realização
patrocínio
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Alexandre Vogler Angelo Venosa Anna Bella Geiger Daisy Xavier Daniel Senise Luiz Alphonsus Luiza Baldan OPAVIVARÁ!
Paulo Vivacqua Rosângela Rennó Suzana Queiroga Thiago Rocha Pitta 2
apresenta
curadoria
Daniela Name
22 de novembro de 2010 a 6 de janeiro de 2011 3
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A arte contemporânea tem sido tema de várias exposições na CAIXA Cultural; várias vertentes e ideias novas passaram pelas galerias das unidades espalhadas pelo país. Dispostos a manter viva esta vocação, apresentamos a exposição Mapas invisíveis, reunindo obras inéditas de 12 grandes nomes da arte contemporânea brasileira. É de grande pertinência para os tempos atuais a discussão proposta, permeando temas como arte, espaço, significados, sociedade e cultura, reconhecendo a cidade como elemento pulsante e campo de diálogo entre as várias questões. Evocamos, particularmente, como a CAIXA , em parceria com o Governo Federal, vem reafirmando sua vocação social e sua disposição de democratizar o acesso a seus espaços e a sua programação, cumprindo seu papel de oferecer condições concretas para que os artistas possam manifestar e apresentar seus trabalhos, promovendo a aproximação da comunidade aos bens culturais. Consciente de sua responsabilidade social, a CAIXA reforça sua postura de fomento à cultura, irradiando e multiplicando as vertentes do pensamento no país, estimulando a contínua reflexão nos mais diferentes campos do saber e do fazer artísticos. CAIXA Econômica Federal
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Por estas ou outras palavras já aqui foi lembrado que todos os dias passados foram vésperas e todos os dias futuros o hão-de-ser. Tornar a ser véspera, ao menos por uma hora, é o desejo impossível de cada ontem que passou e de cada hoje que está passando. Nenhum dia conseguiu ser véspera durante todo o tempo que sonhava. José Saramago, A caverna.
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Cidade submersa O nosso ponto de partida para construir esta exposição foi o livro Cidades invisíveis, de Italo Calvino, em que o viajante Marco Polo descreve para o imperador Kublai Khan os lugares por onde passou. Depois de narrar cidades muito distintas – elas têm nome e personalidade de mulher, e podem ser sonhadoras, destrutivas, tímidas, arrebatadoras –, o navegador italiano chega à conclusão de que esteve falando o tempo inteiro de Veneza, seu berço e ponto de partida. “De uma cidade, não aproveitamos suas sete ou setenta maravilhas, mas as respostas que dá às nossas perguntas”, diz Marco Polo a certa altura. Cheios de perguntas, partimos em busca dos Mapas invisíveis tentando dar à experiência urbana a dimensão que ela merece como semente do processo de criação artística. Hoje, vemos geógrafos, sociólogos e urbanistas discutindo a possibilidade de incorporar a experiência de moradores – de usuários de determinado lugar, portanto – para a construção de uma cartografia mais maleável e eficiente, capaz de ser instrumento de localização, mas também de planejamento e de prevenção de riscos. Neste projeto, quisemos promover o encontro da arte com esta cartografia subjetiva, apostando que os 11 artistas e o coletivo convidados para esse desafio seriam capazes de localizar tempos, índices e regiões soterrados pelo lugar-comum, mas de suma importância para um mapa subjetivo e simbólico do Rio. Escolhemos juntos lugares que passaram por grandes transformações urbanas ou significavam encruzilhadas simbólicas, sociais ou econômicas para o Rio. Pelas limitações naturais de qualquer projeto que se torna realidade, tivemos de deixar de
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fora outras regiões igualmente ricas, caso da Penha, da Tijuca, da Praça Quinze e do Leblon, este último um antigo reduto de escravos, que tinham nas camélias seu código secreto. Se um dia voltarmos aos mapas, nosso desenho poderá ser outro.1 A ideia de visitar essa cartografia escondida veio da percepção de que a cidade e a arte sempre caminharam juntas. A própria ideia de cidade – e de cada cidade, especificamente – foi pensada pelos artistas. Foi assim com a Florença renascentista, cuja construção não pode ser dissociada dos grandes artistas e arquitetos do período; com o Império Turco Otomano, onde os tapetes e as gravuras sobrevoavam uma Istambul próspera e criativa mostrando-a como se estivesse sendo vista pelos olhos de Alá; como a São Paulo de 1922, redimensionada para todo o Brasil com a antropofagia de Oswald de Andrade; com o Rio modernista dos anos 50, traçado por arquitetos como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Affonso Eduardo Reidy, mas também pelos artistas construtivos e pela bossa nova. Os trabalhos criados para Mapas invisíveis, confrontados com a malha urbana que abriga todos os cariocas, mostram como o Rio de Janeiro foi desde sempre uma cidade-projeto, que teve na cultura um de seus principais motores. Fazem uma espécie de arqueologia íntima ao confrontar a memória e as impressões de cada criador em seus lugares “de mapeamento” com as imagens-clichê daquelas regiões, perpetuadas por cartões-postais, pela mídia e pelos projetos urbanos empreendidos pelo poder público. Esta é uma mostra que fala de desaparecimentos. Como no samba de Paulinho da Viola, é preciso ser pirata destemido para navegar nas ruínas e reencontrar esta cidade submersa.
Daniela Name
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1 Cildo Meireles e Antonio Dias sempre tiveram no território uma de suas questões primordiais. Artistas mais jovens ligados ao Rio, como Bruno Miguel, Rosana Ricalde e Pedro Varela também investigam a cidade, de múltiplas maneiras. Poderiam estar aqui ou em futuros encontros.
Alexandre Vogler e Realengo
Queimemos as gôndolas, estas cadeiras de balanço dos cretinos, e ergamos aos céus a imponente geometria das pontes de metal e dos howitzers empenachados de fumaça, a fim de abolir as curvas cadentes da velha arquitetura. Marinetti, Contra a Veneza passadista.
1 Uma curiosidade: embora a história oral tenha perpetuado a versão de que o nome Realengo seja a contração de Real Engenho, não havia um engenho sequer nas terras da região. As terras onde hoje está o bairro foram cedidas para comerciantes portugueses em 1814 para pastagem bovina, que garantiriam o abastecimento dos talhos (açougues) da cidade. É bem provável que o nome Realengo se refira às “terras realengas”, termo utilizado para denominar tudo o que estava distante da Coroa 2 Sobre isso, uma curiosidade: Realengo aparece na letra de Aquele abraço, música de Gilberto Gil (“Alô, alô, Realengo, aquele abraço”) porque ele e Caetano Veloso foram presos durante a ditadura militar e foram para celas nas unidades militares da Zona Oeste. No livro A canção no tempo, Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello contam que Gil começou a compor aquela que talvez seja sua canção mais popular logo depois de ser solto, em 1969, enquanto negociavam sua ida para o exílio em Londres. Ele manda “aquele abraço” para Realengo porque era assim que os soldados o saudavam. A expressão ficou muito popular na época porque era um bordão do comediante Lilico em um programa televisivo.
Campo de Marte — Realengo futurista 1, 2010 Guache sobre papel
As relações de poder e a periferia sempre permearam a obra de Alexandre Vogler. Foi assim com a Operação Olho Grande, em que ironizava a ação da polícia carioca na coibição do comércio ambulante da cidade, ou em Base para unhas fracas, que acaba de ser transformado em vídeo. Em Mapas invisíveis, o artista mergulhou em Realengo,1 importante bairro da Zona Oeste do Rio. Trabalhos de percepção sutil, as pinturas em guache, carvão e aquarela da série Campo de Marte foram inspiradas no mobiliário urbano que cerca a Praça do Canhão, o Campo de Marte do bairro, lugar onde está instalada a Escola Militar do Realengo, criada em 1913. Em visitas ao bairro, Vogler se deteve nos artefatos de metal que isolam e interditam o território militar – e que têm a mesma função dos cavaletes usados pelas companhias de trânsito e as fornecedoras de luz e gás do Rio. Pintadas de preto e amarelo, essas peças são uma cruz transpassada por um terceiro eixo de metal. Transformam áreas públicas em privadas, pertencentes a um único grupo. O artista enxergou em sua forma, que lembra uma estrela ou mesmo um feixe de espinhos, uma grande proximidade com as pinturas, esculturas, desenhos e projetos futuristas de Filippo Tommaso Marinetti, Giacomo Balla, Carlo Carrà, Luigi Russolo e Umberto Boccioni. Realengo tem sua história marcada pela questão bélica e militar.2 Ocupado pela academia militar desde o início do século XX , também abrigou uma grande fábrica de pólvora e cartuchos até 1978. Em sua pesquisa, Vogler descobriu que parte do desenho atual do bairro deriva dessa questão bélica, já que os primeiros conjuntos habitacionais de Realengo foram construídos para dar moradia aos trabalhadores da fábrica. Com a aproximação da iconografia militar com o futurismo, Vogler faz uma operação interessantíssima, destacando os pontos em comum entre a ideologia do exército brasileiro, fundamentada na apropriação do positivismo de Comte, e os movimentos de vanguarda do início do século XX . Em 1889, os militares surpreenderam 16
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Campo de Marte — Realengo futurista 2, 2010 Carvão sobre papel
artistas e intelectuais que conspiravam contra a monarquia proclamando a República de repente. A bandeira cultuada pelos profissionais liberais – a mesma da Inconfidência Mineira, com os dizeres Libertas quae sera tamen (“Liberdade, ainda que tardia”) – foi substituída por outra, onde se lê Ordem e Progresso. E o que isso tem a ver com o futurismo, afinal? Todos os movimentos de vanguarda das décadas de 10, 20 e 30 na Europa traziam em si um desejo de progresso. A rejeição e a condenação do passado eram consideradas inevitáveis para se atingir o futuro. Líder do futurismo, Marinetti acreditava que só seria possível atingir o futuro na velocidade desejada se a sociedade demolisse, violentamente, qualquer vestígio da “cultura passadista”. Em 1910, ele e seus companheiros subiram no alto do campanário da Catedral de São Marcos, em Veneza, e, segundo testemunhas da época, jogaram um milhão de panfletos Contra a Veneza passadista, que tem um dos trechos reproduzido na epígrafe deste texto. Além de sugerir que toda a arquitetura veneziana fosse destruída e substituída por outra, futurista, Marinetti concluía: “Que venha, enfim, o reino da Luz Elétrica libertar Veneza de seu luar venal de salas mobiliadas”. O passo seguinte ao da condenação do “passadismo” era criar uma arquitetura futurista. Carrà e Boccioni já tinham feito alguns esboços, mas vai ser um arquiteto de Milão, Antonio Sant’Elia, quem vai plasmar em seus projetos urbanos todo o pensamento de Marinetti. Utópicas, suas cidades seguem um plano integrado de racionalização. São cidades em movimento, que se transformam constantemente, como queria Marinetti. Em seu Manifesto da arquitetura futurista, de 1914, Sant’Elia diz que deveríamos entender a “cidade futurista como imenso e tumultuoso estaleiro (...) e a casa futurista deve ser uma máquina gigantesca”. Antecipa, assim, o conceito da casa como uma “máquina de morar” de Le Corbusier. De maneira muito sutil, Vogler aproxima dois autoritarismos. Ainda que as vanguardas artísticas nem sempre tenham sido totalitárias intencionalmente – e que de fato fosse preciso uma carga de violência para romper com séculos de academicismo – parte da ideologia desses revolucionários do início do século XX acabou sendo corrompida e utilizada aos pedaços, coada, pelas lideranças ditatoriais da Europa dos anos 30 e 40. Ao criar essa rede de significados a partir da cultura militar do Realengo, Vogler traz à tona parte do passado do bairro, mas também aponta para seu presente. Realengo sofre, como boa parte da Zona Oeste carioca, com outra forma de poder armado – e bastante organizado: as milícias, que, em troca de suposta segurança, mantêm moradores e comerciantes sob um manto de violência e subjugação econômica. 18
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Campo de Marte — Realengo futurista 3, 2010 Aquarela e fita adesiva sobre papel
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Angelo Venosa e a Floresta da Tijuca
Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Carlos Drummond de Andrade, Procura da poesia.
