Cartas a Gaspar Manuel

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Nau Quinhentista

Turma: B Ano: 5ยบ Ano Lectivo 2010/2011


Prefácio

Vila do Conde é terra beijada pelo rio Ave e abraçada pelo mar azulino. Ao longo da sua história plurissecular, os filhos de Vila do Conde habituaram-se a procurar no mar e no além-mar a riqueza e bem-estar que escasseava em terra. Vila do Conde trigueira De corpo virado ao mar. Há mil anos marinheira Mil anos a navegar1. Em Portugal, os séculos XV e XVI foram grandiosos. As conquistas e descobertas propiciaram um comércio marítimo muito lucrativo. Muitos partiram para as terras longínquas da África, da Ásia e da América. No porto de Vila do Conde havia uma azáfama constante com a partida e chegada de embarcações. Os nossos estaleiros eram um fervilhar de ofícios: carpinteiros, calafates, ferreiros. Paralelamente, a tecelagem dos gabados panos de treu, de que fala o vice-rei da Índia, Afonso de Albuquerque, em carta para o Rei. Os mestres de construção naval de Vila do Conde atingiram também notoriedade na Ribeira do Ouro, na cidade do Porto, e na Ribeira das Naus em Lisboa e em Goa. Barcas, caravelas e naus, Urcas, escunas, palhabotes, Caíques, lanchas e catraias, Saíram a barra à Senhora da Guia. Choraram noivas, mães e avós, Em cada descoberta um pouco de nós2. Construíram-se na centúria de Quinhentos vários monumentos que engrandeceram a vila, entre eles estão a imponente e rendilhada Igreja Matriz, o Pelourinho e o edifício da Câmara Municipal, apadrinhados pelo rei D. Manuel. Rasgaram-se ruas e casas fidalgas foram edificadas. Nas armadas de tantos insignes navegadores, vilacondenses seguiram viagem. Pedro de Faria e Figueiredo e o seu irmão Francisco de 1 2

Dário Marujo. Adelina Piloto.


Faria e Figueiredo foram companheiros de Vasco da Gama na descoberta da Índia. Fernão Mendes Pinto, na sua obra Peregrinação, refere-se com estima a dois nossos conterrâneos — o piloto Rosado e o comerciante Godinho. Mareantes e pilotos de renome trouxeram até Vila do Conde riquezas das diversas partes do mundo. No século XVI, um dos mais importantes pilotos de Vila do Conde foi Gaspar Manuel. Gaspar Manuel, o piloto mor Da Índia, China e Japão À Senhora agradeceu Com muita fé e devoção Mandou fazer a capela Da Senhora do Socorro Pedindo que fosse Ela Nas muitas procelas De todos os instantes Protectora dos mareantes3. Com o objectivo de estimular o gosto pela leitura e pela expressão escrita; fomentar a criatividade e a descoberta de outros povos e culturas; aperfeiçoar as competências de investigação e, de modo geral, incentivar a aprendizagem e a aplicação de conhecimentos numa perspectiva inter e multidisciplinar, os alunos da turma B, do 5.º ano de escolaridade, com a dinamização e coordenação das docentes Dores Fernandes, Fernanda Rebelo e Adelina Piloto, desenvolveram o projecto livro digital intitulado "Cartas de Gaspar Manuel, piloto-mor da carreira da Índia, China e Japão". Deste projecto inovador e inédito, desenvolvido em articulação com a Biblioteca da Escola, Língua Portuguesa e História e Geografia de Portugal, resultou as missivas que adiante se apresenta, umas de tom mais formal, outras de cunho mais familiar, todas pretendem revivescer o século XVI português seduzido pelas riquezas do oriente e, acima de tudo, proporcionar momentos de leitura agradável.

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Dário Marujo.


Dados Biográficos de Gaspar Manuel

Nasceu em Vila do Conde antes de 1535. Era filho do piloto Manuel Dias e de Cecília Fernandes. Teve, pelo menos, mais quatro irmãos, três rapazes e uma rapariga: João, Pedro, Francisco Manuel e Maria. Gaspar Manuel casou duas vezes, a primeira, em 25 de Fevereiro de 1576 com Isabel Fernandes, filha do piloto António Fernandes. Falecida a sua primeira esposa, contraiu casamento em 7 de Dezembro de 1591 com Bárbara Ferreira de Almeida, filha de Leonor de Almeida e de José Carneiro, feitor da Alfândega de Vila do Conde. Gaspar Manuel, piloto mor da carreira da Índia, China e Japão foi um homem muito rico e prestigiado em Vila do Conde. Era cavaleiro da Ordem de Santiago e, em 23 de Fevereiro de 1608, foi nomeado cavaleiro da Ordem de Cristo. Escreveu a obra “Roteiro e Advertências da Carreira da Índia”. Em momento de naufrágio iminente, prometeu à Virgem do Socorro construir por sua devoção e em sua homenagem uma capela na sua terra natal. Em 1599 obteve a licença canónica do Arcebispo Primaz de Braga, D. Frei Agostinho de Jesus. Na inscrição epigrafada na parede da capela pode-se ler: “Esta casa da invocação a Nossa Senhora do Socorro mandaram fazer por sua devoção Gaspar Manuel, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, piloto mor da carreira da Índia, China e Japão, e sua mulher Bárbara Ferreira de Almeida, ano de 1603”. Sobranceira ao Ave, em lugar altaneiro, com a sua exótica forma, a capela do Socorro continua a ser referência importante no património arquitectónico de Vila do Conde e marco indelével da diáspora portuguesa pelo mundo.


