Reflexões: problemas filosóficos

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REFLEXÕES: PROBLEMAS FILOSÓFICOS

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Coordenação: Carla Sardinha

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Solicitei aos meus alunos de Filosofia do 10º ano que visualizassem o documentário Human de Yann Arthus-Bertrand ou o filme Okja de Bong Joon-ho. O objetivo era fazer com que os mesmos refletissem sobre algo que os desinquietasse. Como resultado deste desafio, alguns destes jovens filósofos produziram reflexões bastante interessantes, pertinentes e sentidas sobre diferentes problemas filosóficos. Houve quem falasse do amor, outros da pobreza e das suas implicações. Abordou-se também a questão da injustiça social, da liberdade, da discriminação, da cultura enquanto condicionante da ação humana, da felicidade e da ética. Carla Sardinha (Professora do Grupo Disciplinar de Filosofia)

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O que é a Liberdade?

“Liberdade é, de um modo claro e objetivo, a capacidade de agir sem consequências. Portanto, se nós tivéssemos total liberdade, por que razão existiriam prisões? E tribunais? Atenção, não sou a favor da total liberdade, mas se não somos totalmente livres, por que motivo nos dizem que somos livres? Será que a liberdade não passa de uma mera ilusão criada para satisfazer as necessidades humanas? Será que, como disse Léon Tolstoi, a liberdade não é um fim, mas uma consequência? Ora, este é um daqueles temas que dá que falar porque todos nós temos opiniões acerca do assunto e nem todos concordamos com as opiniões alheias. Eu escolhi abordar este tema porque ouvi um depoimento de uma rapariga que decidiu abortar para continuar os seus estudos, e como consequência, tinha sido condenada à prisão. Portanto, se isto não é a ilustração perfeita de que a nossa liberdade é nada mais, nada menos do que uma mirabolante ilusão em que nos cobrem para nos controlar, não sei o que será! Esta rapariga engravidou com 14/15 anos e decidiu abortar porque, vejamos bem, uma pessoa com 15 anos não está preparada seja física, seja psicologicamente, para ter um filho porque, com é evidente, temos de ser extremamente responsáveis e para ter o filho, teria de interromper os seus estudos. Se isto é liberdade, então temos de retificar a nossa noção/conceito do que é a liberdade, porque se liberdade, perante a nossa perceção, é agir sem consequências, então isto não é ser livre! Para além de que a decisão de querer ou não ter o filho cabe, inteiramente, à rapariga! Ora, se esta decide não ter o filho, temos apenas que respeitar. Na minha opinião, nós temos liberdade limitada e, como referiu Sartre “A liberdade de cada um termina onde começa a do outro”. Guilherme Rodrigues 3


Imagem de Jills por Pixabay

Perplexidades…

Na primeira entrevista, Leonard (EUA) falou de duas formas diferentes de manifestar o amor, uma através da violência, e que ele acabou por repetir na vida adulta, e outra através do perdão, da compaixão. Ele descobriu que o amor está para além das circunstâncias e condições de cada um. Nas outras entrevistas, ouvimos outras formas de amar. Destaco a frase da Petronila (República Dominicana): “É o amor que preenche a alma”, o que para mim faz muito sentido. Podemos amar pessoas, a natureza, os animais, mas por que não começarmos pelo nosso amor-próprio? 4