Nas histórias infantis, a floresta é um lugar traiçoeiro, onde João e Maria podem ser capturados por uma bruxa má; Chapeuzinho é atacada pelo lobo, e o Pequeno Polegar, abandonado pelos pais. Sinônimo de perigo, lugar das interdições, ela também representa o fascínio pelo encontro com o desconhecido. Em Mapas invisíveis, a floresta de Angelo Venosa é a da Tijuca e todas as outras possíveis. Mas o que fecha a mata e encerra seus mistérios não são as copas altas, nem a escuridão: a barreira de Venosa é a linguagem. Tijuca, instalação que o artista criou para a mostra, consiste em uma espécie de mirante simbólico, em que o visitante é convidado a olhar para suas paisagens internas em vez de procurar qualquer sinal de exuberância do lado de fora. De um soundtube transparente, preso acima de um banquinho neutro preto, saem sons gravados na mata. O som direcionado para a cabeça da única pessoa que consegue sentar-se no banquinho convida ao recolhimento. É possível ouvir pássaros, insetos, macacos e o que parece ser os barulhos de folhas e de água. Aos poucos, essa massa sonora vai sendo coberta por outros ruídos: uma voz feminina, sintética, declama poemas românticos em línguas que poucos dominam, caso do alemão e do chinês. A floresta que antes se oferecia quase atrevida vai ficando mais distante e inacessível, a não ser que o espectador aumente sua atenção, desligando-se do que está em volta – imagens vindas dos trabalhos vizinhos, o barulho de crianças visitando a galeria – e se concentrando na imagem de árvores, bichos e rios, que consegue plasmar depois de abrir uma clareira nas palavras. A penumbra em volta do trabalho procura colaborar com esse esforço, convidando o visitante-explorador a novas viagens – ou novas miragens, a diferença pouco importa. E, se o assunto é mirante, à primeira vista Tijuca não parece um Venosa, poderiam afirmar alguns. Procede, mas apenas nas bordas da floresta. Quando se avança na trilha proposta pelo artista, um dos maiores escultores contemporâneos brasileiros, é possível 22
perceber o imenso parentesco entre este trabalho e as questões fundamentais que sempre marcaram suas peças. Uma obra de Venosa exige uma percepção às camadas, é algo como uma tarefa realizada em etapas ou uma operação matemática que chega ao resultado depois de contraprovas. O corpo – humano ou animal – sempre foi uma das matrizes para o trabalho do artista, que, como um anatomista, destrincha a forma e coa seus excessos até chegar à estrutura. O curioso, no entanto, é que nesse exercício de síntese não há a perseguição de um rigor construtivo, asséptico, o elogio apenas da linha. A obra de Venosa é cosa mentale, mas é também muito suor, batalha direta e incessante com as vísceras de cada peça. Logo no início de sua carreira, numa individual de 1985, no Centro Empresarial Rio, ele usou madeira e um tecido negro e resistente para criar imensas estruturas ósseas, como um vestígio de um tempo pré-histórico, desconhecido e renitente. O “lado de dentro” de um corpo ganhava nova pele com o tecido escuro e já exigia do olhar uma atenção especial para as antíteses. Venosa chegou a usar crânios, ossos e dentes em outros trabalhos seminais e, a partir dos anos 2000, foi transformando a matéria em algo mais insinuado, mas cada vez mais potente em sua ausência. Em 2003 e 2004, o artista criou peças feitas de espelhos e fios formados por pequenas bolinhas de metal, desses que hoje são usados para prender crachás e pen drives. Como costelas ou camadas geológicas, os fios formavam planos quase virtuais, que ganhavam volume à medida que o espectador se dispunha a olhá-los por outro ângulo, no espelho. Na recente série Turdus,1 com esculturas feitas de vidro ou acrílico, a relação com Tijuca fica bastante clara. Há novamente nesses trabalhos um revelar que é feito pouco a pouco, através das tais camadas, muito evidentes. E só depois de percorrer cada plano o olhar consegue ter a ideia do todo. Tijuca é vizinha ainda de Tempo, instalação criada por Venosa para a mostra “Tempo inoculado”, de 2001.2 Numa sala escura, o artista instalou duas câmaras e dois projetores que funcionavam como uma espécie de espelho de quem entrava. Os projetores dividiam a imagem ao meio e tinham entre eles um ligeiro atraso, o que embaralhava a percepção que o visitante tinha da própria imagem e da noção de duração, de tempo percorrido. Mais uma vez, dois planos se separavam, criando duas peles cronológicas, com o objetivo de sintetizar uma ideia apreendida apenas depois de um mergulho nesse deslocamento proposto pelo artista. Na época da exposição, em entrevista para a Karen Harley,3 Venosa disse que o trabalho era apreendido como “se estivesse com defeito [...] um pouco como se você sentisse o trabalho no estômago, o teor tá 23
1 Exposição apresentada em 2009, na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro, com curadoria de Ligia Canongia. 2 Exposição apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, com curadoria de Marcello Dantas. 3 Vídeo institucional criado para a exposição.
4 O plantio das mudas da Floresta da Tijuca começou em 1861. As primeiras 100 mil mudas foram plantadas em 13 anos e só depois foi feito um trabalho mais consistente de paisagismo, com o Barão d´Escragnolle (Gastão Luís Henrique Roberto d´Escragnolle, 1821-1886) transformando a floresta em parque com fontes, trilhas e áreas de lazer para uso público. 5 O pintor francês Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830) integrou a Missão Artística Francesa que chegou ao Brasil em 1816. Pintou várias paisagens importantes do Rio de Janeiro, como o Outeiro da Glória e o Largo da Carioca e é uma das principais fontes iconográficas do Brasil do início do século XIX. Deu especial atenção à Floresta da Tijuca, onde comprou um terreno. Gostava do retiro na região, longe da cidade ainda bastante insalubre.
descalibrado [...]”. O ruído e o desequilíbrio levavam à percepção do tempo como algo impalpável. Em Tijuca, a capa sonora que fecha a floresta, além de exigir do visitante-ouvinte um empenho maior para penetrá-la, projeta a mata para o campo do imaginário, para um lugar platônico. Em uma exposição que se propunha a dialogar com a cidade, Venosa criou seu “mapa invisível” a partir de uma região que foi, de fato, uma projeção. Preocupado com a crise de abastecimento que ameaçava o Rio de Janeiro – o corte para madeiras nobres, os engenhos de cana e as fazendas de café haviam desmatado boa parte da Tijuca –, dom Pedro II mandou que os escravos plantassem cerca de 100 mil mudas em tempo recorde.4 Exuberância inventada para a cidade-paisagem, a Floresta da Tijuca também foi uma das primeiras imagens que o mundo teve do Brasil. Foi lá que o pintor Nicolas Taunay 5 se hospedou, na casa de conterrâneos franceses que plantavam o café bourbon. Suas telas retratando a Cascatinha e os arredores da Tijuca sem dúvida fazem parte de uma iconografia arquetípica e coletiva dos cariocas. É interessante que, ao se aproximar de um lugar tão exuberante e tão retratado, Venosa tenha mais uma vez optado pela antítese, construindo um trabalho que parte da imagem-zero para ser percebido. Sem nenhum apoio visual, o visitante é obrigado a se debruçar no mirante de Tijuca contando apenas com o próprio acervo, sua floresta mental. O fato de haver poemas românticos declamados em línguas de difícil compreensão – e por uma voz sintética, criada em computador – dá a quem experimenta o trabalho a sensação de que se é um estrangeiro no campo de imagens criado pelo estímulo dos outros sons. Um pintor viajante que, diferentemente de Taunay, só conta com a tela da imaginação para dar cor à sua mata.
Tijuca, 2010 Ambiente sonoro Banco, caixa de som e trilha de áudio
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Anna Bella Geiger e a Zona Portuária
Abriu o porto ioiô, é porta aberta iaiá É o comércio, é o progresso da cidade E a cidade cresceu, o mundo então conheceu O berço da felicidade Arlindo Cruz, Maurição, Carlos Sena e Elmo Caetano, O Rio corre para o mar.
Samba-enredo do Império Serrano no Carnaval de 2001.
