíveis entre os elementos. Partem de experiências que operam não mecanicamente, no sentido trivial. Funcionam pelo agrupamento de um conjunto de "vizinhanças" entre termos heterogêneos dos quais fazem parte o homem, ferramentas, coisas e os animais. Tecem críticas arrojadas a respeito do modo como se organizam instituições que continuam produzindo uma forma universal de acesso ao conhecimento e exigem do espectador um lugar comum a se chegar. Organizam­se a partir da rejeição de pensamentos formatados e interrogam sobre o acesso ao conhecimento. Muitas vezes, transformam ideias sociopolíticas em objetos que funcionam por associação simbólica tirando­os de seu contexto comum. Motivações e esforços para montagem das obras dessas cadência funcionam como o desejo, a partir de determinações que geram indeterminações de movimento. As cadências maquínicas abrigam arsenais, coleções de gestos que, na maioria das vezes, se organizam em ambientes englobantes, abrigos, salas cujas quais procedem tonalidades acumulativas e de onde emanam humores coletivos ou muito particulares. Muitas vezes, operadoras de “obstrução” ao acesso de informações, as cadências maquínicas podem promover notório desconforto causado pelo acúmulo de peças e objetos de natureza similar ou dispar. A sua atmosfera pode emanar tristeza, angústia e dor percebidos no esforço inútil em salvar a vida de imagens e objetos do desaparecimento. Podem ser respostas a

274 275

AGAMBEN, 2018. FAROCKI, Harun apud DIDI­HUBERMAN, 2013, p.27.


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perdas e experiências com fim trágico, ou uma forma de recordação prática enquanto uma espécie de crônica material de situações experimentadas anteriormente. Ou melhor, na condição de um arquivo armazenado em sua completude, cuja apreciação se dá para além do próprio tempo do objeto. Desvinculado de seu aspecto útil, objeto colecionável sob a óptica do sistema da 276

completude, conforme sugere Benjamin

, se torna uma enciclopédia de toda a

ciência da época, da paisagem, da indústria, do proprietário do qual provém. No fundo, continua o autor, "pode­se dizer que o colecionador vive um pedaço de vida onírica. Pois também no sonho o ritmo da percepção e da experiência modificou­se de tal maneira que tudo – mesmo o que é aparentemente mais neutro – vai de encontro a nós, nos concerne"

277

.

São maquínicas as atmosferas provenientes de obras que apresentam, de modo geral, negociações atreladas a algum tipo de colecionismo, conjunto de arquivos ou objetos. Articulam crítica ao contexto cultural ou social e se utilizam de espaços guarda­chuva ou invólucros que podem abarcar constelações de humores com tendências políticas, econômicas ou psicológicas. Os trabalhos escolhidos parecem se aproximar de matizes insinceras

278

.

Contaminam­se, talvez, pela prática de Marcel Broodthaers de criar e dirigir seu “Musée d’Art Moderne, Département des Aigles” . Em Broodthaers, encontram­se muitos enigmas, incoerências e instabilidades suficientes para não serem desfeitos ou para serem atados e desatados incessantemente. O museu da águia foi "inaugurado", em 1968, e mantido por 4 anos. Pela codificação da lógica e dificuldade de acesso direto, para visitá­lo o melhor a fazer é mergulhar em sua cadência multifacetada, plurilocalizada e metamorfoseante.

276

Benjamin, 2018, pp. 345 ­ 359. Op. cit., p. 240. 278 "something insincere" é expressão retirada da afirmação do poeta belga Marcel Broodthaers "I, too, wondered if I couldn't sell something and succeed in life. . . . The idea of inventing something insincere finally crossed my mind and I set to work at once." O algo insincero era a arte. Empobrecido e ambicioso Broodthaers desejava ter sucesso quando foi acometido pela ideia de entrar para o mundo da arte através da criação de trabalhos feitos com materiais encontrados como casca de ovo, carvão, mexilhão, que não tivessem outro conteúdo se não o ar . Broodthaers parece ter sido um dos primeiros a criticar a exibição de museus. 277


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Esse também é o melhor procedimento para acessar às obras clima descritas a seguir. Embora não seja adotado um caráter normativo ou instrumentalizante para acessá­las, é preciso se ter em mente que são igualmente geradoras e disparadoras de lampejos, o que significa dizer que armazenam virtualidades de possíveis que podem surgir não instantâneo da recepção do trabalho com o vivente. Não que esse tipo de disparo seja exclusivo dessa cadência e esteja ausente nas demais obras climas elencadas até aqui, o que acontece é que nesse núcleo as revelações tomam proporções assustadoras dado o volume de acúmulos que cada um dos trabalhos armazena. Vejam­se a seguir, alguns casos que exemplificam essa modalidade de trabalho. Pode­se pensar, por exemplo, no trabalho Un Jardin d´Hiver II , 1974

279

do

próprio Broodthaers. Obra inaugural importante a ser observado como emanador dessas cadências expansivas englobantes, ou maquínicas. Ao solicitar atenção simultânea de todos os sentidos, a referida obra clima se apresenta como uma montagem crítica sobre museus como um instrumento de poder político e marca comercial e demanda atenção simultânea de todos os sentidos. Funciona como antídoto para aqueles que necessitam de rótulos para entender a arte. Vemos esse fato com nitidez através do que a crítica de arte e historiadora americana Barbara Reise comenta sobre o Jardim: “à imagem de seu estilo passado com tanta elegância, monumentalidade e perfeição que chateavam qualquer processo de

279

Barbara Reise escreve na revista Studio International Journal October 1974 “Um Jardim de Inverno de Marcel Broodthaers foi mais: um trabalho novo de verdade entre suas obras históricas que não somente expande a noção de “museu” ao incluir jardins botânicos do século XIX, jardins zoológicos e museus de história natural – natureza – mas também acentuou o clima de “conservatório” do ambiente de estufa das outras exposições ao fazer alusão aos lugares de encontro preferidos de uma burguesia pré­guerra, o Palm Court – onde palmeiras em vasos isolavam áreas de conversações ao som de violinos sentimentais e a refrescância educada entre cafés e bolos. Como “instalação” era devastadoramente espirituosa em si: e o que era um comentário sobre a experiência do espectador dentro da exposição foi sublinhado pela tela da TV, que retornava a imagem do espectador na sala – antes de um vídeo­tape que foi adicionado mais tarde mostrando a entrada de um camelo (como espectador) na exposição. Então, estávamos todos como camelos? Não, mais como ovelhas.” Reise, Barbara ‘Incredible’ Belgium: Impressions. Studio International Journal of Modern Art. Outubro, 1974. Disponível em: http://www.welcometolesalon.be/datas/rearview/ra­131218­barbarareise/text/Studio_International_Jour nal_October_1974.pdf Sobre essa montagem ver também https://www.freunde­der­nationalgalerie.de/de/projekte/ankaeufe/2011/marcel­broodthaers.html


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pensamento que não fossem argumentos na escala de nota de rodapé de especialistas em estética tradicional

280

Anterior ao projeto de Broodthaers, outra emanação importante é a obra clima Merzbau de Kurt Schwitters concebida de forma intermitente na casa de sua família em Waldhausentrasse , na cidade alemã de Hannover. Merzbau conforma a obra­experiência no ambiente autobiográfico no qual Schwitters acumula fragmentos espaço­temporais de duas formas arquitetônicas: a caverna e a torre "a obra como 281

processo e fragilidade ontológica e como síntese da diversidade criativa

". A

importância da Merzbau , nesse caso, se deve ao aspecto processual da arte edificante de refúgio, cápsula política de resistência. Mais ainda, pelas cadências maquínicas de "um dispositivo de acumulação e de ocultamento, com propriedades ópticas, olfactivas, tácteis e mitográficas que conforme as leituras dos seus contemporâneos e da posteridade foi omnívoro, arborescente ou arquitectónico

282

".

Poderíamos abrigar nessa classificação alguns trabalhos da mostra "The Keeper" realizada, em 2016, no New Museum em Nova York. Todos incluem algum tipo de acúmulo obcecado e maquínico. A que mais se destaca por seu dado obsessivo e sua cadência maquínica recebe o nome The Teddy Bear Project, 2002, concebido por Ydessa Hendeles. A montagem parece abraçar qualquer visitante. Chego com um grupo no salão de dois andares com paredes abarrotadas de fotografias em preto e branco, todas emolduradas e muito bem dispostas. Ficamos absolutamente seduzidos pelo ambiente organizado e pelo volume das imagens monocromáticas 280

dispostas

meticulosamente

nas

paredes.

Procuramos

‘Incredible’ Belgium: Impressions. Studio International Journal of Modern Art . Outubro, 1974. Disponível em: http://www.welcometolesalon.be/datas/rearview/ra­131218­barbarareise/text/Studio_International_Jour nal_October_1974.pdf 281 POUSADA, 2016 p.134. Concebida num período que varia entre os 17 e os 14 anos (de 1919/1923 a 1937) "A torre é um elemento arquitectónico recorrente nas lendas medievais onde surge como exemplo da prisão aérea mas também do sonho de imortalidade. Estes dois corpos arquitectónicos essencializam também a presença de dois Eu (Ich) no edifício transformado. O Eu da auto­imagem consciente, racional e intencional (exposto claramente por K. Schwitters no seu Ich und meine Ziele (1931) – Eu e os meus projectos), de um Eu em que o burguês­artista­clown tem consciência e respeita os limites horários do seu disfarce e do seu exotismo e um segundo Eu, que se esconde na caverna, que se vira do avesso sem perspectivas nem vontade de regresso: o do 'retorno regressivo à irresponsabilidade social da infância'". http://seer.ufrgs.br/index.php/PortoArte/article/view/73718 282 POUSADA, 2015 p.38.


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imediatamente entender a razão de tantas imagens juntas. A impressão e a curiosidade foram tamanhas que nos forçou a uma observação minuciosa. Constatamos, sem muito esforço, que se tratava de mais de 3.000 fotografias, das mais diferentes fontes, nas quais pessoas posam com ursinhos de pelúcia. Num segundo olhar investigativo, percebemos que se tratavam dos notórios Teddy Bear que protagonizam as fotografias dispostas pelas paredes e vitrinas da sala expositiva. O gesto de colecionar é maquínico por excelência, engendra muitas máquinas sociais, políticas, culturais. Produz a retirada do objeto do mundo comum e ativa seu 283

respectivo ingresso em outro núcleo. "Trazer para a coleção

" implica o

afastamento do objeto de determinado conjunto heterogêneo de coisas e sua ressignificação em constelação específica. Uma nova individualidade eleita a partir de determinado critério se soma a alguma coletividade, onde coexistem, a distâncias variáveis, seus próximos. A natureza de uma coleção apresenta caráter inconstante e inconcluso. O colecionador sempre está aberto a novos fragmentos. Sob tal perspectiva, "a peça recém­adquirida emerge como uma ilha no mar de névoas que 284

envolve seus sentidos"

. Aproxima­se, nesse ponto, do fetichista. Ou seja, daquele

que se sente enfeitiçado pela agência dos objetos, por partes do corpo ou por coisas de propriedades ou características de objetos ou indivíduos. Colecionadores anseiam ininterruptamente por mais itens e nunca pensam ter o suficiente. Estão sempre à procura do fragmento que completa a coleção que nunca será encontrado. O colecionador retira a mercadoria de circulação e põe em 285

questão seu valor de troca ao mesmo tempo, o inescrutável e o inconfundível

.

Esse tratamento dado ao objeto pelo colecionador deve ser, segundo Benjamin, comparado ao olhar de um grande fisiognomonista sobre o mundo das coisas. Nesse sentido, diz o filósofo, para o colecionador, o mundo está presente em cada um de seus objetos de modo organizado segundo um arranjo e uma ordem estabelecida em função de seu passado: sua gênese e qualificação objetiva e os detalhes de sua história aparentemente exterior, como proprietários anteriores, preço 283

BENJAMIN, 1987, p. 231. BENJAMIN, 2016, p. 239. 285 BENJAMIN, 1987. 284


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de aquisição, valor etc. Sob tal lógica, "os dados 'objetivos', assim como os outros, formam para o autêntico colecionador em relação a cada uma de suas possessões uma completa enciclopédia mágica, uma ordem do mundo, cujo esboço é o destino de seu objeto". Há tensão dialética entre os pólos da ordem e da desordem, tanto a coleção organizada enquanto se negocia o posicionamento de cada um deles em relação ao outro quanto naquela cujos itens selecionados se acumulam no escuro durante "o suave tédio da ordem ainda não os envolve". Isto é, há tensão dialética entre os pólos da ordem e da desordem. Isto é, em ambos os casos encontra­se a latência de ordem maquínica. Ao desempacotar os livros de sua coleção Benjamin aponta outra 286

"perspectiva da atividade de colecionar

": "um dique contra a maré de água viva de

recordações que chega rolando na direção de todo colecionador ocupado com o que é seu

287

". Os objetos de coleção de Benjamin são os livros que compõem sua

biblioteca. O desempacotamento dos exemplares o auxiliam na reflexão e no processo de elaboração do pensamento. Se é possível comparar o colecionador ao fetichista, também é razoável entendê­lo como trapeiro ou mesmo poeta cujo gesto se resume a pinçar e lapidar palavras, imagens e metáforas e assim escrever poemas. Sentar­se diante de peças de qualquer coleção em meio a "caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre as pilhas de volumes trazidos de novo à luz do dia após uma escuridão", é deixar­se abrir para o passado que se atualiza diante de cada rememoração trazida pelos itens da coleção. É sujeitar­se à tensa disposição de espírito que os objetos despertam no colecionador dentro do acontecimento. É subjugar­se também ao desejo como siderar em latim. É sofrer ação funesta dos astros, de forma análoga ao ato de se lidar com a ação provocada pela hecatombe em que vivemos, que faz nossos corpos operarem em de­siderium de onde Sidera , sidus no singular, provêm considerar e desejar.

286 287

Op. cit., p. 231. Op. cit., p. 227.


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" Con­siderare era consultar as constelações, ver os desígnios no desenho das estrelas"

288

.

As obras climas a seguir se montam a partir de Destarte, pode­se dizer que esse núcleo emite acústica ambiente geralmente organizado ou executado com o intuito de se denotar ou estimular a criação de uma cadência de completudes maquínicas. Soam como "paisagem sonora" ou mesmo como "discreto complemento” que ritmiza um todo. Das obras clima observadas a seguir podem­se perceber críticas que carregam em si espécies distintas de maquinismo politizados abrigados em pequenas coleções. São procedimentos que se desenvolvem no caso de Restore Now , 2006 de Thomas Hirschhorn incitando uma postura tensionada de oclusão. No caso da obra site­specific Xylotheque Kasse l, 2012 Mark Dion demarca uma crítica institucional e questiona as estratégias documentais com os elementos da coleção do Museu onde está exposto o trabalho. Em The Repair from Occidental to Extra­Occidental cultures , 2012, Kader Attia utiliza imagens de deformações resgatando a presença da cultura africana no mundo. No exemplo do Museu da Inocência, 2008­2012, Orhan Pamuk, influenciado lirismo de um romance arma coleção real­ficcional e crítica o porte dos grandes museus.

288

Cito nota referida em sala de aula pela Prof. Dra. Marisa Flórido. Casa França Brasil, Rio de Janeiro, 2017.


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Restore Now, 2006 | Thomas Hirschhorn

Imagem 19 Thomas Hirschhorn Restore Now , 2006, 27ª Bienal de São Paulo, 2006

No primeiro piso da 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, a obra clima emana tonalidades de tensão provindas de elementos da atualidade, faixas vermelhas "o grande medo", 'homens em tempos sombrios". O grande espaço dividido em três salas foi montado como espécie de depósito de materiais de construção e ferramentas. Dentre elas, furadeiras, machados, facas, chaves de fenda, martelos e até livros de filosofia em diversos formatos. Além disso, um grande acúmulo de imagens conectadas a livros, fotos chocantes de cadáveres e partes de manequins em fibra de vidro usados nas vitrines de loja. Lado a lado, atados por uma lógica de conexão direta e sem censuras, o morto e a arma responsável por sua morte. A natureza ostensiva e esmagadora do ambiente instaura teores de assombros e


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angústia. A escala do trabalho, o nível de aderência gera altas taxas de intimidação no percorrer dos corredores que se abriam e multiplicavam no salão. O excesso de objetos e utensílios atados com plástico, papelão, fita crepe os e materiais dos mais comuns facilmente encontrados no mercado, acrescentam notas obsessivas causada pelo grande cabedal de citações de filósofos como Spinoza, Gramsci, Bataille, Deleuze, Guattari, Nietzsche. O clima de devastação e uma cadência maquinal distópica não remontam evento específico a exemplo das grandes guerras ou conflitos políticos, religiosos ou territoriais, antes parecem todos eles conectados. Penso em como restaurar a convivência entre homens objetos ideias e pensamentos? Pela primeira vez experimentava uma instalação do artista suíço Thomas Hirschhorn. Na ocasião, lembro que, ao acessar os corredores do grande estação maquínica, me atravessou a ideia de "filosofar com o martelo" da noção do trágico em Nietzsche. A destruição que edifica novos valores. Destruidores vistos como edificadores, produtores criadores, artistas de si mesmos. Se por um lado o martelo tem o caráter funcional de edificar e construir, por outro, pode ser uma arma letal. As coisas só são individuadas no momento em que se dá nosso encontro com elas. Precisamente, só quando acontecem os encontros e pela qualidade intensiva bem como expressiva das forças que operam no intervalo entre nós e os objetos que estes se definem. São sempre parciais, sempre instantâneos, sempre mundo de possíveis, e, nesse caso, sempre experiência trágica no sentido extra­moral. Os modos de operar qualquer uma das ferramentas expostas não estão todos dados, cabe a cada um criar. Na mesma medida em que se pode abrir uma lata com uma chave de fenda, pode­se usar um livro como um peso de papel, ou pode­se 289

prender um curador com silvertape

. Essa foi a maneira como se encaminhou

minha percepção. Vislumbro novas possibilidades de armas. Precisamente, a recepção da arte de forma a estabelecer relações mais produtivas no contato com obras clima .

289

Referência ao trabalho de Maurizio Cattelan "A perfect day", 1999. Instalação de um dia inteiro na qual Cattelan prendeu seu galerista, Carlo Massimo, com silvertape, em sua galeria em Milão.


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Trata­se, em última instância, de restaurar o agora. Em outras palavras, o justo momento do confronto que se dá na instantaneidade do acontecimento no qual sobrevém o desconforto com o novo, em que sou assolada por gritos não ditos. Fazer dos pensamentos martelos que rompem a ordem vigente sem me apoiar em discursos prontos. Atuar numa restauração do campo de batalha e de reflexão por meio da qual seja possível fazer uso oblíquos das coisas. Fazer uso do excesso, do acúmulo, da intensidade visceralmente sem nenhum pudor. Preencher completamente o espaço não é ir contra ele, mas operar nele de forma plástica criando ruínas potencialmente restauradoras da relação entre homens, objetos, ideias e pensamentos. A cadência maquínica, nesse trabalho de Hirschhorn se revela no desejo da destruição. Sente­se no ar o destruidor "permanentemente rodeado de pessoas, de testemunhas de sua eficiência", que desafia "a má compreensão. Tal como os oráculos", prefere ser mal interpretado. Inventa­se como unidade e desafia as "destrutivas instituições estatais". Restore Now lança uma "desconfiança insuperável na marcha das coisas e na disposição com que, a todo momento, toma conhecimento de que tudo pode andar mal

290

". O trabalho, tal qual sugere Benjamin,

não vê nada de duradouro, mas caminhos por toda a parte que precisam ser desobstruídos. Sob esse prisma, mantém­se permanentemente numa encruzilhada, uma vez que não sabe o que está por vir. Por essa via, o existente é transformado 291

em ruínas, não pelas ruínas em si, mas pelo caminho que passa através delas. Os trabalhos de Hirschhorn parecem nascer do confronto do mundo da arte com o mundo da destruição, sobretudo quando o artista obstrui ou fere as superfícies dos objetos envolvendo­os em colagens. Segundo suas palavras, insiste em dar espaço, tempo e lugar ao contato superficial dos elementos. Ao retirar e evitar o valor de informação das imagens, suas procedências ou comentários, 292

defende a justaposição superficial como forma de resistências abstratas.

290

BENJAMIN, 1987, p. 236­237. O caráter destrutivo. In: BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras Escolhidas II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p. 237. 292 https://www.youtube.com/watch?v=LI1RLhhLeDQ 291


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O artista evita a ditadura do jornalismo de quem somos reféns ao insistir em gerar perguntas sobre quem, o quê, onde, como, quando e por quê, criando desta forma u m anteparo sobre o que se vê. O interesse em permanecer diante das imagens é pela possibilidade de se deixar ser atingido pelo que elas revelam em sua superfície. Sob esse espectro, a imagem poderá retratar um vizinho, amigo, parente ou até mesmo nós. Para Hirschhorn, na arte não há um observador mas uma experiência radical marcada por sensações de mal estar e desconforto ao invés de pertencimento. Seus trabalhos, em geral, são realizados em espaços públicos, museus, galerias e casas de colecionadores sob a "forma de ocupações" . Englobando diferentes realidades socioeconômicas através da presença marcante de colaboradores dos mais distintos estratos sociais, suas o bras clima estabelecem “relações” com ênfase no diálogo e na negociação entre observadores, participantes e contexto, sem que essas relações sucumbam ao conteúdo do trabalho. São, nesse sentido, introduzidas para desafiar a percepção da arte contemporânea como um domínio englobante de outras estruturas sociais e políticas. Para Claire Bishop, o trabalho de Hirschhorn representa uma guinada importante na forma como público é concebido pela arte contemporânea. Em suas obras clima , Hirschhorn declara não "convidar" ou "obrigar" o público a interagir com o que ele faz. Ele diz querer se doar e engajar a tal ponto que os sujeitos se vejam confrontados com o trabalho, de modo que passem a participar e se envolver com a obra de forma independente. Nesse contexto, ser ativo é refletir e pensar criticamente. No seu ponto de vista, um pré­requisito essencial para a ação política 293

. De acordo com o que foi colocado desde o capítulo dois, a atmosfera de cada

trabalho sugere um tipo de participação ativa do público. No fuscum subnigrum de cada trabalho existe uma quantidade de informação apta para ser acionada pela presença de quem se encontra diante dele. Contudo, tal procedimento de ativar o público, conforme salienta Claire Bishop, não é mais suficiente declarar a obra de arte como um ato democrático. Cada trabalho artístico, prossegue a autora,

293

Hirschhorn, entrevista com Okwui Enwezor, in Thomas Hirschhorn: Jumbo Spoons and Big Cake (Chicago: Art Institute of Chicago, 2000), p. 27.


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determina antecipadamente a profundidade de participação do público, incluindo aí até mesmo o mais “aberto” deles

294

.

Pela análise de Bishop e Hirschhorn, a questão da arte contemporânea está diretamente relacionada a maneira como ela se dirige ao público. O que demanda, por sua vez, uma avaliação sobre a qualidade das relações que esse atrito produz. Ou seja, envolve uma análise sobre como a obra clima pressupõe a posição do sujeito, as noções democráticas que a sustentam e com se manifestam na experiência com a obra. Confrontam, nesse sentido, as relações complicadas do social e da estética, podendo ser uma força crítica para prover bases mais concretas 295

e polêmicas de repensar nossa relação com o mundo e uns com os outros.

Ora, o artista não é um "animador, professor nem assistente social”. Reconhece as limitações da arte e sujeita a escrutínio afirmações fáceis das relação transitiva entre arte e sociedade. O modelo de subjetividade que ancora sua prática não é o sujeito fictício e completo de uma comunidade harmoniosa, mas um sujeito 296

dividido, de identificações parciais, abertas ao fluxo constante"

294

BISHOP, 2010, p. 130 ­131. Idem. 296 Ibidem. 295


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Xylotheque Kassel, 2016 | Mark Dion

Imagem 20 Mark Dion Xylotheque Kassel, 2016, dOCUMENTA 13, Kassel, 2012

Carolyn Christov­Bakargiev é a curadora da dOCUMENTA 13, no ano de 2012. O projeto da ítalo­americana, de raízes búlgaras, abre campo para um território fértil de considerações sobre questões ambientais, cyber cultura, iconografia científica, engenharia genética, biotecnologia, eco­futurismo. Ecologia e sustentabilidade são conceitos centrais em meio a numerosas visões artísticas de potenciais futuros distópicos. A mostra alude para as crises e emergências, além de formas de considerar as relações entre ciência, natureza e capitalismo avançado na arte contemporânea. Prima também por incentivar a inclusão de outros seres vivos, tanto animados quanto inanimados. O intuito é dar ao visitante a oportunidade de adotar o


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ponto de vista não humano. Com isso, a curadora ativa e ocupa instituições da cidade de Kassel na Alemanha. Espaços destinados às ciências, astronomia, zoologia, ecologia e economia, química, física e medicina são, portanto, integrados à mostra. O artista americano Mark Dion ocupa o Ottoneum Museu de História Natural 297

da cidade de Kassel com o trabalho Xylotheque Kassel. Acessando o corredor principal, no segundo andar do Museu, percebo o

móvel escuro de formato hexagonal com um estreito acesso a seu interior. O seu design se mantém fiel à estética e ao aspecto estrutural da instituição museológica onde está instalado. Não fosse a placa de identificação fixada na na porta, com o nome de Dion, teria o observado apenas como parte do mobiliário que compõe o acervo permanente museu, ao invés de apreendê­lo como uma obra clima exibida temporariamente numa mostra de arte contemporânea. O clima da obra remete à atmosfera de um pequeno gabinete de curiosidades pertencente à história do museu ou de uma pequena biblioteca. Lembrando uma vitrine de madeira protegida por vidros, de suas prateleiras admira­se a delicadeza dos exemplares expostos sob a forma de um catálogo de plantas tridimensional, cujo feitio e apresentação lembram uma coleção de taxidermias. A sua organização e visualização são bastante claras. Ao contato com conjunto do móvel e com a rusticidade do antigo material, experimento um tipo de desejo pela catalogação que remonta a necessidade de organização da informação vinculada às formas da natureza. A valorização da catalogação e da forma com que as instituições públicas lideradas pelas ideologias dominantes moldam a compreensão do mundo natural. A urgência de compartimentar e isolar do mundo o conhecimento para transmiti­lo de forma autoritária e elitista remonta caráter enciclopedista do século XVIII. Ao entrar, identifico que o trabalho tem o nome de Xylotheque Kassel . Sei que a palavra xilo em português se refere a madeira. Então foi fácil intuir que em xylothek, xylon se referia a madeira ou a árvore e theke algo relativo a lugar de 297

Construído entre 1603 e 1606 danificado pela guerra e reformado entre 1949­1954 Ottoneum além de atualmente abrigar o Elephant Skeleton, emprestado a Goethe por Soemmerring para sua pesquisa anatômica do premaxilla, não representa apenas um centro de pesquisa científica, mas também serve como uma plataforma para discussão relacionada à proteção e conservação do meio ambiente.


