para ler no metr么
Árvore de natal de 54 metros, 180 toneladas, 660 mil microluzes e custo estimado em 2 dos 4 milhões gastos na decoração de natal da cidade. Sua construção foi tida como presente à comemoração antecipada dos 400 anos de São Luís. Ao lado de camelos elétricos e dezenas de ovelhas em 2D, a árvore completa a curiosa ornamentação natalina da Praça Maria Aragão no centro da cidade.
BEZOURO #2
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Bezouro emplaca desta vez o número dois, que segue na mesma linha de abordagem da cultura na perspectiva de analisar de forma ampla diversos aspectos da contemporaneidade. Neste número destacamos matérias que vão desde a entrevista com o cineasta Sílvio Tendler, um raio X sobre os coletivos que proliferam Brasil a fora, A lambida de Igor Nascimento e uma noite nas boates LGBT. A novidade, desta vez, não é somente o conteúdo, mas o espaço que a revista abre para a publicidade e para a divulgação de causas e projetos que consideramos de interesse público. Já contabilizamos mais de dois mil acessos com os números anteriores e esperamos continuar tendo sucesso abrindo novas fronteiras no panorama editorial maranhense.
Profa. Dra. Vera Lúcia Rolim Salles
Coordenadora do projeto de extensão da revista Bezouro
revistabezouro.blogspot.com
REVISTA BEZOURO # 2 novembro de 2011 http://revistabezouro.blogspot.com UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO www.ufma.br REITOR Natalino Salgado Filho VICE-REITOR Antônio José Silva Oliveira CHEFE DO DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO Francisco Gonçalves COORDENADOR DO CURSO Esnel Fagundes COORDENAÇÃO EDITORIAL Profa. Vera Lúcia Rolim Salles COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Pablo Habibe Figueiredo EDITOR CHEFE Pablo Habibe Figueiredo CONSELHO EDITORIAL Profa. Vera Lúcia Rolim Salles Pablo Habibe Figueiredo Fábio Barbosa Pereira Caroline Rêgo MATÉRIAS Raíssa Oliveira Maycon Rangel Fábio Pereira Paulo Henrique Morais Vera Salles José Lôredo Filho COLABORADORES Igor Nascimento - matéria: A Lambida Rodolfo Brito - fotografias da página 5 e 6 REVISÃO Profa. Vera Lúcia Rolim Salles Anissa Ayala Rocha da Silva Cavalcante Pablo Habibe Figueiredo Fábio Barbosa Pereira DESIGN GRÁFICO Caroline Rêgo FOTOGRAFIAS Caroline Rêgo
Capa: Soraya Montenegro trabalha como drag caricata na Sauna e Boate Prensa, fotografada por Caroline Rêgo enquanto se preparava para um show.
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Música eletrônica. Reflexos do jogo de luzes pintando a atmosfera. Jovens à procura de seus pares. Este é o cenário que ilustra a noite LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) nas baladas de São Luís: um segmento que vem crescendo significativamente na capital maranhense e fatura com o desejo da juventude de desfrutar do que pode oferecer o domínio da madrugada, mais distante dos preconceitos e rótulos que rondam à luz do dia. A noite parece oferecer um principal atrativo: a maleabilidade das regras. Beijos em público, carícias íntimas, atitudes que desafiariam os mais puritanos, aqui não são confundidas com promiscuidade ou com extrapolação. “A noite representa um momento de alegria, de libertação, de se divertir sempre, de ficar juntas... nós somos alegres durante a noite.”, declara Paola Fashion, uma famosa drag queen da noite ludovicense.
Boates LGBT Casa lotada. Paquera rolando no padrão laissez passez. Na parede, um enorme quadro que ostenta a paixão entre dois homens. No balcão, drinks elaborados e garçons com trajes “convidativos” e um sorriso perene no rosto. Gáudio Lima Trajano, proprietário da Boate Metal SLZ, afirma que em meados da década de 90, havia somente duas boates voltadas para as minorias sexuais: a Pedrita, no São Cristovão, que funciona até hoje e é a boate mais antiga desse ramo em São Luís, e a extinta Lavanderia, que funcionava na Cohab. “Naquela época, faltava atenção ao público gay. Hoje, as boates LGBT passam por um momento de releitura, devido à globalização. Houve um grande crescimento no número de boates e quem não inova, perde espaço. O público LGBT é muito exigente e se você não se adéqua, está fora do mercado.” As mudanças mencionadas por Gáudio se refletem também na música tocada nessas baladas. Se antes o que reinava era a música eletrônica e suas vertentes, sempre associadas aos gays, hoje já existem novos gêneros musicais que agitam a noite, como por exemplo, o funk e seu forte apelo sexual. Além disso, nas casas noturnas, o setlist abrange desde house até trash music, como Gretchen e derivados, que vão conduzindo o público madrugada adentro.
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Ricardo Mendes, 25 anos, advogado, é bissexual e assíduo freqüentador das boates gays. Ele manifesta sua preferência em relação a esses ambientes: “As boates gays são mais tranqüilas. Também freqüento ambientes héteros, mas prefiro as casas LGBTs pelas músicas, que são mais atuais e pelo público, que é mais divertido. Sinto-me à vontade e não sofro preconceitos, pois sou muito bem resolvido quanto à minha condição sexual. Antes, havia mais preconceito; hoje, os preconceituosos não têm vez.” Essa opinião é compartilhada por Adam, estudante de Artes e Pedagogia, de 20 anos, que é homossexual: “A boate gay tem um ambiente mais agradável e alegre. Me sinto melhor por haver menos preconceito. Hoje, os gays têm um pouco mais de aceitação; estão ‘saindo do armário’, têm mais vez e voz.”