1 Na canção O nome da cidade.
Zona Portuária com águas do mar, 2010 Frame do vídeo
O trabalho de Anna Bella Geiger foi um porto para Mapas invisíveis. Não só porque a artista escolheu ancorar na Zona Portuária do Rio, mas também porque sua obra, desde o início da carreira, navegou pelas muitas possibilidades da cartografia. Sob o olhar de Geiger, mapa já foi geografia, é claro, mas também corpo, índice, relevo de similitudes e diferenças. À medida que ganhava forma, Zona Portuária com águas do mar foi se transformando em uma das âncoras de nossa montagem. Através de trabalho, este “Rio, que não é rio, é mar”, como cantou Caetano Veloso,1 norteou com suas águas todo o fluxo do projeto. As águas precisavam inundar as aproximações de vários artistas com a cidade, de maneiras muito distintas. Nada melhor do que seguir seu curso. Montamos então os trabalhos de Rosângela Rennó, Paulo Vivacqua e do grupo OPAVIVARÁ!, que comentaremos a seguir, como uma espécie de corredor sensorial fora dos limites da Galeria 1. Eles formaram uma estrada de sensações, uma porta de entrada desta nossa cidade submersa. O olfato misturou-se com a ideia de caminhar na Saara de Rennó, a audição norteou Vivacqua em São Cristóvão, e o paladar e o tato – na verdade contato – foram as matrizes do OPAVIVARÁ! em Madureira. Para descobrir esses três “mapas”, o visitante precisou caminhar pelo foyer da CAIXA Cultural. Fez isso tendo o trabalho de Geiger como linha do horizonte, imagem-matriz, primeira visão. Zona Portuária com águas do mar não fala exclusivamente da Praça Mauá, porto que redimensionou a cidade junto com a Avenida Central, hoje Rio Branco. Tampouco viaja no tempo para alcançar a Praça Quinze e seu Cais Pharoux, primeira porta de entrada da cidade, ainda nos tempos do Brasil Colônia. Esses lugares estão lá, latejantes, mas isso não é tudo. Na gravura de mais de quatro metros de largura, a artista funde dois planos de imagens de várias procedências, mostrando portos do mundo todo. As várias camadas de águas, pontes e ancoradouros – 26
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Zona Portuária com águas do mar, 2010 Fotografia, desenho e vídeo
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Zona Portuária com águas do mar, 2010 Fotografia, desenho e vídeo (detalhe do vídeo)
há desde uma gravura clássica de Hiroshigue sobre a Baía de Tóquio até uma cena fictícia da Golden Gate, em San Francisco, sendo invadida por discos voadores – fazem um sobrevoo sobre narrativas distintas. Como se o presente de qualquer lugar fosse também um porto, onde podem ancorar o somatório de todos os tempos vividos e suas muitas possibilidades de futuro. A artista espalhou inscrições em hebraico no azul das imagens. Quase à deriva, a palavra nos leva para um mar ancestral, cíclico, que pode ser gênese, dilúvio, estio. O verbo reforça a ideia da cidade em um pergaminho marcado por múltiplos acontecimentos, ecoando trabalhos de Geiger de outras épocas. Um livro também é um mapa, como mostrou a artista em Rrolos-Scrolls com livro de Ester (2002). O caminho inverso é plenamente possível. Assim, mapas também são livros e arquivos, e a imagem da cartografia de metal e cera criada dentro de gavetas pela artista, caso de A linha imaginária de Tordesilhas (1995), é aqui incontornável. Zona Portuária com águas do mar não se restringe ao papel. Acoplado à gravura está um pequeno aparelho de DVD, por meio do qual se vê um vídeo em looping. Se na imagem panorâmica tínhamos porto onírico, quase platônico, agora chegamos mesmo ao Rio, com sua cartografia, suas águas. A artista conjuga o sobrevoo metafórico de seu pergaminho com um close absoluto no traçado da região central carioca, conjugando distâncias/profundidades distintas numa mesma ação. Foi assim também em sua importante série de trabalhos Fronteiriços (2006). A divisão de uma tela/superfície panorâmica em duas áreas com ações e tempos distintos é recorrente. Aparece em Circumambulatio (1972), em que ela aproxima uma foto do estádio do Maracanã com a das ruínas de um anfiteatro grego; nas gravuras da série Local da ação, dos anos 90; e em Brasil 1500-1996 (1996). Neste último trabalho, Geiger já insinua a estrutura presente em Zona Portuária com águas do mar: uma área que se opõe a uma vizinha, que por sua vez traz dentro dela outra região, com novas informações. 30
Na obra apresentada em Mapas invisíveis, o contraponto entre um e outro e a transposição de fronteiras se dão no campo visual, mas também na estrutura conceitual. No filme rodado continuamente pelo DVD, editado com a colaboração de Alex Topini, Geiger usou a canção Milonga del moro judio, do uruguaio Jorge Drexler, para lembrar que qualquer porto é o lugar onde a cidade se abre para as diferenças. É uma fronteira elástica, quase infinita. Com a canção, ela nos leva até aqueles que chegaram ao Rio pelas águas: portugueses, invasores franceses, escravos africanos, judeus fugidos da Inquisição, árabes mascates, colonos italianos, japoneses, alemães. A ênfase em nossas diferenças culturais sempre foi um instrumento político na obra de Geiger, como nos 18 postais da série Brasil nativo/Brasil alienígena (1976/1977), em que se autorretrata replicando, à sua maneira, gestos simples de índios, como se olhar no espelho ou varrer a porta da oca. O igual é também o diferente, mostra a artista. Seu trabalho para esta exposição recupera essa sua bagagem e a aproxima da história da cidade. Através dele, lembramos que, ao se abrir para a presença do Outro, o Porto enriquece a cidade – literal e simbolicamente. O cais assistiu à primeira grande insurreição negra no Brasil – a Revolta da Chibata, comandada pelo marinheiro João Cândido, em 1910. Como nos conta João do Rio,2 viu ainda a organização de nosso primeiro sindicato, o dos trabalhadores da estiva. Os carregadores do Largo da Prainha, hoje Praça Mauá, não eram apenas bons de política. Os negros, sobretudo baianos, que chegam ao Rio para trabalhar como estivadores se reúnem em torno da Pedra do Sal, que havia sido um mercado de escravos no século XVII e começou a abrigar negros forros e quilombolas já nessa época. Entre o fim do século XIX e o início do século XX, os negros formariam ali um riquíssimo núcleo cultural, com terreiros de candomblé e rodas musicais. As tias baianas abriam seus quintais para as festas. Uma se destacava: Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, filha de santo, quituteira de mão cheia – os tabuleiros da baiana tinham dupla função, social e religiosa – e grande festeira. Ela já organizava reuniões nas cozinhas e terreiros da Pedra do Sal, onde começa a se desenvolver um ritmo híbrido, com a melancolia de Portugal, a batida africana e alguma manemolência baiana: o samba carioca. Tia Ciata se mudaria para a Praça Onze, onde a música do Largo da Prainha se encontraria com a malandragem do mangue. Mas o samba nasceu no Porto e, portanto, a alma carioca também. Como a obra de Geiger nos mostrava desde o princípio. 31
2 “Os trabalhadores da estiva”. Em A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Daisy Xavier e Copacabana
Nenhuma rede é maior do que o mar Nem quando ultrapassa o tamanho da Terra Nem quando ela acerta, nem quando ela erra Nem quando ela envolve todo o planeta Lenine e Lula Queiroga, A rede
1 “Tecendo uma pescaria para pegar poucos talvez um só eu mesma o mesmo peixe da história de um pescador que um dia içou numa só rede tudo que me cabe.” 2 GERSON, Brasil. História das ruas do Rio. Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 1981.
A rede abarca muitos sentidos no trabalho de Daisy Xavier sobre Copacabana. Também psicanalista, a artista fez da imagem da rede um elemento recorrente em seu trabalho como artista visual. A rede é o que trança e recria significados, mesclando paisagem e histórias com a memória, atando novos nós para soltar outros, possibilitando insights e descobertas que só temos no divã ou provocados pela arte. Feita de cobre, a rede de Xavier tem esta linha de metal como fio condutor. Ao trançar sua rede-escultura, a artista usa a palavra para falar das outras redes de Copacabana, aquelas usadas pelos homens da Colônia de Pescadores do Posto 6. Em Tecendo Copacabana, a rede de cobre é ladeada por um vídeo, que mistura o mar, e os dois trançados: o da artista e o de um pescador. A rede-obra de arte guarda em suas entranhas um poema sobre o bairro,1 apresentado aos visitantes da galeria; a outra, “real”, pesca a memória da artista, herdeira de um pai pescador, um homem que fez de sua relação com o mar um dos atravessamentos fundadores da memória da filha. Tão familiar na vida e na obra de Xavier, a rede também parece um elemento interessante para um mergulho em Copacabana, bairro onde a artista reside e trabalha e que mimetiza parte do repertório de imagens e clichês construídos em torno do Rio de Janeiro. Imenso tecido de classes sociais e tribos distintas, Copacabana já foi a fronteira a ser conquistada. Antes do Túnel do Pasmado, que demoliu o Palácio Mourisco e integrou a Praia de Botafogo ao litoral que hoje é margeado pela Avenida Atlântica, o bairro era um areal distante, que começou a ser povoado justamente pelo estabelecimento da Colônia de Pescadores na região onde hoje está o Posto 6. O relato do historiador Brasil Gerson2 nos conta que, vizinhos da Praia do Diabo, os pescadores veneravam a imagem de Nossa Senhora de Copacabana, uma manifestação de Maria vinda da Bolívia, que aqui assumiu também outra identidade: a de Nossa Senhora 32
da Candelária. Com este segundo nome, aliás, a santa ganhou a catedral suntuosa, construída de frente para a Praça Quinze e um das portas de entrada no Centro antigo do Rio. Hoje, a igreja é vista pelos fundos por quem transita na Presidente Vargas, já que a avenida alterou o traçado e o fluxo originais daquela região. Como Nossa Senhora de Copacabana, a santa ganhou um templo no fim da Rua da Igrejinha, hoje Francisco Otaviano, destruído pelos militares na ocasião da construção do Forte. Copacabana traz em si essa conexão invisível com outra região do Rio e trança muitos outros pontos de partida para se falar desta cidade. É um emaranhado de pistas sobre o que é estar no Rio e ser carioca, que o morador e o visitante precisam desembolar e 33
Tecendo Copacabana, 2010 Frames do vídeo Montagem e sonorização: Célia Freitas Imagens: Daisy Xavier, Célia Freitas e Pedro Victor Brandão
3 Copacabana tem um dos calçamentos mais famosos de pedras portuguesas da cidade. O material, uma das marcas do Rio, foi trazido para cá pelos portugueses e usados na Avenida Atlântica em 1906. Nessa ocasião, o desenho em ondas já existia, mas não tinha a sensualidade atual. Também ficavam dispostas na vertical, no sentido de quem anda, e não paralelas ao mar. Nos anos 70, quando assumiu a responsabilidade de desenhar todos os pavimentos para a orla do bairro, o paisagista Roberto Burle Marx enfatizou o volume das curvas e as colocou paralelas ao mar. É esse desenho, mantido até os dias de hoje, que se assemelha ao visto na bandeira da batalha de Uccello.
trançar, criando novas conexões e redescobrindo direções inutilizadas pela falta de uso e de prática. Ao recuperar a memória fundadora do bairro através de sua experiência como moradora – e pescadora –, Xavier tenta apresentar trilhas alternativas para um passeio distante dos clichês que hoje formam um caminho sulcado e recorrente no discurso sobre Copacabana. Longe do turismo sexual, dos hotéis cinco estrelas, das favelas e do formigueiro humano que transita em seu comércio, Xavier usa a rede para tecer ou esgarçar significantes. Se por um lado a artista é Penélope, que recostura tempos e subjetividades com linha de pesca, por outro é como Ariadne, que estende o fio para que cada um de nós encontre seu caminho no labirinto de uma cidade que maravilha, mas também espanta e oprime em suas miragens. Copacabana também inundou os caminhos da artista. O segundo trabalho apresentado para Mapas invisíveis é quase uma anotação de ateliê, que foi se desenhando ao acaso, durante o processo da exposição. Obcecada há anos pelo quadro A batalha de São Romano (1432), de Paolo Uccello (1397-1475), Xavier sonha em transformar o desenho das lanças que cruza toda a cena pintada pelo pintor italiano em uma instalação monumental, em que as armas sejam transformadas em agulhas de tricô. O cruzar das lanças viraria, então, ponto cruzado e virtual no espaço. Quando já pensava em Copacabana, ela olhou mais uma vez para uma reprodução da tela, que fica sempre em seu ateliê. E, pela primeira vez em anos, enxergou na bandeira empunhada por um dos soldados de Uccello – a cena mostra a vitória do exército de Florença em Siena, e foi criada para o palácio dos Médici – o desenho exato do calçadão da Avenida Atlântica. Separadas por mais de 500 anos, as ondas de São Romão e as do calçadão, que ganharam a forma final em um projeto de Burle Marx,3 são rede e são peixes nesse imenso mar de histórias e de visualidades possíveis para chegar a uma ideia de lugar, de cidade. Mas o deslumbramento de enxergar o Rio de Janeiro em uma tela pintada antes de o Brasil ser descoberto também é como o mar, que só é generoso com aqueles que mergulham mais fundo para não serem tragados pela onda.