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armazenamento, como em biblioteca. Nessa xylothek de kassel, há uma segunda coleção – espécimes de livros em madeira – que apresenta, em alguns casos, detalhes da estrutura anatômica dessas espécimes. Ou seja, entusiastas coletam amostras de madeiras diferentes. Entretanto, ao invés de reproduzi­las através de desenhos ou aquarelas simples, inserem ­ folhas, sementes, nozes, galhos, frutas, flores, pedaços de raiz e casca de árvores em espécie de caixas de madeira que se assemelham a livros. Quer dizer, esses “livros” de madeira podem ser abertos para revelar um compartimento oco onde amostras botânicas da árvore fonte estão armazenadas. Em alguns casos, são incluídas também descrições escritas da árvore e das doenças que podem desenvolver. Alguns dos "livros" estão dispostos em prateleiras com a lombada virada para frente – como em uma biblioteca comum – outros estão abertos de forma a revelar a espécie e suas respectivas partes. A maquinação apresenta as seis paredes da “biblioteca” com muitos desses livros contendo espécies de árvores e arbustos locais. Entre o inscrito e não­inscrito da biblioteca, a tonalidade da montagem me remete à época das expedições do século XIX, preocupadas com o registro e catalogação da flora e das florestas nativa e de outras áreas do mundo. A cadência que me alcança dessa obra clima só se torna um pouco mais intensa pelo fato de conhecer um pouco o procedimento artístico de Dion: uma espécie de conduta semelhante a de um arqueólogo inconformado com os fósseis, tais quais institucionalmente se apresentam. Como sei que seus trabalhos normalmente revelam as maneiras pelas quais os museus categorizam e exibem suas coleções, desconfio que há ali também algum sistema de taxologia similar. A Xylotheque Schildbach é um dos tesouros que representam a rica cultura científica de Kassel durante o Iluminismo. Uma "biblioteca de madeira" trabalhada 298

por Carl Schildbach

de 1771 a 1799, na coleção do Museu de História Natural. A

obra de Dion apresentada na estante de carvalho no formato hexagonal, é projeto de marcenaria idealizado pelo próprio artista. As vitrines abrigam uma coleção original

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Carl Schildbach (Saxônia, 1730 e morreu em 1817) foi um naturalista alemão conhecido pela biblioteca que apresenta uma coleção de espécies de madeira da terra de Hesse. Trabalhou nessa catalogação entre os anos de 1771 a 1799.


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de 530 "livros" que contém amostras de 441 árvores, recolhidas por Schildbach em Kassel, no final do século XVIII. Ao esse conjunto de livros com espécies locais, Dion adiciona seis novos a exemplo de readymades dentro de sua obra clima . Cada um desses cinco apresenta uma madeira específica dos continentes ausentes da coleção de Schildbach: África, Ásia, Oceania, América do Norte e do Sul. Um sexto livro mostra o carvalho, aludindo ao plantio dos 7.000 carvalhos de Beuys, plantados em Kassel de 1982 a 1987 para dOCUMENTA 7 e 8. No verso de cada uma das paredes do móvel hexagonal, encontram­se os mapas, em marchetaria, de cada um dos cinco continentes ausentes na coleção original. Depois de colher essas informações com a minha aparelhagem de espreita, nota­se que o processo de montagem expõe uma verdade anterior localizada, objetiva e única. O interesse do artista se baseia em acumular objetos e explorar as ideologias dos museus através de uma postura contrária à cultura dominante, de forma a desafiar a percepção e a convenção. Ao criar uma nova maneira de olhar a localidade, sugere possibilidades de cada um inventar suas versões de edições ad infinitum para uma catalogação mais anacrônica. Dentre os trabalhos de Dion, Xylotheque Kassel , por seu hermetismo, apresenta uma cadência maquínica pálida perto de outros projetos mais audaciosos. Dentre eles, vale destacar vitrine Encrustation Desk set , 2017, por exemplo. A cadência taxonômica dessa pequena obra clima parece produzir ondas mais agressivas de crítica sobre produção de conhecimento enquanto ferramenta formata nossa compreensão da história e do mundo natural. Dion reúne objetos e coisas efêmeras coletados durante uma dragagem no canal, em Veneza. Com o material acumulado nessa investida, monta uma pequena vitrine similar a um pequeno gabinete repleto de curiosidades históricas para uma exibição temporária na Tate Modern, Londres. Para Rescue Archaeology (2004) apresentada no MOMA, Nova York, ele realiza, em 2000, escavações no canteiro de obra para a extensão do edifício. Nesse projeto, descobre chaves antigas, azulejos de banheiro e fragmentos de papel de parede, entre outros objetos. Dion diz que seu


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processo pós­minimalista de acumular objetos e explorar as ideologias dos museus "é ir contra a corrente da cultura dominante, desafiar a percepção e a convenção”. The Repair from Occidental to Extra­Occidental cultures , 2012 | Kader Attia

Imagem 21 Kader Attia The Repair from Occidental to Extra­Occidental cultures , 2012 dOCUMENTA 13, Kassel, 2012

A grande vitrine de madeira à entrada da sala exibe uma coleção de munição e peças artesanais cujas partes são compostas de projéteis de armas variadas, incorporadas a esses pertences fotografias. Da prática arquivística do artista Kader Attia, evoluíam assombros de algum passado africano. Fulguram aparições e desaparições em torno das prateleiras de ferro da sala expositiva. As alusões a ferimentos e cicatrizes, bem como a deformação física das peças estimulam o imaginário a reunir fragmentos de imagens especulares sobre esse tema. A iluminação quente e fraca, o conjunto de estantes de ferro com prateleiras exibem livros abertos e presos com porcas e parafusos nas prateleiras – espécie de


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órteses emprestam uma carga dramática ao ambiente. Ilustrações antigas e projeções mostram partes do corpo com próteses. Um grande número de busto – espécies de carrancas, com rostos deformados, esculpidas à mão na madeira crua – ocupa as prateleiras, justapostos a outros de pedra negra. Duas das paredes do fundo da sala exibem projeções de imagens paradas como um slideshow. As peças que vemos projetadas se assemelham às das imagens dos livros e objetos das prateleiras: suturas, balas de canhão, rostos deformados, tipos diversos de próteses. O ambiente apresenta um arquivo documental de materialidades e memórias da guerra, misturados ao trauma da mutilação e reconstrução de corpos. O aspecto da combinatória das imagens, objetos e bustos pareciam lançar sobre nós uma espécie de convite: absorver a posição de alguma alteridade. Esse apelo não parecia vir do sujeito branco europeu. Apesar do contexto de guerra e da densa atmosfera no contato com as peças expostas, tudo na sala parecia manter uma ativa parcialidade. As figuras mutiladas preservam ainda sua integridade através do remendo. Depois de algum tempo no ambiente, a justaposição de artefatos culturais de diferentes origens nos coloca à frente da multifocalidade de um contexto de guerra. Não há hierarquia de forma, conteúdo, conceito, interior e exterior do trabalho. Não está em jogo uma visão unicista expressa na criação de um critério ou frase que resuma o trabalho. Confrontamos horizontalmente máscaras e estátuas, além de livros arranjados de modos diferentes. Movimentam­se como informação, apesar de perfurados e atados às estantes. As cicatrizes e os corpos deformados fazem colidir, aliado não só a reparação mas também ao título do trabalho, questões como a estética gerada pela guerra: as cicatrizes, as amputações e deformações, a reparação do corpo humano através de intervenções cirúrgicas, a plástica, a tentativa de voltar a uma configuração do corpo humano perfeito ou a reparação no sentido de retratação. Haverá como reparar os danos causados por uma rebelião, ataque, guerra ou qualquer correlato? O que se repara com uma cirurgia plástica?


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Attia, como filho de pais argelinos, cresceu entre os banlieues de Paris e Argel. Os banlieues são edifícios construídos na periferia de Paris para um população de baixa renda, em sua maioria desempregados, imigrantes do Magreb, da África Equatorial e do Oriente Médio. Attia transita em terras de colonos.Nasceu na França, estudou em Barcelona, vive e trabalha em Berlim. Um andarilho entre interferências culturais que incluem margens. Arrisco que, por esse motivo, não se vê conceitos totalizantes em sua prática. O público lida com contextos que não institucionalizam um ponto de vista ou noções de verdades pré produzidas. Na experiência diante da "Reparação de culturas ocidentais a extra­ocidentais", não percebo apelo panfletário de vitimização de um povo, mas um levante silencioso. Uma tentativa de sutura de bordas por meio das quais as cicatrizes dos colonizados lembram acontecimentos passados. O artista passa a informação. Revela traços do mundo pós­colonial mediante a combinação de circunstâncias de imagens. Precisamente, como um sintoma de uma guerra que nos chega através de flutuações dos artefatos africanos conectados por uma simplificação ou abstração morfológica. Ouvimos um balbuciar da atividade maquínica, agenciamentos e combinações sociais, munições, imagens de africanos, corpos amputados, próteses e restaurações, artesanato, máscara africana, peças apropriadas de uma circunstância social. A atmosfera aqui revela um elemento maquínico produtor de linguagem e aparelhado num tipo de montagem que recupera o procedimento de elevar o pensamento ao nível de raiva. Protestar. Separar. Dar cambalhotas nas coisas cujas quais parecem cair por si só. Estabelecer também um posicionamento correlacional. Determinar uma correspondência entre as coisas que, em outro nível, parecem 299

completamente antagônicas.

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FAROCKI, apud DIDI­HUBERMAN, 2013, p.28.


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Museu da Inocência, 2008­2012 | Orhan Pamuk

Imagem 22 Orhan Pamuk Museu da Inocência, 2008­2012, Istambul, 2015

300 O Museu da Inocência se oferece como cadência maquínica na fricção que reúne um conjunto de memórias solidárias ao desmonte de fronteira entre a arte e literatura. Apesar dessa obra clima não ser incorporada exatamente como trabalho de arte contemporânea, considero pertinente sua inclusão nessa cadência pelo fato de suscitar um tipo de ambiência que problematiza aspectos dos espaços expositivos. Por se tratar de obra clima instalada numa casa de três andares, fica perceptível a impossibilidade de narrar em detalhes as impressões e clarões que me

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O Museu da Inocência narra a história da paixão obsessiva do herdeiro de uma família tradicional e rica, Kemal, por uma prima afastada, Füsun, oriunda de um meio social menos favorecido. Através da antologia visual de imagens e objetos pessoais que rememoram os momentos vividos com sua amada, o autor revela aspectos da vida e da cultura de Istambul, entre a primavera de 1975 e os últimos anos do século XX. Assim, permite explorar uma cidade meio ocidental e meio tradicional, aspectos de sua vasta história, cultura e emergente modernidade. Com os objetos coletados, simultaneamente elementos fetiche enquanto crônica da sua felicidade, ressentimentos e lembranças, Pamuk monta uma genealogia, ao estabelecer um mapeamento de sinais de momentos e lugares vividos pelo casal.


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surpreenderam. Escolho, no entanto, aportar a primeira impressão ao entrar no referido museu. A visita à Turquia, por ocasião da Saltwater , 14 a Bienal de Istambul, em 2015, me leva ao Museu da Inocência. Constitui parte do roteiro da mostra de curadoria Carolyn Christov­Bakargiev. No mapa de acesso e ativação as instituições da cidade, figura o tal Museu vinculado ao nome do artista armênio Arshile Gorky

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,

1904­1948. Apesar de não me identificar com as abstrações de Gorky e de nessa ocasião não saber nada a respeito nem do projeto nem do livro Museu da Inocência – nunca lera Orhan Pamuk

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– seu nome inspirou a caminhada até lá. Afinal, nomes

também ajudam na geração de cadências e nesse caso me soou auspicioso. Depois de atravessar o Bósforo, percorro as ruas estreitas e escadarias irregulares. Enquanto subo as ladeiras tortuosas calçadas de pedra, avanço lentamente pelas ruas Çukurcuma e as secundárias de Beyoğlu, para chegar a Rua 303

Dalguç 24 . Nesse endereço, localiza­se um sobrado que, pintado de vermelho escuro, se destaca na ordenação cinza do bairro. O casario antigo de três andares incrustados no bairro residencial de Beyoğlu abriga o Museu da Inocência. A entrada dessa casa­museu fica na transversal. Junto a sua calçada, acesso o guichê. Compro o ingresso e acesso o primeiro andar. Não levo à mão um guia, nem

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Gorky imigra para os Estados Unidas no 1920 onde desenvolve sua abstração lírica de desenhos automáticos cores brilhantes sob influência do expressionismo abstrato No último andar do Museu da Inocência estavam instalados duas gravuras de início de carreira de Arshile Gorky Vale of the Armenians , 1944 e Act of Creation , 1947. 302 ORHAN PAMUK nasceu em 1952, em Istambul, na Turquia. Prêmio Nobel de literatura de 2006, é autor de romances e ensaios traduzidos para mais de quarenta idiomas. 303 A casa em que a família de Füsun, os Keskin, vivia ficava na esquina da avenida Çukurcuma (popularmente conhecida como a ladeira de Çukurcuma) e uma viela estreita chamada Dalgıç. Como se pode ver no mapa, de lá dava para ir a pé em dez minutos, percorrendo as ruas inclinadas e cheias de curvas da área, até Beyoğlu e a avenida İstiklal. [...] Aquelas ruas eram ladeadas por casas dilapidadas de madeira que se reclinavam sobre a calçada como que à beira de um colapso. Prédios vazios abandonados pela onda mais recente de gregos que tinham emigrado para a Grécia. Esses prédios aliados às chaminés armada para fora das janelas pelos curdos pobres ao invadirem os apartamentos assumiam uma feição um tanto assustadora à noite. Mesmo à meia­noite, a área próxima a Beyoğlu ainda estava viva com pequenos bares pouco iluminados, meyhanes, clubes noturnos baratos que se descreviam como “estabelecimentos de bebida”, lanchonetes, mercearias que vendiam sanduíches, casas lotéricas, tabacarias onde também se podia comprar narcóticos, uísque ou cigarros contrabandeados, até lojas que vendiam discos e cassetes, e, embora todos esses lugares tivessem um ar miserável, pareciam­me alegres e animados. Pamuk, Orhan. O museu da inocência (Kindle Locations 5637­5651). Kindle Edition.


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prospecto e tampouco tenho por hábito ler as inscrições nas paredes do museu. Prefiro a surpresa da experiência. Cruzo a entrada sob iluminação amarelada, fraca e incandescente do ambiente caseiro e simultaneamente museográfico. Um grande painel que cobre toda a extensão de uma das paredes da sala me chama atenção. Uma vitrina com 4x3m aproximadamente de altura e não mais que 10 cm de profundidade. Percebo um conjunto de muitos pedacinhos de coisas que não havia como decifrar à distância que me encontrava. Aproximo­me e vejo, então, que a disposição dos pequenos objetos se organiza por anos em colunas que cobrem de 1976 a 1984. Variando em suas larguras, essas colunas continham guimbas de cigarros. Uma coleção de mil delas dispostas e comentadas de forma obsessiva e sistemática. Ao lado esquerdo, uma placa informativa – sobre a qual não me detive – divide a parede com nove monitores. Em looping , mostram mãos femininas depositando cinzas em cinzeiros. Nos filmes antigos, preto e branco, ao lado de uma coleção de guimbas, mulheres manipulam cigarros. Se havia algum tipo de odor no ambiente era imperceptível. Não sobressaia nem o aroma do tabaco nem de cinzas naquela sala. Detenho­me sobre o que experimento. Percebo que abaixo de cada uma das guimbas cuidadosamente presas por um alfinete, há as inscrições. Provavelmente as datas que haviam sido o consumidos os cigarros e recolhidas as guimbas. Moravam aí lapsos, intervalos de muitas interrogações possíveis, não­inscrições. Em fracções de segundos navegava entre a serenidade e a sedução do ambiente onde o conjunto de material ruinológico, alinhado com os vídeos e muitas suas insinuações possíveis, trafegava. Percebo, no embate das formas, certo clima de rememoração da qual as datas eram indicativo. A nostalgia aparece intrinsecamente vinculada ao instante de uma atitude concreta: o ato de fumar, o vício, a saúde, a compulsão, o nervosismo e outras possíveis relações que o tabagismo instaura e implica. Inodoras naquele caso também, concluo terem sido congeladas, enfileiradas e catalogadas de maneira asséptica. Cada pedaço de cigarro, uma eternização de um momento, uma fotografia, um fantasma de um gesto manifesto pelas proibições, sedução do gesto


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de fumar, ou terminar de fazê­lo, o apagar do cigarro, o lançá­lo ao chão ou em qualquer cinzeiro. No intervalo do não­inscrito e do ambiente enigmático e espectral, brotam algumas pequenas percepções. As imagens que me alcançam unem­se ao gesto do ”trapeiro” a recolher obsessivamente restos de pequenos pedaços 304

apagados, mortos, inúteis . Nesse primeiro instante da visita, ainda não sei nada sobre o museu. Realizo, conforme a leitura, se tratar de 4213 pontas de cigarro e, cada uma a seu modo, registra as emoções do momento em que a fumante apagou sua guimba. Depois de passar pelas vitrines, montagens e informações dos outros andares confirmo se tratar da narrativa ficcional do romance homônimo "Museu da Inocência". A abordagem feita de dobras biunívocas – literatura se dobra sobre o espaço museológico e a preservação de memórias ficcionais sobre a realidade, a arte sobre o contingente da vida – era motivo suficiente para inclusão dessa obra na 305

cadências maquínica

. Outro aspecto que explica meu interesse nesta obra clima

está relacionado à natureza armada pela falsa ficção. Detenho­me, nesse sentido, na dupla falsidade do projeto que, simultaneamente, funciona como um contraponto à dimensão realista da documentação e ilusionista da ficção. Com o auxílio das cadências descritas e elaboradas até aqui, afirmo ser viável perceber a arte pela via do stimmung. De fato,pode ser uma ferramenta que marca um diferencial quando se trata tanto de recepcionar uma obra de arte quanto de produzi­la. É apoiada nesse ethos que aponto as nuances críticas que ajudam fazer as atmosferas da estação de escuta e espreita ao me (re)apropriar de uma casa abandonada no bairro de Água Santa, ressignificando­a como um ato de se distanciar da visão consensual predominante acerca do lugar .

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O trapeiro é a figura mais provocadora da miséria humana. Lumpemproletário num duplo sentido: vestindo trapos e ocupando­se de trapos. "Eis um homem encarregado de recolher o lixo de cada dia da capital. Tudo o que a cidade grande rejeitou, tudo o que ela perdeu, tudo o que desdenhou, tudo o que ela destruiu, ele cataloga e coleciona. Ele consulta os arquivos da orgia, o cafarnaum dos detritos. Faz uma triagem, uma escolha inteligente; escolhe, como um avaro um tesouro, as imundícies que, ruminadas pela divindade da Indústria, tornar­se­ão objetos de utilidade ou de prazer." "Du vin et du hachisch'', CEuvres, I, pp. 249­250 <ÜC I, p. 381> 305 O processo da musealização imaginária do Museu da Inocência de Istambul, do Nobel de Literatura Orhan Pamuk foi um projeto que se realizou simultaneamente, na construção física do Museu e a escritura do respectivo romance e catálogo para o Museu.


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3.2 Casa em dobras Não cabe prosseguir com a narrativa sobre as impressões acumuladas durante minha permanência no espaço. Vale mencionar, no entanto, algumas informações acessórias desse projeto de museu à guisa de encaminhar o final da primeira parte deste capítulo antes de entrar em sua segunda divisão cuja abordagem trata da produção de atmosferas, ou de cadências como denomino. A partir de agora, contorno alguns aspectos sobre o procedimento de Pamuk para realização do projeto do Museu da Inocência. Diviso com tal narrativa pequenos parágrafos em anil com os quais relato o prelúdio da produção de atmosfera da estação de escuta e espreita, uma vez que o texto a respeito do museu abre espaços para: inserção de elucubrações, fantasmas e procedimentos fundadores da obra clima da estação. Antes de começar a trabalhar com vistas à produção de atmosfera para a estação, sou assombrada por perguntas recorrentes em forma de fantasmas que me rondam dias e noites a fio. Por onde começar? Como começar com as coisas que estão diante de mim? Como remodelar ou travar diálogo com a atmosfera de uma casa? Como acentuar ou imprimir outra cadência a uma área que em si já é impregnada de intensidades naturais, memorialísticas e urbanas? O que alguém inspirado pela pertinência de um bairro pode fazer para adotar um tipo de projeto de ativação? Qual a relação entre a casa velha, uma penitenciária, um hotel da loucura, uma pedreira? Há algum tipo de sinergia entre essas coisas? Como armar atmosfera do acesso ao desconhecido, aos atratores teóricos e ao exercício da escrita? Como ocupar a mesa de montagem? Como me abrigar num espaço de litígio familiar? Como farei se, antes do trabalho acabar, o litígio se concluir? Como enfrentar as atmosferas das ruínas e memórias desse espaço? Como recepcioná­las e reflexivamente produzi­las? Antes mesmo de escrever o romance baseado no acúmulo obsessivo dos objetos e muito antes de se deixar levar pela inventividade do projeto do romance – que culmina com a real aquisição de uma propriedade para o museu e seus objetos –, Pamuk passa a vivenciar alguns dos bairros da cidade de Istambul. A proposta é encontrar objetos para serem "reconhecidos" como parte do romance. O foco do


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autor, arrisco afirmar, é encontrar através da atenção desinteressada – ou mesmo inocente – objetos e matéria que deem crédito ao ambiente a criação. Assim, ele busca apresentar nas caixas­vitrines do museu os signos do projeto artístico livro­museu enquanto o inventa. Como gesto inicial, na tentativa de fazer daquele espaço um desterritório, transfiro meu ateliê do Rio Comprido para a Água Santa . A ideia é me ambientar no espaço escolhido. Ao estender a área de atuação a partir do ateliê, começo paulatinamente a fazer o reconhecimento do espaço externo do casarão. Com andamento do projeto, ganha o nome de estação de escuta e espreita . Recolho telhas de porcelana despencadas do telhado, percebo a vegetação local e seu abandono. De forma desinteressada, passo a conviver com a presença de camaleões, com o estado de decadência do casarão, com o assombro diante da dimensão do espaço e da quantidade de informação memorial a ser manipulada e da teórica que precisava ser estruturada. O autor conta como cada objeto­lembrança recolhido ajuda na configuração e progresso da história em sua imaginação. Vê­se claramente como parte indissociável do processo o acolhimento da dúvida no momento vivido. O que aparece no entendimento de que os atos de afirmar o problema, afeiçoar­se por ele e esperar pelos objetos

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ajudam­no a compor o romance. Penetrar na atmosfera

envolvente de um romance que ocupa um espaço virtual e vivenciá­lo na fisicalidade de um bairro existente, na contramão de tentar solucionar um problema, adensa o problema. O processo de escolha e seleção das peças acaba por dar contorno a 307

história . A hesitação é parte da abordagem do problema e parece ser crucial na montagem e configuração do romance, acabando por despertar nos visitantes uma emoção similar a da leitura. O "olhar flutuante" também revela, através desses objetos coletados, a chance dupla do autor narrar a história da cidade e até mesmo

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PAMUK, 2012 p 49. Tradução livre . Quando encontrava um objeto particular em uma loja e percebia, com uma explosão súbita de inspiração, que eu poderia ser capaz de tecê­lo em minha história, eu imediatamente tinha que comprá­lo; e no meu caminho de volta para o meu estúdio, eu seria feliz. Na maioria das vezes, porém, eu não conseguia encontrar nada que eu achasse que se encaixava no meu romance, e eu saía com as mãos vazias. Às vezes eu comprava algo simplesmente por eu achar bonito, interessante ou incomum. Então eu colocava em minha mesa, acreditando, com otimismo, que seu papel na história de Kemal e Fusun simplesmente viria a mim espontaneamente. The Innocence of Objects , catálogo de peças do museu e coleção de ensaios. PAMUK, 2012 p.52. Tradução livre 307


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fazer com que alguns dos visitantes desavisados do museu levem em conta que tais objetos realmente façam parte de uma história de amor verdadeira. As afeições pelo espaço da estação e seus arredores são de ordem geracionais. As forças da fidelidade familiar invisíveis exercem pressão de permanência naquelas terras. Mesmo desabitado por mais de 10 anos e interditado à seus antigos moradores, como menciono na abertura, a propriedade faz parte de minha herança familiar. Foi também moradia de meus tios e primos que deixaram o ambiente, em 2000, por conta de invasão de bandidos. No entanto, a sensação de ser invasora daquele espaço me tomava. Todos os fantasmas que ali habitam, o residente e o passante, o estranho e o familiar da casa me acompanhavam. A despeito desse fato, alegra­me a possibilidade de lidar com um espaço problemático e zona de confronto familiar através de uma invenção. Não acredito, contudo, na solução de tais conflitos pela via da arte. Ratifico, o gesto, qualquer que seja ele, não é alimentado pelo desejo de resolução um problema, mas orienta­se pela mudança de informação para aquele espaço sem uso. A ideia é criar o problema – produzir atmosferas – já que o artista é mais quem arma o mistério ou enigma do problema do quem os soluciona. Ora, o vislumbre e o amaciamento na aproximação do casarão pelas vias da arte gira chaves nunca antes pensada. Coloca em circulação novas informações para um espaço paralisado, ativando­o para sentir suas cadências misturadas as das minhas inserções artística é o desafio que me aguarda, e ao mesmo tempo faz revigorar as veias estagnadas daquela residência. Para armar a ficção do Museu são dedicados anos de pesquisa, escrita, criação de ambientes, caixas, textos, personagens. A história cresce "friccionando o real" através da vivência e envolvimento com as ruas e estabelecimentos do bairro local, contato com vendedores, transeuntes e colecionadores. Num jogo paradoxal, enquanto a postura do protagonista se vincula ao ressentimento e às lembranças de sua amada, atado ao grilhão do "lembro­me" , o autor se aproxima da experimentação do tempo em sua potência de duração. A construção da narrativa à guisa da livre aquisição dos itens abatidos das casas de amigos e comprados nos mercados de pulgas de Istambul, os entrelaçamentos criados a partir da evocação


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de cada objeto, emprestam ao romance um sopro de liberdade similar ao que percorre a obra de Bergson. Autor e protagonista do Museu da Inocência, de mãos dadas, realizam dobras e encontram deslocamentos para seus problemas pelas vias da arte. Pamuk perfura as bordas da literatura

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. Com efeito, deixa se encaminhar por sua memória de

artista visual, armazenada em virtualidade bergsoniana, e transforma o romance, a meu ver, em trabalho de arte contemporânea. O protagonista, amalgamado ao autor, ainda que preso ao passado faz dobra sobre ele. Elabora sua dor através de uma coleção de objetos. Ao reconstruir diferencialmente sua história amorosa através da exposição das peças do Museu, faz o protagonista Kemal digerir seu ressentimento pela via da arte. O protagonista opera uma reconstrução narrativa indispensável na superação de bloqueios ‒ em última análise, crenças resistentes. Substituí as crenças arraigadas por novas, ou passa desacreditar na via única e natural de se crer, da mesma forma como se reescreve a história à medida que se reinventa incessantemente. Se, por um lado, me afeiçoo pela ideia de incorporar o espaço ao meu trabalho, por outro me assombra sua dimensão e as possibilidades a serem abordadas. Recuo ante a necessidade de tomar fôlego para agir. A intimidação me faz recorrer a ajudantes. A primeira iniciativa é levantar histórias e dados dos arredores com a ajuda de uma historiadora. Desejo, nesse momento inicial do projeto, levantar dados sobre a existência real do escravo que teria descoberto a água do terreno, recolher as memórias dos funcionários antigos e entender como a propriedade chegara às mãos de meu familiares. Outra iniciativa adotada é convocar uma primeiro mutirão para atuar dentro do casarão. Arrumar os cômodos onde cuidadosamente elimino muitos objetos e lixo acumulado enquanto reservo outros itens. O exercício descontraído da colheita e arrumação aparelha comedidamente minha espreita. Cada objeto lembrança que lança olhares enviesados são retidos e reservados para possíveis usos. Também recorro a consultas místicas como rito iniciação desse ciclo. Das orientações 308

Esse assunto da literatura que transborda e realiza meiose com a arte pode ser complementado com leitura do livro Literatura expandida – arquivo e citação na obra de Dominique Gonzalez­Foerster Ana Pato. Edições Sesc­SP e Associação Cultural Videobrasil. 2013.