Atualmente, a boate LGBT já não representa mais um ambiente marginalizado e tornou-se, sobretudo, um espaço de encontro. Lívia Carla, 31 anos, secretária, é heterossexual e diz preferir estas casas . “Na boate GLS, você se identifica com as pessoas e é muito bem recebido. As pessoas te tratam de modo igual, você é aceito como você é.” Já Adriano Barra, estudante de Jornalismo de 20 anos, também heterossexual, estava indo pela primeira vez a uma balada gay e disse não sentir vergonha alguma de freqüentar aquele espaço: “Sou desprovido de preconceitos. Estou aqui para conhecer e até agora não fui cantado por nenhum homem, mas se acontecer, saberei lidar com a situação. Ser gay não é nenhum defeito.” Ambos admitem que héteros frequentadores da noite LGBT sofrem preconceitos, mas não se importam com isso. Apesar do enorme sucesso, muitas empresas ainda têm receio de associar seu nome às boates gays. Por isso, o patrocínio é sempre tão escasso, apesar de o público LGBT possuir elevado poder aquisitivo e constituir uma grande parcela dos consumidores. Esse quadro só é diferente durante a realização das paradas pelo orgulho da diversidade sexual, momento em que a mídia dá maior destaque a esse segmento.
Centro Histórico A escadaria da Praça Nauro Machado reúne diariamente uma grande parcela de jovens, dentre os quais grande parte é formada por gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros que ali podem se reunir sem o constante receio de repreensões. A maioria deles é composta por adolescentes que ainda não podem freqüentar boates. No entanto, a proximidade geográfica da praça com as boates gays é um elemento que reúne universos semelhantes separados pela idade. “Não posso ir a boates porque ainda tenho 17 anos. Desta forma, freqüento o Reviver, que é um lugar que agrega as pessoas, onde todo mundo se sente bem, onde gays e héteros podem se misturar. O Reviver é o lugar da tolerância” diz Fernanda Furtado, estudante e bissexual. A sua namorada, Diane Barreto, mesma idade e lésbica assumida reforça essa opinião: “Vivemos num país preconceituoso e o Reviver representa uma exceção, o lugar em que me sinto bem, por poder expressar minha sexualidade com meus iguais.” Mas por que a Praia Grande ganhou esse status de espaço da diversidade? O empresário Gáudio Lima Trajano acredita que “o Reviver é um lugar mágico, desconhecido por muitas pessoas. No entanto, os estudantes, principalmente universitários, descobriram essa magia. Não acredito que só a proximidade com o terminal de integração é que traga os estudantes para cá. Na verdade, não há um motivo em especial para o Reviver ter adquirido esse status. Simplesmente as principais boates foram se firmando umas próximas às outras e o público veio junto.”
Mulheres por uma noite Adereços e maquiagens ajudam a criar o mundo do arco-íris na noite. As drag queens e suas apresentações contribuem para tornar o universo LGBT ainda mais colorido. Ser mulher por algumas horas é uma diversão. Dionísio Mendonça, vencedor do concurso Miss Primavera 2011, é conhecido na noite como Valeska Fontenele: “Gosto de me montar para me divertir. Não sou travesti, mas adoro a transformação. Me sinto bem como mulher”. O cabeleireiro Tiago Mendes, ou Safira Dominick opina: “Mudou muita coisa na sociedade, os gays estão se soltando cada vez mais. Minha primeira montagem foi com a ajuda da Paola Fashion; desde então, eu me transformei e hoje conto, inclusive, com a ajuda da minha mãe na hora de comprar as fantasias”. Um drag show não se resume à diversão; para alguns, é fonte de trabalho. O auxiliar fiscal Luís Carlos (a já citada Paola Fashion) considera sua profissão noturna uma atividade rentável e já integrada no circuito cultural , sendo presente, inclusive, nas agendas de eventos da TV. São Luís, aliás, uma cidade tão arraigadamente provinciana de tantas maneiras, merece o crédito de abrigar em seu coração turístico, um espaço livre para que casais homossexuais namorem normalmente, como nas escadarias da Praça Nauro Machado, fazendo das boates uma opção de lazer e não um esconderijo. Paola Fashion relembra um sucesso dos Mamonas Assassinas e arremata: “Abra sua mente, gay também é gente!”.
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coletivos A dor e a delĂcia de se fazer arte em tempos de associativismo, internet... FĂĄbio Pereira e Paulo Henrique Moraes
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MUNDO COLORIDO O contra-ataque indie! crise da indústria fonográfica Quando, no final da década de 90, entrou em funcionamento a primeira rede de compartilhamento de música na internet, o Napster, não se tinha ideia de que esse seria o pontapé inicial da revolução que mudou a indústria fonográfica para sempre. A partir de então, mudou a forma do público se relacionar com o produto musical, o modo de consumi-lo e ouvi-lo, a forma das grandes gravadoras encararem o negócio e, sobretudo, a forma dos artistas produzirem música. Passados 10 anos; público, majors e artistas; ninguém sabe muito bem o caminho que terá de trilhar para redefinir o modo pelo qual se fará da música, novamente, um grande negócio para todos. O que é certo é que esse “novo” caminho está atrelado às novas formas de apreciação, produção e consumo e, de certa forma, as define. Nesse sentido, algumas tentativas têm sido esboçadas: as majors, por exemplo, com relativo sucesso, tem encontrado maneiras de incorporar-se ao mundo digital e, a partir dele, manter o interesse do público no consumo dos produtos relacionados à música que lhes são oferecidos; o público, por sua vez, “acostumou-se” a ouvir o formato mp3, e uma nova geração de ouvintes e consumidores, versados em tecnologia e informação virtual, têm crescido sob a égide deste formato. Ao que parece, as maiores dificuldades estão sendo enfrentadas pelos músicos, que se encontram perdidos entre a maior liberdade e independência na criação, produção e eventual comercialização das suas obras e a perda do referencial maior que comandava as relações de mercado da indústria fonográfica: a venda de discos possibilitada pelos processos de investimentos das grandes gravadoras. O termo independente ganha novo significado...
