Catálogo Pontos de Encontro - Carolina Ponte e Pedro Varela

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Carolina Ponte


Ela é a nuvem Carolina Ponte

Pedro Varela

Quase não se percebe sua presença nos primeiros dias de montagem. O rio colorido de Pedro Varela ocupa espaço, concentra as atenções, enquanto Carolina Ponte, silenciosa, retira novelos de linha e as peças de crochê que vieram dentro da mala. Escolhe um canto, pega sua agulha e tece o mundo, perto de se tornar invisível. A formiga simpática de uma cigarra nada displicente.

CAIXA Cultural Salvador Galeria dos Arcos 20 de abril a 05 de junho de 2011 Agradecimentos: Nossas famílias, todas as pessoas envolvidas neste projeto, Anna Maria e Sebastião Reis, Sérgio Carvalho, Ricardo Kimaid e Zipper galeria. Gostaríamos de fazer um agradecimento especial a Paulo Sérgio Barreto por seu papel fundamental neste projeto.

O trabalho dele chega à sala central, a do encontro, bem antes. Ele o esfria e o silencia para que chegue até a encruzilhada rebaixado, instrospectivo, pronto para o diálogo. Com Carolina, o processo é inverso. Ela passa os dias trabalhando, como se nada ou quase nada fosse acontecer. Quem não a conhece não consegue adivinhar o combate. Até que se levanta. Sem esperar os montadores, junta pregos e um martelo e parte para a escada.

Artistas Carolina Ponte Pedro Varela Curadoria Daniela Name Produção executiva MUSEO - Museologia e Museografia Projeto gráfico Francisco Macedo Ponte celsomp@gmail.com

Vejo-a encarapitada e me lembro de uma conversa recente sobre pintura em que todos os debatedores falaram que a linguagem já nasceu site specific. Não só pelas cavernas, mas também por causa de Giotto, Michelangelo, Tintoretto. Todos os que ajudaram a transformar a pintura em algo autônomo como subiram um dia em andaimes e escadas para pintar “em algum lugar”. Carolina não tem tinta e

Comunicação Seven Star Comunicação e Marketing Fotografia Antonio José Santos Pereira Apoio Zipper Galeria

produção

patrocinio

Livre para todos os públicos Sem título, 2010 >

Crochê. 200 x 100 x 25 cm


nem pincel entre seus apetrechos. Tem linha – e linha literal, trançada como crochê. Usa a linha para criar massas de cor – usa o desenho e o suor para fazer pintura e escultura, ganhando o espaço. Martelando a parede, do alto da escada, leva esta matéria híbrida para uma batalha com a arquitetura. Ocupa colunas e quinas com suas peças, levando a conversa com o ornamento – base de seus desenhos – para o campo da vida real. Suas peças se tornam adorno e complemento, reinventando significados para o crochê, esta coisa “que qualquer um pode fazer”, mas que só quem tem intenção e talento pode chamar de arte. Durante a montagem, os visitantes param diante dos trabalhos, falam de pontos, comentam suas próprias memórias, falam do crochê como atividade familiar corriqueira. Carolina encorpa sua nuvem, a característica vaporosa de seus trabalhos, com este reforço da experiência de cada espectador. Seu trabalho é também o que fazemos dele. No último dia de bastidores, chegam os desenhos emoldurados. A grande mandala de crochê já está na parede, as outras peças de linha, escolhidas para uma sala de entrada, já têm seus devidos lugares definidos. Com os desenhos, elas ganham novos dados. Completamente inéditos, eles mostram a relação direta da padronagem com os ornamentos arquitetônicos. Têm mais áreas vazias, o que nos faz olhar mais demoradamente para cada área “preenchida ” e para as conversas entre elas. Se Varela cria uma batalha campal de verdes e vermelhos, Carolina promove a comunhão dos contrários com estas padronagens de origens distintas. Leques gregos convivem com flores egípcias e folhas persas; curvas e estrelas árabes são ladeadas por desenhos elisabetanos, latino-americanos, renascentistas, hindus. Estas áreas, tomadas por cores e formas distintas, iluminam as peças de crochê. O olho volta para a grande mandala, espelho do desenho azul de Varela em sua parede oposta. Com um centro feito de linha mesclada em dois tons de verde, ela parece um redemoinho, que pode sugar para seu interior tudo o que está à sua volta, mas que também projeta um fio para o lado de fora; e dele sai aquilo que é uma outra peça e ao mesmo tempo a mesma; a escultura virando teia e casulo para conquistar o espaço museológico. Ver esta peça depois de ver os desenhos tem outro sabor. Assim como aproxima padrões diversos, Carolina usa pontos, cores e linhas muitos distintas em uma mesma superfície de crochê. Em alguns momentos, suas peças se transformam em ninhos de várias formas ovóides, que poderiam ser toucas, se tivessem alguma funcionalidade. Estes ovos de cor abrigam um princípio muito precioso do trabalho da artista, um dos pontos de encontro desta exposição – a capacidade de comunhão entre matérias e formas antitéticas. Criados com nanquim e caneta colorida, os desenhos não contam com a ajuda da reprodutibilidade. São, como o crochê, trabalho contínuo, para esvaziar a cabeça e Sem título, 2008

