Bezouro Nº1

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#1 agosto de 2011

Z BEZOURO

para ler no metr么


BEZOURO #1 lendรกrio relรณgio do Largo do Carmo, parado hรก anos, curiosamente cada uma de suas quatro faces marca uma hora diferente.


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o número um da Bezouro chega na tentativa de dar continuidade à proposta de criação de uma revista virtual que foge do jornalismo convencional adotado de modo geral pela mídia local. Tentamos abordar outros ângulos de uma cidade como São Luís que muitas vezes se esconde por trás da roupagem de uma imagem relacionada ao patrimônio histórico tombado, mas que, no seu cotidiano já se defronta com outras práticas e costumes que rompem com o antigo e não conseguem deter o avanço das novas tecnologias. Há a entrevista com o escritor Bruno Azevêdo, a cultura cinematográfica com uma breve história do Cine Roxy e de sua influência, além de nossas impressões sobre o Grito do Rock, uma visita à “memorabília” do Bar do Léo e outras matérias reafirmando nosso compromisso com a arte e a cultura independente. Por tudo isso, aos poucos a Bezouro vai adquirindo novos contornos buscando e abrindo espaço para outros públicos, procurando não se restringir somente ao âmbito universitário.

Profa. Dra. Vera Lúcia Rolim Salles Coordenadora do projeto de extensão da revista Bezouro www.revistabezouro.blogspot.com


• o cine roxy e o cinema maranhense - luxo e luxúria • grito rock

• Bruno Azevêdo - a simples arte de matar

• o capitão e a sereia • eu também-monólogo

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pg. 14 Capa: Bruno Azevedo, fotografado por Caroline Rêgo durante chuva torrencial na praça de Santo Antônio, centro de São Luís.

Z BEZOURO

• Nas paredes da memória, nas paredes do Bar do Léo

BEZOURO # 1

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REVISTA BEZOURO # 1 agosto de 2011 http://revistabezouro.blogspot.com UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO www.ufma.br REITOR Natalino Salgado Filho VICE-REITOR Antônio José Silva Oliveira CHEFE DO DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO Francisco Gonçalves COORDENADOR DO CURSO Esnel Fagundes COORDENAÇÃO EDITORIAL Profa. Vera Lúcia Rolim Salles COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Pablo Habibe Figueiredo EDITOR CHEFE Pablo Habibe Figueiredo CONSELHO EDITORIAL Profa. Vera Lúcia Rolim Salles Pablo Habibe Figueiredo Fábio Barbosa Pereira Caroline Rêgo MATÉRIAS Amy Loren Pablo Habibe Leonardo Costa Raíza Carvalho Fábio Pereira COLABORADORES Igor Nascimento matéria: “Eu Também” - monólogo REVISÃO Profa. Vera Lúcia Rolim Salles Anissa Ayala Rocha da Silva Cavalcante Pablo Habibe Figueiredo Fábio Barbosa Pereira DESIGN GRÁFICO Caroline Rêgo FOTOGRAFIAS Caroline Rêgo

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y x o o

R e n i C O E–

UXÚRIA

LUXO E L

M A M E N I C O E

S N E H ARAN

Raíza Carvalho

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ocalizado na esquina da Rua do Egito com o Beco da Sé, o cine Roxy foi construído por Moysés Azis Tajra, em 1939. A arquitetura foi influenciada pelo estilo Art Decó, uma estrutura de traços retos que pode ser observada em sua pequena torre, na qual estava o letreiro luminoso com o nome do cinema. Algumas curiosidades: a fachada foi inspirada em uma fotografia publicada em uma revista mexicana e seria uma reprodução de outra muito famosa que existia nos EUA. O proprietário do local era apaixonado por músicas clássicas e Strauss era seu compositor predileto e, por essa razão, trinta minutos antes do início do filme, ele iniciava uma programação musical. O primeiro filme exibido pelo cinema em 1939 foi “As aventuras de Robin Hood”, que ficou três meses em cartaz.

O Roxy era muito bem freqüentado, tanto que foi apelidado “Cinema das Estrelas”. Entretanto, foi decaindo por não ter acompanhado a revolução tecnológica. Um morador vizinho, que preferiu não se identificar contou que “antes eram filas e filas e, na década de 90 começou a decair”, lamentou ele. De fato, foi nessa época que o declínio se evidenciou e hoje é um cinema pornô. O primeiro filme de conotação sexual exibido no cinema foi “O Império dos Sentidos”, dirigido por Nagisa Oshima, uma produção japonesa cuja exibição foi proibida no Brasil durante muitos anos.

Cinemas Pornos

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Cine Roxy é a referência mais antiga de cinema pornô da ilha. Hoje, possui um aspecto degradado de madeira úmida e envelhecida. Logo no hall de entrada, há um cartaz com mulheres e homens nus praticando todo tipo de luxúria. Na sala de exibição, uma cortina grossa impede a entrada da luz. Dentro, um teto interrompido por muitos buracos, um palco de aspecto nada confiável perto da tela e antigas janelas de madeira.

Há uma sessão ininterrupta, que começa às 16h e termina às 21h, diariamente. O ingresso custa R$ 4,00 e a pessoa pode sair e entrar quantas vezes quiser. Segundo o funcionário Almeida, o cinema é mais freqüentado por homens com mais de trinta anos. “Normalmente eles vem a pé, mas vem gente bem arrumada também. Quando os caras vêm de carro, eles deixam lá na outra rua!”, informou. A preferência dos clientes é por filmes brasileiros e americanos. Os da produtora “Brasileirinhas” são os mais pedidos.