Paolo Uccello em Copacabana, 2010 Reprodução da pintura A batalha de São Romão e lupa
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Tecendo Copacabana, 2010 Vídeo e rede de fios de cobre com placa de metal Montagem e sonorização: Célia Freitas Imagens: Daisy Xavier, Célia Freitas e Pedro Victor Brandão
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Daniel Senise e Botafogo
Making night hideous; and we fools of nature So horridly to shake our disposition With thoughts beyond the reaches of our souls? Say, why is this? wherefore? what should we do? William Shakespeare, Hamlet, Ato 1, Cena 4
Daniel Senise sempre marcou seu trabalho com os vestígios de um corpo ausente. Esse fantasma nunca aparece na superfície ou no resultado final das obras com a integridade que teve em outro momento do processo artístico, do contrário jamais poderia ser chamado com esse nome, “fantasma”. Memória de um corpo – físico ou simbólico – que já teve outra vida e outra envergadura, este espectro que alumbra e assombra a obra do artista carioca desde os anos 80 casou-se perfeitamente com o bairro de Botafogo, região da cidade sobre a qual ele se debruçou nestes Mapas invisíveis. Em Botafogo, projeto site specific criado especialmente para o lugar da exposição, Senise ocupou o piso da Galeria 1 da CAIXA Cultural ainda vazia, antes da entrada dos outros trabalhos, com as folhas caídas das árvores do Cemitério São João Batista em um único dia: 22 de junho de 2010. O contorno da sala criou um perímetro no espaço museográfico que foi invadido por um novo mapa. Traçado orgânico mais que literal, a imagem dessa enorme quantidade de material vindo do cemitério, um lugar tabu, gerou uma sensação de avenidas marginais, de outro mundo possível. Mas também de um enorme bolsão periférico, ostensivo, pesado, ameaçador. Depois de desenhado, o mapa de Senise foi fotografado ponto a ponto, com a sequência de imagens criando em um espaço virtual o mesmo perímetro visto de corpo presente na CAIXA. Uma pilastra central no centro da sala foi aproveitada para a instalação de três dessas imagens, montadas intencionalmente sem moldura. Presas com alfinetes, como um projeto em construção, as fotos se sobrepunham recuperando parte do traçado, o de um dos lados do quadrado que dá forma à galeria. A sobreposição das fotos aponta para outras camadas que cobrem umas às outras. Botafogo é uma encruzilhada de fantasmas. Vindas do lugar da morte, as folhas começam a virar pó lentamente depois que se desprendem das árvores. Recolhidas em um 38
único dia com a ajuda dos coveiros, a leva que foi para a CAIXA encerra uma ideia de ciclo. As aleias e sepulturas podem ser varridas hoje pela equipe do cemitério, mas, depois de um novo amanhecer, outras folhas estarão ali, ocupando o território que na véspera foi de outras. Um espelho para o fluxo diário do São João Batista, que ainda é o mais nobre do Rio de Janeiro. Os mortos de um dia sucedem os do anterior, com diferenças apenas no luxo das coroas, no preço do esquife, no tamanho do cortejo. Essas sutilezas caem por terra, literalmente, depois que o caixão desce à sepultura: dividindo sua geografia entre mausoléus suntuosos e uma grande encosta com gavetões ordinários, o cemitério iguala pobres, ricos e remediados do Rio em sua hora final. Botafogo, o bairro, é também uma espécie de fantasma na história carioca. A cidade de São Sebastião começa oficialmente na Urca, com a fortificação erguida por Estácio de Sá para defender a Baía de Guanabara dos ataques estrangeiros, sobretudo da invasão francesa. Depois de vencido o inimigo, garantidos os domínios da Coroa lusa, a Urca começa a ser desocupada e passa a ser chamada de Cidade Velha. Os portugueses endinheirados, que já faziam fortuna com os engenhos de açúcar e outras atividades, erguem suas residências em bairros como a Glória, o Flamengo e Botafogo. O Cemitério São João Batista foi inaugurado em 1851 e demonstra um momento em que a região já tinha mortos suficientes para gerar a necessidade de um território para enterrá-los. Foi em Botafogo que Carlota Joaquina resolveu morar, depois que chegou ao Brasil com dom João VI e cerca de 10% da população de Lisboa. A praia, dizia ela, fazia bem ao seu humor. E, hoje se sabe, era também uma boa desculpa para poupá-la da convivência diária com o marido, instalado na Quinta da Boa Vista. Para encontrá-lo, Carlota empreendia uma pequena viagem. A escolha da rainha seria a mesma de uma elite comerciante, que ergueria no bairro casarões suntuosos. Com a migração do eixo de status para as praias oceânicas – Copacabana e depois Ipanema e Leblon –, as mansões de Botafogo foram abandonadas. Em 1951, a demolição do Palácio Mourisco para a construção do Túnel Novo significou a derrocada dos anos de fausto. Botafogo virou um bairro de passagem até ser redescoberto recentemente, primeiro pelos produtores culturais de cinema e casas noturnas, depois pela especulação imobiliária. No rastro desta nova fronteira de ocupação, muitos dos palacetes ecléticos que ficaram décadas desocupados estão sendo demolidos. A lembrança melancólica, mas riquíssima, dos tempos dos barões está vindo abaixo para dar lugar a condomínios. Os imóveis que sobrevivem viram pontos de comércio, sobretudo laboratórios. 39
Botafogo, 2010 Site specific na galeria com folhas recolhidas no cemitério São João Batista no dia 22 de junho de 2010 Ampliação fotográfica
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1 Eva foi um projeto site specific criado por Senise para o Centro Cultural São Paulo em novembro de 2009. Os tijolos feitos de convites de exposição reciclados que foram cobrindo paulatinamente, durante o curso da exposição, a escultura Eva, de Victor Brecheret, uma das principais peças do acervo da instituição, até que ela desaparecesse atrás das paredes. Uma olaria para a produção dos tijolos foi instalada dentro do espaço expositivo, para que os visitantes acompanhassem o processo.
Cidades que morrem e outras que nascem, é disso que fala esta exposição. A partir desse pressuposto, é muito rico e plausível o diálogo entre a obra de Senise, o trabalho que o artista criou para Mapas invisíveis, o São João Batista e o bairro à sua volta. Uma lápide que marcou um afresco de Giotto marcaria também a carreira de Senise. Ao criar a série de quatro pinturas Ela que não está, de 1994, o artista sintetizou, no título do trabalho, um dos motores de sua obra, talvez o maior deles. Em vez de pintar as figuras criadas por aquele que talvez tenha sido o primeiro pintor reconhecido como tal pela história da arte, Senise deu corpo ao lugar da falta, ao signo da morte, à não-imagem. A morte e a ressurreição das imagens continuam muito presentes no trabalho que o artista vem realizando nos últimos anos. Botafogo, que ganhou a tridimensionalidade da galeria, ecoa em Eva,1 instalação criada com tijolos feitos com a reciclagem de convites de exposição, ou com a sala apresentada por Senise na última Bienal de São Paulo. Soltos no espaço, seus fantasmas talvez sejam menos evidentes. Mas continuam potentes.
Botafogo, 2010 Site specific na galeria com folhas recolhidas no cemitério São João Batista no dia 22 de junho de 2010 Ampliação fotográfica (detalhe)
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Luiz Alphonsus e o Aterro do Flamengo
Adeus praia do Flamengo Só a saudade ficou no lugar Adeus, Flamengo O Prefeito mandou aterrar Ai, ai Doutor O que é que eu vou fazer com meu maiô Ai, ai Doutor A praia do Flamengo se acabou, que horror. Luiz Quirino, em marchinha de carnaval gravada por Linda Batista.
1 O projeto urbanístico do Parque do Flamengo é do arquiteto Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), mesmo autor do prédio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (projeto de 1954) e dos conjuntos habitacionais Prefeito Mendes de Moraes (Pedregulho), em Benfica (1946), e Marquês de São Vicente (Minhocão), na Gávea (1952). O parque foi desenhado entre 1954 e 1959, com projeto paisagístico a cargo de Burle Marx (1909-1994), mas as obras só começaram em 1961, sob a coordenação de Lota de Macedo Soares (1910-1967), gerando imensa polêmica na opinião pública. O parque tem sete quilômetros de extensão e inclui os jardins criados por Burle Marx para o entorno do MAM, além de playgrounds, campos esportivos e pistas para caminhada. O aterro propriamente dito foi feito com material de desmonte do morro de Santo Antônio. A obra fez parte de um conjunto de iniciativas que visava resolver o problema viário causado por uma cidade em expansão, com número crescente de carros.
Com seu projeto para Mapas invisíveis, Luiz Alphonsus se reaproxima de uma série, Paisagens móveis, que acompanha seu percurso desde os anos 70. Paisagem móvel – Aterro do Flamengo se relaciona diretamente com a trajetória do artista ao propor o deslocamento de uma faixa, estendida num domingo de sol em uma das pistas do Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, conhecido popularmente como Parque do Flamengo. Ou simplesmente Aterro. A marca branca, que percorreu boa parte da via expressa, projetou-se para fora da parede e do plano da imagem para a galeria. Uma faixa real escorria da tela e tomava o espaço da CAIXA, simulando no espaço museológico um pouco do que é o Aterro desde sempre. Caminho com visão para os dois maiores ícones cariocas, o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor –, curiosamente duas montanhas marcadas por intervenções em seus topos – significou a transformação de uma cidade de pedestres em outra, que se rendia ao automóvel e à necessidade de expandir suas fronteiras para as praias da região oceânica. Com a ajuda do Parque do Flamengo,1 o Rio cresceria primeiro para Copacabana, depois para Ipanema, Leblon, São Conrado, até chegar aos pântanos da Barra da Tijuca, de onde se expande atualmente para regiões cada vez mais afastadas da Zona Oeste. A conquista dessa fronteira rumo ao mar necessitava de um caminho mais rápido entre a Zona Sul, Centro e uma praça Mauá cada vez mais conectada à Zona Norte pela Perimetral. A perfuração do túnel Santa Bárbara, realizada praticamente no mesmo período do Aterro, colaboraria de forma decisiva com essa expansão, esse redimensionamento da cidade. A leitura de Alphonsus para o Parque do Flamengo apresenta-o como uma passarela, por onde é possível ver a cidade desfilar suas maravilhas. Mas o trabalho o mostra ao mesmo tempo como um 44
obstáculo. Afinal de contas, ao levar a cabo o maior aterro urbano do mundo, o Rio afastou seus moradores do mar, transformando a antiga Avenida Beira-Mar em um nome inadequado para uma via expressa que passou a ser banhada não por águas, mas por concreto. A epígrafe deste texto, marchinha de carnaval gravada por Linda Batista, ícone da Era do Rádio, mostra o grau de contrariedade que a obra causou. As expansões e as contenções da cidade, com suas formas e organização ambíguas, sempre marcaram a obra do artista. Alphonsus nasceu em Belo Horizonte, mas ainda criança, em 1955, veio morar no Rio de Janeiro, que, como conta o crítico Fernando Cocchiarale em seu texto Entre o cósmico e a cosmos polis,2 era então cidade hegemônica na construção da identidade cultural brasileira. A invenção de Brasília fez com que a família Guimaraens se mudasse para a nova capital, e foi lá que o artista se uniu a Cildo Meireles, Alfredo Fontes e ao músico Guilherme Vaz em um grupo de arte fortemente marcado pela experiência de viver em uma cidade em construção e, mais tarde, numa capital ilhada do país em plena ditadura militar. No fim dos anos 60, Alphonsus voltou ao Rio de forma definitiva, para aqui participar da efervescência do Museu de Arte Moderna e dos grupos de arte conceitual e de experimentação que se multiplicavam. Relembrar o histórico do artista, como bem explica Cocchiarale em seu texto – e volta a se fazer aqui – tem um sentido. A biografia de Alphonsus mostra como ele sempre esteve marcado pela experiência urbana e por momentos cruciais da história das duas cidades, Rio de Janeiro e Brasília. Em sua obra, o Rio vai ser o que a psicanálise chama de um “atravessamento”: um acontecimento marcante e fundador, para onde o olhar e atitudes, orientados pela psique, vão se dirigir, por toda uma vida. Impossível dissociar sua produção de um pensamento sobre a paisagem, sobretudo a paisagem urbana. Em vários suportes – fotografia, site specific, performance e também na pintura, esta última sua manifestação primeira como artista –, Alphonsus vai criar projetos de expansão e alteração da paisagem em busca de outro modo de olhar o mundo. Não por acaso, o artista vem criando, desde os anos 60, uma relação entre a cidade e o cosmos. Nas fotografias, imagens de detalhes sobrepostas à imagem principal, como closes invadindo a panorâmica, marcam uma espécie de visão via satélite, como se ele tentasse conjugar, no mesmo apanhado visual, o macro e o microcosmos de cada lugar. Em Projeto para uma nova paisagem no planeta Terra, instalação de 1972, recriou caminhos com pedra de brita e áreas brancas. Usadas quase como um negativo da superfície – um marco-zero –, as superfícies brancas se 45
2 COCCHIARALE, Fernando. Entre o cósmico e a cosmos polis. Rio de Janeiro: MAM, 2005.
apresentam, também, de forma ambígua. Como no trabalho rea lizado para Mapas invisíveis, ora são obstáculo, ora são outra via, algo como uma terceira margem, uma trilha marginal e imprevista, um simbólico “caminho do meio”. No trabalho seminal para todos os outros, 60 white meters (1969), Alphonsus fotografou uma faixa branca de 60 metros de comprimento percorrendo praias, ruas de asfalto, campos. Aí ela já se apresentava também como um vestígio de caminho, um passante, marca de uma presença que percorreu aquelas paisagens. A faixa voltaria de inúmeras maneiras, não só no já citado Projeto para uma nova paisagem no planeta Terra, mas também em Dedicado à paisagem do planeta Terra, instalação criada um ano antes, em 1971. Marcaria também a pintura do artista, como em Corte em uma montanha, do mesmo ano. Nesta imagem, a linha branca corta a Pedra da Gávea, separando-a em dois campos, mas, sobretudo, lhe dando uma profundidade que é ignorada na maneira usual que a enxergamos, como um paredão que desenha e abriga a orla da Zona Sul carioca. O jogo entre negativo e positivo, tanto pela oposição entre branco e preto quanto pela utilização de espelhos e inversões, é outra marca do trabalho de Alphonsus. Em Horizonte, outra obra de 1971, díptico de fotos em preto e branco, água vira céu e céu vira mar, num simples e interessantíssimo jogo óptico. Em Negativo-positivo, da série Edições (1970-1984), ele cavava buracos em forma de paralelepípedo na terra e, depois de fazer uma fogueira na área interna das cavidades, jogava com a dualidade entre matéria viva e morta, vegetação existente e vegetação faltosa, terra fértil e terra carbonizada. O trabalho de Alphonsus sobre o Aterro fez com que ele revisitasse questões que sempre lhe foram preciosas. Como a faixa branca, o Parque do Flamengo margeia a paisagem carioca como uma linha que ora expande e ora oprime o que está em volta, encaixando-se à perfeição na dualidade proposta pelo artista. O Aterro também foi e é, simbolicamente, uma terceira margem, caminho visível que aponta para o curso invisível da história urbana do Rio. Como um close que revela os detalhes de uma linda panorâmica, com direito a visão frontal do Pão de Açúcar.