O amor pode ser vivido e sentido de várias maneiras, independentemente do género, “raça”, número de pessoas, religião, etc. Contudo, acredito que aquilo que é comum a todas as suas manifestações é o facto de o amor ser uma espécie de motor da vida. Nesta lógica do amor e das relações, as entrevistas seguintes falam sobre igualdade e desigualdade de género em diferentes culturas. As mulheres muito têm lutado ao longo dos tempos, mas ainda assim estamos longe de atingir uma verdadeira igualdade de género. As desigualdades acontecem de formas diferentes, mais ou menos evidentes, mais ou menos aceites, de acordo com as culturas. Infelizmente, situações de violência doméstica marcam bastante esta realidade. No entanto, a violência doméstica é algo que não atinge só as mulheres, mas também os homens. O documentário também expõe outro tipo de desigualdades, como, por exemplo, as condições e direitos no trabalho, pois algumas pessoas são exploradas pelos patrões e outras têm que emigrar para outros países à procura de uma vida melhor. A pobreza faz com que as pessoas percam a oportunidade de viver a vida, pois estão sempre em “modo” de sobrevivência. Para muitos “a pobreza é um estado duradouro”, algo que me entristece pela injustiça que carrega. A distribuição da riqueza no mundo devia ser mais equilibrada. Tantas pessoas a deitar fora comida, a comprar coisas caras e desnecessárias e nem pensam ou se preocupam com aquelas que nada têm ou com as que trabalham incontáveis horas sem, no entanto, conseguirem sair desse estado de pobreza. Os relatos das pessoas fazem-nos pensar sobre o que é a pobreza e compreender que existe muita gente pobre mesmo que trabalhe. O documentário mostra-nos um mundo repleto de injustiças, o fosso entre os ricos e os pobres, a discriminação, a violência,… e governos que não mostram competência para proteger a população. Mas, mesmo que tivessem, talvez seja preciso mais alguma coisa… Talvez mudar estas realidades seja uma responsabilidade de todos. Afinal, SOMOS TODOS IGUAIS, SOMOS TODOS SERES HUMANOS. Maria Martins

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A cultura condiciona a liberdade?

Imagem retirada de Human, de Yann Arthus-Bertrand

Com este ensaio pretendo demonstrar como a cultura de um indivíduo condiciona as suas ações e, consequentemente a sua liberdade. Considero a liberdade um importante tema de reflexão. Este é um tema que nos toca a todos como seres Humanos, e refletir sobre o mesmo obriga-nos a informarmo-nos e, desta forma, a formular uma opinião e posicionarmo-nos em relação às várias questões adjacentes à liberdade. Deste modo, viso responder à questão “A cultura condiciona a liberdade? Primeiramente, acho importante definir Liberdade. Este termo designa a possibilidade de agir na ausência de repressões ou constrangimentos no momento de escolher ou fazer algo, ou no momento de evitar escolher ou fazer algo. Apenas nesta pequena definição já é possível relacionar as condicionantes histórico-culturais com a liberdade. As condicionantes histórico-culturais são um conjunto de fatores associados ao mundo co-humano do ambiente histórico, social e cultural, a partir dos quais se constrói a nossa humanidade e se definem modos de ser, estar e sentir. Com isto, e com base na visualização do documentário Human exponho a minha opinião sobre este assunto. Um dos depoimentos que mais me tocou neste documentário foi o de Cynthia, uma rapariga originária do Ruanda. Cynthia relata que está presa por ter abortado. Logo aqui coloco uma questão, houve liberdade na escolha de Cynthia? Partindo da definição de liberdade anteriormente referida, conseguimos perceber que houve repressão e 6