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Uma outra sala de exibição que surgiu há cerca de cinco meses é o New Roxy, declaradamente GLS. Localizado na Rua do Sol, o cinema tem a entrada charmosa dos prédios antigos e uma placa logo na frente, onde se lê: “Proibida a entrada de menores de 18 anos.” Apesar de ser novo, o local já tem clientela garantida. Na recepção, uma caixa lotada de preservativos. Em vinte minutos, entraram 11 pessoas, todos homens. Eles davam os R$ 5,00 reais de entrada e pegavam um, dois, três preservativos e entravam por uma cortina escura.

O cinema é dividido em duas salas, numa são exibidos filmes heterossexuais e em outra passam filmes gays. Há um espaço que se assemelha a uma sala de estar: escuridão, bancos e músicas de boate tocando bastante alto. A sala dá acesso ao bar, um local bem iluminado, parecido com uma lanchonete. O local fica aberto das10h às 21h e o horário mais movimentado é a partir das 17h. Os dias de quarta –feira são os mais lotados, com uma clientela de até 60 pessoas. O motivo? Uma promoção: “cerveja R$ 2,00 e duas pessoas por R$ 5,00”.


No final de 2010, surgiu o Cine Bar, que já domina o público dos cinemas pornôs. Segundo o proprietário, Carlos Cézar Melo dos Santos, entram de 80 a 100 pessoas no local diariamente. É um prédio de dois andares localizado na Rua de Nazaré, dividido entre térreo, onde há a maior sala de projeção, e andar de cima, onde ficam o bar, uma sala de vídeo e misteriosas “dark rooms”.

O local atiça a curiosidade dos turistas. “Eles passam aqui, perguntam o que é um cine- bar. Passaram uns turistas cariocas uma vez, perguntaram e ficaram lá dentro por um bom tempo. Alguns vêem só para tirar fotos, algumas até de homens nus.”, diz Santos. O valor do ingresso é R$ 5,00, a sessão começa às 9h30 e termina às 21h e nos domingos, começa às 15h e termina também às 21h.

Segredos

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o Roxy, há também uma sala de vídeo que tem conexão com a principal, onde há algumas cadeiras, sofás e uma televisão grande que exibe filmes. Indagado sobre a possibilidade de acesso ao lugar, Almeida, constrangido, respondeu: “É melhor não, porque eles devem estar se agarrando.”, disse, e o vizinho completou: “Normalmente quem vem nesses cinemas é homem procurando homem”. Quanto à presença de mulheres, Almeida respondeu: “1%. É muito raro e quando vêem, estão acompanhadas do namorado,” riu. O vizinho disse ainda que entram cerca de 50 pessoas por dia no cinema e que, quase sempre, são as mesmas.

No New Roxy há quatro “dark rooms” vazias, que possibilitam uma maior privacidade e um quarto, que pode ser trancado. “Não paga nada a mais, quem chegar primeiro fica”, diz Carlos, funcionário do local. Algumas mulheres freqüentam o local, entre lésbicas e casais de namorados. “Na maioria das vezes, estão em busca de um parceiro para um ménage à trois.”, revela o funcionário. Uma das coisas que mais chama a atenção no Cine Bar é uma placa com o nome dos filmes escritos a giz. “Sala 1 – 1. P. Em busca de prazer 2. Devoradora de homens. 3. Garganta profunda. 4.A Casa das Meninas Safadas. Sala 2 – 1. Força Gay. 2. Dando por Esporte. 3. Amor à Queima Rosca. 4.Comungay faz um Ano.” No andar de cima, há um barzinho escuro onde ficam passando clipes românticos, uma outra sala de vídeo e algumas dark rooms.

Cine Teatro Municipal

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esapropriado pela prefeitura, o Cine Roxy será transformado no Cine Teatro Municipal por meio do programa PAC Cidades Históricas. O programa também irá restaurar o casarão 445 da Rua do Giz. A obra está orçada em R$ 1.239.518,41 e tem previsão de entrega para o final deste ano. O Cine Teatro terá palco com estrutura de 39,32m², 239 lugares, camarins, banheiros, sala administrativa, cabine de som, projeção, equipamentos de áudio e vídeos multimídias. Segundo informações do presidente da Fundação Municipal de Patrimônio Histórico (FUMPH), José Aquiles Sousa Andrade, a Fundação Municipal de Cultura pretende fazer um convênio com a Secretaria Municipal de Educação, para que os alunos das escolas públicas sejam os principais freqüentadores.

De acordo com informações de Euclides Moreira, presidente da FUNC, o Cine Teatro dará abertura para as produções locais por meio de editais. Não serão exibidas sessões diárias de filmes e o objetivo não será transformá-lo em cinema comercial. As sessões precisarão ser agendadas e o foco será o cinema de arte.