António Caetano Goa, 17 de Dezembro de 1575 Minha querida esposa:

Escrevo-te da Índia, mais propriamente de Goa. Sofri muito para aqui chegar. Temi pela minha vida e pela dos meus companheiros. E ainda conseguimos resistir a três tempestades intensas. A parte da viagem que foi mais dura e perigosa foi quando passámos o cabo das Tormentas, chamado também, pelo nosso Rei D. Manuel I, cabo da Boa Esperança. Também tivemos alguma dificuldade ao navegar no Atlântico, por causa das correntes marítimas e dos ventos contrários. Muitos homens adoeceram e dois deles não chegaram a terminar a viagem.

Nesta cidade abundam mercados repletos de produtos, drogas e especiarias, pedras preciosas, porcelanas, perfumes, sedas e madeiras. Por todo o lado se vê muita gente, homens, mulheres, muitas crianças e animais exóticos. Todos vestem longos trajes coloridos. A sua tez é escura e as mulheres têm longos cabelos negros e usam véus a cobrir-lhes a cabeça. São mui belas… Da Índia te levo panos de seda, colares, serviços de chá em porcelana, algumas pedras preciosas e perfumes… Daqui a cinco dias vou viajar para a China. Quando lá chegar, enviarte-ei outra carta. Um abraço do teu adorado esposo. Gaspar Manuel


David Mota China, 25 de Setembro de 1559 Querida Mãe; Estou a escrever-lhe esta carta com muitas saudades e para te contar como são as coisas aqui na China. Espero que esteja tudo bem aí, em Vila do Conde.

Hoje eu e a minha tripulação chegámos a Macau. Fomos muito bem recebidos pelas gentes locais. São um povo baixo e com os olhos bicudos. São muito simpáticos e educados. Aqui o principal alimento é o arroz que existe com fartura. Têm por costume beber uma água morna com aroma a ervas a que chamam chá. É realmente bom. Aqui não usam paredes no interior das casas, usam umas divisórias de pôr e tirar, muito frágeis, chamadas biombos. Não usam as mãos para comer, comem usando dois pauzinhos de madeira. Na feitoria de Macau o comércio é bastante intenso. Eles oferecem especiarias como noz-moscada, cravo, canela, pimenta e drogas que são usadas como remédios. Também oferecem porcelanas, perfumes, e sedas. A maior parte dos portugueses que cá vivem dedicam-se ao comércio. Alguns comerciantes chineses já aprenderam a falar algumas palavras de português para facilitar as trocas comerciais. Eu voltarei em breve. Muitos beijinhos. Gaspar Manuel


Diogo Simão Goa, 19 de Dezembro de 1560 Olá mãe. Como estás? Finalmente chegamos à India. Esta foi, talvez, a viagem mais atribulada de toda a minha vida. Logo após ter zarpado de Lisboa e mesmo antes de ter chegado à Madeira tivemos uma grande tormenta que fez entrar água na nossa nau. Por isso aportámos em Cabo Verde para os calafates tratarem do navio. Esta paragem até nem foi má porque já estávamos a precisar de mantimentos frescos, especialmente água, alguns vegetais e frutas pois sempre quis evitar que os meus marinheiros sofressem de escorbuto. Serviu também para preparar as etapas seguintes que teriam de ser feitas à bolina, ou seja, navegar com ventos contrários (ventos alísios). Os homens também aproveitaram para descansar um pouco destas primeiras semanas de viagem. E lá seguimos depois o caminho da Índia, sempre utilizando o astrolábio, o quadrante e a balestilha de modo a optimizar os nossos tempos de viagem. Esta nau não é mais do que um aumento da caravela original, pois acrescentámos-lhe um castelo na ré e mantivemos as velas latinas e quadrangulares. Partimos de novo para a última parte da viagem atlântica. Os marinheiros começaram a ficar preocupados com o aproximar do Cabo Da Boa Esperança. O mito do Adamastor ainda assusta muito os marinheiros, mas tudo correu bem e entrámos no Indico para grande felicidade nossa. Estávamos na última fase da viagem voltando de novo a bolinar. O resto da viagem correu de forma serena e aportámos em Goa onde descarregámos as mercadorias (panos, cobre e chumbo, entre outras).Estamos agora a carregar a nau com especiarias (pimenta e canela, noz-moscada açafrão, gengibre e cravo) mas também com panos de seda, tapeçarias, perfumes e outros produtos de luxo para levar para o reino de Portugal. Espero em breve poder-te abraçar-te novamente, minha mãe querida. Do teu filho Gaspar Manuel