constrangimento no momento da sua escolha. Ela pôde escolher abortar, mas foi presa por isso, uma vez que na sua cultura o aborto é considerado crime. Sou da opinião de que este depoimento é uma prova clara de como a cultura condiciona a liberdade. Se Cynthia fosse de origem, por exemplo, europeia, onde o aborto não é considerado crime, não seria presa pela sua escolha. Cynthia abortou, pois se não o fizesse, teria que pôr os estudos de parte. Independentemente de qual fosse o seu motivo e por mais argumentos que haja contra o aborto, ela não deveria ser impedida de o fazer e deveria poder tomar uma decisão livremente, independentemente da sua cultura. Outro depoimento que me fez refletir bastante sobre este tema foi o de Abeer. Abeer é uma mulher de origem libanesa que depois de dez anos casada decidiu divorciarse. Não aceitando a sua decisão, o seu marido esfaqueou-a várias vezes até que Abeer pensou que ia morrer. Este é mais um chocante relato de como a cultura afeta a liberdade. No Líbano, a mulher ainda é vista como propriedade do homem, e o divórcio não é bem aceite. Se a mulher libanesa optar pelo divórcio, perde a guarda dos filhos para o ex-marido, ou seja, não é livre de tomar essa e muitas outras decisões sem ter consequências que podem ser até fatais. Por último, decidi falar sobre o relato que mais me tocou em todo este documentário. Leonard, dos EUA, nasceu numa família problemática. A educação que lhe foi dada e a cultura em que cresceu, onde a violência era constante e considerada um ato de amor, impactou a sua perceção em relação ao mesmo, e isso refletiu-se na sua vida e condicionou as suas ações futuras. Leonard tirou a vida a uma criança e a uma mulher e, por esse motivo, foi preso. É certo que este ato de Leonard foi consciente e voluntário, e não é por ter crescido numa determinada cultura que cometeu um crime, mas, como já referi, penso que as suas ações e a sua percepção do que é certo e errado foram de facto condicionadas pela cultura em que cresceu. Ao refletir sobre a história de vida de Cynthia, Abeer e Leonard, de três culturas distintas, e ao informar-me sobre o tema da liberdade, concluo que a cultura condiciona as ações e a liberdade de um indivíduo. Rosa Poranen

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Circuncisão feminina: uma tradição inaceitável A mutilação genital feminina (MGF), ou circuncisão feminina, é a remoção ritualista de parte ou de todos os órgãos sexuais externos femininos. Geralmente este ritual é efetuado por uma circuncisadora tradicional com a utilização de uma lâmina de corte, sem anestesia. Este ritual é praticado em vários países, sendo a maior parte deles situados na África. A idade em que é realizada varia entre alguns dias após o nascimento e a puberdade, embora a Mutilação feminina, APAV

maior parte das jovens seja mutilada antes dos cinco anos de idade. Esta ação é praticada porque as pessoas acham que se mutilarem

crianças estas vão ser puras para o resto da vida. Estas pessoas acham que a mutilação é um gesto de purificação. Eu escolhi este tema porque considero que não se fala tanto como se deveria e não existem muitas ações de protesto como deveria haver. Em pleno séc. XXI isto não deveria sequer existir, isto não é admissível. Estas crianças são obrigadas pela família, principalmente pelas mães a irem a um ritual onde vão sofrer e onde vão perder muito do seu conhecimento pessoal, acerca do seu próprio corpo. Considero a MGF uma ação horrível, não só porque as crianças sofrem, mas principalmente porque elas não têm oportunidade de escolher, não têm oportunidade de decidir se querem, elas são obrigadas. Eu revolto-me muito facilmente quando se trata de obrigar os outros, de decidir pelos outros. As pessoas não têm de decidir uma coisa destas pelas filhas, ou pelas netas. Por exemplo, os meus pais não me batizaram, nem a mim nem aos meus irmãos, porque acham que essa decisão é nossa, e eu concordo com eles. Eu não adivinho o futuro, mas se eu puder fazer alguma coisa para mudar este tipo de ações, este tipo de mentalidades eu vou fazer.” Soraia Pereira, nº 18

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Human : amor e pobreza

Imagem retirada de Human, de Yann Arthus-Bertrand

Posteriormente à minha visualização do documentário “Human” posso afirmar que a minha mentalidade e os meus pensamentos em relação a todos os assuntos abordados no mesmo deram uma volta de 180 graus. Tudo me afetou, desde a primeira pessoa a mostrar a cara à última pessoa a falar, mas entre tudo isso foram expostos dois pontos que me chegaram de maneira distinta de todos os outros. Com isto refiro-me ao amor e à pobreza. O amor foi logo o primeiro tema falado no documentário, uma coisa que é tão simples e tão complexa. Dizem que é possível ensinar alguém a amar. Normalmente aprendemos a amar desde pequeninos, mas apenas porque temos alguém que nos ame e que nos ensine a fazê-lo de igual forma, uma criança que tenha recebido maus tratos como sinónimo de amor irá crescer e repetir o que lhe foi ensinado. É como tudo o resto. Se de pequeninos formos educados para dizermos sempre “obrigado”, “de nada”, “por favor”, etc., quando crescermos já temos assimilado que dizer tudo isto é correto, e o mesmo acontece com o afeto. Se nos instruírem que amar é maltratar, que é causar dor, sofrer e fazer os outros sofrer, então quando crescermos é o que vamos fazer e repetir porque foi o que nos disseram estar correto. No documentário conta-se a história de um assassino que foi alvo de maus tratos 9