fora do eixo como tentativa de encarar a crise O circuito Fora do Eixo (FDE) é uma dessas tentativas que buscam apresentar novas maneiras de se relacionar com música no Brasil, como obra artístico-cultural e, sobretudo, como produto de uma indústria específica. Em termos gerais, o FDE é uma rede de trabalhos concebida em 2005 por produtores culturais e artistas integrados de várias partes do país, e que visa estimular, fundamentalmente, a circulação de bandas e o intercâmbio de tecnologia de produção e informação; hoje ele está em representado em 25 das 27 unidades federativas do Brasil. A idéia do Fora do Eixo teve seu crescimento facilitado no país todo pela possibilidade de troca rápida de informação na internet e pela maré de crescimento econômico e expansão de negócios culturais em regiões mais pobres do país, o que, por sua vez, sustenta o FDE como uma rede cooperativa de empreendimentos autônomos (em que se constroem pactos nacionais de divulgação, planilhas de resultados, sistemas de gestão e toda uma rede de princípios que “regem” os coletivos inseridos no Fora do Eixo). Todo o FDE está baseado no “valor” integração. Uma das ações do circuito é a realização do festival Grito Rock (tratado na edição nº 1 da Bezouro). Outra característica da rede do Circuito Fora do Eixo, que demonstra muito bem isso, é maneira pela qual ela se sustenta, através da atuação de coletivos.
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Uma das vantagens do modelo em discussão seria a de dar autonomia e responsabilidade aos artistas e produtores associados sobre a forma e o conteúdo do seu trabalho. Fazer show, vender camiseta, pedir patrocínio; enfim, correr atrás, faz parte do trabalho do artista-pedreiro. Assim se busca diminuir o custo para produzir um evento, fazer público e se manter em busca de um futuro mais confortável. Como o modelo de atuação dos coletivos é recente no mercado da música, a falta de recursos que possibilitem a sua existência configura-se com um dos principais problemas, por isso, muitos coletivos hoje tem funcionado a partir do apoio do poder público e/ou do empresariado. Nos últimos 5 anos, são esses coletivos que tem possibilitado a circulação de artistas e bandas pelo país (inclusive destacando outros centros de produção musical, como Goiás, Mato Grosso e Pará, onde antes reinava o triunvirato de São Paulo, Rio de Janeiro e, um pouco atrás, Pernambuco). Com a indústria fonográfica voando no modo econômico por causa da queda substancial na vendagem de discos, essa circulação tem possibilitado uma maneira alternativa de sobreviver por meio da música. A economia do mercado da música no Brasil, hoje, fundamenta-se, essencialmente, na realização de festivais e divulgação desses artistas. Uma vantagem dos coletivos é que o negócio é mutante. Busca se adequar às necessidades regionais e locais, assim como às características e necessidades dos integrantes, dos artistas vinculados e do público. A estratégia é entender as possibilidades que a realidade mais próxima oferece: bares, casa de show, produtoras, agências de publicidade, sites, blogs e todo tipo de ramificação que os “coletivados” puderem atingir (e nisso, a internet é a grande musa facilitadora)
Coletivos, o que sustenta a idéia do fora do eixo Coletivos são concebidos como grupos de produtores e artistas que se responsabilizam, através de ações como organização de shows, festivais e atividades artísticas, incluindo a circulação de produtos culturais, não apenas no fomento, mas também no estímulo à profissionalização de seus agentes culturais – bandas, artistas, produtores, etc – na tentativa de criar e desenvolver oportunidades e/ou serviços nesta área. Os coletivos têm proliferado em quase todas as capitais e em outras cidades do país e, hoje, se auxiliam na criação de outros coletivos municipais, estaduais, regionais e nacionais. Esses grupos organizados já são responsáveis por alguns dos principais festivais de música independente espalhados pelo Brasil (Festival Quebramar – Amapá; Festival Varadouro – Acre; Festival Calango – Mato Grosso, Festival Maionese – Alagoas, Festival Martelada – Brasilia; etc.)
Como nenhum mercado é impermeável, artistas como Macaco Bong, revelados por festivais organizados pelo FDE ou outras iniciativas, já circulam entre o “independente’ e gravadoras de maior porte, MTV e outros caminhos da “velha” indústria da música e, na mesma direção, só que em sentido contrário, as emissoras de TV, grandes canais de internet e jornais já não conseguem ignorar esse filão do qual pode sair algo com o potencial para ser o “novo Los Hermanos”.
MUNDO PRETO E BRANCO As palavras de Pablo Capilé, um dos cabeças do FDE, em entrevista ao site “roraimarocknroll”, resumem bem as pretensões do mercado independente: “O contra-ataque que a gente estabeleceu para a grande indústria foi um novo modelo de negócio que é extremamente mutante. É um modelo de negócio que não se engessa nas suas convicções. Está sempre aberto a se transmutar. É um processo que entende que para se manter inteligente, tem que se transmutar. Então a gente vai trabalhando pouco a pouco para entender para onde a coisa toda está indo e se transmutando para atender melhor a banda, atender melhor o público, o jornalista, até os próprios anseios”. A lógica de um coletivo parte da ideia de que a união entre aqueles que atuam numa determinada “praça” cultural é mais efetiva que a ação individual de apenas um artista, produtor ou banda. O Coletivo pode trabalhar de forma independente, através de recursos gerados pelos seus próprios serviços (produção de eventos, venda de produtos vinculados) ou ao custo de benefícios conseguidos através de patrocinadores e parceiro públicos ou privados.
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Das impurezas... A difícil arte de dividir as vacas magras.
A criação e gestão de um coletivo parece ser, ao mesmo tempo, um delicado processo de feitura e entendimento do que está acontecendo e dos recursos disponíveis, logo, o suicídio, geralmente financeiro, espreita. Um evento mal sucedido, por motivos que vão desde a chuva à falta de divulgação, pode levar à bancarrota. Um dos princípios básicos que sustentam os coletivos é o da economicidade, ou seja, a iniciativa deve ser capaz de se manter financeiramente e gerar lucro para a produção dos eventos, produtos e pagamentos dos profissionais envolvidos... Reside aí um ponto de discórdia. São feitas severas críticas, em geral por dissidentes, ao fato de que a maioria dos festivais é realizado por coletivos apoiados, senão patrocinados totalmente, por editais do Estado e por empresas grandes através de leis de incentivo. Os artistas e produtores deixaram de ser dependentes de grande gravadoras para serem dependentes das leis de incentivo.