Paisagem estrutura móvel, 2010 Aterro Participaram da realização do trabalho: Julio Callado e Domingos Guimaraens
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Luiza Baldan e a Barra da Tijuca
O bote ficou fora de alcance, na praia do leste. O que perco não é muito: saber que não estou preso, saber que posso partir da ilha; mas alguma vez pude ir embora? Adolfo Bioy Casares, A invenção de Morel.
De murunduns e fronteiras, trabalho de Luiza Baldan para Mapas invisíveis, destaca e aprofunda questões fundamentais da obra da artista a partir de um mergulho na Barra da Tijuca, especificamente no conjunto de condomínios de alta renda conhecido como Península. Baldan começou sua trajetória através da fotografia, embora desde o início taxá-la como fotógrafa significasse uma redução de seu campo de interesses. Ainda que a fotografia ainda seja seu suporte mais frequente, a artista não empenha sua atenção nas questões inerentes à reprodutibilidade das imagens. A fotografia – assim como o vídeo, que ela experimenta nesta exposição – é um meio para que ela fale de sua relação cada vez mais direta com o espaço, não só no que ele tem de escultórico, mas, sobretudo, como um campo de experimentação de tempos distintos a partir do confronto com sua memória. Para realizar De murunduns e fronteiras, a artista morou durante o mês de agosto de 2010 em um apartamento da Península.1 Nesse período, circulou pelas áreas comuns do conjunto de prédios, como jardins e playgrounds, e usou o serviço de transporte do condomínio. Ao propor essa residência, Baldan pretendia dar continuidade a uma experiência vivenciada no Conjunto Habitacional Prefeito Mendes de Moraes, o Pedregulho, em Benfica, onde passou cerca de 30 dias em dezembro de 2009. A partir da convivência com os moradores desse condomínio extremamente 1 Luiza Baldan morou na Península com o apoio da construtora Carvalho Hosken, que cedeu um loft para a
popular, ela criou a série de fotos Natal no Minhocão, além de produzir um conjunto de imagens que são indissociáveis de um
artista durante um mês e a auxiliou
texto escrito durante a temporada em Benfica. Parte de sua dis-
em tudo o que foi necessário em sua
sertação de mestrado, “Lugares que habitam lugares”,2 tratava
pesquisa no condomínio.
exatamente da importância que este texto passou a ter na sua
2 Dissertação de mestrado defendida
pesquisa. Um discurso não linear e sem compromisso com o re-
em 2010 na linha de Linguagens
lato fidedigno dos acontecimentos, que fundia o confronto com
Visuais do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ, sob a
um novo lar, provisório, nômade, com o repertório das inúmeras
orientação de Milton Machado.
casas onde a artista viveu ao longo dos anos. 48
Essa memória da artista em relação ao habitar lista residências em diversos bairros do Rio e países como os Estados Unidos e a Espanha. Baldan viveu em mais de 20 casas em seus 30 anos de vida. Esse é possivelmente um dos motores de seu interesse pelo registro de lugares que são deslocados de sua identificação usual e dos clichês com que são percebidos para virar um território suspenso, que pode ser em qualquer lugar, mas certamente atende ao chamado de um “lá”, de um porto para onde a memória – da artista e de quem está diante das imagens – se dirige. Não por acaso, ela tem especial interesse pelo tema da fronteira. Esse limite pode ser geográfico, surgindo a partir de seu deslocamento para um lugar que não é o seu, ou simplesmente como a sobreposição de dois “estados” de ambiente. Neste segundo caso, enquadram-se, por exemplo, inúmeras fotos de janela, em que o “lado de fora”, com sua paisagem, invade e é invadido pelos ambientes do “lado de dentro”. Mas a fronteira, na obra de Baldan, também tem a ver com transições de tempo e de luz. Na recente exposição “Sobre umbrais e afins”, apresentada em 2010 na Plataforma Revólver, em Lisboa, a artista reuniu fotos de 2004 a 2010 em que aparecem ambientes/territórios na penumbra. Eles são atravessados por outra intensidade de luz, que é registro de outro tempo, tão estrangeiro como ela própria quando se propõe a uma residência num lugar que não é o seu. Algumas dessas imagens contêm portas e janelas, que deixam entrever outro ambiente, outro mundo, território a ser percorrido depois de ultrapassados os limites do território que se sobressai em primeiro plano. Na série Entre o sono e a vigília (2006-2010), une a ideia de um olhar visitante com a de transição de tempo. Dorme uma noite na casa de alguém, fotografando o anfitrião assim que ele acorda e sem que faça qualquer outra coisa antes de posar para ela. Se por um lado este é um projeto que reforça a característica globe trotter e às vezes fugidia da relação de 49
De murunduns e fronteiras, 2010 Vídeo
3 Trechos do texto de Luiza Baldan lidos pela artista no trabalho apresentado na mostra: Caminho de volta. A sombra é invertida. Agora já são mais de 60 borboletas. Parei de contar quando uma estava para morrer. Não tive coragem de guardá-la. Estou numa porção de terra cercada de água por todos os lados, menos um, ligado ao continente. Quase ilha. O cheiro de mangue ativa alguma parte da memória e me joga para longe. Precisamente dez anos atrás. A incompatibilidade entre o tempo corrido, o vivido, o lembrado, o esquecido, o sonhado. Pessoas e lugares que não posso resgatar. Pequenos falecimentos coletivos.
(...) Mangue-vermelho, mangue-preto e mangue-branco. Rizófora e casuarina. Rede de contenção de lixo, garrafa pet 2 litros, alga, gigoga, pneumatóforos, jacaré, capivara, gambá, frango d’água, mutuca, jaçanã, garça-branca, garça-rosa, biguá, biguatinga, socó, socó-boi, gavião-carrapateiro, gavião-carcará, martim-pescador, maçarico.
(...) Pisei no sol. Demora um tempo para o olho se acostumar e enxergar através do regurgito. Espinha de peixe, conchas e formigas se camuflam pela fuligem e a capa branca e ácida do vômito dos pássaros. Penas de todos os tamanhos. Coco verde e coco seco. O balanço das folhas e galhos lembram passos, apesar de eu estar sozinha.
Baldan com a noção de lar, por outro, demonstra com muita clareza a tentativa da artista de alinhavar e perpetuar momentos efêmeros, transitórios, fazendo deles lampejos de eternidade. Ao guardar a imagem, ela desloca tempo e espaço para o campo da não identificação e é justamente esse deslocamento que garante a sobrevivência do que é retratado. Em De murunduns e fronteiras, a imagem guardada não é só imagem. É também texto, ampliando as relações entre campo visual e palavra iniciadas no trabalho do Pedregulho. A artista cria um vídeo formado por três projeções, que ora se separam em três imagens em tempos distintos, ora se unem numa panorâmica. Esses filmes registram um mapa de fato invisível da Península: uma ilha no meio da lagoa que separa esse bairro fechado do terreno do Barra Shopping, para onde os moradores vão através de um serviço de balsa. Baldan experimentou a vida na ilha durante dois dias, registrando-a também em passeios de barco pelas águas que banham o condomínio. Foi levada a esta viagem introspectiva pelos barqueiros da Manglares, empresa responsável pela limpeza do mangue. O texto produzido nesse período,3 que teve um trecho transformado em narração em off do trabalho, tem a mesma estrutura fragmentada das imagens. Captura sensações da artista de maneira entrecortada, fundindo cheiros, sons e imagens dessa região da Península – o mangue, o piar de passarinhos, a água invadindo a vegetação e o desenho infantil de um sol feito no chão do cais onde ela pegava a balsa – com os cheiros, sons e imagens dos lugares em que Baldan viveu. Se o texto é escrito em golfadas, transmitindo novidades e dejà vu em um só tempo, as imagens fazem exatamente a mesma operação. Os projetores são como um arquipélago de três ilhas, que têm como única ligação a fluidez das águas. Uma mesma panorâmica pode ser dividida em três tempos muito próximos e igualmente muito distantes, com os projetores funcionando descompassados até um fio de discurso – visual e poético, já que ocorre sincrônico ao texto narrado – conseguir transformá-los em uma só cena. A sensação de estados transitórios, que se eternizam a partir de lapsos de memória, volta aqui com um grau altíssimo de potência. O mergulho na Barra da Tijuca e a descoberta deste mapa invisível na Península criam novas transitoriedades e transformações para um único lugar. Bairro de prancheta, planejado pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa, a Barra sempre esteve culturalmente à margem do resto da cidade – tentando, inclusive, se emancipar, em uma campanha de 1988. O desconhecimento dos moradores de lá do resto da cidade já foi retratado em inúmeras reportagens 50
e pesquisas, que demonstram que a Barra é, de certa maneira, uma ilha. Por outro lado, o preconceito e o lugar-comum com que os moradores dos outros bairros tratam a região é uma realidade. Em De murunduns e fronteiras, Baldan quebra esses clichês, mas vai muito além ao se reencontrar com a ambiguidade entre eterno e efêmero, entre perene e nômade, que norteia toda a sua trajetória. Ao vivenciar essa sensação de naufrágio das imagens de um modo quase literal, ela mostra que estar à deriva pode ser uma boa forma de atracar no cais. 51
De murunduns e fronteiras, 2010 Fotografia
De murunduns e fronteiras, 2010 Fotografia
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OPAVIVARÁ !
e Madureira
Mercadão de Madureira, parabéns pra você!, 2010 Instalação e performance no hall da CAIXA Cultural na abertura da exposição
A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama. Oswald de Andrade, Manifesto antropofágico.