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recebidas, destaco a tarefa de honrar e agradecer aos primeiros proprietários da terra: escravos. Também menciono a importância de homenagear as forças regenerativas e curativas da terra ligadas aos aspectos femininos. Em 1999 Pamuk adquire, por fim, a propriedade. A partir dela e seus arredores, pode estabelecer a história imaginária da família de seu romance. Dessa forma, surge o primeiro museu do mundo baseado em uma obra literária. Inaugurado em 2012, no bairro de Beyoglu, em Istambul, esse espaço é uma maneira do autor 309

se fazer expressar simultaneamente através de objetos, imagens e texto. Ao longo dos últimos meses de 2017 e início de 2018, convoco amigos, artistas e afins para me acompanhar numa incursão dentro e fora da estação . Performar espécie de circuito físico e sensitivo, ou percurso perceptivo, com outros visitantes me ajuda, aos poucos, a compor a atmosfera local. A troca de informações e os questionamentos levantados durante as conversas com cada uma das pessoas me faz arregimentar forças para a montagem. É na fricção da memória com a articulação da história do lugar, depois de armada a mesa de edição, e na composição com as forças arquitetônicas que surgem os pequenos gestos na montagem da estação. Os visitantes do Museu então podem eleger e experimentar “montar” alguma trama a partir de toda sorte de itens presentes no meio cultural de Istambul. Entre eles – na zona que os separa e permeia, na cadência maquínica que mistura desejo e literatura – podem ser revelados muitos clarões. Lampejam, de tempos em tempos, milhares de micro eventos. Cuidadosamente instalados em 83 caixas que acompanham o mesmo número de capítulos do romance, pode­se observar um tipo de viço orgânico das peças. Cada caixa ao mesmo tempo que remete a durações ficcionais, exibe uma espécie de memória arquitetada, dobras sobre dobras à

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Eu permaneci procurando pequenos museus em minhas viagens. O que achava mais fascinante era a maneira pela qual os objetos removidos das cozinhas, dos dormitórios e das mesas de jantar, onde haviam sido usados, formavam juntos uma nova textura, uma rede de relacionamentos involuntariamente impressionante. [...] Quanto mais eu olhava para os objetos na minha mesa ao lado do meu notebook, chaves enferrujadas, caixas de doces, alicates e isqueiros – mais eu me sentia como se estivessem se comunicando um com o outro. Eles acabaram neste lugar, depois de terem sido arrancados dos lugares aos quais eles pertenciam e separados das pessoas de quem faziam parte uma vida – a solidão deles, em uma palavra despertou em mim a crença xamânica de que os objetos também têm espíritos. PAMUK, 2012 p 51 52. Tradução livre.


196

disposição de outras possíveis dobraduras dos visitantes. Quanto mais Pamuk trabalha no museu, mais se sente livre e à vontade de usar qualquer objeto, mesmo aqueles que não constam no romance. Intui ser muito mais provável que os visitantes da exposição lembrem­se das emoções sentidas enquanto leem e veem os objetos, que de detalhes descritivos de um romance de seiscentas páginas. Mais importante é a duração do mergulhador diante do cenário do museu e a história de amor que ele possa a vir a construir a partir dos objetos expostos. Nos boxes do museu, podem­se verificar os artigos que fazem parte do drama amoroso, ao mesmo tempo em que apontam para as mudanças sociais e políticas de Istambul: fotografias, paisagens, imagens extraídas dos velhos filmes da cidade, jornais, revistas, canetas, cerâmica, jóias, sabonetes, itens da vida cotidiana, brinquedos, comida, garrafas de licor, formulários do governo, identidades. Cada um dos objetos, a seu modo, troca olhares com quem se aproxima. Afirmação desafiadora do romance convoca imagem e imaginário, duração e consciência, percepção e inconsciente que nos acompanha e motiva. São objetos que olham e escolhem Pamuk. Estão, hoje, entre aqueles que, de dentro dos boxes da casa­museu, fulminam os visitantes, atacam­os. "O poder das coisas é inerente às memórias que acumulam em si mesmas, e também nas vicissitudes de nossa imaginação e nossa memória" afirma Pamuk. O interesse pelos objetos escolhidos estão em perfeita consonância com o que o autor deseja imprimir na atmosfera do romance. Itens que, em outras circunstâncias, parecem ser desprovidos de qualquer sentido ou até mesmo de mau gosto, se prestam a preencher lacunas afetivas ou preservar os momentos felizes vivenciados pelo protagonista. Isso leva Pamuk a acreditar que o mesmo pode acontecer com os visitantes do museu. Ou seja, sentirem, anos mais tarde, um tipo qualquer de afinidade com os objetos

310

.

Na caixa de número 28, "o consolo dos objetos", Pamuk indica a construção do Museu como um paliativo para sua dor. Recolher objetos supostamente passado pela mão da amante garantirá a difusão da frequência daquele encontro. Os objetos, nesse caso, têm o poder de consolação. Sua retenção garante­lhe­á felicidade suficientemente duradoura até o fim da vida. Fazem­no encostar na essência do

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PAMUK, cap 58. A tômbola. Posição 6 278.


197

acontecido diz ele: "contemplava embriagado aqueles objetos; um dia ou dois mais tarde, [...] os levava para o apartamento do edifício Merhamet, onde os arrumava em meio a outros artefatos similarmente preciosos, e, quando me sentia tomado pela 311

agonia do amor, conjurava algum alívio com a ajuda deles." Paixões inspiram empreendimentos obsessivos. Assim como Pamuk e Kemal, muitos são os apaixonados que reúnem coleções pessoais, museus imaginários. Criam santuários na intenção de preservar histórias que de outra forma seriam apagadas. Honram os objetos transformando­os em fetiche, coleção, mercadorias, sobreviventes. Conservam caixas, baús, reservatórios, cestos, gavetas. Constroem museus, galerias, bancos, guarda­roupas, sótão, porão, adega. Relações geram objetos, que por sua vez podem erigir vínculos, marcando os afetos. Objetos inventam colecionadores e esses lhes conferem valor afetivo, no lugar do valor de uso, como indica Benjamin. Cria­se um mundo onde os objetos "trabalham" em sua inutilidade e não são escravos de uma função. Nele, o "colecionador sonha em alcançar não apenas um mundo longínquo ou passado, mas também um mundo no qual as coisas estão liberadas da obrigação de serem 312

úteis.

". Através das relações com o mundo, incluindo­se aí seres vivos e não

vivos, atribui­se valores e cargas aos objetos, se afeiçoa mais ou menos por eles. No cruzamento da consciência e inconsciente, no trânsito da percepção à intuição, no conjunto de acontecimentos pode­se vislumbrar a emanação da aura dos objetos. Desde minha visita, em setembro de 2015, à Bienal de Istambul, algo vivenciado nos cômodos e nas horas em que estive no Museu da Inocência ainda me retém. Alguma coisa dessa experiência continua reverberando. Em vários momentos durante a elaboração do projeto, as suas instalações povoam minhas memórias. Contudo, enfatizo que não penso em reproduzir o tipo de organização do conjunto de memórias inventadas muito menos em abordar a melancolia do romance. Ao ler Pamuk na tentativa de aprofundar conhecimento sobre a envergadura do projeto do Museu, encontro algumas justificativas para sua inclusão neste projeto, para além do fato de observá­lo como cadência maquínica.

311

PAMUK, cap 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e nada mais. Posição 4990­4992. BENJAMIM, 2018, p.79­80.

312


198

O primeiro aspecto mais frontal que suscita interesse no projeto do Museu reside no fato de se tratar de uma narrativa inventiva sobre um espaço museológico construído a partir de uma ficção tornada realidade e de uma realidade que é, em si, ficção. O segundo está diretamente relacionado à maneira como o autor negocia cada inclusão dos objetos em suas vitrines, a partir do encontro furtivo e conexões inventivas com eles. Por fim, o motivo definitivo está diretamente relacionado com a leitura do Manifesto preparado por Pamuk para seu museu. Destaco mais uma vez, não intencio armar nenhum museu ou manifesto. Sou afetada pelo gesto da busca pelo lugar do museu, pela ativação do bairro com sua construção, pelo tipo de ocupação e escala, pelo misto entre realidade e ficção, pela diluição de fronteiras entre a arte, literatura e vida. Minha ideia de promover algo ritualístico afinado com aquelas proposições museográficas. Ao ser indagado sobre o motivo que o fez elaborar projeto de tais proporções, Pamuk não se posiciona. Deixa a resposta em aberto. Prefere redigir um Manifesto para indicar o modo como ele pensa como os museus devem ser feitos. Tal documento discorre sobre a função e participação do museu como fonte de informação dos indivíduos, mais que a representação de um estado. Para o autor, a atenção dos museus deve estar focada em histórias cotidianas e comuns dos indivíduos. Consideradas por ele muito mais ricas, humanas, alegres e além de tudo muito mais adequadas para exibir as profundezas da humanidade. A sua proposta é não apresentar histórias contadas a partir de um ponto de vista hegemônico das instituições, símbolos nacionais – história da nação. Arrisco dizer que Pamuk se irmana a autores que contestam a visão da história como um progresso linear sublinhada nas últimas décadas do século XX e primeiras do XXI. Pensadores que compreendem formas e alternativas de ser e estar no mundo, fora da temporalidade mecânica e histórica. Mais ainda, que estabelecem, em suas obras, relações com a memória que se atualiza no presente, problematizando o entendimento do tempo e da história oficial ao se voltarem para o estudo do anacronismo. O estatuto do singelo Museu apela para espaços expositivos de pequenas dimensões. Espaços mais individualistas e econômicos como maneira eficiente de


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contar as histórias em escala humana. Coloca­se na contramão das grandes instituições, de portas agigantadas e estruturas milionárias. No item 8 do Manifesto há um conclame para que os recursos destinados aos museus monumentais possam ser desviados para espaços expositivos que revelem e ativem a riqueza e fragilidade das histórias pessoais. Seguindo a orientação do item 11, o futuro dos museus está dentro de nossas próprias casas. Seriam museus modestos que respeitam os seus bairros, ruas, residências, lojas nas proximidades, transformando dados de natureza trivial, ficcional ou não em micro­história ou mesmo em elementos de suas exposições. Encontro, entre os itens 8 e 11 do manifesto do Museu da Inocência, ressonância para refletir sobre as micro histórias locais comuns aos indivíduos, atividades menos influentes para a propriedade, a qualidade do lugar e a particularidade das acomodações com as quais me relaciono. O levantamento de dados via entrevistas e acesso aos documentos colhidos não acrescentam informação significativa. Não encontro nada que comprove a descoberta da água por Domingo Camões, muito menos registro em nome de sua identidade. Das incursões feitas pela geografia do lugar, aquela realizada com o pessoal da agrofloresta reforça a noção de estagnação das terras, tanto ao redor da estação quanto nas áreas mais acima. O volume das copas das árvores impedem a passagem de luz para o solo e são as responsáveis pela falta de nutrientes para terra. Por conta de falta de poda e manutenção, galhos e muitas árvores podres ameaçam cair. O casarão, pensado como geografia em sua estagnação, representa área compacta e articulada em comparação com o espaço externo. Um espaço oco não se restringe a organização espacial, contém marcas afetivas. Essas continuam emanando frequências. O casa como estância, lugar de estada, estação particular abrigo que protege os vulneráveis processos fisiológicos da vida começa então a ser reativada por outras informações vitais. Do empenho, elaboração e procedimento de Pamuk, é possível identificar o desejo, sempre maquínico, de transmitir uma certa melancolia dramática. O gesto ativo da recuperação ou objetificação da memória está perpetuamente em metamorfose. O escritor investe na produção de atmosfera brincante, um caosmos


200

entre arte e vida real. Parágrafos viram caixas, pedaços de istambul, cenário. A casa desabitada se preenche de novas informações. É ativada pela rearrumação de novas entidades. Ora, toda narrativa acaba por criar uma atmosfera. Imprime uma cadência, embala algum tipo de projeção, ativa a imaginação e evolução criadora. Exatamente como fala Bergson. Atmosferas de onde se escutam os disparos desejantes e se espreitam as pequenas notações do passado vivido: flashes , flagrantes em que se esboça sorrisos, levanta­se o supercílio, ausculta­se o músculo cardíaco e percebe­se alteração de tonalidades corporais. "Para que não haja qualquer mal­entendido, devo dizer­lhe francamente que o meu método de trabalho não tem nada a ver com a decoração, que eu não estou de modo algum a realizar um interior onde as pessoas possam viver

313

". Essa

sentença não é de autoria Pamuk. São palavras de 1936 escritas por Schwitters em carta enviada a Alfred Barr. O apelo ao então diretor do Moma aparece como um recurso para salvar a casa de oito cômodos na qual se m etaboliza escultura abstrata, objeto de discurso e autobiografia. O simples domicílio familiar, concebido 314

para ser vivido como manifestação

, antecipa, de certa maneira, aquilo que na arte

dos anos 70 será entendido como obra interativa ou situation­specific e nos 90 como estética relacional. A obra­experiência inovadora da Merzbau pretende­se permanente, inacabada e em andamento. Destinada a crescer e se espalhar, abraça o público de arte, problematiza a ideia de posse, de museu e da arquitetura como escultura de acúmulo de objetos. Como domicílio objetificado, o Merzbau também comenta a falta de espaço para viver e funciona como uma resposta poética à necessidade concreta e premente de um abrigo ou de uma “mortalha”

313

315

. A palavra merz , em alemão deriva

POUSADA, 2015 p.40. Ele (Schwitters) organizava na casa onde residia em Hannover matinées de divulgação artística, promovendo palestras de activistas da vanguarda europeia (Arp, Doesburg, Haussman, Lissitsky), cantando poemas ininteligíveis para uma audiência heteróclita – nessas iniciativas prosélitas encontravam­se, segundo o testemunho de Hannah Hoch, “amigos mas também inimigos curiosos e pessoas que Schwitters, graças à sua personalidade, tinha de certo modo obrigado a ocuparem­se com a sua concepção de arte. Eram não só directores de fábricas mas também um qualquer sapateiro remendão. Gostava imenso que os convidados contestassem essas matinées, podendo assim apresentá­los pessoalmente aos hannoverianos” (HOCH apud ADRIANI, p. 45). POUSADA, 2015 p.46. 315 POUSADA, 2015 p.44. 314


201

de Kommerz . Schwitters adota esse neologismo para revista que começa a publicar entre 1922 e 1932. Desejando se desvincular do dadaísmo e da arte surrealista, cria o termo Merz Art . A palavra merz amálgama o caráter de "Obra de arte total". Usada como nome para identificar as colagens e poemas de Schwitters merz traduz a ideia de que a arte está em tudo, inclusive no comércio. Em 1923 a Merzbau é produzida como primeira instalação artística. Em 1943 a construção original Merzbau é parcialmente destruída pelo bombardeio britânico. Com a morte do artista, sua recuperação é interrompida em 1948. Baseando­se nos registros fotográficos da 316

Merzbau , feito por Wilhelm Redemann em 1933, o cenógrafo Peter Bissegger

executa a reconstrução da sala principal do "Merzbau propriamente dita" entre 1981 e 1983, na Tate. Ele é assistido e apoiado pelo filho do artista, Ernst Schwitters. A incorporação e reedição do trabalho toca em questões da reprodução, recriação e originalidade da obra arte. Encara­se mais uma vez o tema da mercantilização. O Merzbau se tornou espécie de mito histórico­artístico, que influenciou muitos artistas. Oiticica foi um deles. A casa como espaço de excelência afetiva se aproxima da “realização estética da vida”. A forma como se organiza e compõe dentro desse espaço revela a bricolagem de coisas achadas fazendo do “apelo ao prazer de viver esteticamente

317

". O uso da casa enquanto ocupação

artística problematiza os lugares institucionais, tanto em termos de arquitetura quanto de geografia. A casa pensada como lugar a ser preenchido –um vácuo, uma cadência – oscila entre as qualidades de abrigo e urna. Uma topografia enigmática e ambientada por objetos percebido como lugar subjetivo. Sem delimitação espacial

316

Harald Szeemann encomendou ao cenógrafo Peter Bissegger a reconstrução em 1:1 da sala principal do Merzbau para fazer parte de sua famosa exposição Der Hang zum Gesamtkunstwerk , que incluiu outras reconstruções desse tipo. Após a visita da exposição, a reconstrução foi comprada e instalada permanentemente no Museu Sprengel de Hannover. Para a exposição Dada and Construtivism 1988–9 na Annely Juda Fine Art, em Londres, uma segunda “cópia de viagem” prática do Merzbau foi feita sob a direção de Bissegger. Desde então, esta versão itinerante foi montada e desmontada vinte e três vezes em todo o mundo Diposnível em: https://www.tate.org.uk/research/publications/tate­papers/08/kurt­schwitters­reconstructions­of­the­merzbau 317

Oiticica cita a Merzbau na passagem A palavra para ele assume o mesmo caráter que para Schwitters,no que diz respeito a definição de uma posição experimental específica, fundamental a compreensão teórica e vivencial de toda a sua obra. OITICICA, 1986, p.65.


202

rígida, uma casa pode envolver diferentes escalas geográficas onde se estabelecem 318

relações afetivas e estética do sujeito com seus pertences

.

O meio ambiente da casa como veículo de acontecimentos pode ser percebido como sensação de beleza amalgamada a impressões táteis, a partir de "sentimentos que temos para com um lugar". Por ser o lar, o locus de reminiscências 319

desenvolve­se relações de pertença no que diz respeito ao ambiente vivido. Enquanto especulava sobre a produção de atmosferas pensava na

especialização do design de interiores, na arquitetura e nos especialistas que trabalham na produção consciente de ambiências e atmosferas, na mise­en­scène de materiais a organização e acesso a determinadas áreas. Em última análise, a tarefa do design dá suporte às empresas, negócios, exibições e empreendimentos enquanto gerenciamento de imagens. O design de expografia, por exemplo, desenvolve atmosferas polissensoriais através de cenários, da acomodação de itens em displays – praticáveis e totens – da escolha das cores para as paredes, da utilização das imagens, das tipografias e iluminação. A manipulação e adequação desses ingredientes evoca certo clima histórico, cultural e social ou mesmo determina estilo de vida e sensação. Refletia sobre a inserção do meu trabalho na estação operada por gestos mínimos. Meu desejo era realizar algo que guardasse uma certa distância da prática da instalação de arte e da impregnação do conhecido. Mais uma entoação, um rito ou um cerimonial, uma síntese conjuntiva do que a imposição desse ou daquele efeito cenográfico. Os projetos do Museu da Inocência e a Merzbau exploram tipos de coleção que estabelecem relações com a arte perpassando questões relativas à arquitetura, ao urbanismo, ao desempenho e engajamento social. O trabalho de Theaster Gates

318

O geógrafo sino­americano, Yi­Fu Tuan apresenta uma forma alternativa para os estudos geográficos que valoriza a relação entre pessoas e o espaço. Cria neologismo topofilia útil para abranger todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material perpassando pela percepção e representação espacial, as culturas e as relações sociais. O termo topofilia associa sentimentos com meio ambiente e, ao fazer isso, promove a ideia de lugar. A topofilia fornece o estímulo sensorial que, ao agir como imagem percebida, dá forma às nossas alegrias e ideais” TUAN, 2015. 319 TUAN, 2015, posição 2268.


203

320

oferece uma série de coleções de objetos e materiais referentes a instituições, a

memorabilia das pessoas e a maneira particular de verem o mundo. A resiliência da arquitetura em desuso ou deixada para trás, a obsolescência de uma residência, o telhado caindo, o papel de parede descascando, o reboco desmoronando, as condições de abandono e, sobretudo, a depreciação agenciam caminhos abertos pela destruição. Esse são também temas caros à Gates. Testemunhar a condição do vazio de imóveis abandonados e produzir site para as primeiras atividades criativas no interior desses ambientes fazem parte da prática e knowhow do artista. Rejeita a aparência de coisas vazias ou abandonadas e contrapõe inserções de atmosferas a partir desse oco. Está interessado pela recuperação de imóveis e pela “poética dos materiais”. Acredita que materiais obsoletos “merecem” uma nova vida. Pauta­se pela ideia de que a seleção de objetos regida por ele, quando feita com convicção e carisma, recruta seguidores. Cinco anos antes de conhecer o projeto de Pamuk para o Museu da Inocência experimento, por algumas horas, a obra de Gates 12 Ballads for Huguenot House , em 2012

321

, durante a dOCUMENTA 13. Analisar cada balada tem a chance de levar

a um entendimento mais profundo das qualidades formais, materiais e composicionais, da dinâmica entre desse trabalho com o mundo. Não cabe aqui tal esforço, nem tampouco narrar minha aproximação com essa obra clima ou descrever os diagramas de ação de seu complexo e arrojado projeto . Aproximo­me dela no intuito de apontar como alguns aspectos da orientação adotada por Gates tangencia a produção de minha cadência maquínica.

320

Theaster Gates, ceramista de profissão e ativista social por vocação é internacionalmente reconhecido por lidar com o fracasso do mercado imobiliário e os desafios da deterioração urbana cujas construções abandonadas não se sabe o que fazer. Renomado empreendedor urbano tem trabalhado com a recuperação das vizinhanças oprimidas do sul de Chicago, ao transformar áreas dentro de comunidades afro­americanas perigosas afetadas por altas taxas de pobreza através da reabilitação de propriedades, educação e emprego de membros da comunidade e criação de inovações. programação cultural. São exemplos de centros criados por Gates e sua equipe e comunidades, a "Casa de escuta", "Casa do Arquivo", "Casa de Cinema Negro" a "Casa das artes". THISTED, 2013. 321 Twelve Ballads for Huguenot House, um projeto para dOCUMENTA (13), explora a relação entre empreendimento social, práticas de arte contemporânea e redesenvolvimento cultural. Em colaboração com uma equipe de trabalhadores em treinamento de Chicago e de Kassel, na Alemanha, Theaster Gates restaura e reativa o histórico hotel Huguenot Housel. Este projeto também servirá de base para uma exposição individual no Museu de Arte Contemporânea de Chicago.