Andrade destaca o tamanho, o conforto e a praticidade como as principais características do local: “O grande trunfo desse espaço será seu tamanho. Por ser pequeno, as pautas de locação custam bem menos, facilitando a realização de espetáculos particulares destinados a um número reduzido de pessoas. Os grupos de um público não muito grande e que não tem muito dinheiro, não precisam mais recorrer ao Arthur Azevedo para mostrar seu trabalho.”, acredita o presidente. ♠ 07


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N A S PA R E D E S D A M E M 'o R I A , O D S E D E R A P S A N B A R D O L'e O Leonardo Costa

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noite se debruça sobre a cidade, entre buzinas, conduções apinhadas e cansaço lavrado no dia-a-dia das obrigações modernas. Um melancólico e aprazível som ressoa dentro de um mercado como se quisesse sussurrar aquilo que precisa ser dito: “Alvorada lá no morro, que beleza. Ninguém chora, não há tristeza. Ninguém sente dissabor”. É o samba de Cartola no toca-discos de um Bar (com b maiúsculo mesmo) instalado nas dependências do Hortomercado do Vinhais, bairro de classe média da capital ludovicense. Atendendo pelo nome intimista de Bar do Léo, o espaço, verdadeiro relicário musical e ponto de encontro de intelectuais, artistas, jornalistas e políticos, é um atípico museu. Atípico, aqui, quer dizer: simples, sem pompa e subvenção estatais; porém de uma representatividade ímpar.

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as paredes, exposição de uma variedade de LP´s, desde coletâneas dos expoentes da música erudita, como Chopin e Tchaikovsky, passando por discos das cantoras da Era do Rádio, a exemplo de Dalva de Oliveira, Maysa Matarazzo e Dolores Duran, às multicoloridas capas da Jovem Guarda. Completando o nostálgico cenário: livros de escritores consagrados, gramofones e artefatos da cultura local. Entre uma tarefa e outra, o proprietário do estabelecimento, um senhor franzino de 59 anos (autodefinido enquanto semi-analfabeto), natural do povoado de Alinhavão, em Santa Helena – MA, fã de Nelson Gonçalves e Elizeth Cardoso, registrado em cartório como Leonildo Peixoto Martins, escolhe as músicas que animam o ambiente. “Sempre fui comerciante. Nunca havia pensado em montar um bar. Quando o mercado foi inaugurado, em 1979, iniciei com uma panificadora. Só em 1987, mudei de ramo. Como não gostava da decoração que existia na maioria dos bares, com fotos de mulheres nuas na parede, resolvi decorar de forma diferente”, diz Leonildo, ou simplesmente Léo, para explicar a singularidade de seu empreendimento.

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á mais de trinta anos, Seu Léo começou a colecionar discos, embora sua aproximação com o mundo da música tenha se dado ainda na adolescência a partir das ondas sonoras propagadas nos rádios de pilha e das incursões pelos cabarés, à época, animados por orquestras que, em seu repertório, iam do jazzista Nat King Cole ao controverso Waldick Soriano. No acervo de Leonildo, cujo marco temporal é o ano de 1902, existem títulos que não se encontram em nenhuma emissora de rádio da cidade, como o que foi gravado por Miguel Damus, cantor maranhense que cometeu suicídio em um avião, e o célebre Samba (no qual está gravada a faixa “Pelo Telefone”, composta por Donga em 1917). Essa façanha, segundo conta, deve-se à amizade com dois radialistas dos anos 1940 e 1950, Ermelino Sales e “Parafuso”, que, ao exercerem também a atividade de divulgadores e vendedores, acabaram sendo responsáveis por boa parte dos discos de vinil que enfeitam as dependências do Bar. 11


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uem freqüenta assiduamente o Bar do Léo sabe que excentricidade é uma palavra-chave. Tudo em nome da reverência a boa música: prova da sacralidade museológica do lugar (ou do conservadorismo do dono). Por lá, são repreendidos comportamentos alterados de bêbados, som em porta-malas de carros e atitudes mais ousadas de casais de namorados. Mas essa disciplina semi-militar é dosada com a descontração de um bate-papo e o cheiro dos petiscos servidos.

Quanto às canções selecionadas para tocar durante o tempo de funcionamento do estabelecimento, a austeridade é muito maior. “Quem vem ao Léo tem que escutar o que o Léo gosta. Eu só toco o que eu gosto”, sentencia Leonildo. Isso não significa que o cliente não tenha vez e voz, apenas que o gênero pedido esteja sintonizado ao estilo da casa, principalmente samba-canção e Jovem Guarda.

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e, de um lado, a iniciativa de Leonildo recebe guarida da maioria da população e dos turistas que chegam a São Luís; por outro, enfrenta a oposição do poder público. Em 2009, o então procurador do Estado, Raimundo Soares de Carvalho, alegando fuga contratual, deu parecer favorável à “transferência da posse do imóvel” onde funciona o prosaico bar, recomendando consequente “procedimento licitatório” por parte do governo estadual. No entanto, uma série de manifestações públicas dos admiradores e frequentadores do local conseguiu reverter a decisão. Emocionado, Seu Léo assevera: “Eu não gosto nem de falar nesse assunto, porque é comovente. Só a população soube reconhecer a importância do Bar”.