Comer Madureira? Só se for agora! A proposta do OPAVIVARÁ ! soou irresistível. O coletivo começou a visitar o bairro da Zona Norte assim que ficou definido que o “mapa invisível” seria a terra do jongo da Serrinha, do Império Serrano, da Portela, do baile charme embaixo do viaduto. Madureira é o maior reduto de cultura popular de origem africana no Rio de Janeiro. Madureira também tem seu Mercadão, e foi lá que o OPAVIVARÁ ! resolveu fincar suas bases para mergulhar no bairro. Inaugurado em 1959, pelo então presidente Juscelino Kubitschek, o Mercadão de Madureira começou como um grande ponto da Ceasa para comercialização de gêneros de hortifrutigranjeiros. Com o passar dos anos, os comerciantes foram diversificando suas atividades, e hoje é possível comprar, no mesmo lugar, da couve para a feijoada às contas para fazer a guia encomendada pelo pai de santo; do esmalte que virou a última moda nos salões da Zona Sul a todos os artigos para organizar uma festa de aniversário. Nas várias visitas ao Mercadão, o OPAVIVARÁ ! realizou um ensaio fotográfico com os vendedores dessas lojas. Os retratos dessa gente anônima viraram uma exposição, nada tradicional: em vez de papel ou qualquer mídia digital, o suporte para as imagens eram os “bolos de foto”, extremamente populares no subúrbio. Na Zona Norte carioca, é muito comum as famílias comemorarem os aniversários de seus filhos aplicando um retrato da criança em papel de arroz. A imagem é impressa com anilina comestível, e o bolo é coberto com essa película, ganhando moldura de glacê tingido no mesmo tom e enfeites variados. O retrato vira o tema do aniversário e frequentemente se espalha pelas lembrancinhas da festa: convites, ímãs de geladeira, saquinhos com pequenos brinquedos e guloseimas. Mapas invisíveis teve sua inauguração marcada em data muito próxima ao aniversário do Mercadão, que fez 51 anos em dezembro. Os artistas fizeram sua homenagem ao lugar com Mercadão de Madureira – parabéns pra você, série de 24 bolos com fotografias 54
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1 A 24ª Bienal entrou para a história como a “Bienal da antropofagia” e mostrou que, muito longe de ser um tema, uma imagem ou um estilo, esta era uma questão fundamental para a arte. 2 SÁ-CARNEIRO, Mário de. Indícios de ouro. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995 [1914].
dos trabalhadores do lugar. Gente que fica atrás dos balcões para realizar o sonho alheio. Ou chega cedinho com frutas e legumes para abastecer a mesa de inúmeras famílias, além de bares e restaurantes que são clientes há anos do mesmo lojista. O Mercadão é o motor da cultura negra presente nas veias e nas vias de Madureira: é de suas lojas que saem plumas, paetês, isopor e aviamentos, para muitas fantasias do Império Serrano e da Portela. É lá que muitos filhos de santo encontram os animais vivos, o dendê e as ervas necessários para os rituais do candomblé. Confeitados em uma loja próxima da CAIXA Cultural, os bolos do OPAVIVARÁ ! tiveram as fotos impressas em papel de arroz no próprio Mercadão. No dia da abertura da exposição, 22 de novembro, uma mesa de cinco metros de extensão expôs os 24 retratos comestíveis, montados como um grande mosaico. Os artistas desfilaram no foyer do centro cultural carregando um aparelho de som, que tocava músicas sobre Madureira, enquanto serviam os convidados dessa grande festa. Comer o inimigo para ganhar um pouco de sua força, de seu poder. Esse era o princípio da antropofagia dos índios canibais que habitavam a costa e as matas brasileiras, caso dos tupinambás. Fonte de inspiração do Manifesto antropofágico e de nosso modernismo, a antropofagia é quase inevitável – talvez o único caminho viável e sábio – para um país como o Brasil, soterrado por séculos de dominação econômica e política, portanto também cultural. “Da adversidade vivemos”, voltou a afirmar a 24ª Bienal de São Paulo, assinada por Paulo Herkenhoff,1 em 1998. O panorama artístico traçado pelo curador mostrava a aproximação de artistas como Lygia Pape, Adriana Varejão, Tunga e Beatriz Milhazes desse roubo consentido que a arte brasileira faz de outras artes, para dar a elas sua cara. E ainda do engolir o outro – comendo-o, literal e simbolicamente – para então criar algo como o poema de Mário de Sá-Carneiro, o atormentado contemporâneo de Fernando Pessoa: “Eu não sou eu/ nem sou o outro/ Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio/ Que vai de mim para o Outro”.2 Na esteira do Abaporu, de Tarsila do Amaral, sobretudo da Roda dos sabores, de Lygia Pape, o OPAVIVARÁ ! criou, com Parabéns pra você uma nova edição da feijoada de Macunaíma na piscina do Parque Lage. No foyer da CAIXA, comer Madureira foi ser im pregnado com a alma do bairro que, se não é/era de modo algum um lugar inimigo dos convivas, pode ser uma região estranha e desconhecida para boa parte dos participantes, sobretudo os moradores da Zona Sul carioca. Com um amálgama feito com glacê e com a singeleza das festas suburbanas, o OPAVIVARÁ ! conseguiu criar um fio invisível, capaz de unir partes muito distantes e partidas de uma mesma cidade. 58
A festa e os fluxos, assim como a aproximação da cidade, estão na base da proposta poética do grupo desde sua criação, em 2005. O primeiro trabalho a usar a ideia de uma cozinha coletiva foi Associados, criado para a exposição Orlândia (2007), em uma casa na Rua Jornalista Orlando Dantas, no Flamengo. Em 2008, o OPAVIVARÁ ! criou Salada mista, piscina plástica cheia de água e frutas tropicais, onde os espectadores, deixando a passividade da contemplação, podiam nadar e comer. No aniversário de 18 anos do CEP 20.000, uma ação realizada no Espaço Cultural Sérgio Porto fundia novamente comida e festa: uma montanha feita com biscoitos, balas e pirulitos tomou o lugar do bolo, com direito a vela e tudo, enquanto os integrantes do grupo espremiam laranjas e serviam o suco para o público. No fim de 2010, os artistas participaram de ações na reedição dos Domingos de Criação, do Museu de Arte Moderna. Em uma delas, ocuparam os pilotis do MAM e a área do Parque do Flamengo em frente ao museu com dezenas de redes, enquanto serviam espetinhos de legumes e frutas para os convivas. A relação do OPAVIVARÁ ! com a cidade também guarda essa relação com a festa e a descoberta do outro. Em Pula cerca, que o grupo fez para o Viradão Carioca de 2009, uma escada foi aberta no gradil da Praça Tiradentes, possibilitando que a população ocupasse a área mesmo quando o portão da praça estivesse fechado, à noite. Em Transporte coletivo, criado para a edição do ano seguinte do mesmo evento, o grupo convidou o público a andar pelo Centro da cidade pedalando sobre bicicletas adaptadas, coletivas, transformadas em centopeias sobre rodas. 59
Mercadão de Madureira, parabéns pra você!, 2010 Registro da performance e das visitas ao Mercadão de Madureira. O grupo fotografou o local e expôs as imagens em bolos no dia da abertura da mostra
Na ação Eu amo camelô (2009/2010), os artistas transformavam os vendedores das praias, caminhantes das areias, em paisagem. Sua iconografia e seus sons, em elementos constitutivos da cidade. As cadeiras de praia triplas criadas para esta exposição, realizada na Galeria Toulouse, voltariam em Ecológica (2010), no Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde o público se sentava para contemplar a paisagem da arte. O mesmo mobiliário criou uma praça para degustação de um narguilé coletivo na exposição Liberdade para mim é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome (2010), com curadoria de Bernardo Mosqueira, realizada em uma casa no Jardim Botânico. Com um nome que é ao mesmo tempo cumprimento, saudação e afirmação da alegria de viver, o OPAVIVARÁ ! recupera a relação entre arte e ritual. A festa e a comida são um rito, assim como ocupar a cidade significa caminhar sobre ela, descobri-la em trânsito, como quem participa de uma procissão ou de um desfile de carnaval. A maior festa carioca é, em sua origem, um ritual de iniciação, marcação religiosa das passagens de tempo e das transformações. Pelas mãos de Momo, voltamos facilmente para Madureira. Embora escolas muito importantes para nossa folia fiquem na Tijuca e seus arredores – Mangueira, Estácio, Salgueiro –, nenhum bairro é tão importante para a tradição do carnaval carioca quanto Madureira. Juntas, Império Serrano e Portela guardam muito da história do Carnaval. A velha guarda portelense dispensa comentários e 60
está na raiz mais nobre do samba do Rio de Janeiro, da qual Monarco e Paulinho da Viola, ainda em atividade, são os descendentes mais evidentes. Já a Serrinha, com o Império e o com o jongo dançado até hoje por Tia Maria e suas discípulas, é a depositária da herança cultural que é quase um sinônimo para a palavra ritual. O Império marca sua bateria com a batida do agogô, instrumento que não deixa dúvidas sobre a cadência africana e religiosa de seu samba. A devoção por São Jorge, Ogum na tradição afro-brasileira, é outro elemento indissociável da história da escola. Portela e Império também reafirmam sua tradição através da festa e do alimento: a feijoada, comida dos pretos velhos nos terreiros de umbanda, é o momento de congraçamento dos integrantes irmanados pelas mesmas cores de bandeira. É nas festas que são apresentadas fantasias, que se escolhe o samba-enredo que vai ser cantado no próximo desfile, que se ensaia para um carnaval vencedor. E, já que se chegou à comida de terreiro, bolo com glacê é prato principal nas giras de criança, os erês, representados por Cosme e Damião no sincretismo religioso. Ao transformar Madureira em bolo, o OPAVIVARÁ! conseguiu servir, na mesma fatia, uma série de simbioses e encruzilhadas. Comer Madureira é se alimentar da alma de um bairro que é matriz da cultura carioca. E fazer corinho com Oswald de Andrade e sua antropofagia: a alegria é mesmo a prova dos nove.
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Paulo Vivacqua e São Cristóvão
Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir- nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando. José Saramago, Ensaio sobre a cegueira.