204

Para Gates, o receptáculo vazio d o prédio abandonado representa o espaço a partir do qual uma ideia pode se formar. Na dOCUMENTA 13, seu projeto consiste em recuperar a dilapidada Huguenot House construída em 1826, na cidade de Kassel e intercambiar ações e materiais do seu próprio prédio em Dorchester, localizado ao sul de Chicago. O artista escolhe esse edifício ao invés dos ambientes oficiais da mostra. Sua intervenção trata de associar as histórias dos trabalhadores imigrantes que construíram a Huguenot House aos construtores negros e hispânicos de seu bairro em Chicago. Ao invés de simplesmente impor regeneração do espaço a partir de uma visão externa, el e tenta entender o que os vazios dos prédios abandonados precisam. À ideia de recuperar o espaço se agrega a de transformá­lo num espaço ativo pelo uso e presença. O espaço inutilizado das propriedades abandonadas define a maneira como a intervenção vai ser realizada. Para além de descrever a elaboração complexa de detalhes sociopolíticos e históricos, é importante ressaltar a pauta da orquestração das doze "baladas" temáticas: renovar o edifício preenchendo­o com novas informações, criar performances e novos objetos a partir dos materiais recuperados, cruzar objetos e materiais da cidade de Chicago para Kassel, povoar a Huguenote House durante esta instalação com amigos, músicos, trabalhadores, colaboradores e equipe, transpor a cápsula do tempo de Chicago para Alemanha através do blues cantado por vozes de sua comunidade. A experiência de Gates toca em aspectos relevantes para pensar meu projeto e se torna uma inspiração. Um deles diz respeito a simples ativação de um lugar paralisado e sua relação com o entorno. A reabilitação de propriedade instiga a comunidade ao redor, gera emprego, cria programação cultural e leva as pessoas a um tipo de lugar que, por escolha própria, nunca seria visitado. Ainda que temporariamente, esse tipo de projeto atrai audiências que não são aliadas a uma tradição em particular. As 12 baladas podem ser ouvidas como uma única melodia para uma casa que, pela via da arte, começa a tomar novos impulsos. A ideia é de um trabalho que opera entre o réquiem ou um hino e não de uma instalação permanente, exposição coletiva ou individual mas uma ativação e esforço assinado por uma equipe. Uma


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ação promotora de acalanto que faz o espaço sacudir a poeira, resistir a chegada de suas benfeitorias e a frequência de seus próximos mergulhadores. O trabalho figura como uma espécie de intervenção na complexa história social, na negligência com manutenção de espaços e de abre a sérios diletantes e a ansiosos turistas . Para Gates, o mundo da arte se preocupa mais com o valor através do preço determinado por galerias, leilões e museus que com a forma como o valor da arte pode transformar o mundo ao seu redor. O artista trabalha com esse discurso para atrair apoio financeiro e usa essa liberdade para ver como suas experiências vão se desenrolar. A estética sem adornos em sintonia com um estilo de vida habitual e a atividade realizada através de trabalho de recuperação de um imóvel sem glamour, antiquado e lento parece ser uma das grandes motivações para Gates desenvolver seu projeto e se confirma quando se ouve sua afirmação: " às vezes, só quero restaurar um prédio. Esse é o trabalho. Isso é poético o suficiente. O edifício agora utilizável vai começar a criar as suas próprias políticas e possibilidades interessantes 322

[…]"

Soluço, gaguejo, conceituo. Espalho­me à mesa no interior do que denomino

estação de escuta espreita . Poderia apelidar de casa em dobras essa produção de cadência maquínica: um espaço autorreferencial, minha própria produção de texto, conjunto de ações provenientes de muitas parceiras e aventuras. Ando por vias não tão entrecortada e certamente ainda recorro a muitos ajustes em minha própria aparelhagem. Sempre haverá falhas, saculejos, sempre uma peça que poderá ocupar um, dois ou três lugares de forma produtiva. Sempre haverá conjunções e disjunções possíveis que frustram qualquer ideia de confinamento de conceito. A complexidade que se escreve com “e”, maquínica não se reduz nem dispensa nada. Sempre o escorregadio, sempre a pista de patinação percorrida por muitas diagonais, curvas, setas de direções e sentidos diversos. "O intérieur é o refúgio da arte. O colecionador é o verdadeiro habitante de 323

seu do intérieur . Ele se incumbe de transfigurar as coisas 322 323

", objetos e materiais

Entrevista com Theaster Gates conduzida por Walker Thisted, Fall 2013. THISTED, 2013. BENJAMIN, 2018, p.63.


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324

afirma Benjamin. "Habitar implica em deixar rastros

". Os trabalhos de Pamuk,

Schwitters e Gates acentuam os rastros do interior de casas. "Também os rastros do 325

morador ficam impressos no intérieur .

"A transfiguração da inscrição geográfica,

como a de uma casa, se dá pelo afeto, pessoas, objetos, situações e vivências. Ao serem retomadas e ativadas, esses tipos de apropriações suscitam questões pragmáticas e centrais sobre a eficiência, êxito e/ou fracasso da ocupação. Quando se trata desse tipo de intervenção, são recorrentes perguntas e julgamentos a respeito da função e destinação final do imóvel , seja ele artística ou não. Apesar de nunca se delinear ao certo qual a destinação e o que se opera quando se desenvolvem operações de resgate ou renascimentos arquitetônicos é frequente o surgimento de perguntas como: a casa será desocupada ao fim do tempo expositivo? O que vai acontecer quando for desocupada? A resposta a essa questão pode encetar muitas direções. Se o chronos opera em câmera lenta a inexorável degradação arquitetônica – aliada a falta de políticas públicas – e transforma as construções do homem em paisagens distópicas, esforços como o de Gate se empenham em colocar em movimento, ou fazem espreguiçar, objetos, construções em tempos de adormecimentos. Criam formas de engajar trabalho e ética ao ofício da arte como fonte da libertação, emana vibração impulsionadora na comunidade interessada em descobrir as novas imagens potenciais

326

.

Na fricção com esse estudo de cadências, nas marcas produzidas pela espreita das obras clima , no assalto da pequenas percepções e no desajuste de minha aparelhagem de escuta e no tatear das ressonâncias provenientes de Overton, Rottenberg, Rocha Pitta, roço as cadências inspiradoras e nascentes entre Pamuk, Schwitters e Gates. A partir desse entrecruzamento, aventuro­me na montagem de minha própria obra clima . Caminho entre restos, fantasmas, objetos e materiais firmemente conectados à edificação e abalados pela reutilização em outras realidade possíveis. Produzo, pois, em anil toda a cadência da segunda parte deste capítulo. 324

Idem Ibidem 326 THISTED, 2013, p. 14. 325


207

3.3 Produção 3.3.1 Às cegas Trechos de conversas tornam­se o germe de uma narrativa, os traços de um rosto transformam­se em um eventual retrato, algumas notas formam o começo de uma melodia, um roteiro torna­se filme, uma intuição torna­se sistema etc. David Lapoujade

Algo deve ser alçado a primeiro plano. O essencial desta segunda parte do 327

capítulo está em seus informes curtos, trechos de poucos parágrafos

. São

anotações de circunstância. Sobre a experiência, valorizo a notação, o inventário doméstico das coisas, o interesse pelas sutilezas, a arte tal qual a vida. O gesto deve ser produzido no plano atmosférico. Essa produção acontece na mesa de 328

montagem e encontra aqui sua potência. A escrita caminha precária

. Na busca

pela aventura, "avança na escuridão e na penumbra por uma trilha suspensa entre 329

deuses ínferos e súperos, esquecimento e recordação."

Na mesa de montagem, continuo a criar imagens quando fecho os olhos. Não reduzo "a zero o efeito das flutuações330". Identifico a contenção e distensão atmosférica: seus graus de silêncio, suas tonalidades de escuridão e clarões oportunos. Quando abro os olhos, continuo a sonhar . Ora, sou a acrobata do banco

327

O essencial da obra de Leibniz está em suas correspondências e em seus informes curtos, cartas ou textos de quatro a dez páginas. Sabe­se que o livro total é o sonho de Leibniz, assim como o de Mallarmé, embora eles não parem de operar por fragmentos. Nosso erro é acreditar que eles não conseguiram o que pretendiam: eles fizeram perfeitamente esse Livro único, o livro das mônadas, em cartas e pequenos tratados circunstanciais, livro que podia suportar toda dispersão como outras tantas combinações. DELEUZE, 2013. p.59. 328 AGAMBEN, 2018. p.33. "Precário" significa o que se obtém através de uma prece (praex, pedido verbal, diferente de quaestio, pedido que se faz com todos os meios possíveis, inclusive os violentos), e é por isso frágil e aventuroso. 329 AGAMBEN, 2018. p.32­35. Agamben se refere à desorientação como única garantia da seriedade de um método, que é, justo um experiência mística: " mergulhar de corpo e alma na opacidade e nas névoas da investigação filológica." 330 SERRES, 2001. p. 269.


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de trás331. Sigo o desejo de criação acompanhada de virtuais que vez ou outra saltam do caos. Partilho com Flávio de Carvalho as sugestibilidades apresentadas pela reunião de objetos coletados. Objetos como fontes de recordação, na condição de "coisa jogada no acaso do mundo", adquirem tonalidades atmosféricas. Oferecem condições que confrontam quem os observa na instantaneidade, ativando possibilidades332 micro­perceptivas. Avanço pela lógica de colecionar afinidades. Aparelho­me na imanência. Percebo incitações ou os germes de virtualidades. Abismos de inacabados, diga comigo. Sobre a atitude, admiro a coragem do desmonte da instrução, a quebra das ordens normativas. Fora do perímetro do conhecido, vivo assombros momentâneos. Surpreendo­me a todo momento. Reforço a escuta e alinho à espreita no esforço de limpar as interferências. Sobre o trabalho, tomo fôlego, improviso acrobacias para ouvir os murmúrios produzidos. Releio a todo instante o "não" do movimento barttelblyniano333. Executo procedimento diário de não recolher, dobrar ou esticar o pescoço, mas afirmar o quão alto se localiza a primeira cervical, a base de meu crânio334. Em regressus ad uterum reconheço o Atlas335, reinvento Atlantis e Atlântico. A operação da montagem da estação ocorre a partir de pequenas ações, ou percepções no cruzamento com os objetos, ossadas por toda parte. Comungo com a ideia de que “[...] obras de arte podem ser feitas, quase que só de atitude, 331

LIMA, Carlos Augusto. Este poema era meu. Agora não é mais. O poeta solicita a amigos a tarefa escrever o acrobata que lhes fossem próprios enquanto uma versão inspirada em um dos seus poemas publicado no livro "Manual de Acrobacias". No blog, pode­se checar os vários acrobatas refeitos espontaneamente. 332 CARVALHO, 2005, p.52­53. 333 Refiro­me ao Escriturário, Bartleby, conto do escritor norte­americano Herman Melville (1819­1891)."Eu preferiria não" é o jargão utilizado pelo personagem principal do conto, que se negava a realizar a tarefa toda vez que seu empregador solicitava. 334 Frederick Matthias Alexander (1869­1955), no final do século XIX, desenvolveu um trabalho sobre o desenvolvimento do ser humano. A técnica Alexander é uma prática corporal que permite um melhor funcionamento dos reflexos naturais do organismo visando à maior liberdade de movimento através do aperfeiçoamento da coordenação e equilíbrio do corpo, respiração mais livre, além de bem­estar físico e mental. 335 O Atlas é a primeira vértebra cervical. Primeira das 33 vértebras da coluna vertebral e a mais larga. Possui tubérculos anterior e posterior, o que nenhuma outra vértebra tem. Atípica, pois além de não possuir processo espinhoso, não há corpo vertebral. Atlas refere­se também a um titã grego que carregava o mundo nas costas, no caso da vértebra representado pelo crânio ou a cabeça.


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obras podem sobreviver mesmo no limite da escuridão e da invisibilidade336”. Essa noção acompanha meu gesto artístico. Digo, está na estrutura do DNA de todo meu processo e não pode ser confundido com o elogio da precariedade da vida, pois não se trata de qualquer atitude ou do fato de ser tudo aceitável. Não. O processo de montagem se aprimora no exercício da escuta. Sabe ouvir objetos, sabe a agência das coisas337, de seus aspectos espectrais e fulgurantes. Na verdade, o procedimento se constitui em mútua conjugação com os ossos encontrados. Afinal, pode­se considerar objetos como "pequenas bestas obstinadas338" que fazem coisas. Agem sobre nós nem sempre da maneira como esperamos. Representam sua agência, manifestam­se. Muitas vezes, caem e se quebram, se recusam a crescer.339Entretanto, só fazem isso porque são ligadas a outras coisas. Formam unidade com outros corpos. São inseparáveis de seus contextos, de seus sistema de ligações. São, portanto, entidades, coisas, situações ou objetos que devem "seu estatuto de coisa ao psiquismo que os pensa e coloca ao mesmo tempo sua 340

unidade, identidade e cosmicidade

".

Algo intrínseco numa casa, por exemplo, pode ser experimentado como agência material independente. A atmosfera de interior, os acontecimentos no lugar em que as pessoas vivem ou viveram, onde "criaturas naturais e sobrenaturais estão distribuídas", podem ser notados como coisa. No entanto, talvez seja o caso de entendê­la como um processo vivenciado por uma série de relações de afetividades. Afeições variáveis em termos de intensidade, sutileza e modo de expressão. O geógrafo sino­americano Yi­fu Tuan aborda o lugar da casa através de estudo por meio do qual inclui os laços afetivos relacionando seres humanos a apreciação visual e estética. Estão inter­relacionados ao contato corporal, ao modo como convivem com o meio ambiente, às condições de saúde, familiaridade, ao

336

Sobre a exposição “osso” realizada no segundo semestre de 2017 no instituto Tomie Ohtake, texto de Paulo Miyada 337 "Agência das coisas" é termo associado a Bruno Latour e Alfred Gell. A cultural material age sobre 338 MILLER, 2010. p.140­141. 339 idem . 340 LAPOUJADE, 2017. p.32.


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conhecimento do passado, ao impacto da urbanização341. Para isso, Tuan cria o neologismo topofilia . Um casarão secular, passado de geração em geração, engendra muitos tipos de afeição e sentidos de pertença. Compõe uma topofilia. Certamente já testemunhou de tudo: intimidades, desavenças, conflitos, querelas, contentamentos, acasalamentos e carícias. Não é porque caem em desuso que esses ambientes cessam de emanar tais frequências ou desaparecem por completo as afeições. Ao contrário, parece que o tempo e o abandono preservam ali muitos bichos. Mesmo uma propriedade reformada ou abandonada, em alguma instância, guarda suas qualidades de acomodação . Existem cantos de lembranças vivas, frestas atrás da porta, sombras de árvores ventando sobre as janelas, mobiliários afeitos a fulgurações, espíritos passantes surgidos do pós morte, relicários de teias de aranha, ninhos, infiltrações, raios de sol, goteiras. Em alguns casos, dizem que até nos encanamentos se acomodam espíritos. Provocam ruídos graves e agudos. Grandes casas dessa natureza têm, pelo menos, um residente espectral enigmático e, às vezes, uma grande quantidade deles. Provavelmente, não resistiriam à espreita nenhum desses espectros. Depois de suas aparições, seguramente seriam todos eles explicados, anulando toda a excepcionalidade ocorrida, tal qual acontece no "realismo estranho" de Lovecraft342. Há fantasmas de muitos tipos. Depois de 2000, começaram a visitar a localidade uma nova espécie. Não se ouviam mais os barulhos das correntes arrastando na mata como contavam os antigos habitantes das redondezas. Agora, seguiam­se assombros de outras naturezas. Resquício de meliantes que, tendo uma vez invadido o casarão, deixaram por lá toda espécie de espectralidade. Os cativantes são os fantasmas memoriais que invadem o terreno sem avisar. Alguns são azuis. Visitam as imaginações e contagiam histórias implicando

341

TUAN, 2018, Kindle Locations 2265­2269. O realismo estranho de Lovecraft desafia as leis do mundo conhecido apesar de se basear na representação da realidade. Não apresenta nada além da sensação do leitor. Esforça­se por chocar, provocar repulsa ou desolar, não recorrendo, para obter esse efeito, nem à magia nem ao sobrenatural. Se os acontecimentos parecem inexplicáveis não se têm uma explicação natural, frequentemente encoberta pelas coincidências. Tais narrativas estranhas levam seus leitores aos confins do conhecido e do familiar. 342


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muitos atravessamentos de gestos e resultados imagéticos. Por conta dessa incidência, o que era um centenário casarão familiar se metamorfoseou. A estação de escuta e espreita brota dos gestos. Sim, acima da mesa de montagem – abrindo frente de deslocamentos e desacomodações para compor a obra clima – gesto após gesto. Conjuro, feitiço e outros procedimentos de magia. Eis aqui uma operação poética. Uma atitude do poeta muito semelhante à do mago343. 3.3.2 O fantasma azul344 Era natural e não era contudo indiferente recorda­me que a minha sorte consistia em perseguir fantasmas, seres cuja realidade se achava em boa parte na minha imaginação, há criaturas com efeito – e fora o meu caso desde a juventude – para quem nada do que tem valor fixo, verificável por outros, a fortuna, o sucesso, as posições, nada disso conta, o que precisam é de fantasmas. Proust

Um trânsito de infinitas micro percepções acontece quando se enxerga uma cor, intervalos de cor, sombra, transparência. "Cada objecto colorido é um foco de emissão que transforma imperceptivelmente a percepção objectiva345", postula Gil. A cor tem vocação impura, tem por tarefa criar pequenas percepções. Descobre a felicidade distendendo­se à dispersão atmosférica. Com isso, mistura­se, perde­se recuperando­se em outra cor que lhe impregna a natureza. São tantos os feixes de pequenas percepções, tantas metamorfoses que as cores não integram mais do que um sentido bruto e mudo. O inominável de uma cor assim como toda sua

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PAZ, Octavio. O arco e a lira . São Paulo: Cosac & Naify, 2012. p.60. Com relação ao tema do lápis­lazúli, da azulejaria a do azul cobalto ver ELIADE, M. Imagens e Símbolos ­ História Antiga, 1979, p. 138, "imagens de azul. ­ RUN ­ Universidade NOVA de Lisboa." https://run.unl.pt/bitstream/10362/16662/1/RHA_7_Varia_ART_3_RAATrindade.pdf. Acessado em 29 out. 2018." I ­ 37." "Azulejaria e a influência portuguesa nas cidades brasileiras." 28 jan. 2016, http://uninomade.net/wp­content/files_mf/1463585425LCAzulejaria%20e%20a%20influ%C3%AAncia %20portuguesa%20nas%20cidades%20brasileiras%20­%20Tonia%20Matosinho.pdf. Acessado em 29 out. 2018. 345 GIL, 2005. p.311. 344


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movimentação e vibração seriam suficientes para lhe atribuir o caráter fantasmático. Contudo, uma cor recobre superfícies, esboça formas, dobras, linhas, tensões, aponta um dentro e permite lhe atribuir significações abstractas. A cor tem por característica se manter na fronteira de dois espaços: um de retenção, aparência imediata correspondente à percepção trivial, e outro por meio do qual desencadeia, emite forças relacionadas a sua plenitude em referência à percepção do metafenômeno. Isto é, ao espaço colorido que emana. Eis o jogo tradutor da atmosfera "que confere aos "nomes de cores" o seu tão estranho poder". Para Gil, a irradiação a qual fala de seu excesso de visibilidade comunica também o aquém do mundo, do seu dentro e das suas forças ou do "supra­sensível". Lápis , em latim, significa pedra, lazúli , a forma genitiva no latim de lazulum . A lápis­lazúli rocha metamórfica de cor azul é composta especialmente de minerais como a lazurita e calcita. Seus depósitos se situavam em locais remotos e de pouca acessibilidade. A proveniência do lápis­lazúli utilizado na Europa durante a Idade Média ao início da época Moderna, tanto em pigmentos para pintura quanto na ourivesaria, pertence a região ao que hoje se conhece como Afeganistão. Acreditava­se que a força divina e eterna, assim como o infinito da vida estivessem reunidas no lápis­lazúli . Parece ser frequente a ideia de que essa pedra possui uma incrível capacidade de ativar a glândula pineal, despertando nossas capacidade psíquicas e ativando a nossa intuição superior. Na Mesopotâmia e na América pré­colombiana, o valor cosmológico do lápis­lazúli está relacionado ao azul do céu estrelado, à água e ao rio Nilo. Cor da vida, da fertilidade e do renascimento participa da força sagrada. Também na África ocidental se atribui ao pigmento raro o valor excepcional de elevadíssima força espiritual. Destacam­se o simbolismo e o valor religioso dessa pedra em virtude da cor que partilha com espaço celestial. Contudo, certamente a dificuldade com a extracção e a preparação com vista à obtenção de um pigmento, quase nula durante a Idade Média, dificulta o conhecimento e faz acrescer a dose de valor místico que o vincula aos céus. Na arte pictórica da cristandade medieval, o azul é a cor da santidade e símbolo de vida eterna. As ilustrações dos livros cristãos eram freqüentemente feitas


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com o emprego de ouro e do precioso lápis­lazúli para tornar a obra mais bela. A ênfase no caráter espiritual, contemplativo e por vezes, melancólico era representada, no renascimento, pelo azul dos mantos da Virgem, das auréolas dos santos e de algumas de suas vestimentas. Encontram­se bastantes apontamentos sobre o anil, a safira, o azul ultramarino e outros azuis usados tanto na tinturaria de tecidos quanto na pintura, possivelmente na cerâmica e outras actividades346. Em Portugal, no século XV, trabalhava­se já com o azul de cobalto, provavelmente na sua aplicação em vidro ou em ourivesaria com suporte em metal precioso, parecendo ser mais tardio o seu emprego na cerâmica. Entretanto, é somente no reinado de D. Manuel que aparece, em terras portuguesas, a primeira referência documental ao fabrico de azul através da síntese mineral e se tem a primeira notícia do emprego do azul de cobalto em cerâmica. Na história da cerâmica portuguesa, as primeiras aplicações sistemáticas do azul de cobalto nos revestimentos cerâmicos e na louça acontecem no primeiro terço do século XVI . A palavra azulejo tem origem no árabe azzelij – ou al zuleycha , al zuléija , al zulaiju , al zulaco – e significa “pequena pedra polida” em alusão ao brilho da superfície cerâmica esmaltada. O termo era usado para designar o mosaico bizantino na região da Ásia, próxima ao mar mediterrâneo. Costuma­se creditar a palavra azulejo como proveniente do azul, mas “azul”, proveniente do árabe lazurd , refere­se à pedra lápis­lázuli . No século XIV, o azulejo surge na Península Ibérica através dos mouros, e ao longo de cerca de cinco séculos passa a ser largamente desenvolvido e produzido

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Em Portugal, a isactis tinctoria Lineu crescia espontaneamente em todas as margens do Douro, não despertando interesse até meados do século XV. Acredita­se ter sido cerca de 1445 que o Infante D. Henri, tendo visto seu potencial económico iniciou o cultivo sistematizado da planta do pastel – isactis tinctoria Lineu – com a consequente produção de azul. Azuis extraídos de plantas com emprego na farmacopeia e na tinturaria de tecidos levam o nome indiano é nil , o qual provém do sânscrito nili , derivado da palavra nila que significa azul. Em 1490, esse monopólio foi dado a Luís Domingues, nas comarcas da Beira, Trás­os­Montes e entre o Douro e o Minho. O anil eram bem conhecidas no Oriente pelos portugueses. Proveniente de uma planta, o azul pastel não poderia de forma alguma ser utilizado tanto no fabrico cerâmico como na pintura. No século XVI, Garcia da Orta, no seu Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, publicado em Goa em 1563, fala­nos também de azuis extraídos de plantas com emprego diversificado na farmacopeia e na tinturaria de tecidos. Orta refere­se ao anil com certo desprendimento, classificando­o como uma matéria mercantil mais própria de «contratadores» que de "filósofos" "imagens de azul. ­ RUN ­ Universidade NOVA de Lisboa." https://run.unl.pt/bitstream/10362/16662/1/RHA_7_Varia_ART_3_RAATrindade.pdf. Acessado em out. 2018.


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em terras lusitanas. A atividade acaba se tornando uma arte nacional.347 O azulejo aporta em terras brasileiras, no século XVII, como herança do reinado português. Fabricados em Portugal, são transportados nos navios para a colônia. Ali, formam seu lastro. Ou seja, o contra­peso da embarcação que garante o equilíbrio durante a travessia Atlântica. Os painéis de vidrados azuis aplicados à cerâmica, do lado fora da estação, vieram do além­mar. Estampam uma caravela sobre a água que resseca e racha ao calor da navegação do tempo. Abaixo do painel, uma carranca de louça furta cor. O caos desposa o movimento irregular acima do telhado da estação . Irradiam pequenas percepções do azul cobalto das telhas, dos relevos gráficos das balaustradas corroídas, do revestimento cerâmico, dos detalhes das pinhas em porcelana craquelè Luiz Salvador, da beira, tribeira e estribeira. A faiança, de excelente qualidade revestindo os detalhes arquitetônicos, provém das terras fluminenses de Itaipava. Foi produzida, em meados dos anos 70, no atelier de Luis Salvador: imigrante que chega ao Brasil, em 1950 e replica, em solo nacional, a larga experiência adquirida nos ateliers da Cerâmica Raul da Bernarda, na indústria de Alcobaça, Portugal. A atmosfera da cor da superfície visível expressa também um dentro revestido por essa camada. É um aquém do mundo ou "o "além", o inteligível, a Ideia, o Invisível, o "divino" ou o "supra­sensível348". Eis o envio e reenvio do assombro, a formação do mundo e do seu avesso mais uma vez postulado por Gil: "a cor lembra sempre o engendramento desses dois espaços, o movimento da sua gênese: porque é ao mesmo tempo aparência e energia, signo e força, fenômeno e metafenômeno349 ". O invisível ganha autonomia em seu campo de apresentação. Simultaneamente, o fantasma da consciência continua a ser o visível: a percepção. A profundidade da cor se impregna ainda com mais virulência no oco da estação. 347

"Azulejaria e a influência portuguesa nas cidades brasileiras." 28 jan. 2016. http://uninomade.net/wp­content/files_mf/1463585425LCAzulejaria%20e%20a%20influ%C3%AAncia %20portuguesa%20nas%20cidades%20brasileiras%20­%20Tonia%20Matosinho.pdf. Acessado em out. 2018. 348 GIL, 2005. p.319. 349 Idem.