Entidades como “Circuito Fora do Eixo” e a Abrafin (cabe ressalvar que nem todos os coletivos se vinculam a elas) são constantemente acusadas de serem praticamente órgãos de governo, onde pessoas administram eventos caros e sem público, levam vida de “nababos underground” às custas de bandas e produtores que trabalham de graça, ou quase (e sempre em troca de um “espaço”), e que ganham grana pública para montar grandes festivais particulares para bancar bandas “amigas”. Fora isso, cabe mencionar a relação íntima (íntima até demais, dizem!) dos jornalistas/blogueiros/ twitteiros com as atividades das entidades citadas, o que põe em dúvida se um texto sobre um festival, por exemplo, vem de um simples jornalista exercendo seu ofício ou de um “assessor de imprensa” interessadíssimo. Entretanto, essa discussão é bem especifica e diz respeito ao topo da cadeia do indie. Muitos quilômetros abaixo, num nível mais elementar: o da sobrevivência; iniciativas, sobretudo em pequenas cidades, os problemas são de outra ordem. Fala-se em precarização do trabalho artístico e deslocamento do protagonismo, antes pertencente aos artistas, para a figura dos produtores, tanto os musicais, quanto os de eventos. O argumento é simples e tem uma fundamentação econômica: a grande disponibilidade permitida pelo barateamento (filho dileto da virtualização) do processo de gravação, edição e exposição de um produto artístico faz com que a oferta do mesmo supere em muito a demanda do mercado, assim sendo, paga-se menos (ou nem se paga) ao artista (esperançoso por um lugar debaixo da biqueira do sucesso), enquanto produtores tem vasto “material humano” e podem ganhar no varejo trabalhando com alta rotatividade de clientes ou quem sabe “acertar” no atacado com algum produto/banda que se destaque. Outra crítica recorrente aos coletivos é a de que eles seriam uma resposta insuficiente ao sucateamento de mercado, sobretudo o musical. Bandas/ artistas e produtores de má qualidade e/ou inexperientes ficariam perdidos nos limites do amadorismo (falta de grana, de qualidade dos eventos, de divulgação, de qualidade dos produtos), na dependência das manobras políticas locais das secretarias de cultura e, no âmbito nacional, nos caminhos políticos (nem sempre honestos) dos circuitos de eventos.
Perdido no espaço: a nave Upaon-açu tenta restabelecer contato com a Terra. anprocur e l a , as nacion cional a a i n c n o ê t d vo circui ma ten Coleti u o n o o d o m n i a era própr iciar enReverb spaço huu in zir ev e z u A d r o a o r c l p o l s), do cav z e Ga lém de ão Lui n a S e t , e t é d l Ve imeira o Rock s ao bandas éia pr o Grit ociado d m s i i s x a A ó r a a de ultur Velga. es o p s de c m sido tre el o e n ç t e a d p o ( s p e h e ru tos y Beac utos e o do g a d ã w o ç a r p k p o c , o A criar o Pará mo o R tivo. o o e c m l o o s c C e o menor imos, ue as selo d entos s próx o em q v o t e d i a u r t c i s r com e produz ini-ci ular. ontato r um m c a m r r a o m circ v f a s e s tra d o p o ados intuit os est com o s o b m de a bandas
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Em se tratando da ação dos coletivos, São Luís é ainda território pouco explorado e quem se propuser a tal investida deverá estar munido de facão e lanterna. Apesar de já ter ocorrido um Grito Rock em São Luís, a atuação de coletivos ainda é tímida (ver box) e restrita ao nicho da música (preponderantemente o Rock). Repetindo o fenômeno nacional, o caminho dos coletivos parece ser natural para o indie e para o que não cabe no discurso da “cidade patrimônio”. O sistema de coletivos passa então a tentar competir por espaço com o “sistema” da “boêmia sistêmica” do “cultural” (baseado na relação de apadrinhamento do artista popular por parte do político ou empresário via direta ou por meio das políticas de cultura). Isso, caso não ocorra a sempre perigosa deglutição do primeiro pelo segundo.
A medida inicial tem sido procurar ocupar espaços em casas de espetáculo que já tenham um público próprio e que tornem uma “noite” ou festival menos arriscados para os bolsos envolvidos. O “novo” jogo de se fazer arte depende de um delicado entendimento entre empresários, casas de eventos e de outros pólos do processo. Esse jogo da cultura organizada em torno dos coletivos ainda está no meio e apostar qualquer ficha agora é pôr o bolso e a vida artística em risco... Estado, iniciativa privada e artistas envolvidos ainda olham uns para os outros com o olhar trêmulo de quem teme um blefe ou está, de fato, blefando.
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tvvilaembratel.webs.com
Uma forma dos jovens se expressarem por meio da linguagem audiovisual e artística, tendo como conteúdo os valores da cultura de paz é aproposta do projeto Comunicapaz que trabalha com jovens da faixa deetária de 14 a 24 anos, moradores do bairro Vila Embratel, localizadona periferia de São Luís. Seja um apoiador do Comunicapaz. Fale conosco pelos emails: vsalles@terra.com.br meryufma@hotmail.com
comunicapaz.blogspot.com
Vera Salles
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igura das mais respeitáveis entre os documentáristas nacionais, Sílvio Tendler, é detentor das três maiores bilheterias do gênero na história do cinema brasileiro, com “O Mundo Mágico dos Trapalhões”, “Jango” e “Anos JK”. Sua obra, de caráter humanístico e histórico, trata com frequência de temas relativos aos fatos e figuras determinantes para o entendimento do Brasil, da América Latina e do mundo em desenvolvimento. Seus trabalhos mais importantes e premiados lidam com temas como o Golpe Militar de 1964 e a rededemocratização brasileira. Entrevistado pela Bezouro. Tendler trata de sua adaptação do Poema Sujo, de Ferreira Gullar, para documentário, bem como de sua obra e da linguagem dos documentários em si.