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ão seria exagero comparar o peso simbólico do Bar do Léo, em São Luís, ao da extinta Praça Onze, no Rio de Janeiro. Esta, demolida, em 1941, para fins de reurbanização da capital carioca, guardava a tradição do samba e do carnaval; aquele preserva a história da música nacional. Reconhecido por figuras da estirpe do escritor Sérgio Cabral e do poeta Fausto Nilo, que, por lá, já puseram os pés, o bar-museu é mais que um ambiente de entretenimento, é um patrimônio cultural do Maranhão. ♠

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BRUNO AZEVÊDO A SIMPLES ARTE DE MATAR

Fábio Pe reira e P a

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É comum a de si e é s cidades se en a mais inc omum a morarem de um ção e à in a image da da que is m so as lev dades co nação eterna. S e à perd olitárias mo São iLuís, a ve e melan podem s c lha “bru er xa do ma ólicas, ciSabedor monstruosas. r ”, tamb dis ém sico e ag so, Bruno Azev êdo, esc itador cu rit lt sentear a cidade ural, se propôs or, roteirista, mú a c o trabalh om uma criatura, imagem o de pre um imen à s mo tem po prota o e bem dotad altura. A estranh o a g onista, g H público uia turís ot Dog, ao mes nú tico tras do qual mero um em O h e inim o autor Monstro igo s e (leia-se Souza, é utiliza p doceme a o r a m d o a te r nte satír à sujeira ico, viole trato bem próp , à violê rio nto e po n onde Br rnográfi uno cres cia e à enorme c o) ceu biza samente com suti e à qual retrata rrice da cidade leza de p Em entr a evista à edreiro. morosa ou odio s ucu autor de O Mons rsal da Bezouro tro Souz São Luís e m Budap ae , li tica cultu teratura, de que Breganejo Blue este, o relas e d s fala de ral. iatribes sobre po lí-

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BEZOURO: O livro parece insinuar um tipo de mito fundacional de São Luís, ou pelo menos, uma preocupação de refundá-la com base nesse mito criado para o livro. Você concorda? Isso é uma idéia explicita tua? Bruno Azevêdo: Eu diria que é uma cosmogonia da cidade pela minha perspectiva. O livro começa com um capítulo que não tem nada haver com absolutamente nada dentro da narrativa, é só história de um cara que se joga do edifício Caiçara, como sei lá quantos já fizeram. Mas o objetivo é introduzir a cidade, e apesar disso e daquilo, é um livro sobre a cidade e um livro assim, fatalmente recria a cidade.

“Quand eu pen o so em fazer a lgum de lit eratur tipo a não in teress , pra mim a fala bre Ma r sorte - q uer di intere zer, me ss Marte a sim falar - mas, s não me obre ressa intefa Paulo lar sobre... , ou um São l i v ro que se pas sa em Iorqu Nova e.”

BEZOURO: Tu sabes daquela velha brincadeira sobre o Ulisses do James Joyce? Aquela sobre a possibilidade de reconstruir Dublin a partir do livro. O Monstro Souza seria esse retrato minucioso de São Luís?

BEZOURO: Mas o livro passa a idéia da sujeira impregnada nas pessoas e elas, de certa forma, fedem a excremento tanto quanto a ilha onde elas habitam. Esse “fedor”, sobretudo no universo artístico, já foi extirpado?

Bruno Azevêdo: Muita gente na academia tem os dois pés atrás com Montello. Pra mim ele é muito forte. Quando eu penso no Monstro, pra mim, sou eu fazendo “Os Tambores de São Luís”, eu tentando evocar em outras pessoas o que aquilo evocou em mim quando tinha quinze anos e o li pela primeira vez. Aquela coisa de ... pô! Existe uma cidade concreta com a qual eu me relaciono, que fede, que é desagradável, que é horrível, a que esse cara deu uma outra camada de significado e conseguiu reconstruir como outra cidade. Isso foi um impacto absurdo, quando eu li aquele troço, eu pensei: péra aí! O que é que esse cara tá fazendo? Pô, ele tá retratando um lugar como a Igreja da Sé, retratando no sentido literal da palavra, um ambiente que pra mim é conhecido. Então há aí uma sensação de pertencimento que é muito legal, seja bom ou ruim aquilo a que você pertence. Quando eu penso em fazer algum tipo de literatura pra mim não me interessa falar sobre Marte – quer dizer, me interessa sim falar sobre Marte- mas, não me interessa falar sobre... São Paulo, ou um livro que se passa em Nova Iorque. À minha literatura isso não convém, porque eu estou muito mais interessado em dialogar com as pessoas que estão aqui, mesmo que pra isso eu tenha que imprimir mil livros e tenha que sair lançando em cinco cidades do Brasil pra conseguir ter alguma atenção aqui.

, e o p s o t i u m m e t e "A gent uns escrevendo-, g n e l g a , s , a s , m a t de a e d i u c ˜ q a o a e c r sob revendo fic te esc tenha esse poder evocati, ´ ,, acho ˜ Luis, vo sobre Sao que paramos no Montello." ˜

Bruno Azevêdo: Sim, conheço. Eu acho que se tem produzido muito pouca literatura sobre São Luís, essa literatura que é capaz de evocar uma versão da cidade; eu, pelo menos, vejo muito pouco. A gente tem muitos poetas, alguns escrevendo sobre a cidade, mas gente escrevendo ficção que tenha esse poder evocativo sobre São Luís, acho que paramos no Montello. Pelo menos, ele foi o último cara que eu vi fazendo coisas de fôlego que tentem resgatar São Luís. Tá, resgatar é uma palavra de merda, mas funciona meio que como uma intenção de fazer um registro da cidade, de um momento que pra mim é importante. Tanto é que o livro demorou dez anos do momento em que começou a ser escrito até o de ser publicado, e nele há, o tempo todo, uma preocupação de deixar uma visão da cidade.