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Acomodações revestidas de colorações de azuis. O cobalto das escamas vitrificadas é forma, formação e informe: reveste de cima abaixo cozinha e banheiros, chão, parede, e teto. No corredor, é o azul cerúleo que cobre as paredes e o teto. Os cômodos da estação testemunham as presenças das fantasmagorias do azul. Fazem escapar o fantasma do sonho, dos cultos, da criação artística, da ativação da intuição e de toda espécie de lembranças e equívocos que se encontra em virtuais ou recalcado. As narrativas reais ou ficcionais são ativadas por gestos. Vale alçar outro plano. A obra clima estação de escuta e espreita se classifica como uma topofilia dentro das cadências maquínicas não só por engendrar máquinas, mas por ser produzida a partir de gestos : aproximação, investigação – escuta e espreita – montagem, criação. Procedimentos e atitudes, que ao serem tomados, geram história e modificam os costumes do corpo. Ou melhor, produzem o stimmung, agenciam intensidades, ressignificam os signos, criam linhas de fuga afirmativa e auxiliam toda montagem da estação. O rearranjo do espaço íntimo abre suas veias ao público. As acomodações se reorganizam por meio de pequenos gestos de deslocamentos. Fantasmas são metabolizados. A atmosfera melancólica de abandono e desarrimo, aos poucos, ganha novas configurações. Rumino, regurgito e reativo o lugar. É bom que se saiba, o gesto é coletivo, conjugado na terceira pessoa, mesmo quando afirma a primeira. Alguns colaboradores são flutuantes como as artistas Beth Franco e Fátima Pedro, além do pessoal que me dá todo apoio técnico. Já os arquitetos mal comportados Bia Petros e João Hisse mergulham comigo regularmente na tarefa de recompor com afinco o stimmung estagnado do ambiente. Chacoalhamos tudo por dentro, a água volta a correr pelos encanamentos, a luz circula pela fiação, as telhas são substituídas e novas vozes são levadas para dialogar com os velhos fantasmas. A estação se cobre com outros escapamentos, viravoltas e reviravoltas. Toda a operação de produção atmosférica se autogerencia pela heterogeneidades dos gestos. Regentes sempre conjugados na terceira pessoa, não importa seu tamanho ou abrangência: carregar uma mesa de sinuca para um outro espaço, trocar uma lâmpada, semear, faxinar o telhado ou remover montanhas de entulhos operam­se no coletivo. Um consórcio de contribuições entre arquiteta,


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estudantes de arquitetura, artistas, afetos, parcerias reeditadas. Sempre experiência de mais de um, mesmo em pequenos gestos . Seria impossível traduzir e narrar a intensidade e qualidades de espantos, alegrias, ataques histéricos, decepções e qualidades de forças conjugadas durante a vivência e a produção de atmosferas. Excessivo tanto pela quantidade de detalhes quanto pelo que se perde numa tradução ou relato, apesar de ainda me manter bem perto do fogo350 . Além disso, é igualmente excessivo e cansativo para o leitor que a essa altura já deve se sentir um pouco sem forças. Vale sublinhar: a ntes de entrar exatamente nas curtas narrativas ainda comento o procedimento adotado e dividido esse trecho nos seguintes tópicos: gestus preliminares, gestus intermediários e gestus complementares. Cabe ressaltar que apesar das nuanças atmosféricas em cada uma das acomodações se alterarem, considero essa estação uma obra clima em seu todo. A o abordar alguns dos acontecimentos e acoplamentos vividos na produção de atmosferas, utilizo os nomes dos cômodos de uma casa comum. 3.3.3 Gestus sob gesto Não é o pensamento que legisla o gesto mas a experiência do corpo que o cria. O corpo que se associa ao pensamento e o excede é o corpo dos gestus , do personagem rítmico. Conceito elaborado pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht , concebido como o instante no qual uma associação de atitudes e de posturas se entrelaçam de forma autônoma. O corpo do gestus se manifesta e força o pensamento a pensar e quando o faz é justo corpo e vida. Gestus, posturas e atitudes, por sua vez, não são produzidos por uma história ou narrativa. Ao contrário, são eles próprios os geradores da história e da narrativa. Narrar seu papel, com o gestus de quem mostra um personagem, mantendo certa distância dele, eis a tarefa do ator. Corpos sensório perceptivos munidos de intuição. Como afirma Deleuze, aqui “o corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar­se para se conseguir pensar. É, ao contrário, o corpo, aquilo em que o

350

AGAMBEN, 2018.


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pensamento mergulha ou deve mergulhar para atingir a única coisa que importa – o impensado, isto é, a vida.”351 Sob tal perspectiva, os gestos em seu sentido lato, gesticulação de alguma parte específica do corpo – tronco, braços, mãos, pernas, pés e cabeça, por exemplo – são aqui englobados pelos gestus . Para além dos gestos corporais representam um sinal de comunicação não verbal, correspondem também a uma ação ou atitude. Nesse caso, abarcam o gestual envolvido em movimentos. Quando se emprega o termo gesto, deixo claro, me refiro ao gestus em seu sentido mais abrangente que leva em conta também o político. O objetivo do gesto não é outro senão o de oxigenar os ares e promover novos respiros para o espaço, criando porosidades. Se por um lado, há interesse por produzir ambiência com ares de renovação, por outro o objetivo também é preservar a estranheza e o mistério que o espaço parece transmitir. Para atender a essa orientação, al guns gestuais de base são criados, linhas gerais de procedimentos são adotadas. Dentre elas: suavizar os limites entre dentro e fora, cultura e natureza, ou seja compartilhar e reenviar o jardim circundante reformado no entorno e levado para dentro dos cômodos ; f azer com que os poderes curativos e regeneradores da terra abrace as ruínas, promovendo um cultivo de plantas dentro de alguns dos cômodos da estação como banheiros, corredor, telhado, cozinha; aumentar a paisagem da estação conectando a arquitetura para que os espaços se invadam reciprocamente; trabalhar com uma demarcação de espaços pelo contraste de cores das paredes ou uso de materiais específicos. Ou seja, criar áreas limpas e brancas contrastando com áreas que permanecem como foram encontradas; utilizar os armários para iluminação dos cômodos; promover a escuta acurada para perceber os chamados dos materiais e objetos, os deslocamentos e mudança exigida por cada uma das peças encontradas; ativar odores como o cheiro de água da moringa, de mato, de naftalina ou de terra; fazer uso prioritariamente do material encontrado como os azulejos, os mobiliários e outras peças disponíveis descobertas em alguns dos cômodos, por fim criar espaços de circulação e convivência.

351

"Bertolt Brecht – Acervo Claudio Ulpiano." https://acervoclaudioulpiano.com/tag/bertolt­brecht/. Acessado em out. 2018.


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Esses são algumas das linhas gerais disparadoras de outros gestos adotados para erigir o stimmung da estação . Àquela altura tinha em mente além do já citado trabalho de Pierre Hughe – Untilled , 2012 – os procedimentos de Kirstine Roepstorff para a 57ª Bienal de Veneza. Nessa ocupação a artista converte o pavilhão Dinamarquês em um exuberante jardim, conectando­o ao verde dos pavilhões do Giardini. Num gesto político de remoção de fronteiras, a artista desloca portas e janelas e abre passagens para enfatizar a dissolução entre casa e parque, território nacional e elementos estrangeiros. Ao produzir o galeria­jardim Roepstorff, de forma escultural, reflete os processos que acontecem simultaneamente na natureza: um local de regeneração e anúncio de uma nova era onde as sementes germinam e se tornam algo enquanto a lua e sol brilham. Outra contaminação importante vem da gênese formal do núcleo de trabalhos "ordens e manifestações ambientais" de Hélio Oiticica. O que resvala das práticas e considerações de Oiticica agrega valor ao stimmung. Suas construções labirínticas e penetráveis352, do mais literais aos mais abstratos, implicam o envolvimento do corpo de forma integral. Englobam jardins acessíveis ao público, impõem­se como caráter estático não­utilitário e até mágico em certo sentido. O interesse está no caráter vivencial do projetos nos quais nada se isola ou pode ser apreciado em si mesmo. O que conta é a experiência da cor, no espaço e no tempo353 do "tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade354" Antes que se inicie as narrativas gestuais ou os gestos narrativos cabe informar a respeito do livro Estação de Escuta e Espreita . Trata­se também de um gesto que acompanha o projeto mesmo antes dele ter iniciado. Nesse caso, um gesto primevo, iniciado nos anos 50, captar a estação e seu entorno através de dispositivos óticos. Nesse livro podem ser apreciadas muitas das fotografias que acompanharam o desenvolvimento do produção de atmosfera dentro do casarão. Ao observar a imagens, mesmo antes de se frequentar o espaço, pode­se ter as 352

[...] para entrar em cada Penetrável era o participador obrigado a caminhar sobre areia, pedras de brita, procurar poemas por entre as folhagens, brincar com araras etc. ­ o ambiente criado era obviamente tropical, como que num fundo de chácara, e, o mais importante, havia a sensação que se estaria de novo pisando a Terra. OITICICA, 1986, p.99. 353 OITICICA, 1986, p.35. 354 idem, p.11.


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primeiras impressões sobre a qualidade imagética e stimmung local. Entrar em contato com as imagens gestuais pode dar a chance, não de apreender, mas ao menos sentir alguma aragem ou densidade que acompanham a obra355. 3.3.4 Gestus preliminares Só é artista aquele que da solução pode fazer um enigma Karl Kraus

Além da mudança de meu ateliê para a região, foram cumpridos outros ritos de iniciação. Gestos de preparação do interior da estação. Eis um deles, receita de um dos colaboradores primevos do projeto. Tem que fazer assim ó, pega uma porção de copos de vidro, tipo copo americano. Enche d'água e espalha por vários lugares da casa. Não, peraí, antes de espalhar, coloca uma tela fininha em cima, bem fininha mesmo, tipo tule, ou mais fina, então prende com elástico na boca do copo pra passar só delicadeza, aí deixa ali uns dias e espera. Copo e canto, boca e santa, impureza pura. Depois toma toda aquela água empoeirada do copo e pronto alergia passa longe: "Baptismus est". Água vira, vira anticorpo. E deve ser ingerida depois de um mês de depósito. Um outro gesto relevante e fundador do projeto foi o trabalho Nunca lhe prometi jardim algum, 2017. Esse decorreu de uma ação, um ato, ou alguns gestos. Composição de gestos, meus e de colaboradores, flores de miolo de pão. A ideia era construir uma trilha com micro­rosinhas feitas miolo de pão. O trabalho foi apresentado no Paço Imperial. Durante o tempo da exposição, foram produzidas as flores de miolo de pão que compuseram a trilha feita no último dia da mostra. A experiência desse gesto fez o corpo de meu trabalho se deslocar. Eis o texto que o acompanha. Marcar um percurso com uma via de miolo de pão. Vêm à memória as rosinhas que o pai encantava à mesa na hora das refeições. Mastigo família,

355

O acesso ao livro de imagens "Estação e escuta e espreita", 2018 pode ser consultado no link https://drive.google.com/file/d/1Zplpsj2pRtgkI5QpXI88WitIuwSW0zd5/view?usp=sharing


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tradição e propriedade e regurgito pão e circo. Perfuro a bisnaga. Arranco seu miolo. Trago da moça com a flor na boca que distribui, ao rés do chão, uma série de micro rosinhas. O vulto de Pirandello fulgura na armadilha de quem olha por onde pisa. Há, ainda, a descrição do pequeno gesto. Ainda o exercício viciado das mãos durante a cambalhota. Manoel e suas acrobacias exploratórias de manuscritos conversam ao lado de Joaquim356. Nunca lhe prometi jardim algum , apenas principio com flores, as que posso, as de miolo de pão que ao se consumirem se abrem ao inapreensível: rota sem valor de uso ou troca. Talvez contra­força que vislumbra “valor de contorno e valor próprio, belas especulações do espírito humano que não deixam de ser uma maneira inteligente da moça brincar com o infinito.357” Projeto Kianda Vislumbro um pequeno projeto de porte expedicionário. Reunir artistas e convidados para explorar, através de levantamento imagético – desenho, pintura ou aquarela – a região onde se deu o achamento da água mineral. Misturar anacronicamente esses registros aos esboços de detalhes construtivos e desenhos antigos da estação é a forma de friccionar dados reais e ficcionais para integrar a pesquisa memorialística e mítica sobre o local. A ênfase dos registros foca na ambiência e perturbações atmosféricas, assim como no caráter enigmático e histórico da região. A ideia atualiza a pintura da fisionomia da natureza. Ao invés de se almejar a totalidade, cria­se uma cartografia aracniana de trecho de mundo em seu desfazimento. Captar a fisionomia do lugar e confrontá­la com alguns do registros mais antigos faz vibrar as atitudes dos antigos expedicionários que contemplam extasiados o conjunto da vegetação e fauna. Na travessia por trechos do terreno ou no esboço de algum de seus cantos, quem sabe, redescobrem o lugar artística e geograficamente. Ou pelo menos, fazem palpitar os mistérios das variações do

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O poeta Manuel Bandeira levou um álbum a Joaquim Maria Moreira Cardozo, outro poeta. O álbum continha o desenho de duas flores. Uma flor tomando quase toda página caprichosamente trabalhada de autoria de Portinari ou de Santa Rosa. Próxima a esta, um outro desenho de flor com três pétalas, pobremente traçada que acompanhava a legenda: “cada um faz a flor que pode” assinado por Lúcio Rangel. CARDOZO, Joaquim Maria Moreira. Conversa com um velho amigo. 1957. Esse manuscrito foi retirado da tese de Manoel Ricardo de Lima, “Joaquim Cardozo: um encontro com o deserto” 357 idem, p. 81.


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bosque emergir do clima do mundo das fábulas ou dos conto de fadas. Se, contudo, nada disso seja alcançado, no mínimo prolongam o relato sobre o local ao se empenharem no esforço dos registros. Pela sonoridade e significado, o nome Kianda soou pertinente para o projeto. Kianda, Kituta ou Kiximbi são “espíritos das águas”. Melhor dizendo, são entidades reguladoras do mar, dos lagos, dos rios, dos peixes, das marés e da pesca. Em Angola, as gentes do povo acredita que cada meio aquático tem uma sereia. Cada rio, cada lagoa, cada charco tem a sua kianda, que toma o nome do rio, lagoa ou cacimba. Estas entidades estão ligadas ainda à fecundidade feminina e às crianças. Apresentam­se envoltas por clarões e redemoinhos de águas ou de ar. A demarcação de um reino Ao redor da estação, a terra seca e maltratada inspira cuidados. Novas visões, reflexões e derivas brotam do solo. Além de desacomodar e reacomodar objetos de seus contextos no interior da estação, pensava em investidas no perímetro do terreno. O processo com a terra e a dependência da ação do tempo abalam o ego. Permaneço sujeita à tempestade e a suas condições climáticas: sol, luz, vento, água. Assisto à movimentação massiva de lagartos e formigas enquanto penso no perfume das flores silvestres, na função polinizadora das borboletas, na volta dos pássaros. O compartilhamento com as forças orgânicas da terra demanda o pensamento sistêmico. Os processos naturais estão a reboque e se ligam intimamente à decorrência do tempo. As intervenções são processuais e se desenvolvem continuamente, até que os ratos se aparentem com lacaios, a abóbora adquira o status de carruagem e os lagartos se transmutem em cavalos. Sob a


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varinha mágica da madrinha,358 capins, ervas e flores brotam sem cuidado em terras áridas e sem nutrientes. Não conto com a presença de jardineiros nem com orientações economicamente abusivas de alguma empresa de agrofloresta. Tomo consciência do s procedimentos que devem ser adotados para que as coisas entrem no redemoinho do crescimento. Assim, os cuidados com o plantio obedecem a o gesto mágico da varinha da madrinha. Isto é, procede de forma empírica, partindo da observação e do desejo. Porém, ainda levará tempo de aprendizado até que a área se faça ousada e experimental. Até que as plantas perenes e robustas possam crescer em meio a uma mistura semeada de gramíneas silvestres e seja desnecessário o corte regular de cada uma das espécies, será preciso investir tempo para acessar informações técnicas sobre o estabelecimento e o manejo de plantas combinados a uma visão artística. Caminhamos359, no entanto, com alternativas mais imediatas e possíveis. Primeiro, veio a construção da aquaponia. Um sistema de cultivo que une a criação de peixes e a de plantas sem o uso de solo. As raízes submersas, que se desenvolvem entre pedrinhas de argila expandida, se alimentam do excremento dos peixes. O peixe, elemento recorrente do projeto, corrobora com a restauração e reagrupamento de peças e se inclui no ecossistema local. As sementes que se nutrem desse processo geram mudas para um canteiro de girassóis propício para leitura. Paralelo a isso, iniciamos a inserção inaugural de uma estufa no terreno. Um berçário muito simples construído com a função de fornecer mudas de plantas silvestres a serem transportadas para os jardins em preparo. A temperatura interna

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Devo muitos dos gestos descritos, se não todos, as conversas e trabalho colaborativo daquela a quem chamo insistentemente de verdadeira madrinha desse projeto da estação de escuta e espreita , Bia Petrus, arquiteta, artista, curadora e mestre em artes visuais que investiu força e dedicação a muitas etapas dessa obra clima . Lembro também passagem de Michel Serres: "Uma sapatinha de vidro, constante e rígida, exigiria urn conceito fixo e rigoroso, válido para urn mundo estável: justa medida de um pé que não cresce, não anda, não corre nem valsa. Mais vale uma sapatinha flexível para um mundo onde os ratos se transformam em lacaios, onde as coisas redemoinham sob a varinha mágica da madrinha, onde os cavalos, irreconhecíveis, transubstanciam­se em lagartos, para um ambiente variável". 359 Além da madrinha Bia Petrus da estação o arquiteto, artista e entusiasta João Paulo Hisse já se tornara imprescindível ao projeto e atuava fervorosamente.


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da estufa é aproximadamente a mesma das cavidades internas de nosso organismo. Oscila entre 37.5 e 38.1° comparável à temperatura interna da vagina, ligeiramente mais quente que a nossa pele, dado que é rodeada por grande quantidade de sangue e músculos. Em meados de dezembro de 2017, encontramos enterrado, o que vem a ser o marco inicial do trabalho: uma ponteira que dá o acabamento a uma coluna.

Imagem 23 Pedra fundamental da estufa, 2017.

Influenciados pelas atmosferas mais selvagens e cheia de elementos contrastantes da jardinagem de Piet Oudolf360 , iniciamos um processo espontâneo e rudimentar de integrar mato e vegetação local com algumas mudas. Optamos por um certo descontrole dos processos de plantio que pareciam se integrar às desativações e desfazimentos das construções locais. A natureza sem limite e efêmera e o desuso de vários espaços, no terreno, começaram por adensar algumas características maquínicas da obra. O gesto e a forma com que se dá o plantio

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O trabalho de Piet como designer se baseia, em 35 anos, de uso não apenas de plantas em projetos, mas também de cultivo. Sua experiência e abordagem combina um conhecimento técnico do desempenho das plantas com o visual para criar comunidades de plantas relativamente estáveis e altamente decorativas. De 1982 a 2010, administra uma creche com sua esposa, Anja. Zeitgeist do design de plantio contemporâneo


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aciona outras máquinas: de potência estética do jardim ou do terreno baldio, do lugar esquecido ou abandonado, do interesse por áreas de plantio urbanas, da ruína da indústria. O gesto levanta questões ecológicas de diversidades bem como a ideia de cosmovisão que se contrapõe à visão de mundo encenada pelo formato cultural da exposição. O desejo de interferir na vegetação e provocar alteração, mesmo que ínfima, diante daquele sistema biológico envolvido por arbustos, musgos, ervas, terra e poeira, além da poda das árvores ao redor da casa, serve para ampliar o contraste entre a parte circundante da estação e o bosque. Espécie de marcador das diferenças entre as duas topofilias: a estação e a Serra dos Pretos Forros, enquanto lugar mágico e misterioso atrator não só de visitantes mas também de infiltrados, abrigam e congregam decomposições, animais, húmus, putrefações, assim como odores de adormecimento recobertos, trepadeiras asfixiantes e bambus onde se escondem encantados. Eis a atmosfera do bosque nas proximidades da casa. Trato de notar os assombros das coisas com as quais esbarro e conecto. A casa e seus arredores abrigam componentes de assombrada significância, sigo com os sensores gestuais ativados.


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3.3.5 Gestus intermediários A partir de direções e movimentos das superfícies construídas partem planos imaginários […]. A impressão sugestiva que suscita o conjunto repousa sobre o facto que as pessoas quando penetram na escultura cruzam esses planos imaginários. É a dinâmica dessa impressão que me interessa acima de tudo. Eu construo uma composição sem fronteiras na qual cada elemento fornece ao mesmo tempo o quadro de elementos vizinhos e onde todas partes face a face dependem umas das outras.” Kurt Schwitters, carta a Alfred Barr, 23 de Novembro de 1936

Na estação de escuta e espreita , ambiente no qual trabalho a matéria­prima "retirada" do enfrentamento com as memórias, situações e histórias ao longo do período de escuta, lido com um conjunto de objetos. São dados que dão suporte a uma falsa ficção baseada em fatos reais que contém em si alta dose de fabulação. Um punhado de fios de linho, seda, cabelos, memórias, sonoridades, entrelaçamentos, transa e transações entre atmosferas. As entradas e saídas da estação promovem giros. O vórtice da origem se atualiza a cada subida ou descida de escada da estação onde me encontro imbuída de alguma tarefa. O giro no terreno ao redor da casa provoca vertigem. Nunca se nota "a origem" enquanto causas e efeitos de gestus . O sentido dos meus f azem a palavra experiência ressoar ou é a própria experiência que o faz. o tesouro destelhado A montagem e o modo de compor objetos e produzir atmosferas tem início na parte mais alta da estação – onde fica o sótão da casa e a biblioteca – indo em direção à mais baixa: o térreo. Dias seguidos foram dedicados à arrumação do forro, lugar de maior acúmulo de objetos sem uso: peças de reposição, cerâmica, vidros, caixas, frascos, embalagens antigas, cacarecos, revistas e livros. A área de armazenagem compreende a parte coberta por telhas francesas. Algumas delas dotadas de orifícios por onde passa ar e luz. Ao entrar nesse ambiente, onde se localiza a caixa d'água, além da mudança brusca de temperatura se destacam


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eventuais raios de sol que passam pelas tais telhas furadas. O desenho dessa luz pontual é melhor visualizado quando a poeira se eleva no cômodo. Nesses dias de arrumação e descarte, me chama atenção as várias luminárias tipo bola de cor branca agrupadas num caixote. Penso nelas como matéria­prima para alguma intervenção, contraio essa informação sem me dar conta. Na composição de arranjos e montagem das narrativas dos cômodos, sou tomada de assalto com a atualização da memória. O seu armazenamento acontece à revelia. Em muitos momentos durante a organização, comprovo tal atividade. O cruzamento de algumas memória­contração com a instantaneidade faz saltar algumas imagens para o primeiro plano.

Imagem 24 Cúpulas ao sol, 2018

Eis um encontro atmosférico. Às 9:00 da manhã, entro no sótão reparo as luzes entrando pelos orifícios das telhas numa determinada área. A imagens dos globos me visitam vindo de um passado muito próximo. Sou assaltada pela ideia de colocá­las ali em baixo da luz solar com intuito de acender aquelas lâmpadas. Outra


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memória se dilata. Hocus Pocus ! "Faltam­nos resistência ao presente" de tão fugidias são as imagens, dissipando­se logo que se formam o intervalo. Muitas vezes, acontece delas terem potência suficiente para fender a mônada e engendrar novos mundos361": "bing, eis a imagem. Hop, acabou" como em Beckett. O novo gesto do prestidigitador se atualiza pelas minhas mãos e faz acender a lâmpada dos globos. Crio a imagem, no momento seguinte ela desaparece. Uma visão humorística do caosmos. O telhado e a biblioteca são os aposentos que mais fascínio exercem sobre mim. Era a combinação da parte mais alta, de onde se podia ter uma visão quase de 360 graus do terreno da estação e, a ao mesmo tempo, a mais obscura. O ponto de onde se pode espreitar mas também aquele que se encontra vigiado sob a astúcia do galináceo

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da rosa dos ventos instalado a certa altura do teto. Decerto,

escondem­se ali muitos bichos. Há nele algo do escondido, do não totalmente revelado, do empoeirado, do escuso que habita a região do telhado entre livros, revistas, caixotes de madeira e vidros antigos de farmácia guardados. Objetos assombram com seus êxtases, crescem e mascaram os haveres de memórias passadas, como as sacolas de papel da Casas Sendas e Casa da Banha penduradas, no ambiente, há mais de 30 anos. Dali, salta um quadrúpede, passa por mim e quase me derruba. Ao rodar aquelas sacolas penduradas nos caibros do telhado, sou diretamente levada "Folie a deux363" , 2016. O encontro daquele objeto parece autorizar a inclusão de meus trabalhos mais antigos nas acomodações da estação . A mistura deles, nesse ambiente, comporia com mais um item fantasmático: a trajetória de minhas peças artísticas. A medida que a desacomodação acontecia de acordo com as atmosferas emanadas, outras

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LAPOUJADE, 2015, p. 306. No ponto mais alto do telhado Penso na pintura Angelus Novus , 1920, de Paul Klee, imagem que foi fonte de inquietação para Walter Benjamin frente aos múltiplos significados que essa obra de arte carrega. Para o pensador o anjo configura uma poderosa imagem da história. 363 O trabalho consiste de um pingente de cortina animado magneticamente por um motor instalado na base de apoio que faz movimentar o pingente como um ponteiro. Isso se desenvolve dentro de uma redoma de vidro. O espelho usado na base da redoma faz do pingente um objeto escultórico em movimento o que alude e dialoga com a tradição de escultores como Brancusi e Moholy Nagy. 362


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eram criadas, mesmo correndo o risco da "arrumação" aniquilar a obra cheia de "castanhas espinhentas364"

Imagem 25 Sacolas penduradas no sótão há pelo menos 20 anos à esquerda e Bete Esteves, Folie à deux, 2017, à direita

No entanto, o propósito é reativar o velho e desobstrui as veias do lugar, injetando sangue novo em minha atividade artística. Principalmente, o intuito é 364

BENJAMIN, 2000, p.124. Cada pedra que eu achava, cada flor colhida, cada borboleta capturada, já era para mim começo de uma coleção, e tudo o que, em geral, eu possuía, formava para mim uma única coleção. Uma "arrumação" teria aniquilado uma obra cheia de castanhas espinhentas ­ as estrelas da manhã ­, de folhas de estanho ­ um tesouro de prata ­, de cubinhos de construção ­ ataúdes ­, de cactos ­ tótens ­, e de moedas de cobre ­ escudos.