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BEZOURO: Você já fez algo sobre o Maranhão? ST: Não, nunca fiz. Vou fazer agora pela primeira vez o Poema Sujo, que eu já comecei. Já gravei todo o texto com atores do Rio de Janeiro, já filmei com Giulia Gam, Helena Ranaldi, Letícia Sabatella, Osmar Prado, Nathalia Timberg... Já gravei com “um bando de gente da pesada”, e agora eu quero filmar as ruas de São Luís, o centro histórico, quero filmar grafiteiros daqui. “Há muitas noites na noite” é uma vídeo-instalação que eu fiz em cima do Poema Sujo no Rio de Janeiro. Eu montei o ‘café. com poesia’ e as pessoas vão lá para consumir poesia. Então eu gravei com essas pessoas e essa exposição deu o ponta-pé inicial ao filme. Eu vou viajar com essa vídeo-instalação pelo Brasil, e aonde eu for mostrando, vou captando coisas dos artistas locais, grafiteiros, atores... Por isso que apresentei o filme em São Luís, para reunir esse grupo de atores daqui. Agora vou a Buenos Aires, além de São Luís, que são as duas cidades mais importantes para o Poema Sujo. Buenos Aires porque ele estava exilado lá, e São Luís, porque, quando ele estava ameaçado de morte, quando ele achava que não iria viver, ele se refugia na memória e não volta para o Rio de Janeiro. Ele volta para São Luís. O Poema Sujo narra a vida dele dos anos 30 aos anos 50, quando ele vai para o Rio de Janeiro. É isso que eu quero contar, e vou misturar Buenos Aires, que é onde ele estava em 1975, quando estava exilado.
BEZOURO: O registro do Poema Sujo cede muito espaço pra documentário ou vai produzir mesmo a obra? ST: Mas ele é mesmo documentário. O desafio é você levar uma poesia pro cinema em forma de documentário. Ficção é fácil, o difícil é documentário. Vou percorrer o país com a vídeo-instalação, mas os lugares importantes para mim são o Rio de Janeiro, que é minha cidade, onde tudo começou; Buenos Aires, onde o Ferreira Goulart escreveu o Poema Sujo, e São Luís, para onde ele escreveu. A previsão para terminar não tem. Eu sei quando começa o filme, mas não sei quando termina.
BEZOURO: Sobre o filme Utopia e Barbárie, como foi? ST: Esse foi meu primeiro filme pessoal, narrado na primeira pessoa, em que eu tive coragem de me envolver com a história que eu tava contando através dele. Ele não chega a ser autobiográfico porque é histórico, é político, mas eu me coloco dentro dele. Ele não é um filme sobre a minha história, mas é um filme contado sobre um ponto de vista pessoal meu, subjetivo. A história dele começa com o fim da Segunda Guerra Mundial, as utopias do fim da guerra, do fim dos campos de concentração e a barbárie que foi para chegar nesta utopia, os campos de concentração e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. A Segunda Guerra Mundial custou 60 milhões de vidas, foi a maior tragédia da humanidade até hoje. O filme fala disso, e fala da vontade da construção de um futuro democrático. E aí pelos governos sociais, políticos, Revolução Chinesa, luta anti-colonialista no Vietnã, Revolução Cubana e como isso contaminou a juventude no mundo inteiro em busca de liberdade. Eu mostro o papel da cultura do cinema na formação das pessoas nesse período histórico e aí a gente chega aos dias de hoje. É uma viajem pelo tempo narrada em primeira pessoa. BEZOURO: Esse filme fala do Brasil ou deixa o assunto aberto ao mundo todo? ST: Ele fala do Brasil o tempo todo, da luta armada, da resistência, das diretas, do Collor, fala de tudo. Eu não consigo fazer um filme que não fale do Brasil. Para fazer esse filme eu demorei 19 anos. O cinema-documentário demora, não pode ter pressa. É sexo tântrico, tem que ter paciência. Para conseguir o financiamento eu monto o projeto e coloco nas leis de incentivo fiscal.
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BEZOURO: Você tem um gênero de documentário que sempre enfoca figuras e a questão política. Por que isso? ST: Vem de uma opção documental. Eu tenho uma cabeça feita por um holandês chamado Joris Ivens, que também é cineasta político e que me botou um pouco nesse caminho. O Joris Ivens é um discípulo politizado do Flaherty. Ele faz cinema político e também trabalha personagens. Ele diz que no cinemadocumentário, à semelhança da ficção, o espectador precisa se identificar com o personagem. Então em vez de você fazer uma tese antropológica sobre os esquimós, você fala sobre o Nanuk, e ele faz isso por onde passa, só que de uma forma política. Eu aprendi com ele. Juntei esse ensinamento dele com os ensinamentos do Chris Marker, que é um craque em cinema de arquivo, fiz um coquetel na minha cabeça, e faço o cinema que eu faço. Eu sou um cineasta de colagem. BEZOURO: O que você acha que é hoje o filme documentário? ST: O documentário hoje tem um espaço muito bom junto aos jovens. As pessoas têm muito respeito pelo documentário e, por conta das circunstâncias que o cinema vive, cada dia menos público. A gente cada dia tem mais prestígio e menos público. Eu tenho as três maiores bilheterias do cinema-documentário brasileiro, com o Jango em 1 milhão de espectadores, Os Trapalhões, 1 milhão e 700 mil e JK em 800 mil. Mas hoje em dia eu faço 10 mil espectadores. Quer dizer, tem um contra-senso aí. BEZOURO: A configuração do público de cinema documentário mudou com essa questão da internet. O que você pensa disso? ST: Eu acho que não é só a internet. O problema é que o cinema brasileiro, nos anos 80, tinha cinco mil salas no Brasil inteiro. Os municípios do interior tinham salas de cinema, tinha município que tinha até duas salas, a programação de cinema no interior tinha vários filmes durante a semana, o cinema circulava mais. Hoje em dia as cidades do interior raramente tem cinema e nas grandes cidades não tem mais cinema de rua, só tem cinema de shopping. Quem vai ao shopping é a ‘garotada’, e eles querem ver é tiroteio, “bang-bang”, não filme papo-cabeça. Não tem público para esse tipo de filme porque não tem sala de cinema. O governo não faz nada para espalhar esse tipo de cinema. Entregaram tudo ao mercado...