BEZOURO: Não há uma certa necessidade do ludovicence de se ver retratado numa obra ficcional? Fica a impressão que o último retrato de São Luís é o do Montello...

Bruno Azevêdo: No meu ponto de vista não. Mudou porque eu vou menos à Praia Grande, mas a coisa continua a mesma. Se a gente conseguir transformar a idéia do fedor para a impressão de alguma coisa que tá apodrecendo de velha, estagnada, não mudou nada. 15


BEZOURO: Tu não achas que, pra efeito da própria existência da tua obra, de que ela seja publicada, essa tua busca por espaços fora tem um caráter de segurança de que tu sejas publicado? Bruno Azevêdo: Realmente! Se eu fosse depender disso daqui eu estaria lascado e, porra, não me cheira bem a idéia. Porra!, pensa na nossa literatura, sei lá, nos últimos 20, 30 anos. Tem um monte de gente boa. Quase ninguém está inserido em algum mercado que não seja o de publicação de folheto ou dos livros publicados pela prefeitura ou pelo Estado, o que me dá a sensação horrível de que tá todo mundo em casa escrevendo e esperando o próximo edital e ninguém tá se mexendo.

“Eu costumo

dizer q tudo q ue ue me coloniza é m e me jog u, se o cara ou um negócio

˜ e´ mais dele e ja´ nao eu posso usar do jei,̵ to que eu quiser."

BEZOURO: O Monstro tem uma carga semântica muito grande. Tu tratas ao mesmo tempo de uma porrada de coisas: de autores e estilos da literatura ocidental, vai do HQ, ao western e ao brega... Como se isso perfurasse a idéia do meramente local. Bruno Azevêdo: É porque pra mim é tudo a mesma coisa. Se tu olhar os livros aqui em casa vai encontrar, sei lá, a ultima edição da revista Júlia, aqueles livrinhos de mulher que eu acho massa, e coisas que as pessoa levam mais a sério. Costumo ler tudo com a mesma cara, pelo menos com o mesmo respeito. O cara pode ser potencialmente medíocre, ou muito bom fazendo um monte de coisa. Então... A coisa dos quadrinhos no Breganejo Blues , por exemplo, a idéia de citar os quadrinhos sem citar a imagem dos quadrinhos é, pra mim, muito cínica, então, por isso, a gente acabou inserindo o desenho do Gallepini e não só as palavras do Sérgio Bonelli, porque é uma linguagem completa e no Monstro Souza tem esse monte de coisa, de pegar aquilo que parece estar fora, mas de fato estão aqui e a gente tá consumindo. Eu costumo dizer que tudo que me coloniza é meu, se o cara me jogou um negócio, já não é mais dele e eu posso usar 16

do jeito que eu quiser. O negócio disso de colonização é que eu, um moleque de classe média, que foi educado numa escola pentecostal, assistindo desenho animado, “Show da Xuxa” e lendo gibi do HeMan; não posso crescer achando que eu vou ser o Sartre. De alguma forma, aquele monte de coisas que eu consumi, seja o “Macgyver”, seja o livrinho que tinha na igreja no domingo de manhã, vai influenciar no que eu vou fazer lá na frente. Eu diria que isso, mais do que um artifício de estilo, é uma declaração de incompetência, é dizer assim: “olha, eu não sei fazer isso como convém”. Se me pedirem para escrever um romance bonitinho, laudatório e com 400 páginas, é provável que eu sinta falta de outros sentidos, de um outro tipo de sinestesia que eu não consigo ter escrevendo outro tipo de coisa. Ainda mais que isso dá trabalho pra caramba e eu sou preguiçoso! Então eu prefiro encher uma página de quadrinhos ou outra coisa, que dê uma mensagem muito mais interessante para o meu leitor, sem ter que recorrer ao tempo dele de ler “O Senhor dos Anéis”, por exemplo.


Bruno Azevêdo: Eu sou muito radical em relação a isso, sou mesmo. Eu acho que nossas leis de incentivo à cultura só estão servindo pra criar uma classe, pra deixar mais rica uma classe de gente rica e que não está, em minha opinião, servindo gente que poderia estar fazendo alguma coisa. Porque, pra mim, tem um problema fundamental: admitir que o estado tem uma grande papel no fomento à cultura, e fomento já é uma palavra nojenta, é admitir que a cultura, ou isso que se chama de cultura, ou esse bens de consumo culturais são uma coisa sagrada. O que eu não acho que é, não acho que o que eu faço ou que qualquer artista faz é sagrado, nem importante pra ninguém, ninguém precisa daquilo. Eu gosto de pensar que o escritor ou o músico é um trabalhador como qualquer lixeiro. O cara tem que desenvolver o trabalho dele da melhor forma possível e se ele conseguir algum espaço com aquilo, ótimo! Se não, desculpa cara, a gente não tem que ficar te sustentando. Isso é o que eu penso. O problema é que as leis de incentivo à cultura, via de regra, estão gastando um bocado de coisa, de dinheiro que poderia ser aplicado em coisas mais interessantes ou mesmo em obras mais interessantes, já que a gente vai