Goa, 1 de Março de 1560 Fernando Querida esposa,

Espero que quando receberes esta carta estejas com muita saúde e feliz. Eu estou em terras do Oriente, com muitas saudades de todos e do nosso país. Depois de muitas dificuldades no mar, os nossos barcos finalmente chegaram à Índia, graças ao rei D. Manuel I, o Venturoso, pois é no seu reinado que conseguimos fazer esta longa viagem até à Índia. Estamos numa terra de paisagens muito diferentes das nossas e com um clima mais suave. Encontrámos povos de costumes, religião e modos de vida diferentes dos nossos. São povos pacíficos, com quem podemos fazer trocas comerciais e aprendemos muitas coisas que nos são úteis no dia-a-dia. Aprendemos, por exemplo, a usar as especiarias na preparação de novas receitas e a utilizar várias plantas como remédios quando precisamos de curar algumas doenças. Levaremos muitos produtos para Lisboa: canela, pimenta, nozmoscada, chá, banana, laranja doce… Também levaremos animais que são desconhecidos para os portugueses: elefantes e rinocerontes. Ficarás assustada com o seu tamanho. Imagino o porto de Lisboa, em pleno século XVI, com um colorido especial e cheio de gentes de outros países a trocarem mercadorias e conhecimentos. Nestas terras também deixamos marcas da nossa presença. Construímos igrejas e fortalezas e ensinamos um pouco da nossa língua. Não te preocupes com a minha longa ausência pois estou bem, apesar das saudades. Na próxima carta, conto-te mais coisas. Cumprimentos a toda a família e recebe de mim um grande abraço.

Gaspar Manuel


Francisca

Índia, 7 de Junho de 1598

Minha querida esposa: Então como vai vossa senhoria? Eu estou bem, na graça de Deus e espero voltar a vê-la daqui a alguns meses depois de estabelecermos a nossa feitoria em Goa. Quando cá chegámos, achámos tudo muito estranho, mas a pouco e pouco fomos fazendo os nossos contactos e ganhámos alguma confiança entre os indianos. Como já cá tinha vindo, algumas das caras não me são estranhas mas ainda não dou muita confiança, não quero arranjar problemas. Este povo também costuma comprar madeiras para construir as casas. Não se preocupe vossa senhoria com a minha ausência. Despeço-me com muitos beijos e saudades. Do vosso amado esposo. Gaspar Manuel


Francisco Maia Costa Índia, 14 de Junho de 1592

Querido pai, As saudades são muitas. Passamos vários meses no mar. A vida no barco não é fácil, entre tempestades e dias de sol abrasador vamos tentando sobreviver poupando principalmente a água potável que temos no barco. Comemos carne salgada e peixe que vamos salgando. No Oriente as pessoas são diferentes na forma de vestir, na cultura e religião. Imagine que adoram vários deuses e de Cristo nunca ouviram falar! A necessidade de cristianizar é muita e já vejo o nosso vice-rei a mandar construir igrejas, a fundar escolas e seminários para ensinar a nossa cultura e religião cristã. A língua também é um entrave à nossa comunicação, mas as trocas comerciais são muitas porque eles apreciam os nossos metais preciosos, o ouro, a prata e o cobre são trocados por pedras preciosas e panos de seda, por madeiras exóticas e pelas especiarias, como sabe, muito procuradas no reino. O nosso vice-rei, D. Francisco Coutinho, oferece grandes banquetes e festas animadas aos comerciantes da região. Entre os Portugueses e os povos da Índia existe clima de paz e colaboração, algumas más-línguas querem desestabilizar esta harmonia, mas com a graça de Deus e a inteligência dos nossos diplomatas, políticos e comerciantes, temos mantido as boas relações. Muito mais tenho para vos contar, quando regressar a Portugal prometo que o farei pessoalmente. Com saudades me despeço.