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BEZOURO: Essa experiência coletiva da visualização do filme na sala é insubstituível? ST: Eu acho que a sala de cinema tem uma grande vantagem, porque ela é um espetáculo coletivo, então tem um pulsar coletivo. Em vez de assistir ao filme em DVD, dentro do cinema você tem pelo menos 60 a 70 pessoas assistindo juntas. É diferente de você estar em casa, assistindo sozinho no seu computador. Não tira o valor da obra, mas não é tão interessante, tão curioso. Esse respirar junto é legal. Você acompanhar a reação do teu vizinho, ele ri de coisas que você não pegou, aí você vai tentar pegar, você pega outras coisas. Tem uma interlocução entre o filme e o espectador que no home vídeo é legal, você tem condições, mas é difícil. Então, eu acho que a sala de espetáculo é insubstituível. Você pode mudar as tecnologias, mas o espetáculo coletivo sempre vai ser necessário. Eu acho que só dá pra entender isso, se você entender, por exemplo, o movimento cineclubista. Nunca existiu tanto cineclube no Brasil quanto atualmente, porque as pessoas querem ver filme, querem discutir. Não é impossível você baixar um filme da internet, copiar, ver na sua casa, ir na Rua Augusta comprar um filme. Agora, é mais prazeroso você ver junto. Eu acho que isso explica esse movimento agora. Isso é um drama pro cinema brasileiro, porque eles só quantificam o número de espectadores pela sala de exibição. Os cineclubes, que têm um baita público, as universidades, as escolas, eles não quantificam. Não podem tratar como se isso não existisse. Hoje você tem uma sala cheia, mas nenhum dos espectadores é contabilizado. É como se ele não existisse, só conta os do shopping.
BEZOURO: A questão da linguagem, o documentário está cedendo mais espaço para ferramenta da ficção. É uma questão de amadurecimento do cineasta documentarista, ou você acha que tem a ver com trazer mais gente para assistir o documentário? ST: Desde o começo do cinema isso sempre aconteceu. Se você pegar, por exemplo, o filme Nanuk, de 1922, é um filme encenado. Ele vai trabalhar com o que ele chama de não atores, vai pegar uma família de esquimós e os amigos deles e vai botar pra representar pro cinema a vida dos esquimós naquela região do Canadá. Então, desde que o cinema é cinema ele sempre trabalhou com representação de encenação. Você tem caminhos no cinema, você não tem fórmulas. O artista não trabalha com fórmulas, ele trabalha com formas. Então você tem, por exemplo, o Nanuk do Flaherty, que é a representação e você tem O Homem com uma Câmera, do Dziga Vertov, que não tem nenhuma encenação. Nesses parâmetros caminha o cinema até hoje. Você tem o Jean Rouch que tem uma cumplicidade com os personagens dele, que é um tipo de cinema antropológico, cinema investigativo; você tem o Primary, do Robert Drew que á a cumplicidade dele com quem ele diz que é o personagem dele. Então, tudo isso sempre aconteceu no cinema, não é uma novidade de hoje. O que você tem hoje são tecnologias mais modernas, mais avançadas que permitem que o cinema-documentário seja feito com mais facilidade. Essa ‘camereta’ que se usa é o sonho do Dziga Vertov. Quando ele começou a fazer cinema nos anos 20, ele dizia “eu preciso de uma câmera que seja a extensão do meu olho, eu preciso ter um aparelho que seja a extensão do meu ouvido” e aí ele sonhava com esse equipamento a vida inteira. E ele dizia “as imagens do cinema só podem pegar imagem da fita”. Não há representação nenhuma, é a antítese do Flaherty, que representava, o Dziga era contra qualquer representação. Ele concretizou o seu sonho. Hoje se você quiser filmar 24h sem parar, você filma, quando estiver acabando a película, você troca, e vai trocando e filmando. Então o aparelho “extensão do olho e extensão do ouvido” está aí na sua mão, pequenininha como ele sempre sonhou. Isso é uma realidade do cinema-documentário desde os anos 20. O documentário existe, na verdade, antes da existência do cinema. Você tinha, por exemplo, pessoas no século XIX que pegavam um negócio chamado panorama na Europa, que eram salas onde você ia acompanhando, de uma forma embrionariamente cinematográfica, pinturas que retratavam uma realidade. No final do século XIX, um americano de Chicago, que viajava com uma câmera fotográfica, e quando voltava ele montava uma espécie de show com fotografias, com um texto que ele lia junto e então ele relatava coisas que as pessoas não tinham acesso. Ele chamava de ‘travellots’ Se você colocar na internet, vai achar um americano que fazia documentário antes de existir a tecnologia. Essa técnica que a gente usa nos favorece muito porque é muito rica, mas ela é conseqüência de uma pesquisa que já existe desde o começo do cinema.