ter que gastar dinheiro com essa merda mesmo, pra fazer com que gente muito rica fique cada vez mais rica. Eu acredito que se um cara – e isso é uma posição meio facista- não consegue ter legitimação de mercado, teu trabalho meio que não presta. Não presta, no sentido de que tu tens que recorrer pra um tipo de esmola estatal, e o problema de falar de esmola é que eu não estou falando de uma baixa quantia, essa esmola pode te alavancar pra uma classe social muito mais alta do que o cara que está, de fato, trabalhando com alguma coisa. O que eu estou tentando dizer é que o trabalho do artista não pode, por assim dizer, ser mais importante que o trabalho do carpinteiro, senão eu vou chegar pro estado e dizer: olha, eu tenho essa carpintaria, mas minha carpintaria não funciona e eu vim pedir um incentivo de fomento à carpintaria de 2 milhões de reais, eu vou fazer uma mesa. O problema é que pra mim é imoral. Pegar uma revista como a Rolling Stone e ver que ela tem grana do Estado é absolutamente imoral. Me cobrarem 14,00 paus pra ver um filme como o da Bruna Surfistinha, que é feito com grana do Estado, é totalmente imoral. O foda dessa reclamação radical em relação a esse lado é que, por outro lado, o tipo de incentivo à cultura que a gente tem aqui é mais imoral ainda porque é uma versão canhestra e muito maranhense desse tipo de lei de incentivo. Talvez esteja dando dinheiro, sei lá, pra boi de propaganda ou filme de telecurso, que é o que a gente é especialista em fazer.

BEZOURO: Mas isso é para preencher uma lacuna? Quer dizer, as gerações pós- Montello fracassaram em refazer esse quadro? Bruno Azevêdo: Eu acho que elas nem tentaram. E eu nem sei se isso é importante, eu sei dizer que é importante pra mim e é importante desde que a gente jogava RPG e fazia campanha de Shadow Run passando em São Luís. É essa coisa de tornar a ficção concreta não só pelo lado do aspecto humano, pois isso pra mim é uma bela de uma viadagem! É mais o fato de tornar aquilo concreto a partir de coisas que as pessoas conseguem cheirar. Espero que eu consiga entregar uma ficção na qual as pessoas daqui consigam enxergar alguma coisa. ♠

“Eu gos pensa to de r que crito o esr ou o traba mús l lixei hador com ico é um o qua r senvo o, o cara lquer lver t e m q o tra melho balho ue der for ma po conse ssíve dele da guir l e s algum aqui lo, ót espac e ele imo! o com culpa S e nã c tem q ara, a gen o, dest ue fi car t e não e sus tenta ndo.”

BEZOURO: É perceptível em debates ou palestras das quais tu participastes, que tu tens uma postura bastante radical e ríspida em relação à posição da maioria dos produtores culturais daqui do estado. Nessa querelas, o ponto de maior atrito é, em geral, o financiamento da arte. Qual é a tua posição e a tua experiência quanto ao assunto?

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Gri TO RoCK Fábio Pereira

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Tentando reverberar um grito já lançado em boa parte do Brasil e da América Latina, o “Grito Rock São Luís” ocorreu em março deste ano e buscou dar às bandas locais a chance de dar um urro, um yawp que ultrapasse o Estreito dos Mosquitos.


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lguns dados sobre o circuito nacional: Entre os produtores, 13 estão na região Norte, 18 são do Nordeste, 11 do Centro-Oeste e 17 do Sul, enquanto o Sudeste soma 63 realizadores. 10 cidades são de outros países (Argentina, Uruguai, Bolívia, Chile, Panamá, Costa Rica, Honduras e El Salvador). Das cidades participantes, 51% realizam o GR pela primeira vez, 22% pela segunda, 10% pela 3ª, enquanto 8,5% o produzem pela 4º e o mesmo número a 5ª, enquanto Cuiabá, que começou o projeto, já está na sua 9ª edição. Desses produtores, 52% são Pontos ligados a rede Fora do Eixo, enquanto 48% não, mostrando que o projeto transcendeu o circuito, caindo nas graças dos produtores em geral. O Grito Rock São Luís, além das bandas, teve a participação especial, embora discreta, do poeta Celso Borges, apresentando “A posição da poesia é a oposição”.

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s eventos do Grito Rock ocorreram entre 19 de fevereiro e 28 de março. O Festival é uma produção do Circuito Fora do Eixo, filiado à Associação Brasileira de Festivais Independentes – Abrafin. Realizado também com apoio do Toque no Brasil que disponibilizou mais de mil vagas para bandas e artistas brasileiros e do mundo. Estima-se que perto de 2.000 bandas/artistas tenham se apresentado para um público de cerca de 200 mil pessoas. “O Grito é principalmente um estímulo às conexões em rede, à circulação de artistas, à distribuição e à comercialização de produtos, à comunicação integrada, à formação de agentes culturais, e à geração e difusão de tecnologias de gestão”. Opinião ‘oficial’ do gestor nacional do Grito Rock 2011, Felipe Altenfelder. A programação do Grito Festival em São Luís foi majoritariamente musical. Parece ser esse o caminho natural dos eventos: de início, utilizar a música como vedete do evento integrado e após ampliar mais o espaço das grades com outras atrações, como palestras.