O vosso filho, Gaspar Manuel


Francisco Silva Goa, 23 de Junho de 1552

Queridos pais:

Tenho novidades para vós. Aqui no Oriente tudo é diferente de Portugal, as pessoas, os costumes e até a religião. Tentamos adaptarmo-nos o melhor possível ao clima e às gentes. O mais importante é que cá fazemos bons tipos de comércio, nós trazemos vermelhão, cobre, prata e ouro (por amoedar ou amoedado) que trocamos por drogas (incenso, mirra, ruibarbo, cânfora, maná), especiarias (pimenta, gengibre, noz-moscada, cravo, canela), pedras preciosas, porcelanas, perfumes, sedas e madeiras. As drogas asiáticas são usadas como remédio e as especiarias asiáticas são usadas na alimentação. Nós comerciamos na Rua Direita, em Goa, e nas principais feitorias portuguesas (“Goa”, Malaca e Macau).

Até sempre queridos pais. Do vosso amado filho, Gaspar Manuel


Hugo Lima Vila do Conde, 04-08-1606

Exmo. Senhor Vice-Rei da Índia D. Martim Afonso de Castro

Gostaria de lhe dar a conhecer a bonita cidade onde vivo, chamada Vila do Conde. Situada perto do mar, constitui-se como um elemento importante na epopeia marítima de Portugal e como local de troca de mercadorias. Nos seus estaleiros constroem--se naus e caravelas em larga escala, algumas das quais daqui saem em direcção à Índia. Vila do Conde é uma cidade que remonta a tempos muito antigos, tão antigos que sabemos já existir antes de Portugal. O primeiro documento que aborda Vila do Conde é o documento da venda da cidade ao Mosteiro de Guimarães. Nasceu algures no primeiro milénio, tendo começado por ser um pequeno povoado situado no monte, protegido por uma espécie de muralha. Existem várias teorias sobre o aparecimento do nome Vila do Conde. Uma das que tem mais adeptos é a de que terá sido Afonso Betote o seu “padrinho”, embora não haja certeza disso. Vila do Conde é uma cidade rica em monumentos, testemunhos da nossa história. Gostaria de lhe dar a conhecer melhor esses monumentos: A Igreja Matriz A igreja matriz começou a ser construída entre 1496/1497 e ficou pronta em 1515. Feita em estilo manuelino, a construção desenrolou-se com o crer dos habitantes e o importante apoio do rei D. Manuel I.


Foi construída junto à rua dos Mourilheiros e é uma das igrejas mais antigas de Vila do Conde. A Capela do Socorro A capela do socorro foi mandada construir por mim em 19-03-1599. Construída sobre um maciço rochoso, junto à Foz d Ave. Marca, sem dúvida, a paisagem desta linda Vila. O Mosteiro de Santa Clara Mandado construir em 1314 por D. Afonso Sanches, ficou concluído em 1318. Este mosteiro constituiu-se como um convento feminino e inclui uma bela igreja gótica. À sua volta circulam lendas, milagres e histórias sobre as suas freiras. Com esta descrição espero ter aguçado o seu apetite a ponto de nos dar a honra da sua visita. Daqui poderá igualmente resultar uma grande troca de experiências, com óbvios proveitos para as nossas regiões.

Aqui vos espero. Graciosos cumprimentos, Gaspar Manuel Piloto-mor da carreira da Índia, China e Japão


João Paulo Duque dos Santos

Calecut, Índia, 25 de Julho de 1560

Olá caros amigos! Aqui da Índia está tudo bem. E por aí em Vila do Conde, como estão as coisas? A viagem para a Índia foi muito difícil, mas conseguimos ultrapassar todos os obstáculos. Saímos de Lisboa a 8 de Agosto de 1559 e chegámos a Calecut a 24 de Junho de 1560. Morreram perto de 100 amigos com escorbuto e 148 em acidentes marítimos. Quando aqui chegámos tivemos algumas dificuldades. Começamos a sentir hostilidades criadas pelas intrigas dos mercadores muçulmanos. Contudo, nem tudo é mau. Testemunhámos hábitos fantásticos de todo um povo. Refiro-me aos costumes, religiões (Hinduísmo, Budismo, Jainismos e Sikhismo) e festas populares (Diwali, Holi, Durga Puja, Eid ul-fitr, Eid al-Adha, Natal e Vesak, entre outras) que tal como em Vila do Conde, têm muito valor, mas aqui tem um especial encanto: o ambiente exótico. As roupas tradicionais são fenomenais e têm um intenso jogo de cores! «Sari» para as mulheres e «dhoti» para os homens. Do pouco tempo que tive para me dedicar aos pequenos prazeres que tanto gosto, como passear, apreciar e conhecer novas culturas, já deu para perceber que a arquitectura indiana possui diferentes variações a nível regional por influência de algumas religiões de que já te falei. Visitei algumas mesquitas e estupas (construções livres, feitas de pedra e tijolo, eram usadas para guardar relíquias sagradas), que são novas formas de arquitectura, introduzidas pelos muçulmanos. Mas o mais importante de tudo foi o que descobrimos: novas terras, como esta de onde te escrevo! Vamos ficar por terras indianas por mais algum tempo. Até ao meu regresso! Gaspar Manuel