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dotá­los de novas atmosferas e envolver outros corpos experimentadores do oco da estação . Outros animais circulam no telhado. Há moringas, cantinhas, alguidares ao lado de várias cerâmicas de reposição, latas amarelas de óleo de algodão, enchimento de almofadas, guarda sol, acordeom, latas de filme, toalha de napa colorida que forrava as mesas do jardim. Um dos maiores tesouros de ruínas para serem redistribuídos pelos ambientes no intuito de compor uma atmosfera global e maquínica. Acredito que o remanejamento dos objetos possam garantir a distribuição atmosférica do lugar e, quem sabe, pode ser compartilhada de modo potente entre os cômodos. Na biblioteca, já havia encontrado uma pequena coleção de cartões postais. Correspondências me conduzem à aldeia, ao Porto e de volta ao Rio de Janeiro. O olho não descansa naquele lugar onde se espalham coleções de enciclopédias, goteiras, traças, prateleiras com coisas estranhas, uma tela de projeção e uma maquete do tellado. Quando esbarro com um item um outro, lampejo me ultrapassa e me abisma. Lembro do gesto de meu pai construindo essa maquete. Mais uma vez, não sei dizer sobre a procedência dessa informação. O fato é que me visitou naquele momento no qual a maquete gritou comigo. De modo geral, interesso­me pelas ideias de Bergson. Como aprendiz, leio com um grupo a respeito da ideia de imagem movimento que Deleuze desenvolve a partir da filosofia bergsoniana. Invisto tempo nesse aprendizado. Enquanto me incumbo da tarefa de produzir a estação , também assisto filmes que orientam esse estudo do cinema. Por conta do estudo do tempo preso ao movimento, assisto ao filme Baby doll365 , 1956 de Elia Kazan: diretor de cinema que trabalhou com grandes autores americanos, sobretudo do sul dos EUA, como Tennessee Williams, John dos Passos, Erskine Caldwell. A ação se passa em uma mansão decadente, na cidade de Benoit, Mississippi, onde vivem o agricultor de meia­idade estúpido e fanfarrão Archie Lee Meighan (Karl Malden) e sua esposa, Baby Doll (Carroll Baker): uma ninfeta loura e menor de idade. Num determinado ponto do filme, há uma perseguição dentro dessa casa em ruínas. Há sinais de semelhanças com a estação. O imigrante siciliano

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http://www.historiasdecinema.com/2018/07/o­cinema­de­elia­kazan­iii/


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Silva Vaccaro (Eli Wallach), em uma brincadeira de esconde­esconde pela mansão, corre atrás de Baby Doll na intenção de obrigá­la assinar uma prova contra seu marido. Ela dispara pela casa. Vaccaro está no seu encalço num jogo de sensualidade. Alcançam o porão da casa. O telhado é frágil e para fugir de seu algoz, ela corre entre os caibros instáveis do telhado. Consegue se distanciar de Vaccaro indo até o centro do telhado que ameaça despencar. Deita­se abraçada a um dos caibros enquanto ele sacode essa estrutura ameaçando­a derrubar, caso ela não assine o documento. Enquanto a ameaça, ele improvisa o documento, prende­o a um pedaço de madeira comprido e estica­o até conseguir alcançar Baby Doll. Ela assina, ele retira o pedaço de pau enquanto ela chora e se recupera do esforço ainda agarrada ao caibro do telhado. O clima é de sedução. Ele percebe o choro e, em seguida, envia o pedaço de madeira com um lenço na ponta. O gesto do filme me enlaça. Faço uma pequena dobra com ele. Lembro­me da maquete do telhado e da tábuas de pinho de Riga encontradas no telhado e dos lenços encontrados durante as arrumações pertencentes a minha avó que havia separado. A partir desses elementos, monto um tríptico que ocupa o quarto embaixo da escada da estação. Reúno a maquete, o trecho do filme com a cena do telhado onde só se ouve e se vê Baby Doll e ripas de madeira e atravessada pelos lenços.


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Imagem 26 Maquete da estrutura do telhado, anos 1970

A biblioteca fornece alguns deslocamentos de objetos para compor a atmosfera da casa. Talvez um dos mais estruturantes sejam os livros que foram utilizados para montar as três colunas que se localizam na sala da estação . Esse conjunto de livros pertencem a coleção da Revista Eu Sei Tudo366 encontrada na biblioteca. As revistas encadernadas, editadas como almanaque, circularam entre julho de 1917 a dezembro de 1958. A ideia das colunas com bases livrescas me ocorreu num cruzamento de informação. Durante as arrumações do porão, localizei e lembrei­me das colunas como parte da decoração da casa que frequentei na infância. Pensando em devolvê­las para seu lugar, depois de lidar com essa coleção de livros dentro da biblioteca – um dos maiores afetos na biblioteca –, achei de bom tom combiná­las na sala dessa forma. Ilha A biblioteca tem fisionomia de ilha, de panóptico, de observatório. Gosto de ficar por ali. A primeira grande arrumação retirou do ar a carga de abandono. O stimmung da desolação abre espaço para alternância. O efeito dos mais de 15 anos 366

Os almanaques, formato de sucesso no mercado editorial brasileiro da época – copiado da imprensa internacional – eram impressos pela Companhia Editora Americana S. A. sediada na então capital do Brasil, Rio de Janeiro. A linha editorial da revista tinha um periodicidade mensal e buscava enfatizar tecnologias e assuntos nacionais e internacionais.


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de descaso mostram volumes empoeirados com uma capa branca, talvez inseticida, em sua maioria bem conservados. Há goteiras no teto, livros encharcados, estantes enferrujadas. Abro esses, fito aquelas. O mal tempo, em forma de traças, corre as entranhas dos volumes. Ensaio uma evolução: trazer as perfurações das traças para o lado de fora do livro. Elas devem conformar as ilhas vazadas do arquipélago ou a "Escultura Folheada" com muitos ponto­furo do poema de Joaquim367. Aprendi esse poema memorável de construir escultura com os orifícios deixados pelas traças. Alterar aquela configuração de estantes e livros decerto arranca os rumores e rugosidades do ambiente. A primeira rearrumação daquele espaço ocorre em 2016. Agita­se, naquele momento, um deslocamento modesto. A ideia é montar e fotografar o trabalho, àquela época em desenvolvimento. Fizemos boas imagens. Ainda não é exatamente um tentativa de criar atmosferas, antes um processo de contaminar reciprocamente ambiente e trabalho.

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Destaco trecho do poema "A Escultura Folheada" de Joaquim Cardozo. "Mas essas linhas volantes, a princípio, foram / se reproduzindo nas folhas do livro, compondo desenhos / De fazer inveja aos mais “ sábios artistas”. / Circunvagando, indecisas nas primeiras páginas,/ À procura da forma formante e formada./ Seus vôos transcritos, “refletidos” nessas primeiras linhas, / Enfim se aprofundam, se avolumam no vazio / De uma escultura escondida, no escuro do interno; / Somente visível, “de fora”, por dois pontos; / Dois pontos furos: simples pontos simples furos/ E nada mais. "Joaquim Cardozo e uma poética do esforço ­ Abralic." 17 jul. 2008, http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/056/MANOEL_LIMA.pdf. Acessado em out. 2018.


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Imagem 27 Primeira ocupação da biblioteca em 2016. Experimentos iniciais com o trabalho notáveis

"Não terei descanso enquanto esta ilha opaca, impenetrável, repleta de surdas fermentações e de maléficos remoinhos não se metamorfosear numa construção abstrata, transparente, inteligível até os ossos!368". O desejo para aquela ambiência maquinava algo em torno da assertiva de Sexta­feira de Michel Tournier. Tornar a densidade do ar em algo transparente e inteligível, metabolizar uma metamorfose com aqueles volumes. O gesto aqui interrompe as goteiras e cicatriza os vazamentos do telhado. Demarca a parte mais danificada do cômodo para preservá­las como estavam. Delimita uma área para manter algum passado e pintar o restante da sala de branco com o presente. Cria contraste de modo que as duas áreas se destaquem, a cinza antiga e remanescente atrelada à branca recém pintada. As estantes, outras ilhas do arquipélago, foram retiradas. O movimento das placas tectônicas altera a configuração do arquipélago. Cada ilha se agrega à maior. Os livros são empilhados no chão. O formato é o de uma micro muralha – uma ilha de livros cercada –

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TOURNIER, 2014. (Kindle Locations 917­919)


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demarca um dentro e um fora. O desenho da pilha é um rebatimento da pintura das paredes que recortam o quarto. A arquitetura cria a mureta da casinha dentro da casa, coisa de filha que reproduz a redução o espaço. Imita­o numa miniatura proporcional. Pilha de livros cercam a infância. Títulos e autores protegem e ameaçam os mergulhadores. A pilha delimita a ilha fortificada. A algaravia é tremenda, os volumes esperneiam por uma abertura e se imprensam entre os muitos títulos. Gritos são notados, entre as vozes esperneadas. Dentre eles, saltam algumas questões: o que pode um colecionador de livros? Quantas portas podem se abrir e fechar com um simples exemplar? Quantas filhas haverá nesses miolos de ilhas? As perguntas vem com o desejo de intervenção nos volumes. A cada vez que procuro o continente, encontro a ilha. Quando busco o contingente, vislumbro a filha sujeita às adversidades da maternagem. Crio ilhas com aqueles volumes de textos. Monto gráficos demonstrativos provenientes da ocorrência – nos textos de alguns livros que encontro ali e em arquivos digitais – da palavra filha. Monto com isso esquema gráfico que analisa os desenhos dos arquipélagos de ilhas de alguns fascículos da biblioteca. Livros despertam o autêntico colecionador, afirma Benjamin. Decerto tanto no presente quanto no passado dos antigos moradores há um espírito de colecionador que convulsiona ao perceber os livros interditados ao rés do chão. O movimento náufrago dos gestos, porém, instalados nessa ilha dessacralizam o livro e o espaço da biblioteca, agitando os fantasmas de antigos colecionadores. Bia Petrus oferece alguma palavras e um livro. O quarto guarda todos esses livros pesados, mas a qualquer momento pode voar ou ser atingido por um raio. Nesse espaço quadrado, há janelas de todos os lados. Ao abri­las ouvimos o que não vemos. A linha amarela. Da " [...] banalidade, faço então uma imagem sincera, uma imagem que é minha, como se eu tivesse inventado, seguindo a minha doce mania de acreditar que sempre sou o sujeito do que penso. Se o barulho dos carros se torna mais aflitivo, esforço­me para ver nele o barulho do trovão, de um trovão


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que me ameaça e que ralha. Tenho pena de mim mesma. Eis o pobre filósofo de novo na tempestade, nas tempestades da vida!369" fuscum sub nigrum e o amor cego A ponta da lagoinha. Encontro e ali mesmo perco de vista as tartarugas, o hipopótamo, alguns cisnes, dois bois, um carneiro, coelhos e cães e um esqueleto de sapo. Houve época na qual era fácil acreditar que se ouvia, da frente do jardim, o canto da sereia e que se teria a chance de fundar definitivamente ali um reino. Reconexões oceânicas precisamente aconteceram naquela geografia, o que acabou por descamar a velocidade da vida lacunar. Não houve condições de me estabelecer ali. Os próprios cisnes se destronam como emissores de submarinos. A sereia desabita o mar devido à falta de convicção das correntes. Desde então, emergem continuamente relevos formando uma enorme cadeia montanhosa que interrompe qualquer visão. Preservam­se, porém, as rochas e alguns dos minerais metamórficos. Por muitas noites, estive naquele topo de montanha. Abraço a escuridão como uma força positiva de cura, transformação e capacitação. Alimento a esperança de vislumbrar algum vestígio. Pelo menos, um daqueles animais ao qual chamavam de amor. Chego por vezes acreditar que as luzes dos pescadores de peixe espada junto ao pisca­pisca de suas boias me dariam alguma pista. Contando em encontrar sinais, procuro por ele até hoje nos veios por onde a água escorre: filtros, margens, beiras, orlas, limbus, fissuras fluidas de azul oceânico purificadas de batismos. Indícios próprios da água que transmuta infiltra, sugere veios, migra. Banho renegado das esferas mais rombudas e irregulares da superfície de onde, até agora, que me chegou foram, no máximo, gotas, poças, lágrimas, gosmas, gemas e gomos. Desde o banquete de Platão o amor escapa. Para encontrá­lo não basta equipamento de espreita nem aparelhagem de escuta. Qualquer recurso padece, torna­se insuficiente diante da primeira dificuldade. O pouco que encontro quer possuir, abocanhar por inteiro sua presa. Não sabe compartilhar. Já me ocorreu a sorte de, depois de fitar por horas o fuscum sub nigrum das fotografias captadas 369

BACHELARD, p. 215.


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naquela ocasião, conseguir vislumbrar um tipo de migração de ratificada estranheza. Parece amor mas em poucos minutos naufraga. Acontece isso toda a vez que se desprendem fulgurações das imagens, mas no fim é só "o mar", um ledo engano ortográfico. banheiro dobrado O espelho do banheiro amanheceu quebrado. Metade perdida no chão outra parte ainda na parede. Ao retirar os cacos espalhados, revela­se integralmente o negro camuflado pelo cristal quebrado. Bom lugar para emanar luz. Um backlight pode criar uma fusão temporal. A ideia de pintar um dos cômodos de preto veio daquele fundo de espelho cego. Ao rever algumas das imagens antigas, encontro uma que espelha o espelho. A imagem fotográfica de um menino em algum dos banheiros da casa aparece por cima da imagem da fachada que abriga a empresa de água mineral. Algumas das peças daquele banheiro antigo foram encontradas no telhado. A imagem traduz um erro da fotografia analógica quando a alavanca de passagem do filme gira, mas o filme dentro da bobina não sai do lugar. Dupla exposição: efeito que acontece quando duas cenas diferentes são mostradas na mesma fotografia. Um erro ou quem sabe, melhor imaginar um negativo resultado de dois cliques propositais, um sobre o outro, uma articulação de um gesto . Uma mescla de vários elementos em um. Um teste de magia. Talvez toda essa movimentação pela estação tenha apenas uma serventia: comprovar a hipótese de aquela fora a residência de pelo menos um prestidigitador. Jogo espiralado e reflexivo de sobreposição fotográfica ainda adere outras imagens: um espelho se dobra sobre uma imagem que, por sua vez, se posiciona no lugar do espelho do banheiro. O esquema elétrico da iluminação do backlight localizado atrás da imagem está face a face com ela. Ao entrar no banheiro, o mergulhador é invisível. Ele percebe­se na atmosfera entre duas imagens, não se vendo no espelho.


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quarto azul As gotas d'água são lentes biconvexas. Formam imagens reais, invertidas e reduzidas da paisagem sob ou atrás delas. Dentro de qualquer recipiente transparente, com a ajuda de alguma incidência de luz, é possível observar outros formatos de lentes. Nesse caso, obtém­se também a formação de alguma imagem real através da superfície. Ao regular a distância entre um desses recipientes e seus anteparos, afastando­os ou aproximando­os, pode­se ir testando a nitidez da imagem obtida no volume de água do interior do recipiente. Super esferas de hidrogel incolor quando hidratadas atingem o tamanho de uma bola de ping­pong. Assim como a gota d'água, funcionam como lentes proporcionando uma estabilidade material mais controlável que a própria gota. O lento processo de desidratação orienta o desenvolvimento de uma série de desenhos. Exploro a utilização dessas esferas sobre desenhos com lápis aquarelado realizados sobre papel algodão. A proposta é possibilitar a observação dos desenhos ‒ imagem sob as esferas de hidrogel ‒ através de uma ampliação da área sobre a qual a esfera se apoia. Antes de ocupar a estação, desenvolvia o trabalho Notáveis. O nome se dá em decorrência daquilo que é notado sob o derretimento das esferas – desenhos de seres marinhos. Além disso, está também inter­relacionado com a configuração dos ângulos notáveis conhecidos pela sua importância para a Trigonometria no cálculo de seno, cosseno e tangente: 30º, 45º e 60º. Esses são também os graus dos ângulos dos suportes de madeira e aço inox feitos para apoiar os desenhos e o sistema de pesos que gerencia a subida da esfera. Nesse caso, os desenhos feito com lápis aquarelado vão sendo manchados conforme as esferas de hidrogel vão derretendo. Ou seja, à medida que vão subindo para superfície e perdendo peso. Na espreita pela estação, além dos desenhos já realizados surgem novos seres. As naked see butterflies e a geleia de pente escorrem outros notáveis. Os seres marinhos se espalham pela estação . Estão em todos os banheiros, na cozinha, no lavabo, nas caixas de isopor do quarto azul, nos tanques de aquaponia e nos aquários. Já estiveram do lado de fora: no lago há girinos, cisnes, tartarugas, jacarés e serpentes. Em certa ocasião, ouvia­se melodia encantadora


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proveniente da carroceria frigorífica estacionada no pátio de frente da estação . Há quem diga que se escondia, naquele interior, uma sereia encoberta pela inscrição 100% peixe na parte traseira da carroceria. Circulavam rumores sobre sua presença. Encontrava­se ali para deter os distribuidores que navegavam perto daquelas costas, mas morreria tão logo deixasse um mortal passar sem que fosse seduzido pelo seu canto. Talvez seja esse o motivo de terem levado de volta para o mar o báu frigorifico estacionado no jardim da frente. a homenagem em cor de rosa Folie à deux é um tipo de transtorno psicótico compartilhado. Um grupo de pessoas partilham um mesmo delírio. Um indutor dominante influencia outros mais dóceis e passivos. Desenvolve estreito relacionamento com um ou mais indivíduos que o seguem e aderem ao seu delírio. “O problema compreende então dois termos, entre os quais trata­se de estabelecer uma equação: de um lado, o doente ativo, de outro, o indivíduo receptivo que sofre sua influência sob formas e graus diversos370” Encontros fortuitos foram recorrentes durante as arrumações. O gesto inaugural dessa ambiência contou com mais encontros como esses. Denomino "Loucura a dois371", em francês, o trabalho que deu origem a ocupação do centro desse ambiente. O primeiro gesto dentro do quarto, depois do piso instalado, foi transpor para o ambiente do quarto o trabalho Folie à deux , 2016 originalmente apresentado sob uma redoma. Coube às quatro passamanarias – pingentes que fazem o acabamento das cortinas – agenciarem o encontro comigo dentro dos armários da estação. Intactos, lacrados em sacos plásticos, se apresentam em dois pacotes com duas passamanarias cada.

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Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental Ano IX, N. 4, Dez/2 0 06 "A loucura a dois (1877) ­ SciELO." http://www.scielo.br/pdf/rlpf/v9n4/1415­4714­rlpf­9­4­0714.pdf. Acessado em 3 nov. 2018. 371 Trata­se originalmente de uma estrutura maquínica composta de uma base de madeira, dentro da qual funciona um pequeno motor dotado de um ímã. O ímã atrelado ao motor gira dentro da base. Acima dela pendurado no topo de uma redoma de vidro um pingente de cortina ao qual se atribui o nome de passamanaria. Sobre seu "corpo" se esconde um outro ímã que entra em movimento conforme o acionamento do motor. O pingente é guiado pelo movimento potente do motor. Com ajuda da luz e pelo fato de serem duas estruturas funcionando juntas projeta­se na parede um rebatimento da loucura. A projeção da sombra de um pingente maior gira ao redor de uma menor. Loucura a mais de dois.


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Como no trabalho original, um pingente de cortina gira ao comando de um motor. Dessa vez, porém, tal elemento abandona o confinamento da redoma. Toma o centro do quarto conectado ao teto e rodopia de acordo com um pequeno motor instalado sobre o piso. O trono e o altar estão atados a movimentos aberrantes ou balés alucinatórios. Tarantelas, rodopios, danças afro, giros de derviches provocam alucinações e delírios. Toda percepção, num primeiro momento, é alucinatória. Enquanto ainda não se deduzem os corpos dos objetos preexistentes é o campo molecular dos estados brumosos que se percebe. Ainda uma névoa, um suspense. As paredes do aposento eram de um rosa pálido, quase branco. O desejo de sentir a proximidade física do espaço acompanhou a ideia de intensificar a coloração das paredes. Pensamos que o realce poderia ser feito a partir da iluminação dentro do armário. Para testar essa coloração, empilhamos umas garrafas cor de rosa na frente de uma fonte de luz. A insuficiência do resultado deslocou ainda mais a ação. Se o fantasma azul percorria toda a casa, aquele ambiente convocava uma nova experiência cromática. Na primeira visita à estação, a madrinha de plantão desta investida chama atenção para a colocação dos vasilhames de 20 litros que circulam nas dependências da indústria de envase de água: são azuis ou rosas. Esse antigo dormitório ligeiramente rosa pedia de volta a ativação pela cor. O cruzamento dessas notações e as experiências ressaltam a ideia de que a luz que invade o cômodo a partir da luz da varanda poderia receber um filtro cor de rosa através dos garrafões. O resultado da construção de um paredão de garrafas cor de rosa na varanda é próximo ao divino. A fonte de luz trouxe graus de calor para dentro do ambiente onde formas e conteúdos se fundem numa tonalidade quase tátil. Eram outras as fulgurações percebidas. Aos poucos os armários ganharam outros ocupantes. Dois mostruários com vários barbantes, fitilhos, pedacinhos de panos enrolados, cadarços que a dona da casa guardava na esperança de lhe servir momentos posteriores. Peles de coelhos e pequenas passamanarias de minha coleção foram adicionadas em cabides. Volumes da coleção Fábulas e Lendas foram conectados a pequenos garrafões de 10 litros também pendurados em cabides, no canto do armário onde se encaixaram esferas de plástico de enfeites de natal. Assim, as inserções são tecidas e outras qualidades


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respiram nessa atmosfera. Elementos e gestos conferem graus de intimidade e de calor ao ambiente. O antigo dormitório sempre fez descansar a dona da casa, era em particular o lugar onde se localizava sua cama e sobre a qual deu o último suspiro. Nesse âmbito me visitavam algumas lembranças contraídas. Dentre elas as do dia de sua morte, o telefonema recebido com esse comunicado. A chegada ao casarão e o acompanhamento do carro funerário até o cemitério. Outro salto mais longínquo foi definitivo para justificar toda a composição do ambiente. Talvez tivesse uns 7 anos. A senhora era de uma meiguice ímpar, dava muita corda para brincadeiras e atividades manuais com as netas principalmente. Entramos no armarinho. Ela queria comprar lenços de pano para fazer roupinhas para nossas bonecas. Uma delicadeza sem fim, que foi recebida pela atendente de forma muito grosseira. Ela não percebeu, eu sim. O gesto me marcou pra sempre. Aquele dedo indicador da mão direita da atendente girando em torno de sua orelha no sentido horário repetidas vezes me cravou o peito. Como assim minha avó louca? Ora veja, não julgava nenhuma sandice querer fazer roupinhas de boneca com lenços de pano! Alguns anos depois, aí sim! Com 80 anos, distúrbios cerebrais começam a fazê­la perder gradualmente a memória recente, as habilidades intelectuais e sociais. Diagnóstico: Alzheimer. A tal doença neuro­degenerativo se instala provocando o declínio das funções cognitivas. Presenciei delírios múltiplos ao lado dela, morreu assim dormindo. A narrativa brota do conjunto de gestos e parecia se adequar aos componentes instalados no quarto. No entanto nenhum desses detalhes precisam ser elucidados para vivenciar o ambiente e, muito menos, estiveram à frente da condução dos gestos que o compuseram. Ao contrário, foram os gestos que, ao desempacotar as lembranças, fazem delas novas narrativas. A partir da inserção ampliada, o trabalho "Folie à deux" ganha mais uma camada de significado interno. Na montagem do dormitório, acabou­se por criar um ambiente de experimentações táteis e assim dobrar o clima de delicadeza sobre o stimmung local.