Crochê. 150 x 40 x 20 cm


fazer a intuição fluir. O crochê, por sua vez, é, como os desenhos, uma conjugação de padronagens. Sutilmente, Carolina usa um repertório de pontos e um acervo de linhas como se fosse uma nova Gramática de ornamentos. É neste último dia, com os trabalhos todos juntos, que o “lado” de Carolina fica pronto para o encontro. Acontece quase de repente: os desenhos ganham corpo com o crochê e retribuem dando outras leituras para este trabalho que já virou uma das marcas da artista. Passamos do meio da sala com uma das esculturas. É a última a ser medida e montada. Ela completa no ar o desenho azul de Varela na parede. A linha literal com a linha fluida, de adesivo; as massas aquosas e brilhantes da parede unidas com gotas de pano que pendem do teto. Cheia de formas, a nuvem troveja, mas também dá sombra para as águas do rio. Alimenta a ele e aos que entram na galeria com suas delicadezas. Chove.

Sem título, 2011

Desenho, caneta e nanqui sobre papel 104 x 144 cm

Sem título, 2011

Desenho, caneta e nanqui sobre papel. 140 x 102 cm


Sem título, 2011

Desenho, caneta e nanqui sobre papel. 104 x 144 cm

< Sem título, 2009

Crochê. 1250 x 300 x 220 cm


Ele é o rio ela é a nuvem

O rio cai em ribanceiras da parede, gruda no piso, se divide em afluentes e se multiplica em satisfações ao tingir o branco da galeria com lagos vermelhos, cachoeiras roxas, piscinas de mil azuis naturais, uma Atlântida doce e furta-cor... Ou um Reino das Águas Claras revelando seus palácios, belezas submersas. Há ainda poças prateadas, holográficas, que de relance servem de espelho para a vizinhança. Esta superfície brilhante pode ser uma das maneiras para avistar o horizonte onde ela, a nuvem, já se insinua. Ah, a nuvem. Ela parece discreta até que se nota sua capacidade de ganhar todo o ambiente, mais a parte de fora e a de dentro de nossas ideias. Com a cabeça nas nuvens – ela também se ramifica para frutificar – enxergamos seus desenhos de metamorfose. Variam, é claro, de acordo com a imaginação: são mandalas, flores, o peixe e a rede, animais de todo tipo. A nuvem é teia, adere às quinas e às vigas com um trabalho paciente de conquista do espaço. Muda de cor, tira partido da luz, oferece sutilezas ao humor. Vaporosa, às vezes é carneirinho, em outras relampeja... Enquanto se movimenta na direção do rio. Este é o ponto de encontro: Pedro Varela, o rio; Carolina Ponte, a nuvem. Ela pode chover e engordar o rio. Ele pode evaporar e ampliar a nuvem. Um pode se alimentar do outro sem deixar de ser quem era. A manutenção de cada identidade passa justamente pelo ligeiro abalo que vem do embate com uma potência que é outro estado do mesmo elemento. Luta e cópula com o igual que é diverso. “Como o rio as nuvens são água, / Refleti-las também sem mágoa/ Nas profundidades tranquilas”, escreveu um dia Manuel Bandeira. Tão diferentes e tão semelhantes, este rio e esta nuvem. Tão autônomos e tão cúmplices - na carreira e na vida - os dois artistas desta exposição. De suas pororocas e suas enchentes nasceram mais dois encontros na Bahia. O primeiro entre as obras de Varela e Ponte - dois talentos da jovem geração da arte contemporânea carioca - com o público da CAIXA Cultural de Salvador. Houve ainda o cruzamento entre este prédio histórico da cidade e os desenhos-pinturas-esculturas (a classificação não importa, são estados da mesma arte). Feitos em papel, adesivos ou crochê, eles se oferecem à arquitetura peculiar e sinuosa da Galeria dos Arcos. A sala, por sua vez, permite que suas curvas se transformem em leito fértil para o rio; em céu de brigadeiro para a nuvem. A CAIXA foi o ponto de equilíbrio para esta água boa Encontro. Vista da instalação. Pedro Varela e Carolina Ponte.