Luís Henrique

Índia, 23 de Setembro de 1580 Estimado pai: Estou a escrever-te desta terra muito diferente da nossa. Espero que esteja tudo bem por Vila do Conde. A viagem até cá foi muito difícil, porque enfrentámos correntes marítimas e ventos contrários. As tempestades foram terríveis, com ondas a alcançarem os 15 metros e os relâmpagos a atingirem algumas naus e caravelas. A água entrava pelo convés e pela proa e os marinheiros eram atirados borda fora. O maneio das velas foi muito difícil. Por tudo isto, chegaram cá poucos marinheiros. Muitos morreram com escorbuto. Quando cá chegámos ficámos fascinados com aquilo que vimos. Os cheiros eram muito diferentes. Há produtos que você meu pai desconhece. Nós trouxemos nas naus cobre, prata e ouro amoedado ou por amoedar para trocar por drogas, especiarias, pedras preciosas, porcelanas, perfumes, sedas e madeiras para levarmos para Portugal. O primeiro contacto não foi fácil porque eles desconfiavam das nossas intenções, mas a pouco e pouco estamos a conseguir estabelecer relações de comércio e de confiança. Do teu estimado filho: Gaspar Manuel

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Luís Pires

Macau, 7 de Agosto de 1567 Sua Majestade El-Rei D. Sebastião, Venho através desta carta comunicar que me encontro em terras chinesas. Fiquei, desde logo, interessado vivamente pela cultura deste povo. Mas o mais importante são as suas riquezas, nomeadamente, especiarias, drogas, perfumes, pedras preciosas, madeiras em abundância, porcelanas e sedas. Estou fascinado. Como é do conhecimento de Sua Majestade, já existe um intercâmbio comercial entre os Chineses e os Indianos, realizado por mercadores guzerates. Como é sabido eles trocam entre si especiarias por porcelanas e seda Chinesa. No meu entender, seria mais lucrativo para nós, portugueses, eliminar os atravessadores e sermos nós próprios a negociarmos com os Chineses. Saiba Sua Majestade que era do nosso interesse adoptar o mesmo procedimento que adoptamos na Índia, ou seja, comprar barato através da intimidação pela força das nossas armas. No entanto, tal não vai ser possível, já que nos deparámos com uma armada composta por quarenta juncos grandes e vinte e cinco outras embarcações menores de remo. Além de que estavam presentes sete mil homens, sendo cinco mil soldados e dois mil marinheiros. Perante tal situação, e atendendo a que estamos perante um povo devidamente preparado para resistir a qualquer invasão, proponho que o problema deva ser contornado por meio da diplomacia. Creio mesmo que não haja outra opção, porque para além de uma marinha forte e de um exército terrestre numeroso, é impossível encontrarmos aliados entre os nativos da terra e muito dificilmente encontramos piratas como aliados, já que a lealdade ao Imperador é sempre colocada em primeiro plano pelos Chineses e este é um Império muito poderoso. Por agora, despeço-me de Vª Majestade. Até breve, Gaspar Manuel


Maria João O. Tomás Goa, 6 de Abril de 1557 Caro sogro:

Espero que estas minhas parcas palavras encontrem Vossa Senhoria e restante família de saúde, pois por aqui está tudo conforme a vontade de Deus. A viagem correu bem, apesar de termos sofrido algumas baixas, devido ao terrível escorbuto que vitimou alguma da minha tripulação. Na região onde nos encontramos, a população é muito afável, têm demonstrado ser um povo muito conhecedor e organizado. Têm o agradável costume de nos oferecer numa bandeja galante, uma porcelana com água morna a que chamam chá. Como já deve ser do vosso conhecimento, o Nosso Excelentíssimo rei Dom João III acaba de nomear um novo Governador-Geral ou Vice-Rei da Índia, para que, com amplos poderes, possa, em seu nome, governar as terras do Oriente e para garantir junto dos senhores soberanos locais, boas relações de comércio e amizade. Espero que este se iguale ao guerreiro audacioso e hábil político Afonso de Albuquerque, que conquistou grandiosas cidades, situadas em pontos estratégicos, nomeadamente esta bela cidade onde me encontro, Goa e outras, tais como Malaca e Ormuz.