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Hospedagem, alimentação e divulgação são o que as bandas recebem pela presença no festival. O que em termos de circuito alternativo é um “céu de delícias”. Mas o que indicam os relatos das bandas maranhenses que tocaram em outras cidades (Gallo Azhuu e Velltenz) é que as coisas ainda funcionam muito no “pay-to-play”. Os GR espalhados pelo continente são realizados em sua maioria por coletivos (matéria de próxima edição da Revista Bezouro). O GR São Luís foi produzido pelo Coletivo Criolina. Os eventos sob a denominação “Grito Rock” apresentam na pós-produção um Compacto.tec, que é um sistema compacto de informações acerca da concepção, desenvolvimento e fechamento da produção cultural. Quem tem ouvidos, ouça... ♠

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“eu tambem

Monólogo

Igor Nascimento

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Infelizmente eu não sou tua Ofélia e você, tão pouco, é meu Hamlet. Essa história não merece o frio da Dinamarca. Merece o calor. Um clima tropical, agradável, cheio de flores e outras bobagens coloridas. Uma flor pode brotar de uma pedra, mas não de cubo de gelo. Eu, pelo menos, nunca vi. O importante é que no calor o cadáver apodrece mais rápido. Num instante, o cheiro fétido exala o mais puro fogo fátuo e então urge-se enterrar o defunto. Pô-lo debaixo da terra. Selá-lo de vez no ataúde, antes que a situação se torne incômoda e que a pessoa que um dia amamos e de quem sentiremos eternas saudades se torne um pedaço de esterco, uma carne pútrida, saindo ainda por cima, da obscenidade do corpo morto, fluídos pustulentos e uma orgia de moscas e formigas. É por isso, amor, espero que entenda, que eu quero um dia ensolarado, o sol lindo e pessoas indo à praia.... No frio isso não seria possível. Sabia que se Shakespeare vivesse em algum país tropical ele nunca teria feito Romeu e Julieta? Sabia? Por que se Julieta tivesse tomado o veneno, no dia seguinte, seria enterrada viva, e a sua morte seria em vão, movida por um desespero idiota e precipitado, o golpe teatral seria pobre, não seria nem mesmo uma tragédia, seria mais uma fatalidade, tal qual aqueles acidentes de trânsitos, ou aqueles suicídios sem graça, coisa de jornal de qualquer maneira. O frio é bonito. Favorece o isolamento. Pensei em ir à Europa um dia desses. Você se lembra? Você disse que não: problemas de dinheiro. Talvez fosse o problema da vida a dois. Suportar-se demais em troca de um bem estar. Em troca de uma harmonia que nada mais é do que a resignação. A convivência é foda, é uma merda. Quem convive não vive. É aceitar como bem amado alguém que na verdade não passa de um inquilino na sua vida. Você nunca parou para pensar nisso? Deixa para lá. O amor não é belo, meu querido. É o que há de mais animalesco na alma. Amor é uma coisa que chega bem perto do canibalismo. E você sempre se despedia dizendo que me ama. Lembra? Se eu fosse uma pedra, você também falaria a mesma coisa, contanto que estivesse casado com ela. Tanto faz. Aquilo era práxis. Burocracia. Sabe por quê? Não? Por que todo mundo que fala ‘eu te amo’ quer ouvir ‘um eu também’. Isso é burocracia, meu bem, é o puro método. Aritmética! Essa é a palavra! Se tu és o amor da minha vida, eu também sou o amor da tua vida, o que quer dizer que se eu te amar você também vai me amar, justamente por que eu te amo, em tese. Tirando a prova dos nove sempre vai dar zero. Não tem saída. Fala-se exclusivamente o que se quer ouvir. Isso é harmonia, isso é zero. É transar sem se dar a dignidade de receber um tapa sequer, sem ao menos um puxão de cabelo ou uma sacanagem dita laicamente ao pé do ouvido. Não. Eu me nego. É necessário violência. É necessário se aventurar no próprio corpo, ou condenar-se o conviver um domingo de cada vez. Doses homeopáticas de antropofagia. Era disso que eu precisa va e você nunca percebeu! Mas ainda não é tarde. Logo hoje: um dia lindo! Você