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A Lambida Igor Nascimento
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Foi assim que a conheci: carente, precisando de companhia. E lá estava eu, na hora e no local certo. Foi uma espécie de amor a primeira vista, pelo menos assim queria eu entender, todavia, sabia que seria muito difícil ela gostar de mim, embora não fosse impossível - a realidade pode ser dura, mas tem seus caprichos, vez ou outra se maquia de sonhos para sair escondida. “Vou tê-la pra mim”, disse convicto, mesmo que seja contra a sua vontade, mesmo que não ame, mesmo que não se agrade da idéia. Ela será minha, pois, tratando o meu amor como um fato concreto, não preciso de uma recíproca, já que tudo que preciso já foi constatado. Portanto, empiricamente, em outros termos, mais cedo ou mais tarde, ela iria gostar de mim. Disso eu tinha certeza. Basta ela saber que eu sou o grande amor da vida dela. Se ainda não me ama é por façanha da ignorância. Coitada, ela não tem culpa... No começo, quando nos conhecemos, tínhamos somente um ao outro. Criamos intimidade. Com pouco tempo, já estava morando em sua casa. Precipitei-me em aceitar. Podia ficar cozinhando a situação a banho-maria, mas resolvi colocar tudo no óleo quente. Decidimos ir muito rápido. Já invadia seu quarto. Já dormia e acordava em seus braços, mas a minha ópera não durou muito tempo. Apenas o suficiente para ela preencher aquele antigo vazio, que deixou de existir depois de um telefonema... Ele ligou. Ela sorriu - claro era ele que falava!. Ele, gentilmente, a convidoulhe para sair, para esquecer o passado, para recomeçar. Sorrindo o tempo todo, ela disse ‘não’ ainda duas vezes, em seguida aceitou com um “tá bom, às sete”. O destino é ingrato, por isso geralmente acaba em tragédia, mas não nesta história... Eu ouvi toda aquela prosódia. Queria permanecer na ignorância. Descobrir a coisa aos poucos. Desconfiando de seus suspiros mais profundos. Achando, em seus olhares mais perdidos, o que me afastava da sua vista. Decidi conviver com isso. Com todas as forças, queria pensar que aquilo seria passageiro e que, depois, tudo se restabeleceria como era antes. No entanto, sabia que isso iria acontecer uma hora ou outra: ela acharia outro alguém com quem teria que dividir a atenção, e eu iria sofrer o pior abandono que existe, aquele que é feito quando alguém nos deixa para procurar prazer, e nós ficamos de mãos atadas na incapacidade de proporcionar outras saídas, já que a única disponível foi justamente aquela que foram procurar na rua. Pensar no passado é o único paliativo. Na época, éramos tão felizes. Andávamos no parque. Passeávamos pelas calçadas altas horas da noite. Ela me dava comida, já que eu sempre fui uma negação na cozinha. Enfim, por que tudo chegou a esse ponto? Não sei ou talvez prefira não saber. Não há tempo para especulações. Sobretudo quando ela veio com ele para a nossa casa. Que absurdo! Sob as minhas fuças! Eu perdi o controle ao vê-lo. Gritei, falei um milhão de coisas, mas ela, no tom que eu jamais tinha escutado, mandou-me calar a boca, como se fosse um trovão seco no meio da tempestade. Restou-me permanecer no meu canto, calado, ameaçando-o assim que ela se retirava para ir ao banheiro ou para pegar mais uma bebida.
Nessa noite eles foram para a cama. Ainda tentei dizer que estava doente e que precisava de cuidados, mas ela não deu atenção. Tentei entrar no quarto, mas ela fechou logo a porta e não disse sequer boa noite. Fui obrigado a escutar seus gemidos, que eu jurava serem só meus. Não há tortura pior, quanto mais quando não há uma arma por perto, para silenciar de vez o barulho ou vida. Mas tragédia mesmo seria quando ele retornasse mais e mais vezes. Quando eu deixasse de ser o dono da casa para ser somente um objeto. Mas isso não iria acontecer. Ela vai ser minha. Aliás, ela já é minha. O problema é que não foi alfabetizada nestas circunstâncias, não sabendo ler o que digo em linhas expressas. Naquela noite, tracei um plano. Era a cartada final. Esperei eles chegarem. Já estavam namorando e todos os finais de semana ele já ia para nossa casa para dormir e sujar nossa louça. Cretino. Esperei que ambos dormissem e observei atentamente se eles faziam amor ou não. Nessa noite não fizeram. Era a situação perfeita. A única chance. Deixavam a porta aberta, já que eu não protestava mais contra o que faziam. Mas era tudo proposital. A frieza do meu plano deixou meus sentimentos suspensos por hora. Entrei sorrateiramente no quarto. Subi na cama bem devagar. Invadindo a cama por debaixo dos lençóis. Me embrenhei pela sua camisola e, delicadamente, comecei a lamber sua vulva. Quando percebi que ela ficava úmida, lambia com mais vigor e mais velocidade, parando de propósito para que ela, com as mãos, afundasse minha cabeça em suas entranhas como se quisesse pôr-me para dentro do útero. De repente a luz acendeu. Era ele, ao lado do interruptor. Eu ainda continuei, por cinismo, para ele sentir na pele o que é ser ignorado. Ela ainda se contorceu de prazer umas duas vezes antes de me empurrar de uma vez e dizer de veementemente: “Não é nada disso que você está pensando”. Ele só repetia “não acredito que você fez isso comigo, logo com ele!”. Eu pensava, por meu turno, “bem feito!”. Eles discutiram na minha frente. Ela tentava pedir desculpas, mas ele não se conformava. Ao mesmo tempo, percebia que ela me olhava com canto dos olhos. Era um olhar de cumplicidade, como se ainda pensasse no efeito da minha língua em seu clitóris. Ela tinha gostado. Eu sabia. O olhar denunciava. Ela não conseguia sequer construir seus argumentos, de tão aturdida que estava. Também pudera. Jamais imaginaria que eu tivesse tal ousadia e depois, tal habilidade. Seus pensamentos estavam confusos e suas desculpas eram um ato mecânico depois de ouvida a acusação. - Não acredito que você me traiu com um cachorro desses! Foi que ele disse antes de bater a porta. Furioso como um bicho. Eu queria rir, cantar vitória. Mas não queria que a situação se tornasse mais constrangedora do que já estava. Poderia sobrar para o meu lado. Esperei que ela tomasse a primeira atitude. Me fiz de sonso. Ela passou por mim, sem dizer uma palavra. Talvez fosse chorar. Pensei mesmo que ia dormir. Mas quando ela entrou no quarto, assoviou e estalou os dedos. Respondi prontamente com um latido. Desde então dormimos juntos.