Muito em breve regressaremos a Portugal, com as naus repletas de ricos produtos, drogas e especiarias, pedras preciosas, porcelanas, perfumes, sedas e madeiras, que trocámos por vermelhão, cobre, prata e ouro. Um saudoso abraço, Gaspar Manoel


Mariana Marques

Minha querida esposa, No dia santo de 23 de Abril deste ano 1577, escrevo-lhe minha amada esposa Isabel Fernandes, para lhe contar as minhas aventuras e desventuras a caminho desta terra longínqua, um ano depois de vos ter deixado na foz do Ave, em Vila do Conde. Vir à Índia é uma viagem longa, cansativa e cheia de imprevistos. Fomos várias vezes apanhados por tempestades terríveis, mas também chegámos a ficar parados por falta de ventos durante vinte dias. O calor era intenso, a água doce ficava choca e os alimentos estragavam-se. Todos nesta nau ansiávamos pelos ventos alísios para prosseguirmos o caminho. Parámos nas ilhas de Cabo Verde para fazermos “aguada” (paragens para reabastecer água e alimentos frescos). Seguimos pela costa africana, e em arco, quase até ao Brasil, avançámos para o cabo da Boa Esperança. As tempestades eram terríveis! Muitos homens se perderam. Com o tempo favorável e já no mês de Agosto torneámos a ilha de S. Lourenço (actual Madagáscar)e dirigimo-nos a Goa. Pelo caminho fizemos paragens na costa moçambicana. Penso que fiz o que me competia na minha função de piloto, encarregado da navegação deste navio. Ancorámos em Goa, a 22 de Outubro e ficámos espantados com esta terra do oriente. Vimos coisas e homens muito diferentes. Os homens são de pele escura, têm barbas grandes e cabelos lisos. Andam nus da cinta para cima e para baixo trazem uns panos de algodão. As mulheres trazem ao pescoço muitas jóias de ouro e nos dedos dos pés anéis com pedras preciosas. Nesse mesmo dia o vice-rei D. Luís de Ataíde convidou-nos para um banquete no seu palácio. Nem imaginas o luxo! Serviram-nos pratos variados à base de peixe, verduras e aves. Uns eram adocicados ao paladar e outros muito picantes. A refeição era servida em pequenas bancas onde eram pousados os tabuleiros com a comida diante das almofadas onde nos sentávamos no chão.


Estava presente um príncipe indiano vestido com roupas em seda e com um turbante na cabeça, cheio de adorno com pedras preciosas; ao seu lado a princesa apresentava um vestido em seda com um véu sobre a cabeça, e um cordão de prata com pedras preciosas unindo a orelha à narina. Mas o que mais me impressionou para além do luxo e da riqueza, foi o cheiro intenso a especiarias. No dia seguinte, encontrámo-nos com um comerciante indiano descendente do português com o nome de Diogo Garcia, que nos levou até ao mercado e desde então temos feito negócios com produtos provenientes de Ceilão. Temos já as naus carregadas com cheiros exóticos da noz -moscada, da pimenta, da canela, do cravinho e do açafrão que para além de serem utilizados no tempero da comida, combatem problemas do estômago, melhoram o hálito e a cor do rosto. Lá para o mês de Dezembro iniciaremos a nossa viagem de regresso, segundo diz o nosso mestre e chegaremos a Lisboa, se Deus quiser, lá para Maio. Só espero que toda a carga que carregamos não seja demasiada pois há sempre quem queira mais do que aquilo a que tem direito. Com os perigos que nos aguardam, o sentimento até à partida é de angústia e aqui deixo a promessa, que se Deus nos prestar auxílio durante esta jornada até Lisboa e de Lisboa a casa, irei mandar erguer em honra de Nossa Senhora do Socorro uma capela na minha terra natal, Vila do Conde. Ansioso por vos ver, O vosso esposo, Gaspar Manuel


Mariana Filipa Cardoso da Silva

Índia, 02/06/1587

Minha querida e amada esposa, A viagem correu mais ou menos bem, houve algumas dificuldades a bordo, mas conseguimos chegar ao nosso destino. Quando chegámos a terra firme, encontrava-se à nossa espera o vice-rei da Índia para nos mostrar os produtos que iríamos comercializar. Aqui na Índia não é lá muito fácil viver e o comércio é imenso. Há tantos produtos para comercializar como, por exemplo, as drogas, usadas como remédio (incenso, mirra, ruibarbo, cânfora e maná); as especiarias (pimenta, canela, noz-moscada) usadas na alimentação e como conservantes; as pedras preciosas; as porcelanas; os perfumes; as sedas; as madeiras e ainda outros produtos como o coco, a banana, a laranja doce, o chá, a soja, o gengibre e o cravo. Em troca, nós damos ouro, prata, cobre e vermelhão (amoedado ou por amoedar). Para além destes produtos, também transportamos livros, ideias, informações, curiosidades, novidades, para contar aí em Portugal, e ainda algumas plantas e animais. Aqui produzem algodão em pluma, arroz, chá, castanha de caju, juta, café, cana-de-açúcar, legumes, verduras, trigo, especiarias e feijão. Também cá existe uma mina, da qual retiram minério (ferro, diamante, carvão, asfalto natural, cromita). Não sei se sabes que no tempo do nosso rei D. Manuel I, levaram daqui da Índia um rinoceronte e alguns elefantes, animais que eram desconhecidos na Europa. Os missionários portugueses estenderam-se, não só para o interior da Índia, mas também para a China e para a Pérsia, onde construíram igrejas e fundaram escolas e seminários.