tão carinhoso ao meu lado. Você sempre teve cabelos sedosos. Hoje você não foi trabalhar. Que bom. Fiz a comida que você gosta. Como sempre. A pena é que você só passe o final de semana aqui. Dois dias, acho que três, estourando. Mas não tem problema. Sempre te recebo de braços e pernas abertas. Mesmo se acidentalmente você me deixar com um olho roxo ou se, alterado, você me chame de puta. Tudo sara. Tudo se esquece. Em troca de quê? Da convivência. Conviver é condenar-se. Mas hoje, meu amor, tem cerveja na geladeira. Se exagerares pode me espancar depois. Hoje eu deixo. O roxo na carne, a ardência da mão contida na pele e os palavrões ressoando na cabeça, no chuveiro, tudo vai embora. Toda mulher rogada se confessa com o chuveiro, e lá, deslizando as costas nos azulejos até se sentar no chão, num retorno involuntário a posição fetal, a água acaricia os hematomas e no ralo o corpo se confronta com a incoerência de querer torna-se líquido e desaparecer em qualquer buraco. O banheiro sempre foi a igreja desta casa. Tu sabes muito bem. Mas você não é o culpado. Não se preocupe. Talvez a culpa seja da sociedade. Não sei. Não quero filosofar. Mas não pense que eu sou uma dessas Ofélias. Infelizmente, eu não estou louca. Na verdade nunca estive tão sã. Calculei tudo, como quem faz uma complicada decoração de natal, com enfeites e luzes, passa dois dias imaginando como vai instalar piscas-piscas em toda a casa, põe o plano em prática, liga tudo na tomada e no regozijo de seu espetáculo particular se deleita, como se aquilo, em algum momento, não fosse premeditado, como se aquilo tivesse um quê de magia que só com a energia circulando nos pequenos filamentos de tungstênio fosse possível consumar de vez a obra; como se ao finalizar um quadro o pintor regozijado assinasse seu nome no canto da tela e se não fosse essa pequena assinatura o quadro não teria sentido, seria apenas um nômade; foi desse jeito, com esta apoteose, que vi, aos poucos, a invisível pirotecnia do veneno se diluindo na água, tuas pupilas dilatadas como se tua alma estivesse caindo dentro de um poço, tua baba escorrendo pela boca, a tua tentativa de respirar sem ar no peito, teu último olhar, ternamente desesperado, me interrogando o porquê... ‘você sabe o porquê’, respondia eu, tentando ainda te socorrer, perguntando com lágrimas histéricas ‘o que foi?’, ‘o que foi? Você está bem?’. Teu corpo pesado se repousou nos meus braços, foi se entregando à gravidade, tive que segurar tua nuca, senão ela cedia para trás, aos poucos fui me abaixando, até ficar de joelhos e te ter no meu colo, e lá, com o perfil do rosto comprimindo meus seios sem leite, deste teu derradeiro suspiro tentando não sei se me abraçar ou se me arranhar, mas a morte, enfim trouxe o alento, e depois, aliviado, tu parecias um menino dormindo, parecia que tinhas saído do meu útero... Shhhhhh! Você não ouviu, mas eu também te amo. ♠


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˜ O CAPITAO

EA

EREIA S

fotos divulgação

Amy Loren

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...minutos antes de entrar no galpão, os atores vão para a entrada convidar os espectadores a imaginar, entrar no clima infantil daquilo que será apresentado minutos depois. No palco, vimos a trupe “Tropega, Mas Não Escorrega” esforçando-se para entreter a platéia enquanto esperavam, ansiosos, pela chegada do Capitão Marinho. O Capitão e a Sereia, adaptação do livro homônimo do escritor André Neves, montada pelo Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, figurou em São Paulo como uma das melhores peças de 2009 e, de quebra, levou o prêmio Shell pelo figurino. A estória é contada de forma simples, a partir da visão dos coadjuvantes do texto original. O cenário é, de fato, a imaginação do espectador – acrescentando aí um giz, desenhos no chão e uma espécie de minipalco – e a narrativa evolui assentada no bom preparo de todos os quatro atores e no equilíbrio da atuação de cada um. De fato, o espectador deve imaginar o sertão, o mar a partir de uma espécie de não-cenário criativamente bolado pelo grupo, inspirado nas ilustrações do livro de Neves. Outro aspecto que se destaca é a forma como a estória do livro é contada, os cortes e escolhas feitas pela dramaturgia, o uso de elementos e a mudança de eixos narrativos. O Capitão e a Sereia usa o formato arena para funcionar – com a platéia, em semicírculo, assistindo a encenação. As apresentações e a turnê fazem parte do projeto Caravana Capitão, que é realizada graças ao Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz do Ministério da Cultura e do Governo Federal.

Os Clowns de Shakespeare são um grupo de pesquisa teatral da cidade de Natal – RN, que vem investigando, desde 1993, como linha principal do seu trabalho, a comicidade na obra do dramaturgo William Shakespeare. O batismo do grupo veio a partir de Manuel Bandeira e de seu poema Poética (que contesta a arte puritana e conclama por uma poesia verdadeira). A referência ao poeta Pernambucano guarda a essência do que seria a visão do clown: subvertedor da lógica do senso comum, que transforma o problema em presente, que vê o mundo de uma maneira inocente e lírica, encantando e fazendo rir, e por essa via destilando toda a sua acidez crítica, não pela via do combate, mas pelo caminho do riso. Adelvane Néia, considerada a “mãe-clown”’, é tida como a responsável por introduzir a técnica e trazer mais consistência aos trabalhos do grupo. Mesmo sem utilizar o clown na maior parte dos trabalhos que realizam, a essência da linguagem, desde então, está presente em tudo o que fazem. Dos elementos técnicos, de tempo, de olhar, de relação com a platéia, até esta forma “pessoal e intransferível” de ver o mundo, sempre pela lente distorcida do lirismo, o clownesco é característica marcante do trabalho dos atores. Assim, caminham há quinze anos, trabalhando a genialidade presente na obra do bardo inglês, porém fugindo, como já é tentado há décadas, de uma abordagem considerada pelo meio como museológica, castradora e morta de trabalhar com sua obra (embora essa “interpretação tradicional” seja hoje tão rara quanto enterro de anão no teatro nacional). ♠


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30 velho relógio estilo neoclássico, parado há décadas, se encontra na lateral do prédio do século XIX que atualmente funciona como anexo do Fórum de São Luís.


Z BEZOURO


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