em criança, e mais tarde, depois de ter cometido todas aquelas atrocidades, foi ensinado a amar e descobriu o que era o amor. Eu acredito que podemos ensinar alguém a amar e a ser amado, independentemente de quem é e da idade que tenha. Afinal, se um assassino pode aprender, porque não uma mulher, um homem, um idoso, um ladrão, …é sempre possível desde que estejamos dispostos a isso. Terminando isto chego ao segundo ponto, que de uma certa forma está ligado ao tema que acabei de descrever. A pobreza e a riqueza, a distinção entre os mais abastados e os com menos condições, os que trabalham para poderem ter comida na mesa no dia seguinte e as que nem precisam de se preocupar com tal coisa. Infelizmente, trabalho para muitos não é nada, mas o mais interessante é que esses não são os que sabem mesmo o significado de trabalho. Não são esses que se levantam todos os dias às seis da manhã para ir trabalhar às sete da manhã e regressar a casa às oito da noite, para poderem alimentar toda a sua família. São estas pessoas que sabem o que é trabalho, mas desconhecem a riqueza. Normalmente são também as pessoas menos abastadas que são mais felizes e vivem rodeadas de maior amor, isto pelo simples facto de que como não têm quase nada não querem sempre mais. Imaginemos que alguém rico compra um carro do ano 2020, mas este ano sai um modelo novo, é um carro na mesma, mas esse alguém, como pode, vai ter a “necessidade” de ir comprar esse novo modelo, não porque precisa, apenas porque pode. Dinheiro que podia ter sido gasto a ajudar quem precisa foi quase como que deitado ao lixo. A maior parte destas pessoas, nem todas, mas a grande maioria não se preocupa com quem passa dificuldades. Como eles têm tudo, não precisam de racionar comida, não precisam de se preocupar em receber cuidados médicos, nem sequer se inquietam com aqueles que precisam de ajuda. Se somos todos pessoas, todos humanos, por que é que alguns pensam que estão no direito de ser e ter mais que outros? Poder-se-ia dizer que é uma questão de injustiça, mas afinal, neste mundo, hoje em dia, qual é que é o verdadeiro significado de justiça? Rafaela Vieira 10


Okja Okja, um filme muito giro, que fala sobre o carinho entre espécies diferentes e sobre como devemos tratar o outro. Não devemos matar animais só para servirem de alimento, isso é errado. Penso que se estamos a matar um coelho também estamos a matar um humano, certo?? O coelho também é constituído por átomos tal como nós, logo é humano, fica a questão!! Será o coelho um humano?? Claro que não, ele não pensa, dirão vocês, mas nós humanos nem sempre pensamos. Se pensássemos, não havia tanta ganância, se o avô da menina não tivesse sido ganancioso, Okja não teria sido vendida, e a menina não teria que recuperá-la. Outro aspeto que me espantou foi a atitude do avô. Este, ao querer confortar a neta, deu-lhe um porco dourado (feito de ouro) que era caríssimo, como forma de a consolar. Isso não se deve fazer, pois demonstra uma falta de empatia e mau carácter da parte da pessoa, não é bonito. No final, a menina compra a Okja com esse mesmo porco de ouro, o que revela que por um bom preço, tudo pode ser comprado. Mas, hoje em dia, essa mentalidade já devia ter mudado. Infelizmente, ainda não se conseguiu qualquer mudança... O filme tem os seus momentos bons e maus, mas acho importante verem-no, pois podem refletir muito com este filme.” David Pereira 11


Textos: Alunos de Filosofia 10.º Ano, A3 Paginação: Ana Cristina Matias Biblioteca ESJAC, 2021

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