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as químicas e o fundo da moringa Elementos encontrados na desacomodação do telhado foram realocados no espaço correspondente à cozinha do casarão, a exemplo dos antigos e belos frascos de farmácia com tampas igualmente em vidro. Uns são transparente, outros tem a cor marrom. Em perfeito estado de conservação, alguns ainda apresentam a indicação legível da suposta substância armazenada arte o momento em questão. Os rótulos de papel, pintados à mão, exibem detalhes em dourado e apresentam marcas do tempo, tornando as peças ainda mais sedutoras. Aristol, Benzin Light, Brometo de Lith, Cálcio, Escamol, Elect Seno, Óleo de Copaíba, Lact. Strong, Óleo de Amêndoas, Sebão med pó, Óleo de Rícino, Salol, Antifebrin, Sulfato, Thymol, Benz lith, Kermes, Chlor, Ipecal, Camon pó, Óleo de Meimend são algumas das identificações assim grafadas nos rótulos. Há ainda muitas outras. Certamente são frascos do final do século XIX início do século XX. Pharmacopea372 é uma palavra derivada do termo grego Pharmakon. Relaciona­se à droga ou fármaco e poeio representa fazer ou fabricar. Em Portugal, a primeira Pharmacopea oficial data de 1794. Ao longo do tempo, porém, existiram igualmente farmacopeias não oficiais.373 A farmacopeia orienta farmacêuticos a respeito de informações técnicas nomenclatura das substâncias, princípios ativos e coadjuvantes dos medicamentos básicos, requisitos de qualidade, insumos, compostos e equipamentos farmacêutico. Funciona ainda como auxílio primordial do consumidor de medicamentos.

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Aparece pela primeira vez como um título distinto num trabalho publicado em Basileia, Suíça, em 1561 pelo Dr. A. Foes. Todavia, não entrou em uso geral até ao início do século XVII. A farmacopeia constitui um livro oficial, elaborado por uma comissão, o qual estabelece normas farmacêuticas destinadas a assegurar, num espaço político­geográfico determinado, a uniformidade da natureza, da qualidade, da composição e da concentração dos medicamentos aprovados ou tolerados, sendo essas normas obrigatórias e estabelecidas pelas entidades competentes e a elas se deve cingir o farmacêutico http://www.actafarmaceuticaportuguesa.com/index.php/afp/article/view/41. Acessado em out. 2018 373 idem


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Imagem 28 Frascos encontrados no sótão

A julgar pelas nomenclaturas indicadas pelos rótulos, os conteúdos acondicionados em tais recipientes estão relacionados possivelmente a unguentos, óleos, emplastros, emulsões, ainda em estados oleosos ou líquidos, pastosos ou endurecidos. Decerto, se me detenho no Real Gabinete Português para consultar o conjunto de periódicos chamado Pharmacopea das pharmacopeas nacionaes e estrangeiras374, ou caso queira investigar algum Glossário da Medicina Oculta ou consulte um expert em química acabaria por descobrir maravilhas em cada uma dessas substâncias. Em uma simples breve investida, detecto que Escamol , por exemplo, são ovos da formiga gigante mexicana de Liomethopum usado também na culinária mexicana por serem saborosos. Recolhidos para fins tintureiros desde a

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CABRAL (B. J. O T.) .— Pharmacopea das pharmacopeas nacionaes e estrangeiras excepto a geral destes reinos, citadas nos regimentos dos pharmaceuticos portuguezes de 1831, 1833 e 1834: ou COLECÇÃO DE TODAS AS FÓRMULAS E PROCESSOS DOS MEDICAMENTOS preparados conforme as pharmacopeas Bateana, de Baumé, de Chavallier, de Dublin, d’Edimburgo, Franceza, de Fuller ... E também Das Fórmulas e Processos dos Medicamentos, cujas Preparações os Regimentos sobreditos não citam em Pharmacopéa alguma, nem se achão na Geral destes Reinos: incluídos outros Aditamentos importantes, e a designação das Virtudes e Doses dos Medicamentos, autorizada com a citação dos Práticos mais acreditados. Acompanhada d’Estampas e Taboas muito úteis: Compilada pelo Bacharel... Lisboa. Na Imprensa Nacional, 1833. 15x21 cm. 621 págs. E. https://in­libris.com/products/farmacopeia­das­farmacopeias­nacionais­e­estrangeiras. Acessado em out. 2018.


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Antiguidade Clássica europeia, o Kerme é um gênero de pequenos insetos de cujo corpo, após secagem, se extrai o corante natural designado por carmesim. Já Óleo de Meimendro com poderes sedativos pode ser usado como calmante nos espasmos, nas tosses hipnótico nas afecções cerebrais e do sistema nervoso. Associam­no ao veneno citado na obra de Shakespeare, que fez o pai de Hamlet morrer com o suco de Meimendro vertido no ouvido.375 Como se percebe, à cada fresta espreitada abrem­se comportas de possíveis. Veem em enxurrada com direito a alagamento. Não bastasse o diapasão aumentado da coloração azul adotada pelo ambiente no decorrer da montagem, há toda espécie de ingredientes químicos fantasmáticos: a alquimia dos elementos, a condução dos líquidos pelos encanamentos, a conservação de elementos no frigorífico e no forno, o crescimento de plantas em terrários ou em outros cantos, as técnicas de cozimento da cerâmica. Indubitavelmente, foi esse volume de forças ativas o principal motivo dos muitos dispêndios de gestos naquele ambiente, de modo que esse foi o cômodo de andamento mais moroso. Na mesma intensidade que a ação se completa, volta­se atrás. Gestos habituam a mão. Para se obter o stimmung ambiente, insinuam­se aumentos ou diminuições das doses dos elementos empregados. Não por coincidência, o último cômodo sobre o qual escrevo, apesar de aparecer localizado nesse ponto do texto. Os primeiros gestos trataram de dispor sobre a bancada da pia um aquário médio, encontrado no telhado e adaptar uma cúpula grande de vidro exatamente no lugar do fogão. Um par de cortinas encontradas nos armários foram instaladas em cada uma das portas de entrada da cozinha. "A casa funciona como um volume de transformação onde as forças se apaziguam, como um filtro de altas energias ou urn conversor.376" À essa altura eram muitos os colaboradores. Um dos funcionários da empresa de água sugeriu o encaixe da cúpula de vidro no lugar do fogão. Outros ajudaram a levar para o galpão da empresa 2 das 3 pesadas divisórias posicionadas na varanda. Uma unidade permaneceu na estação . Talvez por receio de descer, quis 375

"Ervas e Insumos: 2009." 9 jun. 2009, http://ervaseinsumos.blogspot.com/2009/. Acessado em novembro 2018. 376 SERRES, 2010, p.144.


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migrar para cozinha. No cerne da acomodação­desacomodação, experimentar­se­ia o fogo de muitos possíveis. A divisória antes usada verticalmente, deita­se transfigurada em base, solicitando envoltório. Coberta de espuma anti­ruído, é revestida com peças de cerâmica branca lisa. Tem permanecido assim desde então. Acima da base revestida, o processo circula. Primeiro, são deslocadas as peças dos armários, depois os tais frascos de vidros da farmacopéia luso­brasileira, além de copos e potes.

Imagem 29 Equipe de funcionários deslocando as divisórias que se encontravam no casarão

Do telhado, desceram outros itens para esse recinto. Um colchão velho serviu para escurecer o ambiente e ser base para plantação de orquídeas. Os copos guardados, desde os anos 80 no porão, se distribuem entre os armários e pelo chão. A coleção ilustrada de conto de fadas protegeu­se na parte de baixo do forno. Tentou­se fazer com que as janelas chorassem, o que não aconteceu em definitivo. Um ventilador de teto, com lanternas azuis, foi re­instalado acima da base central da cozinha – na altura dos olhos – para depois ser devidamente retirado. Pés de


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maracujá foram plantados do lado de fora com a ideia do ambiente deixar se abraçar ainda mais por sua área externa. Depois de plantados, os dois grandes recipiente de vidro transformaram­se em terrários. O menor recebeu plantas que crescem acima das telhas: reproduziram durante um tempo e depois morreram. Porém, no terrário maior muitas ainda sobrevivem. Uma balança encontrada na arrumação teve seus pratos transformados em vaso. O desejo de manter as plantas em crescimento nutre outras formas de vida, como passarinho formigas, insetos numa espécie de cadeia alimentar. A cozinha, por três vezes, sofreu inundações sem que se suspeite de onde ou do que as origina.

Imagem 30 Imagem tirada do terceiro alagamento da cozinha

Os armários receberam a iluminação. A cozinha se impregna ainda mais de azul. Talvez contaminação inaugural causada pela imagem apoiada por trás do terrário maior. A aquarela fez parte da obra Histereses , 2014 contaminada pelo anil do conto de Lovecraft "A cor que caiu do céu". Singelo o uso do termo aquarela, no português europeu se usa aguarela e aguarelista.


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Todos os elementos alterados e acrescentados eram periféricos. Isso é, muitas ações giravam em torno da base mas ela mesma custa a se conformar com as configurações recebidas. Ocupar pelo centro nem sempre é a melhor estratégia. A ação da toupeira, em muitos casos, pode ser mais eficiente. Depois de lavar algumas das peças excedentes que revestem o piso da copa da casa – espécies de tijolos de pouca altura revestidos de fina casca de porcelana –, o centro se libera para outras tomadas de decisão. Uma fragrância impregna meus poros de forma atávica. O odor do barro molhado difundiu­se de tal modo que não houve outra alternativa a não ser convocá­lo como componente central da base. Essa invasão desencanta o centro e faz verter água nas moringas, vasos, quartinhas e alguidares, conferindo o clima de terra molhada ao ambiente de alquimia culinária. A imagem das moringas de cerâmica encontradas no telhado me alcançam. Até aquele momento, não pensava nelas em outro lugar. Minha ideia era mantê­las no local onde foram encontradas, espécie de sítio arqueológico sobre o calor do telhado. Naquele momento, porém, elas sussurram, solicitam temperaturas moderadas. Desejam uma participação menos acanhada, em um canto acolhedor, familiar. Por conta dessa escuta acurada, inicia­se a descida de todos as peças de cerâmica trazendo­as para o centro daquela bancada.


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Imagem 31 Moringas de terracota encontradas no sótão

No intuito de incrementar o cheiro de barro, além desses que vieram do telhado, acrescentamos outros mais novos. Apesar de efêmero, o odor de barro molhado acontece dentro do ambiente se faz presente. Com o conjunto de recipientes preenchidos de água, em seu interior, realizamos o empilhamento dos vasos de cerâmica. Sob um título temporário "no fundo da moringa a água sonha musgos", inauguramos um novo trabalho. Dois vasos de barro ou duas moringas são colocadas uma sobre a outra. O pote abaixo tem a abertura para superfície de apoio, o de cima se apoia na base deste último que se encontra preenchido de água. O vaso de cima transpira. O debaixo está vazio e serve como base para o de cima. A água dentro do vaso, com o tempo, transpira pelas paredes e atinge o de baixo. A água sora, desenha nas paredes de barro. Transforma o contato das peças em ampulhetas, vasos grandes e bojudos sentem gotas de águas deslizantes em suas paredes. Vê­se os rastros desenhados pela água. Atualiza­se o aguadeiro de Sevilla de Velázquez e a exsudação. O homem distribui água. Carrega­a em seu cântaro,


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oferece uma taça com água a um rapaz. "O cântaro do aguadeiro não é um cântaro genérico, mas o retrato de determinado cântaro" expressa Ortega y gasset Durante as pesquisas iniciais, nos cuidados com a terra, a plantação e a aquaponia, experimentamos a técnica de irrigação por capilaridade. Ali no centro também realizaram­se experimentos de transferência de líquidos com cordões de algodão. Além da água para os recipientes, também exploramos o uso do cloreto de cobalto. Trata­se de uma substância química intrigante por sua alteração de cor em função da temperatura e umidade do ar. Conseguimos alguns desenhos resultantes da substância aplicada na água e das diferenças de umidade do ambiente377. Durante a pesquisa houve importantes achamentos e visitas de antepassados milenares, dois dos quais valem ser lembrados por seus desdobramentos em curso. O primeiro diz respeito à prática de utilizar potes de barro não vitrificados para irrigação subterrânea. As ollas – potes de argila tem o gargalo estreito – enterrados no solo com o gargalo exposto acima da superfície permitem o livre fluir da água – depositada em seu interior – na direção da sucção da terra. Dado como um dos sistemas de irrigação mais eficientes do mundo, sua utilização é também explorada nos jardins da estação assim como nos recipientes da cozinha. Uma possibilidade de desenvolver a sonoridade para a peça central da cozinha – o conjunto de potes de argila conectados pela água – vem da técnica milenar japonesa Suikinkutsu. "Sui" é equivalente a "água", "kin" designa a cítara japonesa e "kutsu" significa "caverna". O som proveniente dessa prática é ocasionado pelo excedente de água que se espalha no chão e através de um dreno atinge o orifício de um vaso enterrado de ponta cabeça justo abaixo da bacia de pedra, fonte ou lavatório. O jardineiro cava um buraco sob o dreno da água proveniente da fonte no qual ele enterra um pote de cabeça para baixo. Semelhante a um sino invertido e enterrado, o pote de suikinkutsu toca quando atingido pela

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Misturamos a água a uma solução de cloreto de cobalto – substância naqueles galinhos do tempo que alteram a cor de acordo com a temperatura. Colocamos um barbante de algodão saindo dele. A substância do vaso, com o tempo, vai descendo por capilaridade e deposita na superfície manchas cor de rosa que conforme seca, fica azulada. A superfície que recebe o fio molhado pode ser uma folha de papel mas também pode ser um totem ou mesmo o piso onde for instalada. Todo esse processo e experimento continua produzindo entrelaçamentos.


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água. Quando a fonte transborda e deixa escorrer o líquido sobre o piso, goteja dentro do pote invertido o que provoca um som sutil e inspirador. A simplicidade da ideia demanda a afinação delicadíssima dos componentes do conjunto. Para garantir o bom som, distâncias e alturas das peças precisam ser estudadas. No caso em questão, a qualidade e o diâmetro do buraco no topo do jarro, no trabalho instalada na cozinha. Componente sonoro, ainda em teste, o gotejar da água amplificado ainda solicita exigências para acontecer corredor

Imagem 32 Detalhe da bola de sinuca caída no corredor

O confinamento, mesmo momentâneo da passagem, se comunica diretamente com os quartos causando agonia. Talvez seja ele o ponto mais escuro da estação durante o dia. Com armários embutidos até o teto, o ambiente é claustrofóbico. Sem respiração. Do piso, retiro as tábuas corridas bichadas enquanto as melhores permanecem. Nestas condições, o encaminhamento para os quartos opera de forma desconcertante, tanto pelo estreitamento quanto pela irregularidade do piso. Durante a retirada de objetos dos armários embutidos, cai um bola de bilhar


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justo nos vazios do piso desse passadiço. A esfera agencia o desejo e se encaixa no ninho. Observo pequenos acúmulos ocasionalmente no terreno. São desenhos de autoria do vento e da chuva, ninhos acumulados. Dentro dos armários do corredor, um projeto de nidificação acontece. Folhas e galhos são resgatados delicadamente para as prateleiras iluminadas dos armários.

Imagem 33 Detalhe dos "ninhos" formados pela água da chuva

Pensava a respeito do eco oco da estação como um grande instrumento que coleciona, amplia e transmite sons. Por conta do vento, o banheiro que dá acesso ao corredor assim como a própria porta daquele ambiente longo e estreito bate com frequência. Penso a respeito de corredores com portas. Não vejo muito sentido naquela obstrução. No entanto, atualizam­se momentos nos quais ela fica fechada durante os dias de visita. Espaços ressoam e soam mesmo em silêncio. Ecoam tipos de sonoridades que me despertam interesse. Sobre alguma intervenção com som, cogito a ampliação do próprio silêncio para potencializar a sensação de oco alinhado aos barulhos externos da natureza. Isso poderia minimizar o ram contínuo dos fluxo de


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carros da linha amarela. Lembro da atmosfera bucólica, tranquila e silenciosa da casa até os meados dos anos 90, antes de serem iniciadas as escavações da linha amarela. Um dos colaboradores propôs uma ação: interromper o fluxo da linha amarela para fazer a casa ouvir um silêncio análogo ao de antes da construção daquela via. Imagem divina! Ocorre­me a frequência dos estrondos da pedreira que eventualmente ouvia­se daqueles cômodos. A imagem do grande aquário partido me visita. A casa já sofrera muitos estrondos mesmo antes da explosão dos morros da proximidade. O homem solavanca indiscriminadamente a natureza. Com a pedreira desativada, outras explosões vêm compensar a sua ausência: as que ocorrem em decorrência da abertura do túnel da Covanca378, um dos maiores em extensão urbana . a sala indefesa A lareira é uma construção curiosa naquela arquitetura. A sua presença recorrente em algumas das fotografias antigas me leva a especular sobre a sua originalidade desde a primeira edificação. O poder do fogo acompanha e sobrevive as três reformas do casarão. Devaneio sobre o clima úmido das primeiras temporadas. A baixa temperatura e a invasão do frio pelas frestas das janelas, suponho, trouxe a incorporação do fogo, outrora feito no bosque, para dentro da casa. A lareira acende. O poder de Hefesto que atende às preces e realiza desejos não parte mais do bosque. "Já não sabemos acender o fogo, não somos capazes de declamar as preces, nem conhecemos o local do bosque, mas podemos narrar a história de tudo isso379". Mesmo afastados das fontes do mistério e distantes da tradição que enredam o fogo, ainda é possível descrevê­lo. Talvez aquilo que resta – o relato – seja o suficiente para entender como os acontecimentos e episódios adquirem um significado que os superam e os constituem como mistério. Com sorte, 378

Este túnel integra um complexo que compõe a Linha Amarela do qual fazem parte dois outros túneis menores: túnel Geólogo Enzo Totis (165m) e túnel Eng. Enaldo Cravo Peixoto (153m), que poderiam ser interpretados como pequenas galerias de um único túnel. Esta via arterial serve de instrumento de conexão entre a Zona Oeste e a Zona Norte, com interligações importantes a outras vias de ligação intermunicipal e interestadual, e foi inaugurada em 1997. O gerenciamento desta via é realizado pela concessionária privada LAMSA (Linha Amarela S.A.)."Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de ... ­ Peamb ­ Uerj." http://www.peamb.eng.uerj.br/trabalhosconclusao/2010/JamesShoitiMiyamoto_PEAMB2010.pdf. 379 AGAMBEN, 2018, p.28.


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imponha àquele, que ouve ou percebe as nuances da atmosfera do relato, acompanhar, de algum modo, sua própria existência na esfera do mistério: a própria vida e seu desperdício. Nesse sentido, todo relato é memória da perda do fogo. Há, no canto da lareira, um monumento ao relato. Muitas vozes e notas musicais habitam o mistério daquele recinto. Um dos pontos mais iluminados pela luz da manhã também o foi alhures foco de algaravia musical. Ao redor da lareira e do piano de cauda instalado na sala adjacente ouvia­se música.

Imagem 34 Músicos ao redor da lareira em meados dos anos 50/60

Na última reforma, a chaminé fora obstruída mas ali ainda continuará sendo lugar de fulgurações. A produção da atmosfera para aquele espaço não poderia deixar de lado a memória e sua ambígua relação com o mistério. Os fantasmas remanescentes vinham da imagem da mesa que ocupava o centro da sala de visitas. Sobre ela, muitos papéis, notas, documentos, livros caixas, folhas de pagamento. Para o universo infantil, algo sedutor e intocável.


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"Nossas estratégias para lidar com a temporalidade das casas em geral são muito mundanas380". No que diz respeito a mobília, há quem se interesse por antiguidades genuínas e outros pela aquisição de réplicas. Para esses últimos, as antiguidades lembram urnas funerárias. Os antigos moradores deixam para trás alguns dos móveis, dentre eles cadeiras de jacarandá de estilo Manuelino. Por vezes, também é chamado de gótico português tardio ou flamejante. Esse estilo decorativo, escultórico da arte móvel, se desenvolveu no reinado de D. Manuel I. Algumas das peças de madeira foram revestidas com os excedentes da cerâmica encontrados na casa. Esse gesto criador não retira a função do mobiliário. Antes justapõe temporalidades distintas e suas fantasmagorias. O gesto de interferir no móvel antigo perturba a agência dos objetos. Além de funcionar como cicatrizante, faz estremecer temporalidades e antigos fantasmas atingindo até os de estilo manuelino. Nas paredes da sala, acontecem sessões constantes de cinema sem filme, sem hora hora pra começar ou terminar. O dispositivo de projeção dá lugar à experiência fílmica, "cinema sem filme é isso mirar [ ] imagens381". Percebem­se, num fio de duração, imagens frívolas, fugazes que se formam e embaralham. Elas vêm à tona e se perdem, frustrando as previsões de quem as observa, posto que são descartáveis. Produzem atmosfera de indeterminação com sombras e iluminâncias externas. Pelas janelas, o meio externo incide sobre o interno ao acionar os filmes. Sou capaz de assistir longas metragens nesse espaço. Diante do desejo de amplificar a incidência dessas imagens, intercepto a sala com a versão ampliada de um trabalho. Nele, desenvolvo mecanismo no qual canos de pvc estão conectados a tubos de acrílico transparente por onde passam água e alguns objetos produzindo outras cenas nas paredes.

380 381

MILLER, 2010, p.142. FLORES, 2015, p. 110.


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Imagem 35 Detalhe dos reflexos e sombras que acontecem nas paredes da sala

O gesto de organizar projeção dos filmes Stalker e Andrei Rublev para amigos naquele palco reescreve o passado. Atualiza as muitas projeções de desenho animado, em 16mm, assistidas no anos nas décadas de 70 e 80 naquela mesma sala de visitas. Faz­se necessário o distanciamento histórico para ponderar eventos de grandezas relevantes na escala de tempo geológico. Não há data de início precisa e oficialmente apontada, para o antropoceno. Estudiosos consideram, no entanto, que essa era começa com advento da agricultura, precisamente com inundação dos campos de arroz na china, impactadores significativos do meio no ambiente. Uma possível inundação quase toma minha respiração por inteiro, começou misteriosamente na antiga cozinha. Era a lembrança recôndita do capítulo final de Terra sobre fogo que escapa justo quando progresso triunfa. Era a cidade de


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Divinéia submersa pelas águas do rio Jurapori. Era Nara (Dina Sfat) que morria em casa vivendo a inundação. Era a resistência abrindo outras comportas382 . Encantam­me as paisagens submersas, as barbatanas, as nadadeiras, a viscosidade das escamas. Recordo­me do In Memorial Project Nha Trang, Vietnam: Towards the Complex ­ For the Courageous, the Curious, and the Cowards383, vídeo do artista Jun Nguyen­Hatsushiba. Cenas e diálogos vivenciados durante a apresentação da peça itinerante Panidrom384 que, por conta da derrubada da barragem, evoluem na rua, em praças ou em espaços da cidade. Era o medo de "molhar a planta do pé" ou de "mudar o remo da vida385" o responsável por desenhar a linha d'água, nesse ambiente, depois do alagamento. Ou a arqueóloga invertida provoca alagamento no lugar de desenterrar, ficciona ao invés de descobrir. A marca do medo de não aguentar o fluxo da maré de gestos trazia à tona tais narrativas.

que saiba dançar O corpo em estado de dança improvisa, arrisca caminhos. O brincante experimenta intempéries. Assim como o jogo livre, a dança inspira uma atenção desinteressada, um certo desligamento da racionalização. Não falo da dança coreografada ou o do balé, mas da "dança dionisíaca. Precisamente, aquela originária do ritmo interior do coletivo386. O bailado dos morros, suas construções espontâneas "descobertas" por Oiticica vestem organicamente estandartes

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Refiro­me ao último capítulo de Fogo sobre Terra que assisti entre 9 e 10 anos. A telenovela brasileira foi produzida e exibida pela Rede Globo entre 1974 e 1975. Escrita por Janete Clair e dirigida por Walter Avancini e pelo poeta Vinicius de Moraes, contou com 209 capítulos. Foi produzida em preto­e­branco com supervisão de Daniel Filho. http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/fogo­sobre­terra/trama­principal.ht m. Acessado em agosto 2018. 383 Jun Nguyen­Hatsushiba no video In Memorial Project Nha Trang, Vietnam: Towards the Complex ­ For the Courageous, the Curious, and the Cowards os ciclos correm lentamente ao longo do leito do mar em Nha Trang, pescadores agem como condutores, prendendo a respiração por tempo suficiente para impulsionar seu veículo apenas alguns metros adiante antes de serem forçados à superfície enquanto outro toma o seu lugar. Em um país em rápido desenvolvimento social e econômico, tanto os motoristas quanto os pescadores se vêem cada vez menos privilegiados, e nesse trabalho poético os encontramos lutando para progredir em um ambiente que frustra suas ações. 384 Assisti Panidrom durante a apresentação no Museu do Incosciente no Engenho de Dentro http://panidrom.wixsite.com/site. Acessado em junho de 2018. 385 As duas citações fazem parte do texto do espetáculo Panidrom disponível em https://vimeo.com/122819137 386 OITICICA, 1986.


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multisensoriais. Folia de movimentos dançantes ao "fundir cor, estruturas, sentido poético, dança, palavra, fotografia" No letreiro instalado no morro lê­se: "CREIO EM DEUS". Do terreno da estação avista­se um complemento da crença "QUE SAIBA DANÇAR" num diálogo franco com o morro. Um resgate inventor de ritmicidade, "uma identificação vital completa do gesto, do ato com o ritmo, uma fluência onde o intelecto permanece como que obscurecido por uma força mítica interna individual e coletiva.387"

Imagem 36 Detalhe da inscrição no morro em frente a propriedade

Oremos: " Há sempre o seu quê de loucura no amor; mas também há sempre o seu quê de razão na loucura. E eu, que estou bem com a vida, creio que para saber de felicidade não há como as borboletas e as bolhas de sabão, e o que se lhes assemelhe entre os homens. Ver revolutear essas almas aladas e loucas, encantadoras e buliçosas, é o que arranca a Zaratustra lágrimas e canções. Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar. "

387

Idem , p.73.