< Sem título, 2011

Sem título, 2011

Detalhe da instalação. Vinil adesivo sobre parede

Sem título, 2011

Detalhe da instalação. Vinil adesivo sobre parede

Vista da instalação, vinil adesivo sobre parede


barulho, as formas se aquietam junto com a cor. Há menos castelos e torres e mais florestas. Há mais organicidade e menos construção. O bambu se verga e o rio se acalma para receber o outro, valorizando-o. Os prateados reflexivos, presentes desde a sala anterior, ganham aqui ainda mais força. O rio se oferece para Carolina, mas também para nós, que caminhamos por suas formas. Ele é nosso rival, nosso espelho, nosso estímulo.

Sem título, 2011

Detalhe da instalação. Vinil adesivo sobre parede

Sem título, 2011

Caneta e acrílica sobre papel de arroz. 35 x 20 cm

< Sem título, 2011

Detalhe da instalação. Vinil adesivo sobre parede


Sem título, 2011

caneta e nanquim sobre papel de arroz. 35 x 20 cm

Por isso precisa resolver aquele vermelho. O verde clarinho, quem diria, está vencendo esta outra cor, a engole sem muita dificuldade. Horas se passam, pequenos ajustes e a espera. Até que vem o estalo: para valorizar o vermelho, é preciso que ele ganhe um opositor à sua altura. E ele não é o verde clarinho, cor que vai ganhando apelidos impublicáveis ao longo de nossa montagem. O rival do vermelho é um verde-bandeira, um dos rolinhos esquecidos no chão da galeria. Ele entra no desenho, na ponta da faca, na ponta do dedo. Depois disso, a parede inteira se resolve e se abre para o nosso olho como uma flor, na hora certa. Amarelo, azuis, prateados, pretos e rosas entram na festa, todas as loas para o vermelho. Chamado para a briga pelo verde mais forte, seu opositor perfeito na escala cromática, o tom sanguíneo finalmente aparece, da o ar de sua graça a uma galeria instalada em um prédio tombado, cujo piso, de uma madeira marrom avermelhada, tinha dado a bússola para a paleta de Varela desde o princípio. Era preciso aquecer a sala, enchê-la dos contentamentos dos tons abertos. Mas, para de fato conseguirem se abrir, se mostrar ao olho do passante, uma cor “aberta” precisa de sua base “fechada”, fria. Por isso o verde precisou ganhar espaço, inventando no mundo real o vermelho que existia na ideia de Varela. O verde e o vermelho, nesta comunhão de opostos, diz muito sobre o trabalho de Varela. Quando ele corta, acrescenta. Na parede vizinha a desta grande composição, um fio vermelho leva o olho do visitante a um castelo cinzento. O vazio é tão “cheio” quanto as superfícies desenhadas, num diálogo enorme com seus trabalhos incluídos na exposição Ciudad de arena (Cidade de areia), montada no México. Castelos de areia formados por grãos que, individualmente, eram tão importantes quanto o conjunto. Desenhos criados no corte de folhas brancas sobrepostas. Lá e aqui, um exercício zen: menos é mais, o silêncio fala, o vazio preenche. O artista conduz o espectador, que é transportado por estas formas oníricas e fluidas para os reinos de sua infância, de sua memória, seus desejos não realizados. A imaginação de quem vê completa a obra, que ganha novos sentidos nas múltiplas subjetividades que se põem diante dela. Enquanto desenha, já no salão principal, Varela conversa. Um dos temas favoritos nos encontros dos artistas e da curadoria com o educativo da CAIXA é a tumultuada relação entre Picasso e Matisse. Amor e ódio, inveja e admiração mútuas, pólvora para um crescimento baseado na disputa, mas também na reciprocidade que vem deste desafio constante. Não por acaso, Matisse – tão corte-e-cola, tão desenho fluido e sem linha, tão pensamento orientado pela mão (e vice-versa) – aparece como uma referência que ultrapassa o território simbólico no segundo grande desenho site specific de Varela. Ele tinge de um azul mais profundo e introspectivo este trabalho com que vai ao encontro de Carolina . Alegra esta timidez metafísica e anil com áreas amarelas, mas também com formas vegetais claramente importadas do repertório de Matisse. Uma pista na clareira, já que a hora do encontro é mais silenciosa. O azul faz menos < Sem título, 2011