Em breve estarei outra vez ao teu lado contando-te maravilhosas aventuras que passei entre mares, batalhas contra os ventos e lutas contra as correntes.

Com muitas saudades,

do teu marido

Gaspar Manuel


Miguel Dinis Pacheco

Goa 12 de Abril de 1593 Minha querida esposa: A viagem foi dura, e da frota que levamos perdemos duas naus que naufragaram devido às tempestades violentas que enfrentámos. Em algumas delas vi capitães, pilotos e marinheiros meus amigos a morrerem. Muitos membros da tripulação não resistiram a doenças estranhas em que os doentes morriam com hemorragias e os dentes até lhes apodreciam e caíam, outros não aguentaram o calor extremo com que nos deparávamos e o boticário sentia-se impotente perante tais situações. Quando chegámos ao nosso desejado destino, à Índia, apesar de cansados, mas alvoroçados e felizes tínhamos o vice-rei da Índia, Matias de Albuquerque, à nossa espera. As naus começaram a ser descarregadas e de lá saía ouro, prata, cobre e vermelhão. O vice-rei apresentou-me a comerciantes que iriam comercializar aqueles produtos. Esses produtos iriam ser postos à venda nos mercados de Goa e fui informado que iria levar para Lisboa produtos muito valiosos que todos desejavam, como as famosas especiarias, sedas, perfumes e porcelanas, entre outras riquezas orientais. Claro que não pude deixar de pensar em ti e como ficarias bela vestida com estas sedas, com os colares cheios de pérolas e cheirosa como uma rosa com os perfumes. Ficarias com certeza uma verdadeira rainha,”A Rainha do Ave”. Espera e ficarás feliz e surpreendida com os meus presentes. Daqui a algumas semanas partirei para Portugal onde me encontrarei com o nosso amado rei e de seguida, voltarei para os teus braços que tanto anseio. Dá Saudades minhas aos meus queridos pais e ao resto da família. Do teu querido marido, Gaspar Manuel.


Paulo Barros, Calecut, 5 de Junho1570 Caro sogro, Envio-lhe esta carta para lhe dar novidades dos mercados do Oriente. Como sabe, os mercados da Índia, da China e do Japão eram controlados pelos mercadores árabes e seus produtos chegavam à Europa ocidental através do mar Mediterrâneo, controlado por Veneza, Génova e outras cidades italianas. O grande número de intermediários nesse longo trajecto encarecia muito as mercadorias. Mas, Vasco da Gama, em 1498, descobriu uma nova rota marítima que liga a Europa directamente aos mercados do Oriente, assim o preço das especiarias reduziu-se e as camadas da população europeia com poder aquisitivo mais baixo puderam consumi-las, chegando assim a todos e aumentou os lucros para a coroa. Os principais produtos vendidos nos mercados do Oriente, são: - Especiarias ( noz-moscada, cravinho, gengibre, pimenta ) - Sedas. - Porcelanas e pedras preciosas. - Madeiras. Sem outro assunto de momento, despeço-me com grande estima e consideração. Gaspar Manuel


Paulo Pontes Vila do Conde, 10 de Junho de 1583 Excelentíssimo Vice-Rei Francisco de Mascarenhas, Venho comunicar a vossa excelentíssima que está para breve a minha partida para a Índia. Tenciono largar do porto de Vila do Conde depois da festa de São João, que é como V.ª Excelência sabe, o padroeiro desta linda terra na foz do Rio Ave, e por isso conhecida como a princesa do Ave. É uma festa mui animada com noitada de fogo-de-artifício e importante procissão, e eu como grande devoto não a posso perder. A nau que destinei para a viagem está a ser preparada pelos carpinteiros e calafates da ribeira de Vila do Conde. Estão a reforçar o seu casco para poder transportar mui e variadas mercadorias desta terra. Estão também a apetrechá-la com peças de artilharia para o caso de sermos atacados por navios piratas. Como V.ª Ex.ª conhece, os ingleses e holandeses, e até mesmo os franceses estão a aproveitar-se das nossas descobertas e dos nossos negócios para ficarem ricos à nossa custa. Atacam as nossas embarcações em alto mar, matam os nossos marinheiros e ficam com os barcos e com as mercadorias que transportámos. É um roubo! Mas em alto mar não há lei que nos valha, só a força dos canhões, a perícia dos pilotos e a coragem dos nossos militares. Desde que Portugal perdeu a sua independência a pirataria contra nós aumentou, pois os inimigos de Espanha passaram também a ser nossos inimigos e por isso os perigos no mar são cada vez maiores. Se tudo correr bem, vemo-nos daqui a dez meses, em Goa.