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3.3.6 Gestus complementares Não sei o que se passa aqui quando não tem ninguém. Mas quando aparecem pessoas, tudo começa a mudar. As antigas armadilhas desaparecem e surgem novas. Os caminhos seguros tornam­se intransitáveis. E o caminho ora é fácil, ora infinitamente emaranhado. [...] Por vezes, até parece... caprichoso. Mas é, em cada momento, como a fazemos com nossa própria consciência. Não vos escondo o fato...de que algumas pessoas tiveram de regressar no meio. Outras, morreram mesmo à entrada da sala . Tarkovsky

A casa é uma porta por onde fogem e invadem possíveis. Ou melhor portas abertas, não apenas a porta de madeira maciça cuja maçaneta acompanha uma aldrava de camafeu. São portas esgarçadas pelos gesto independente do estágio denominados por preliminares, intermediários ou complementares. Afinal, é o conjunto de dobras que opera. Se a ordenação tática da narrativa se orienta de forma consecutiva não é dessa forma que acredito sua ocorrência. O relevante aqui se dá através das micro percepções enquanto localização temporal dado que todas convergem para o presente. Lembro não haver um lugar definido a chegar e não se espera desse conjunto de gestos nenhum vir a ser específico. O exercício ativo e principalmente a experiência do fazer, força motriz também da escritura desta tese, são os superlativos do projeto. A produção de escrita que o leitor tem em mãos e usufrui ao frequentar os cômodos da estação , acompanha o gesto auto reflexivo de formulação tese, conceitua e pensa a própria obra, não no sentido de aprisioná­la mas em sua plena expansão. O gesto da escritura se inventa e cria as narrativas, inclusive a poética da pesquisa e da redação do próprio texto. Afinal, a experiência de escrever também permite a espreita, tornando­se um meio deveras significativo para "fixar" questões essenciais do trabalho. Sabe­se que a palavra latina experientĭa é formada por três partículas: " ex " – fora –, " peri " – perímetro, limite – e " entia " – ação aprender ou conhecer. Pode­se entender experiência como conhecimento fora do perímetro ou traduzi­la como o ato de aprender ou conhecer além das fronteiras, dos limites. Assim experimentos


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deram lugar a gestos inauguradores de novas passagens processuais. Celebra­se com gestos a perda e comemora­se o mistério, o extravio e reevocação do lugar. Ao entrar por qualquer uma das portas dessa estação e se aproximar de algum dos cômodos, vale ter em mente: absolutamente tudo foi orquestrado a partir de gestos iniciais que, somados a outros, resultaram nas ambiências abertas e compartilháveis. A partir dessa abertura, f rutificam disparos de ideias, germinação de gestos, qualidades de contaminação. Orquestrados pelo desejo, sempre maquínico, os cômodos se figuram e reconfiguram na intercessão dos volumes de gestos e na presença de mergulhadores. Promovem sacolejos e lampejos. Volume esse que confere o stimmung de todo o conjunto da estação. No compto geral todos se beneficiam e podem experimentar as atmosferas criadas. Quero dizer, assim como pode­se perceber os stimmungen resultantes do volume dos gestos desenvolvidos em cada acomodação também deve­se pensar na sobreposição dos stimmungen desses cômodos, uns sobre os outros. A dobragem de cada um sobre os outros se transforma e comunica diretamente com os mergulhadores locais. A seguir apresento alguns dos comentários recebidos, após ter aberto as portas da estação para um número maior de visitantes, colaboradores, artistas e afetos. Foram dois eventos. Primeiras dobras marca encontro inaugural aberto ao público e acompanha o processo gerador e provocador de trocas e contribuições entre muitos parceiros, igualmente sujeitos à tempestades. A artista abre seu campo de estudo e solicita a presença de visitantes ativadores, na contínua experiência de intercâmbio. É um espaço onde todos que chegam tornam­se testemunhas, participantes e integrantes de sua metamorfose. Nessas Primeiras dobras, a artista Cristiane de Souza apresenta a performance Vestido branco e Miriam Pech a obra Sinfonia de gelo . O segundo evento chamou­se Dobras de dobras e marca o encontro com a participação dos artistas Tiago Cadete com a performance Phantazeon , Katia Cilene guia reponsável pela Visita aguilhoada , o coletivo OCCO – ornamentação corporal contemporânea do qual participam as artistas Beth Franco, Catarina Resende, Lucas Santos e Lucas Demps – incumbido de ornamentar os


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participantes, além da dupla das artistas performers Gabriela Cordovez e Nicole Gomes que apresentam Beira. Para encerrar o ciclo de gestus complementares, ainda se organiza Redrobas. O terceiro evento da série que culmina essa ação de efeito origami em que as dobras podem voltar a se encontrar com as primeiras dobras , que são afinal dobras de dobras ou suas próprias redobras . Seguem desdobramentos de algumas vozes de frequentadores dos eventos da estação . primeiras dobras Jacqueline Melo : A primeira vez que estive na Água Santa com a Bia Petrus e vi o que você estava construindo, não entendi muito bem, percorria a casa e seus cômodos e só observei, achei uma maluquice, fiquei confusa, Bia tentou me explicar várias vezes, e eu não tinha ideia da força criativa e da poesia que sua proposta traria depois para mim. Só me dei conta após participar da primeira dobra e me deparar com um trabalho peculiar e especial, porque ele evoca uma presença da ausência que dialoga com um espaço que é cheio de memórias e histórias de tempos outros, de objetos de outra época e de pessoas de várias décadas. Para mim, sua obra gerou um espaço de (COM)VIVÊNCIA e diálogo, ressignificando com sutileza e poesia, momentos entre pessoas e obra, gerando um circulo de afetos em que a obra está em toda parte e ao mesmo tempo que se camufla no território da casa e do quintal. Fico extremamente feliz e grata de ter podido estar e conviver entre e com a sua obra, nos dois dias de eventos e de perceber sua sensibilidade, atenção e cuidado com cada um dos espaços, tanto de dentro, quanto de fora. Acredito que seu trabalho está a frente desse momento artístico brasileiro e acredito que tem uma força e um potencial descomunal, porque seu trabalho para mim está ligado ao experimentar sem regras, num circulo dos afetos.


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Imagem 37 Evento Primeiras Dobras, 2017 Participação de Cristiane de Souza com a performance Vestido branco

Alice de Palma : “Gente, que lindo que foi! Estou até agora sem achar palavras para descrever essa experiência. A única que me aparece agora é mágica. Que trabalho (em todas as acepções) preciso e precioso da Bete com as intervenções dela se imiscuindo pela casa, ouvindo suas rachaduras e ruínas a tal ponto de não sabermos mais o que é casa e o que é trabalho. A casa é o trabalho. E que lindo ver duas performers habitando este espaço tão peculiar de maneiras tão distintas, porém similares na força e na delicadeza. Por mais dias imersos em Água Santa!” Alice Ana : “Essa também foi a sensação que ficou comigo. De que estávamos em um lugar encantado, portal mágico, outra realidade.” Sonia Nunes : No início era a casa. Então, o tempo abraçou a memória e fez­se a obra. Salas não são mais salas, quartos que não são mais de dormir, armários que, mais do que louças e roupas, guardam pressentidas emoções… Há livros. Muitos livros que, agora, não valem pelo escrito por que se tornaram a história na mais pura acepção da palavra. Estranha essa sensação de ver as coisas se ressignificando, ainda que continuem… coisas. Aquela casa não mais protege, muito antes escancara as vidas que por ali passaram e se encontram pelas ruínas descobertas. Giovania Costa : Da zona sul para zona norte, desterritorialização primeira. Cruzo um espaço, atravesso um tempo, entro em uma memória que inventa. Casarão não mais abandonado. Mexido, mantido. Não escorre água, escorre tecido. Longo tecido branco que envolve amigos, mãe, convida a experimentar. Sentidos alertas! De qualquer lugar pode aparecer pistas do território ali construído. Numa sala


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escura, deixo o olho se acostumar, respiro para não apressar a pulsação, descubro dentro do armário o “ fora” invertido. Nesse instante penso que a violência do lado de fora ali dentro vira beleza. Azul; rosa; cacos; livros; copos; borboletas; jardim; gelo; barulho; gentes. Corpos­vivos com que buscam e bocas que sorriem. Depois os assombros compartilhados em volta da mesa: frutas, calor e o sentimento de participação, como se as gentes ali também fossem obra. A casa não é mais casa. É abertura. O CASARÃO nasceu. O entorno pulsa: a mata, o sanatório, a penitenciária, a tal fábrica­origem­água. Tento captar o vivido, mas “ quase” que não cabe nas palavras. Fico por aqui rodando na ponta da engenhoca do quarto­rosa ou tentando entrar na casa­que­não­é –mais­ casa como a luz entra pelo galão de vidro. Muito me escapa: vou então de novo para o quarto escuro para aquietar. Coisas demais para pensar excitam. Sede! Água, por favor. Na fábrica­ casarão bebi algo direto da fonte. Pablo Gonzalez: É impressionante que as atmosferas do casarão existam nos intervalos entre entrar e sair, como a entrada e a saída do dia, da noite, da presença, da coexistência, da memória. Se é aí e este o único mecanismo a ser realmente afirmado, motivo pelo qual eu compreendo a tremulação do lugar oficial da tese, é porque estamos lidando com a coisa mais sutil e bonita da vida. Como a madeleine de Proust, tudo o que comparece como um raio – que podem ser pequenos raiozinhos, ou superfícies imantadas –, quando entro, vejo, escuto. Aquele puxador, aquele nó, aquele bicho, aquelas letras, aquelas tábuas. Como diria Tarkovski, a nobreza mole da vida. Como diria Nietzsche, o eterno retorno. E se é este o único mecanismo a ser afirmado – motivo em que se compreende o tremular –, não há necessidade de preocupação com nenhum familialismo. E, neste sentido, nem com a “arte”. Fátima Pedro: Como falar dessa casa, dessa água, que através, nossas infâncias se cruzam. Em tempos diferentes, em tempos de água. Como falar disso? Eu lembro das cores dos vidros das garrafas, dos engradados de madeira, da geladeira também de madeira na cozinha, do trabalho dos vasos em que participo e que também está na cozinha junto à geladeira também de madeira. Que casa é essa que me traz um poema, mas não consigo escrever?

dobras de dobras Bárbara Copque : .eu que agradeço! seu trabalho é, além de tudo, extremamente generoso. Vivi o seu viver com muitos sentimentos. Muitos com muita alegria; alegria do contentamento, da vontade de viver. Aquele viver do guimarães rosa, das pequenas coisas, das ideias, dos descobrimentos...ficaria aqui por horas falando do dia de hoje; dia que vivi algo que busco: a contemplação… Katia Sassen : Oi Bete, Ainda impactada com seu trabalho. Vc sabe que não tenho intimidade com a arte contemporânea, a primeira vez foi viajando com vcs. Parecia que estava em Kassel ou na bienal...que capricho...que cuidado... que sensibilidade... As performances...sua equipe... o alimento... Água!!!!!! Queria ouvir vc falando mais do projeto...os significados... Mas entendo que essa sou eu


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procurando racionalizar tudo... Estou reverberando a viagem novamente. Muito feliz em ter ido. Obrigada pelo convite!!!

Imagem 38 Evento Dobras de Dobras, 2017 Participação de Gabriela Cordovez e Nicole Gomes apresentando Beira

Mônica Cruz: Uma visita a Água Santa. Uma fábrica, fonte de água, que

coexiste com a fonte de criação da artista Bete Esteves, que se lança a novos ares, novos mares, novas ondas criativas. Lugar onde pude me conectar com as minhas impressões sensíveis diante só processo criativo que ela vem expondo na sua trajetória de estudo do Doutorado. Um Casarão Antigo de dimensões temporais, a arte dá vida a memórias, durações e intuição, que ao se atualizarem ganham extensão e se tornam imagens, criações artística. Lena Peres : Um grupo, um passeio guiado pelo terreno, conhecer a história de Água Santa. Um convite bem vindo, naquela tarde de céu claro, clima ameno e que ventava muito no Rio de Janeiro. Já na saída, a nossa guia uma carioca afrodescendente, nos prendeu a atenção com uma cantoria afro que esquentou o clima para o início da história. O porquê do nome Água Santa. O escravo do quilombo achou a fonte. A água levada nas costas. A água que curava doenças. A água tão pura. os gritos de, “­ lá vem a água santa!”, “­ lá vem a água santa!!”, e ele passava carregado com vasilhames cheios de água da fonte para vender no bairro. Em seguida, o comércio da água é capturado e trocada de mãos. Os cariocas/portugueses souberam da fama, da existência dela, ficaram donos da


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água. Seguimos subindo, no meio das árvores, com pequenas construções por todos os cantos. A curiosidade. O grupo fez perguntas. Pessoas interromperem nossa guia curiosos por datas, evidências, sobre o destino dos negros, donos primários da água. Neste instante, estávamos chegando a um local que havia uma fumaça, folhas queimando? Em um dia de vento e tempo seco me preocupei. Seria um foco de incêndio. Falei com algumas pessoas. Antes de tomar alguma providência, aproximei­me para escutar a resposta da guia. Ela falou: ­ Bom gente, não sei de datas não… quando a Bete me convidou para ser guia ela disse que eu poderia também inventar, criar um pouco. Não revelou o que era verdade. O que não era. E voltou a andar… O impacto dessa informação transformou todo resto do caminho. Algo ficou em várias camadas. A história real possível, a história criada pela “Guia”, a história que eu entendi, a que o grupo fez, a de cada um, a que a Bete pensou em criar… a que passei a acreditar desconfiando. Sabe o risco de fogo? Existia? Não existia. Seria gêlo seco? Seria um fogo controlado em algum recipiente? Diante de mim, havia um lago ou uma piscina de água mineral que a família se divertia no final de semana? A trilha era um desejo do dono ou um presente para sua família. As camadas, a metalinguagem, o vento, o barulho dele nas folhas, os objetos dispostos por lá, o girassol seco, os matinhos empertigados pelo cuidado da jardinagem, seriam de lá? A família. A mãe e sua memória líquida, as irmãs seriam intervenções da Bete? Um sentimento lisérgico, onírico, perturbador… Como se eu tivesse entrando no pensamento ou sonho de alguém… A casa desfigurada e linda, entre a linha amarela e o presídio. O presídio com uma fila de mulheres negras aguardando para visitar algum dos seus por lá. Aguardando ao redor. Seriam parentes do negro que achou a Água Santa? Sai de lá inebriada pelas camadas de inconstância. Miriam Chaves : Chegamos atrasadas, as pessoas estavam em pé no jardim em frente ao Casarão. Gostei muito do ambiente, uma plateia super diversa em idade, cores, muitas pessoas estavam enfeitadas com galhos e plantas. Depois entendi que eram o resultado da oficina de biojoias. O casarão estava lindo! Parecia em pleno uso, já tinha ido lá outras vezes e a imagem era especial. A performance começou, duas mulheres se equilibrando mantendo um aquário que passava pelas mãos de uma e outra. Uma tensão permanente entre os dois corpos que pareciam se apoiar e ao mesmo tempo se empurrar enquanto desciam a escada. Uma cena inusitada, insinuando a iminência da queda e elas se apoiando na balaustrada, com balaústres de porcelana, alguns sobrando apenas as ferragens internas. Bem forte a imagem, complementada pela atenção/tensão da plateia. O nome da performance era Beira, ou Na Beira. Muito apropriado. Fizemos uma visita guiada pelo terreno. A atriz que nos conduzia recitou uma linda poesia falando do Morro dos Pretos forros, onde está a Água Mineral e o casarão. Percorremos os caminhos do terreno, o lago seco, a primeira fonte da Água Santa que deu nome ao bairro, uma estátua coberta. Muitas surpresas interessantes nesse caminho ao redor do Casarão. Entrando no Casarão vi um filme projetado continuamente na sala, pensei num portal entre aqueles dois tempos, conectando nosso caminho guiado pela contadora de histórias e o cortejo gravado a 50 anos, de músicos seguidos por


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pessoas de todas as idades dançando, talvez no carnaval, talvez numa festa de algum santo. Todos vivos naquele dia. Entrada perfeita. Me senti convidada, em todos os tempos, a visitar o casarão. Livros sempre me despertam curiosidade. Na segunda sala uma enciclopédia chamada Eu Sei Tudo da década de 30! Os livros foram presença marcante em vários momentos da exposição, sempre de forma instigante. Nos cantos iluminados do corredor, na sala dos livros, no andar de cima, eles formam as paredes de uma espécie de cercadinho de livros. Poderia ficar uma semana lendo os títulos, folheando os que ainda podem ser abertos. Os livros estão em estantes de ferro servindo de substrato para as plantas, talvez uma metáfora da trajetória daquele objeto. Um misto de admiração e incômodo, ao imaginar o destino daquela biblioteca, as tantas ideias, os tantos leitores e dos muitos mais que nunca abriram um livro. Incômodo pelos livros que nunca foram abertos, nunca foram lidos e agora formam muros ou viraram substrato. Em cada cômodo, muitas instalações interessantíssimas, um terrário na cozinha, anêmonas luminosas no fogão. Objetos ressignificados, cenários inesperados. No banheiro, o negativo do passado que observa no lugar do espelho. Adorei a sala rosa, uma borla/pingente de cortina, bailarina rodando no centro da sala. Uma porta de armário, agora vitrine de pingentes. Uma gaveta, agora mostrador de uma dezena de nós, cuidadosamente feitos com restos de linha. Tudo muito delicado e carinhoso. Por fim, na sala branca e azul das aquarelas redesenhadas pelas bolas de hidrogel me senti em paz.

redobras Bia Petrus : Se você chegar por aqui vai perceber que existe um jogo. De trás pra frente. De cima para baixo. Do sótão ao porão. Tudo em via de mão de dupla. A linha amarela não silencia. Dia e noite. Noite e dia. De trás pra frente. Dos quartos até a cozinha. Nos trilhos do corredor sem parar no caminho. Por um intervalo de tempo posso fingir que não passei na sala. Nesse dia, me recordo, havia água saindo da cozinha para a sala. Se ninguém deixou uma torneira aberta significava que as águas tinham simplesmente decidido se expandir.


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3.4 Água em dobras A vida procede da górgona, da medusa, da água viva Raul Antelo

Dobras são ondulações tanto convexas quanto côncavas existentes em corpos originalmente planos, podendo ocorrer em rochas sedimentares, ígneas ou metamórficas. Em geral, é uma manifestação de deformação dúctil das rochas. Formam­se sob condições variadas de stress, pressão hidrostática e temperatura. Uma das feições estruturais mais evidentes ‒ desde a escala microscópica até a quilométrica ‒ em regiões submetidas a tensões compressivas é a dobra, ou seja uma superfície qualquer de referência curvada em relação à linha do horizonte. O fechamento de uma dobra se dá em sua curvatura máxima. Como mostra a geologia e como se viu no capítulo II, entre as dobras não há nenhuma hierarquia. Além disso, não podem ser reconhecidas pelo estrutural, essencial ou necessário e menos ainda pelo ornamental ou contingente. Cada dobra cumpre a tarefa de alargar o que está distante, como no processo do desdobrar do origami, o próximo tornado distante. O espaço de Leibniz entendido pela topologia em que o espaço­tempo é visto dobrado, enrugado e de modo multi­dimensional. O espaço­tempo característico da cadência maquínica produzida no centenário casarão familiar defino como casa em dobras. Nele, conjugo a produção em um espaço autorreferencial a um conjunto de ações provenientes de muitas parceiras e aventuras. Ando por vias não tão entrecortada e certamente ainda recorro a muitos ajustes em minha própria aparelhagem. Sempre haverá falhas, saculejos, sempre uma peça que poderá ocupar um, dois ou três lugares de forma produtiva. Sempre haverá conjunções e disjunções possíveis que frustram qualquer ideia de confinamento de conceito. A complexidade que se escreve com “e”, maquínica não se reduz nem dispensa nada. Sempre o escorregadio, sempre a pista de patinação percorrida por muitas diagonais, curvas, setas de direções e sentidos diversos. Por meio dela, das obras climas maquínicas, crio outros stimmungen para o velho casarão abandonado. Desse modo, volto a afirmar de forma veemente ser possível não só acessar como produzir trabalhos artísticos pela emanação de


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atmosferas através de obras clima . Trata­se, nesse sentido do entendimento da atmosfera enquanto discurso político. Precisamente, ligada aos objetos, aos ambientes dos quais elas procedem ou aos sujeitos que as experimentam. Conforme sugere Bohme, a atmosfera é uma forma de preencher os espaços com uma certa tonalidade de sensação, tal como uma névoa. Nesse processo, a atmosfera é uma linha de fuga aos sites explorados por museus, galerias de artes e demais instituições expositivas regidas pelos apelos mercadológicos e de marketing . Por meio dela, atmosfera, ou melhor stimmung , valorizo pequenos museus e espaços alternativos. O que importa ao meu fazer artístico, em última instância, é pensar nos pequenos gestos enquanto atitudes ou posturas do corpo advindas do sonho, da embriaguez, dos esforços, das possibilidades de resistências, das tristezas, alegrias e paixões de maneira a ressignificar momentos da vida. O corpo mergulhado em cadências atmosféricas é afetado e se deixa afetar. Para Boehme, a atmosfera se refere aos parâmetros norteadores de sua teoria geral da percepção. Liberada dos aspectos que a reduzem ao processamento da informação, ao fornecimento de dados ou ao (re)conhecimento de uma situação, a percepção inclui o impacto afetivo do observado, a "realidade das imagens", a corporeidade. Objeto primeiro e imediato da percepção, a atmosfera é, postula o autor, evidentemente aquilo que se experimenta pela presença corporal através da relação que se estabelece com pessoas, coisas e espaços. Nesse contexto, a obra de arte pela via atmosférica não só se traduz como uma resposta à progressiva estetização da realidade, mas também enquanto uma crítica aguçada ao intelectualismo norteador da recepção do trabalho artístico confinado às elites educadas, que tendem separá­lo da ação. Portanto, perceber o trabalho artístico em termos das cadências aponta para o caráter democratizante da obra de arte, além de escancarar o fato de que a estética pode representar um poder social real. Sugere a existência de necessidades estéticas bem como a sua capacidade suprir tais necessidades. Em outras palavras, deixar pistas de que o prazer estético é passível de ser manipulado. À estética da obra de arte, pode­se agora acrescentar,


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com direitos iguais, a estética da vida cotidiana, a estética das mercadorias e a estética política, diz Bohme. Sendo assim, as obras climas em pequenos espaços ou alhures tem a tarefa de tornar essa ampla gama da realidade estética transparente e explicitada. Sendo assim, o intérieur do casarão de Água Santa, neste momento, configura espécie de refúgio. Abrigo da arte, uma querência como diz o gaúcho, uma estância. Uma forma de revelar algo ao entorno ao mesmo tempo uma incubadora de desenvolvimento de projetos, uma área de resistência e de criação constante. Quanto tempo ainda resistirá até que se criem novas alternativas para fazer deslocar as placas tectônicas da cultura e os materiais metamórficos da economia? Como e quanto resistirão às paredes as atmosferas funestas que se encaminham em direção ao fazer artístico? Como me manter sujeita a tempestades do por vir e quanto ainda resistirá a lenda de Domingo Camões nesse bosque de empreitadas? Quantas tentativas hão de forçar as portas, quebrar cadeados e fechaduras? Que cadência atmosférica, ou melhor, que stimmung produzir quando helicópteros pairam sobre nossas cabeças a procura de algum corpo, ou bestas encetam suas lanças contra nossa comunidade? Pode ser que exista a possibilidade de que a energia empregada por mim e meus imprescindíveis colaboradores, ainda reverbere por algum tempo nesse espaço e possa circular se traduzindo em algo com mais longevidade e com um compromisso mais robusto com a população da empresa de água mineral e do entorno do casarão. Essa empreitada pode representar alavanca para fazer desdobrar a preocupação com a arquitetura local para a manutenção da narrativa de bairros históricos da Zona Norte do Rio de Janeiro e conseguir aos pouco um poder de infiltração nas comunidades adjacentes. Nesse sentido, a reativação do casarão pela via da arte pode ser uma maneira de instigar as pessoas a reinvestirem no seu próprio espaço, o de casa por exemplo, fazendo com que outras instalações adjacentes comecem a surgir. Pode ser que cada vez mais pessoas, por terem se contaminado com a arte, façam uma exigência poética de suas vivências. Por enquanto, desenho as flores que posso, as de miolo de pão. Por agora recebo do passado aquilo que se faz presente. Confesso minha dívida geracional


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através de meus gestos. Encaro de frente os assombros do fantasma azul com missão de tê­los ressignificados. Reapropria­mo dos entornos da Serra dos Pretos Forros, compartilhando com os novos frequentadores da estação de escuta e espreita aquilo que recebo de emanações dos habitantes das florestas e dos tesouros encontrados e adicionados ao casarão: seus materiais, seus objetos, seus restos, sua linhas de errância, meus devaneios enquanto me encharco com minha genealogia. No item XIII do texto "A técnica do escritor em treze teses" da Rua de mão única, Benjamin escreve: "a obra é a máscara mortuária da concepção" . Em Benjamin, a própria noção de Obra, pela sua diversidade, complexidade e movimento contínuo, é refractária ao sentido mais corrente de obra como coisa acabada: para ele, “toda a obra acabada é apenas a máscara mortuária da sua intenção388". Convicta de que estação de escuta e espreita reserva dentro e fora de si processo sem término e bastante peculiar ajustado ao movimento de produção de uma artista que entra e sai do texto para a obra de forma labiríntica, tensiona a interação de forças intuitivas e criativas que demandam imersão e entrega com forças cognitivas e racionais que demandam afastamento e compreensão. Com pausas e respiros inerentes à vida que interage com muitos stimmungen vibrátil, uma cadência genuinamente maquínica. Em sua conformação moebiana, se configura como uma topofilia composta de dobras, leques, aguilhões, esforços, busca de rastros, trilhas, em busca de novos caminhos, de aprimoramento, de desinvestidas, de desaprendizados, de criação de muitos poemas sempre por vir nunca acabados em si.

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BARRENTO, 2013, p.116.


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