PA L IA T I V O José Lorêdo Filho
PAUL VALÉRY E LE CIMETIÈRE MARIN Da mesma forma que não se aprende a nadar com um manual de mergulho, só se aprende a ler poesia lendo poesia. Comentários, ainda que engenhosos, o mais das vezes só fazem desviar a atenção para o que realmente importa: a Musa, la donna nuestra. Antes, porém, de transcrevermos as oito primeiras estrofes deste clássico insuperável da poesia francesa do século XX, caberiam alguns comentários do próprio autor (um certo Paul Valéry) a respeito da nobre (e, hoje, tão surrada) arte do verso. Fiquemos, pois, com Valéry. *** Um poema deve ser a festa do Intelecto. Não pode ser outra coisa. Festa: é um jogo, mas solene, regrado, significativo; imagem do que não é comum. Estado em que os esforços são ritmos, redimidos. Celebra-se algo realizando-o ou representando-o em seu mais puro e belo estado. (...) No poeta: A orelha fala, A boca escuta; É a inteligência, o despertar, quem procria e sonha; É o sonho quem vê claro; É a imagem e o fantasma quem olha, É a falta e a lacuna quem cria. (...) A poesia não é mais que a literatura reduzida ao essencial do seu princípio ativo. Foi purgada das ilusões realistas e de ídolos de todo tipo; do possível equívoco entre a linguagem da verdade e a linguagem da criação, etc. E este papel quase criador, fictício da linguagem (ela, de origem prática e verdadeira), torna-o possível a fragilidade ou a arbitrariedade do sujeito. (...) O tema a um poema é tão estranho e importante como o é para um homem seu nome.
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Paul Valéry, Littérature, 1929 (Tradução de Jorge Wanderley)
LE CIMETIÈRE MARIN Ó minha alma, não aspira à vida imortal, mas esgota o campo do possível. Píndaro, Píticàs, III Ce toit tranquille, où marchent des colombes, Entre les pins palpite, entre les tombes; Midi le juste y compose de feux La mer, la mer, toujours recommencée O récompense après une pensée Qu’un long regard sur le calme des dieux! Quel pur travail de fins éclairs consume Maint diamant d’imperceptible écume, Et quelle paix semble se concevoir! Quand sur l’abîme un soleil se repose, Ouvrages purs d’une éternelle cause, Le temps scintille et le songe est savoir. Stable trésor, temple simple à Minerve, Masse de calme, et visible réserve, Eau sourcilleuse, Oeil qui gardes en toi Tant de sommeil sous une voile de flamme, O mon silence! . . . Édifice dans l’âme, Mais comble d’or aux mille tuiles, Toit! Temple du Temps, qu’un seul soupir résume, À ce point pur je monte et m’accoutume, Tout entouré de mon regard marin; Et comme aux dieux mon offrande suprême, La scintillation sereine sème Sur l’altitude un dédain souverain. Comme le fruit se fond en jouissance, Comme en délice il change son absence Dans une bouche où sa forme se meurt, Je hume ici ma future fumée, Et le ciel chante à l’âme consumée Le changement des rives en rumeur. Beau ciel, vrai ciel, regarde-moi qui change! Après tant d’orgueil, après tant d’étrange Oisiveté, mais pleine de pouvoir, Je m’abandonne à ce brillant espace, Sur les maisons des morts mon ombre passe Qui m’apprivoise à son frêle mouvoir. (...)
O CEMITÉRIO MARINHO Ó minha alma, não aspira à vida imortal, mas esgota o campo do possível. Píndaro, Píticàs, III Esse teto tranqüilo, onde andam pombas, freme em tumbas e pinhos, quando tomba pleno o Meio-Dia e cria, abrasado, o mar, o mar, sempre recomeçado! Ó recompensa, após o ter pensado, o olhar à paz dos deuses, prolongado! Que labor de lampejos se consuma plural diamante de furtiva espuma e a paz que se parece conceber! Quando no abismo um sol procura pausa, pura obra-prima de uma eterna causa, o Tempo cintila e o Sonho é saber. Tesouro estável, templo de Minerva, massa de calma e visível reserva, mar soberano, olho a guardar secreto sob um véu de chama o sono que acalma, ó meu silêncio!... Edifício em minh’alma dourado cume de mil telhas, Teto! Templo do Tempo, expresso num suspiro chegado ao alto eu amo o meu retiro, de todo envolte em meu olhar marinho; e como aos deuses melhor doação, semeia a serena cintilação desdém soberbo em meu alto caminho. Como no gozo o fruto se dissolve, e em delícia sua ausência se resolve na boca em que se extingue sua forma, sorvo aqui o futuro dos meus fumos, e canta o céu, à alma que consumo, as margens que em rumores se transformam. Belo céu, vero céu me transfiguro! Depois de tanto orgulho e estranho e impuro lazer – mesmo com forças a contento – eu me abandono ao reluzente espaço e ao lar dos mortos, feito sombra, passo confinado a seus débeis movimentos. (...)
Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valéry nasceu em Sète, França, a 31 de março de 1871, e morreu em Paris a 20 de julho de 1945. Poeta, filósofo, ensaísta e matemático, sua obra poética, de início, foi marcada por forte influência simbolista (era amigo pessoal de Mallarmé), até encontrar um estilo inconfundível. Le cimetière marin é um dos maiores poemas do século XX e um dos mais importantes da língua francesa em todos os tempos. Valéry ingressou na Academia Francesa em 1925.
Jorge Wanderley nasceu no Recife em 1938 e morreu, já no Rio de Janeiro, em 1999. Médico, professor universitário e crítico literário, foi sobretudo como poeta e tradutor que se tornou conhecido e respeitado. Foi o primeiro no Brasil a traduzir a Lírica completa de Dante Alighieri, além dos sonetos de Shakespeare e moderna poesia norte-americana. Sua versão d’ O cemitério marinho está entre as mais notáveis. Morreu logo após concluir sua tradução do Inferno, de Dante, deixando inconcluso seu projeto de verter para o vernáculo toda a Commedia. Sua viúva, a poeta e professora Márcia Cavendish Wanderley, vem desde então publicando os inéditos que deixou.
“José Lorêdo de Souza Filho é livreiro, editor e jornalista. Proprietário da Livraria Resistência Cultural Editora. A Resistência publicará, em 2012, ‘O cemitério marinho’, com tradução de Jorge Wanderley, em edição bilíngue.” email: liv.resistenciacultural@gmail.com livrariarc.blogspot.com
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Livraria Resistência Cultural
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Sensibilizando e mobilizando a sociedade, através de ações de comunicação, formação e participação nos espaços de articulação da área da infância, no Maranhão, com vistas à implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente. (Matraca - Agência de Notícias da Infância) matraca.org.br
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