Do vosso piloto e amigo, Gaspar Manuel


Pedro Daniel Fernandes Ferreira

Carta ao rei D. João lll sobre as grandezas da China Cochim, primeiro dia de Junho de 1556.

Vossa Majestade, Posto que esta viagem às terras do Oriente nos trazem tão extraordinárias revelações, conhecimentos e riquezas, que nesta navegação realizei, não deixarei de dar conta disso a Vossa Alteza. Nesta terra há muitos grandiosos arcos triunfais que enfeitam as ruas das principais localidades. Estas construções são coroadas por galantes edifícios de madeira, todas cobertas com bonitas telhas de porcelana. A gente que passa pode abrigar-se da chuva e do sol debaixo desses arcos, onde aliás se vendem muitas frutas e brincos. Esta gente é muito respeitosa na forma como conversam e vestem. Em qualquer casa chinesa oferecem aos visitantes uma porcelana pequena com uma água morna a que chamam chá que é vermelho e muito medicinal. Os chineses de posses têm vulgarmente uma mulher principal com quem vivem, mas podem manter outras em diversas casas. Os homens preferem as mulheres que têm os narizes e os pés pequenos e por isso têm o hábito de apertar muito os pés com panos às crianças do sexo feminino. As mulheres são muito brancas e gentis, trazem


os cabelos muito bem cuidados, presos e atados no cume da cabeça e apertados com uma fita bem ornamentada com jóias e peças de ouro. Usam saias compridas ao modo das portuguesas. Os Chineses têm os olhos pequenos e rostos e narizes esmagados e com uns cabelinhos nas maçãs das barbas. São muito corteses, sendo o seu trajo comum pelotes de pregas compridas ao nosso bom modo antigo. Usam cabelo comprido como as mulheres, trazem-no atado no cume da cabeça e o nó atravessado com um prego de prata. Os chineses gostam sobretudo de conversar à mesa gastando tempos infinitos em grandes banquetes que chegam a demorar vários dias. Usam para comer dois pauzinhos dourados muito bem ornados à moda de tenazes. Dão tanta importância à comida que o cumprimento habitual entre amigos é “chifã mesão” que quer dizer comeste ou não. A carne de porco é tão apreciada que é utilizada na alimentação dos enfermos. A gente mais pobre não desdenha comer carne de cão e comem toda outra sujidade, gatos, sapos, ratos e cobras. As rãs têm cá o preço das galinhas. Vendem cães feitos em quartos, assados, cozidos e crus, e com as cabecinhas peladas e com as orelhas. O peixe nunca falta nas praças assim como os caranguejos, ostras e outros mariscos. As frutas são abundantíssimas. Há uma espécie de ameixas redondinhas a que chamam “lechias”, sendo muito apreciadas. Muito curiosa é a escrita deles, pois tudo o que escrevem é por figuras significando cada letra uma coisa. E desta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que vi nesta vossa terra. E, se de algum modo me alonguei, perdoe-me Vossa Majestade, pois o meu desejo foi o de Vos contar tudo com grande detalhe. E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Beijo as mãos de Vossa Alteza Gaspar Manuel

Carta baseada nos documentos: Estrutura - Carta de Pêro Vaz de Caminha Informações - “Tratado das Cousas da China” de Galiote Pereira e Frei Gaspar da Cruz.


Posfácio A partir de factos históricos documentalmente comprovados, os alunos do 5.º B deram largas à criatividade. Imaginaram ser Gaspar Manuel, piloto audacioso e valente a navegar pelos mares distantes da Índia, China e Japão, a enviar cartas para os familiares e amigos, assim como para as autoridades nacionais. Nessas missivas, ora descreve os monumentos e tradições da sua terra natal, ora relata a sua vivência com povos e culturas tão diferentes, assim como os perigos mil que tem de enfrentar no mar juntamente com a sua tripulação. Lembra também que prometeu construir uma capela na sua terra natal à Senhora do Socorro se Ela lhe conceder a graça de voltar são e salvo ao lar. Os objectivos delineados para a actividade foram plenamente atingidos. Estão, pois, de parabéns os alunos do 5.º B que se envolveram com empenho na concretização deste projecto, assim como os docentes que dinamizaram e coordenaram esta interessante actividade sobre um dos pilotos de maior prestígio do século XVI, natural de Vila do Conde.



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