caneta e acrílica sobre papel de arroz. 40 x 40 cm


Carolina Ponte

Ele é o rio Pedro Varela

CAIXA Cultural Salvador Galeria dos Arcos 20 de abril a 05 de junho de 2011 Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Ministro de Estado da Fazenda Guido Mantega Presidente da Caixa Econômica Federal Jorge Fontes Hereda Artistas Carolina Ponte Pedro Varela Curadoria Daniela Name Produção executiva MUSEO - Museologia e Museografia Projeto gráfico Francisco Macedo Ponte Comunicação Seven Star Comunicação e Marketing Fotografia Antonio José Santos Pereira Apoio Zipper Galeria CAIXA CULTURAL SALVADOR Rua Carlos Gomes, 57 – Centro Salvador, Bahia CEP 40.060-330 Tel (71) 34 21 - 42 00 www.caixa.gov.br/caixacultural produção

patrocinio

Livre para todos os públicos

Brota do chão, onde estão os rolos de papel adesivo colorido. Lápis, faca olfa e capacidade de análise e de espera. Estas são as ferramentas de Pedro Varela na sala que lhe cabe na CAIXA Cultural de Salvador. Na parede do fundo, uma de suas cidades coloridas começa a aparecer na parede. Há no desenho-pintura um verde clarinho, que salta do branco com uma força impressionante para uma cor aparentemente inócua. Há também muito vermelho, mas sem a vibração imaginada inicialmente pelo artista. Ele vai até a mesa de apoio, olha, espera, olha novamente, corta pedacinhos de adesivo, caminha até a parede, cola, faz os ajustes com a faca. Não há desenho prévio, nenhuma sombra de plotter. Tudo vai se fazendo no próprio ambiente da Galeria dos Arcos, com suas curvas sinuosas em todas as portas sugerindo um caminho para Varela e o momento em que vai ter seus pontos de encontro com Carolina Ponte. Ele desenha com corte-e-cola na parede como alguém que escreve uma sinfonia. Ajusta acordes, acrescenta sustenidos, cerca o tal verde de mil detalhes. Aí se afasta, olha de novo. Sabe que seu rio caminha para a pororoca, para uma encruzilhada com o trabalho de Carolina; e precisa chegar neste momento forte e maleável, como uma altíssima vara de bambu, que se verga ao vento para não quebrar. Sem título, 2011 >

Caneta e aquarela sobre papel de arroz. 40 xcm 20


Pedro Varela


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