O bairro de São Cristóvão é um dos lugares do Rio de Janeiro onde se percebe mais claramente a sobreposição de camadas históricas, com vários tempos convivendo no presente. Na montagem de Mapas invisíveis, na CAIXA Cultural, o trabalho de Paulo Vivacqua feito a partir do encontro com o bairro tirou partido disso ao transformar parte do foyer da instituição em uma espécie de hall de entrada para a mostra. Mosaico, instalação sonora criada pelo artista, enfatiza a pluralidade de discursos dessa região da Zona Norte carioca ao fazer um grande panorama dos sons presentes ali, mesclados a depoimentos de moradores e frequentadores de lugares como a Feira Nordestina, que acontece nos fins de semana, no Pavilhão de São Cristóvão. Montado em uma parede estratégica, com um banco para repouso dos visitantes encostado a ela, Mosaico funcionou ainda como um cartão de visitas do conceito mais amplo de Mapas invisíveis. Sem nenhum estímulo visual para codificá-las, as camadas de História e histórias de São Cristóvão apresentavam ao visitante as possibilidades de percepção enviesadas que pretendíamos destacar em todos os 12 “mapas” criados para a exposição. Como vem acontecendo na trajetória de Vivacqua, as pequenas caixas de som foram montadas como um circuito, emitindo informações de maneira escalonada. O efeito é de uma paisagem sonora, que podia ser percebida pelos visitantes que se sentavam no banco para repousar, na hora do almoço, apenas como um estímulo auditivo, mas oferecia outra aproximação, em que se somava o som à disposição das caixas de som na parede de vidro opaco. Unidas por fios de cores diferentes, elas criavam uma cartografia de fluxos e sentidos muito peculiar para o campo visual. 62
Essa união entre os dois sentidos, audição e visão, permeia toda a obra de Vivacqua e aparece de maneira muito forte em seu trabalho Ninfeias (2009). Nesta instalação, as caixas de som formam um grande objeto escultórico junto com a mesa de vidro sobre a qual estão montadas. Boiando na superfície translúcida, o circuito sonoro faz alusão às ninfeias de Monet, gigantesca série de paisagens panorâmicas pintadas pelo impressionista em Giverny, no fim da vida, quando já estava praticamente cego. Citar uma obra de um mestre da pintura em um momento em que ele começava a ser privado da visão foi uma estratégia interessante usada pelo artista, direcionando a atenção do espectador/ experimentador de seu trabalho para a possibilidade sinestésica vinda de outro(s) sentido(s) além do olhar. Quando o caminho curatorial de Mapas invisíveis começou a ser desenhado, surgiu o desejo de chegar a São Cristóvão sem uma interpretação literal ou meramente ilustrativa de um dos muitos momentos importantes vividos pelo bairro. Território originalmente ocupado pelos índios tamoios, aliados dos invasores franceses durante o período França Antártica, São Cristóvão assistiu à dizimação violenta da tribo depois que os portugueses recuperaram o território, vencendo os inimigos. Vieram então os jesuítas, que chegaram ali com suas escolas de catequese, engenhos e fazenda. Mais tarde, no século XIX , ricos comerciantes construíram suas quintas naquela região aprazível, ainda muito alagada, mas cheia de áreas verdes. Um deles, Elias Antônio Lopes, acabou cedendo sua propriedade para o príncipe regente dom João quando este chegou ao Brasil com a corte, em 1808, fugido de Napoleão. “Portugal mudou-se”, brincavam os chargistas 63
[próximas páginas] Mosaico, 2010 Alto-falantes, fios, 4 canais de áudio 2 CD players
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da época, em caricaturas que mostravam uma plaquinha cobrindo o mapa do país. E a nova morada da coroa lusa foi justamente São Cristóvão, com as casas em volta da Quinta da Boa Vista desapropriadas para dar lugar ao séquito joanino. Os moradores eram notificados de que perderiam seu pouso com a inscrição “PR”, de “príncipe regente”, pintada na porta de suas casas. Os cartunistas não demoraram a fazer chiste das iniciais, transformando “PR” em “Ponha-se na Rua”. No século XX , São Cristóvão manteve a enorme colônia portuguesa, que se espalha ainda pela Gamboa, pelo Santo Cristo e por toda a Zona Portuária. Ao longo dos últimos 100 anos, foi bairro operário, polo têxtil e também se transformou na meca dos muitos migrantes nordestinos do Rio de Janeiro, que têm na Feira de São Cristóvão sua festa semanal e seu ponto de encontro. A construção da Linha Vermelha cobriu o bairro com uma espécie de manto de invisibilidade. A alteração radical da paisagem embaixo do enorme viaduto, a falta de luz e, sobretudo, o aumento da poluição e do ruído fizeram com que a região, que já foi uma das mais nobres da cidade, se transformasse em uma passagem. São Cristóvão é hoje um lugar em que quase nunca se vai e que muitas vezes se enxerga apenas de cima, da janela do carro. Optar por um trabalho que enfatizasse apenas uma dessas muitas trilhas visuais seria sem dúvida uma opção para a mostra. Mas o Mosaico de Vivacqua vai além, apresentando o bairro como um desenho gráfico e também sonoro, tirando partido da balbúrdia de São Cristóvão para destacar as sutilezas que não vemos: tempos e discursos sobrepostos, sons agradáveis e outros nem tanto, que têm em comum o fato de que não podem ser percebidos apenas de passagem, como quem vê algo de relance, de cima do viaduto. Uma paisagem sonora exige silêncio e mirante para sua contemplação.
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Paulo Vivacqua na visita que fez à Feira de São Cristóvão, onde percorreu lojas de objetos, livros de cordel e comidas típicas recolhendo sons e depoimentos para seu Mosaico 67
Rosângela Rennó e a Saara
Tai deu um tapinha na narina esquerda de Aadam: – Sabe o que é isto, nakku? É o lugar onde o mundo de fora se encontra com o mundo que existe dentro da gente. Se eles não combinam, você sente aqui [...] Siga seu nariz e você há de ir longe. Salman Rushdie, Os filhos da meia-noite.
1 O trabalho em questão é Espelho diário (2001). Em um vídeo, Rennó protagoniza as histórias de outras Rosângelas, colecionadas por ela ao longo de oito anos a partir de recortes de jornal. 2 As igrejas eram as construções onde a população do Brasil colonial ostentava seu poder econômico, como conta Nireu Cavalcanti em “Rio capital da colônia”, um dos artigos do livro Rio de Janeiro – cinco séculos de transformações urbanas (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010). Isso explica a grande quantidade de igrejas da Saara, região muito antiga no traçado urbano do Rio. Algumas delas, como a de Santo Elesbão, foram erguidas por irmandades negras, mantidas por ex-escravos.
Chega pelo nariz e não pelo olho o mapa invisível que Rosângela Rennó traçou da região da Saara. A Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega administra o maior centro comercial a céu aberto do mundo, em um perímetro que tem como limites o Campo de Santana, a Rua dos Andradas, a Avenida Presidente Vargas e a Rua da Constituição, abarcando ruas importantíssimas na história urbana do Rio, caso da Buenos Aires, da Senhor dos Passos e, é claro, da Alfândega. Acostumada a encontrar elementos incomuns – mas que são algo em comum – nas várias imagens de um mesmo acervo fotográfico, em peças de antiquário ou nos discursos de várias mulheres que, como ela, foram batizadas como Rosângela,1 a artista trabalhou, em Mapas invisíveis, com o patrimônio imaterial de um dos lugares mais ricos e curiosos da cultura carioca. No trabalho per fumum (pela física quântica nós só temos o que construímos), Rennó identificou que o incenso é um elemento de todas as culturas que povoam a Saara. Faz parte da liturgia religiosa dos três grupos principais de comerciantes da região – árabes, judeus e coreanos – e também está presente nas missas católicas das cinco igrejas 2 presentes no território da Saara (seis, se contarmos a Igreja do Rosário, que fica às margens da região) e no ritual umbandista que saúda São Jorge. No sincretismo religioso do Rio, que é diferente do da Bahia, o santo guerreiro foi fundido ao orixá Ogum. A festa da alvorada, na madrugada do dia 23 de abril, Dia de São Jorge, é sem dúvida mais popular e movimentada que a de São Sebastião, padroeiro da cidade, celebrado no dia 20 de janeiro. Com o incenso como porto de partida, ela escolheu destacar o lado ritualístico do material ao fazer uma intervenção urbana no local. No Dia de Reis, 6 de janeiro, a artista distribuiu as sete essências pelos sete quarteirões da Rua Senhor dos Passos: a metade do número dos passos da paixão de Cristo, na Via-Crucis. Nesse grande defumadouro, o incenso teve sua função simbólica recuperada, a de limpar o ambiente para fazer a ligação entre corpo 68
e espírito, terra e céu, o religare proposto pelo sentido original de todas as religiões, as representadas no Saara e as que não estão lá. Os Reis Magos do Oriente teriam sido os primeiros a acreditar em Jesus como o Messias, partindo em caravana para visitar e presentear o menino recém-nascido em Belém. Ao realizar sua ação no dia em homenagem a eles – e na Rua Senhor dos Passos, que recebeu esse nome justamente numa referência à Paixão de Cristo – Rennó alinhavou de maneira poderosa os significantes de seu diálogo com esta região da cidade, como numa comunhão. Esses dois elementos – Reis Magos e sua relação com a mirra e o incenso, somados aos Passos da Paixão – significaram, ainda, um fio invisível com a história da Saara. Antigo caminho das mulas que traziam o ouro vindo das Minas Gerais, a Rua da Alfândega recebeu esse nome por desaguar no prédio que hoje abriga a Casa França-Brasil – construído para ser, de fato, a Alfândega depois da chegada da Corte ao Rio de Janeiro. A proximidade com o porto ampliou ainda mais a vocação para o comércio da região, onde imigrantes sírios, libaneses e judeus de várias partes da Europa encontraram abrigo. A Saara sempre foi um lugar de passagem, um caminho a se percorrer, uma descoberta a ser feita a pé. Além das mulas e do escoamento da mercadoria do porto, foi palco de algumas das primeiras procissões realizadas por dom João VI e seu séquito, muitas em homenagem a São Gonçalo do Amarante, o verdadeiro dono da Igreja de São Jorge, localizada na Alfândega, às margens do Campo de Santana. O passeio de clientes e prostitutas na região contígua à Praça Tiradentes, desde sempre boêmia, e o bater pernas de milhares de consumidores que percorrem as lojas semanalmente completam essa vocação da Saara como mapa de pedestres. Os Reis Magos viajantes, tropeiros, e o andor da Paixão agregam a essa história significados mais amplos, que se misturam a outra vocação do Saara: a da tolerância e da congregação de diferenças. Para transformar a Senhor dos Passos em uma via perfumada, Rennó usou sete essências puras, vindas de diversas culturas – Mirra, Olíbano, Breu Branco, Mastique, Copal, Benjoim do Sião e Estoraque – e botou-as em turíbulos de cores diferentes, relacionadas às tonalidades das resinas aromáticas. O número 7, além de se relacionar aos 14 passos da Via-Sacra, guarda outras relações espirituais. Para os orientais, representa a quantidade de chacras, pontos energéticos espalhados pelo corpo; para os teólogos, corresponde às “moradas da alma” no “castelo interior”, teoria formulada por Teresa d’Ávila. Para a freira, transformada em santa, a alma humana seria um castelo, com sete moradas a serem percorridas – do calabouço à torre. A correspondência com os chacras é evidente e impressionante. 69
[próximas páginas] Per fumum (pela física quântica nós só temos o que construímos), 2010 Instalação na galeria Turíbulos, incensos, mesas
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Per fumum (pela física quântica nós só temos o
Impressiona também a síntese que Rennó opera com esses incensos. Ao misturar os cheiros em uma das ruas mais importantes da Saara, ela apresenta no ar a mistura feita pelos ocupantes desse pedaço do coração do Rio, território estrangeiro e ao mesmo tempo extremamente nativo. A carreira da artista sempre foi marcada por ações muito simples, mas capazes de abarcar mundos inteiros. Sempre vizinha da memória, Rennó tem sido capaz de encontrar caminhos enviesados para ressignificar arquivos e repertórios. Foi assim, por exemplo, nas séries Vulgo e Cicatriz, em que percorreu arquivos penitenciários identificando redemoinhos de cabelo e tatuagens como fatores de reconhecimento de presos quase sem rosto, agrupados com seus pares no imaginário coletivo apenas como um bando com “cara de bandido”. Na série Vermelha, exposta em 2001 no Rio de Janeiro, apropriou-se de retratos de militares, cobrindo-os de vermelho até que os retratados quase sumissem, tingidos de sangue. Ao lado dos retratos, textos com referências bélicas impressos em veludo negro, quase desaparecendo, e por isso mesmo muito visíveis, como os homens e garotos uniformizados. No vermelho e no negro, mais uma vez uma operação simples, mas sofisticadíssima, recriava sentidos em velhas imagens. Percebo agora, depois do encontro em Mapas invisíveis, que há um ritual e até mesmo uma liturgia nessa troca de sentidos operada pela artista. Foi assim com A última foto, trabalho de 2006. Para realizar o grupo de imagens, Rennó convidou 43 fotógrafos profissionais para retratar o Cristo Redentor com as máquinas antigas de sua coleção. Expostas ao lado dos retratos desse ícone do Rio, as máquinas apareciam como coautoras das fotos. As imagens eram ao mesmo tempo réquiem e testamento de Kodaks, Icarettes, Zorkis, Agfas, Penguins. A última foto também poderia servir como uma reflexão sobre a origem das imagens e as escolhas que fazemos ao produzi-las, já que se trata de um trabalho que destinava o último clique dessas 43 máquinas a uma única paisagem: o Corcovado e seu Cristo. É um antecessor de per fumum (pela física quântica nós só temos o que construímos) na relação com a cidade, mas, mais do que isso, evidencia, como os incensos, a capacidade quase alquímica de Rennó com os arquivos e com o patrimônio, material e imaterial. Pelo olhar da artista, reencontramos a alma das coisas em outros corpos – ou em corpo quase nenhum. Como no Espelho diário das muitas Rosângelas e de qualquer cidade. Como numa foto.
que construímos), 2010 Registro da performance Turíbulos, incensos, mesas
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Suzana Queiroga e o Complexo da Maré
(à direita) Chroma, 2010 Video (próximas páginas) Mapamaré, 2010 Nanquim sobre papel recortado
Há três espécies de homens: os vivos, os mortos e os que andam no mar. Platão
O encontro entre a obra de Suzana Queiroga e o Complexo de Favelas da Maré começou muito antes de Mapas invisíveis, na exposição “Velofluxo”, que a artista realizou no Museu Chácara do Céu no início de 2009. Crianças do projeto REDES, que une arte e educação na favela, foram visitar a mostra, que trazia a interpretação de Suzana para mapas de cidades como Berlim, Milão, Londres e Brasília. Ao observar o fluxo de cores sugerido pelas ruas, rios, praças e avenidas, as crianças enxergaram a Maré naquele possível espelho. Um ano depois, elas conheceram Queiroga pessoalmente e viraram suas parceiras: junto com a artista, construíram um dos trabalhos da exposição. Mapamaré é uma imensa rede formada pela sobreposição dos trajetos desses meninos e meninas em um território que ora é familiar, ora é estrangeiro. Dividida entre 16 comunidades distintas, controladas por grupos criminosos rivais –, não por acaso, a via principal tem o apelido de Faixa de Gaza – a Maré impressiona por ter em seus domínios esta “vizinhança distante”. Um morador pode ser muito popular em um dos lados da “faixa”, sobretudo se exercer uma atividade comunitária; e um completo desconhecido no outro lado, mesmo que ele fique a poucos minutos a pé da região onde vive. As crianças desenharam seus caminhos dentro da favela para chegar até a sala de aula. O mapa comum, pintado em nanquim sobre papel kraft e recortado por Queiroga, significou um reconhecimento de território. Ao construir a Maré – a sua Maré, que era somada à do colega morador de outra comunidade –, cada menino tomou posse de seu mapa e conquistou seu lugar. A experiência se completou com uma troca de visitas: assim como a artista e sua equipe visitaram o Complexo algumas vezes, os alunos e sua professora, Suélen Brito, foram convidados a concluir o trabalho em seu ateliê, em Laranjeiras. Reconhecer seu próprio mapa e encontrar seu lugar no mundo é uma questão básica para qualquer psique. Pobres ou ricos, todos nós precisamos fundar nossos territórios, físicos e afetivos. Se uma casa tem vizinhos, a fundação psíquica passa, como definiu Freud, 74
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1 Os nomes das comunidades da Maré formam seus próprios Mapas invisíveis. Palavra tupi-guarani, Timbau quer dizer “entre as águas”, uma referência ao fato de ser uma área seca entre os manguezais que margeiam a Baía de Guanabara, como conta Lilian Vaz em História dos bairros da Maré (UFRJ, 1994). 2 A origem do nome da Baixa do Sapateiro é controversa. Existem três versões: que seria uma homenagem à Baixa do Sapateiro em Salvador, Bahia, dada a grande quantidade de nordestinos na Maré; que um sapateiro teria sido o primeiro morador deste bairro; que seria uma referência à Rhizophora mangle (mangue-vermelho), chamada popularmente de sapateiro. A planta era usada na fabricação de tamancos, calçado muito comum no Rio até os anos 60, graças à influência portuguesa. 3 O grande aterro que forma este bairro da Maré recebeu o nome de Nova Holanda porque, como boa parte do território holandês, também está abaixo do nível do mar.
por “atravessamentos”. A constituição de um indivíduo está sujeita às ações e emoções dos mais próximos e à sua experiência de vida. Construir seu lugar no mundo talvez seja mais difícil quando se vive em um mapa instável como a Maré. A favela começou em 1940, com a formação da comunidade do Timbau,1 em uma área elevada entre os alagadiços do mangue, próxima à praia de Inhaúma. Muito próximo dali, o quartel do 1o Regimento de Carros de Combate do Exército sempre exerceu uma política de controle sobre os moradores, que, nos primeiros anos de ocupação, foram impedidos de construir moradias de caráter permanente. A proibição e a falta de recursos configuraram a Maré como uma favela de casas de palafita, sobretudo depois da ocupação da segunda área mais antiga: a da Baixa do Sapateiro,2 que, como o nome sugere, fica numa região mais plana, frequentemente alagada. Foi ali que começaram os primeiros aterros de toda a extensão do mangue, criados por iniciativa da comunidade. Nas décadas seguintes, o poder público acabaria com canais e restingas e colaboraria com a extinção da flora e da fauna do mangue, prejudicando a pesca, uma das fontes de subsistência dos moradores. Em 1960, o governo de Carlos Lacerda foi o responsável pela criação de um enorme aterro ao lado da comunidade Parque União, formada na década anterior. Na região que ficaria conhecida como Nova Holanda,3 Lacerda despejou os desabrigados de outras favelas desocupadas pelo Estado, como a do Esqueleto, que ficava no terreno do Maracanã, onde hoje existe a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), e a da Praia do Pinto, no Leblon. Sem território, privados de sua geografia íntima e de suas raízes, os novos moradores da Maré precisavam enfrentar outro desafio: não serem vistos como invasores por quem já estava ali. O trabalho de Queiroga atravessa – para repetir uma palavra emblemática escrita anteriormente – todas essas histórias, sem ilustrar nenhuma delas. Isso ocorre não só porque se trata de uma grande artista, mas talvez porque ela também tenha sido atravessada pela potência das histórias da Maré. 78
Seu segundo trabalho apresentado em Mapas invisíveis talvez comprove isso. Chroma é um vídeo que investiga as características da pintura como um fluxo, sujeito a marés. A violista Rúbia Siqueira criou improvisos musicais a partir das imagens criadas por Queiroga e registradas por Ícaro Lima. Iuri Nicolsky trabalhou na trilha sonora. Juntos, som e imagens convidam à introspecção e se apresentam quase como um testemunho das transformações por que passou a trajetória de Queiroga nos últimos anos. Pintora formada pela chamada “Geração 80” do Parque Lage, ela vem expandindo a pintura para o espaço. Começou esse processo de forma mais radical nas telas a óleo da série Stein und Fluss (2004), em que figuras geométricas verdes bailavam em um fundo vermelho graças aos efeitos ópticos criados pelo choque entre as duas cores – por sinal, as duas gamas que dominam Chroma. Tempo e movimento, conceitos tão presentes e importantes na arte contemporânea, começaram a ganhar novo motor na carreira da artista a partir de sua aproximação com a cidade. Ela criou infláveis azuis e vermelhos que eram ao mesmo tempo cidade medieval e arquitetura marinha, nave espacial e útero materno... Mas sempre pintura e sempre um lugar. Pesquisou ainda os mapas turísticos de cidades brasileiras, americanas e europeias, criando colagens e pinturas em que sobrevoa esses lugares, transformando a cartografia em desenho, movimento e cor. O auge desta pesquisa foi Voo velofluxo, imenso balão cor de rosa com que Queiroga voou sobre Brasília e sobre o Rio de Janeiro, convidando o público a fazer o mesmo. O traçado urbano nunca aparece em seu trabalho de forma literal, mas como um “retrato de mapa”, e nem como uma insinuação subjetiva, algo como “um mapa para o fluxo da vida”. Queiroga investiga, sobretudo, os caminhos possíveis para a arte e para a pintura, como territórios navegáveis nos fluxos da cidade. Mapa movediço e escorregadio, a Maré foi ao encontro da artista em Mapamaré. Chroma é a resposta de Queiroga, depois de ter se olhado no espelho. 79
Alunos do projeto REDES, da Maré, desenham seus mapas subjetivos na comunidade, que serviram de base para Mapamaré
Thiago Rocha Pitta e a Avenida Rio Branco
Alice abriu a porta e viu que dava para uma pequena passagem, não muito maior que um buraco de rato. Ajoelhou-se e entreviu pela passagem o mais belo jardim que já vira. Como ela queria sair daquela sala escura e passear entre os canteiros de flores resplandecentes e as fontes de água fresca! [...] “Acho que poderia, se eu soubesse como começar.” Tantas coisas extravagantes tinham acontecido até então que Alice começava a pensar que quase nada seria realmente impossível. Lewis Carroll, Aventuras de Alice no País das Maravilhas.
1 Para o bem e para o mal, Pereira Passos é frequentemente comparado a Georges-Eugène Haussmann (18091891), prefeito que recebeu de Napoleão III a incumbência de criar um novo traçado urbano para Paris. Taxada de conservadora, a reforma urbana da capital francesa (1852-1870) criou complexos monumentais ao longo do centro histórico, caso do conjunto dos Inválidos e fez do eixo formado pelas Tulherias, a Avenida Champs-Elysées e da Praça D´Étoile uma grandiosa diretriz urbana. 2 O engenheiro Pereira Passos foi nomeado prefeito em 1902 pelo presidente Rodrigues Alves. Sua maior missão era a remodelagem do Centro do Rio. Em Geografia carioca do samba (Casa da Palavra, 2004), Hugo Sukman, Luiz Fernando Vianna e Aldir Blanc lembram que a Avenida Central ligou o Largo da Prainha (hoje Praça Mauá) à praia de Santa Luzia (aterrada anos mais tarde); a Avenida Beira-Mar, abrindo caminho para a Zona Sul; a Avenida Mem de Sá, ligando o Centro ao norte da cidade; e a Avenida Rodrigues Alves, paralela aos armazéns do Cais do Porto.
3 Blanc, Sukman e Vianna (Op. cit.) lembram ainda que “não havia um plano de integração da população mais pobre à nova cidade que se criava”. Para redesenhar a cidade e transformála em um lugar modelar, o prefeito
O tempo volta a ser motor e ator na obra de Thiago Rocha Pitta. Nas duas aquarelas batizadas de Mapa temporal para um jardim vertical e possível, o artista traça seu mapa invisível da Rio Branco com um projeto de intervenção urbana em um dos arranha-céus da avenida. É um prédio sem localização específica, como sempre ocorre com a obra do artista. Seus trabalhos são de qualquer lugar – ou lugar nenhum. Para esta Rio Branco fora do mapa, Rocha Pitta imaginou um jardim suspenso, criado a partir de uma empena instalada no topo do edifício. Na malha que cobriria parte do terraço e de uma parede lateral, apenas terra adubada e tratada, pronta para receber sementes. Elas chegariam ali, vindas de lugares próximos ou distantes, com a ajuda do vento. A chuva se encarregaria de fertilizá-las e o tempo faria florescer as mudas híbridas desse jardim heterodoxo e heterogêneo, banhando com um pouco de acaso um ponto da geografia carioca que foi um dos maiores marcos de planejamento e de racionalidade que o Rio de Janeiro já testemunhou. Cirurgia haussmaniana1 na malha da cidade, a Rio Branco, inaugurada em 1905 como Avenida Central pelo prefeito Pereira Passos, visava unir o mar com o mar, ligando a região da Praça Mauá com a Praia do Flamengo.2 Vizinha da região dos quatro morros que marcaram o início do povoamento do Rio – São Bento, Conceição, Santo Antônio e Castelo, pontos estratégicos de observação de antigos invasores –, a Avenida Rio Branco também expulsou para um quinto, o Morro da Favela, hoje Providência, a população pobre que ocupava a região do Centro da cidade.3 É curioso que Rocha Pitta tenha conciliado um elemento recorrente em seu trabalho – os projetos de empena na arquitetura, 80
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empreendeu campanhas de higienização e teve no médico sanitarista Oswaldo Cruz um grande aliado. Também demoliu 1.300 construções, entre casas, sobrados, edifícios e cortiços, 700 delas apenas na região da Avenida Central. O chamado “bota-abaixo” expulsou os moradores para os morros, entre eles o da Favela, que daria origem ao nome das comunidades criadas nessas regiões. Os primeiros ocupantes do Morro da Favela foram os ex-combatentes da Guerra de Canudos, que tinham recebido a promessa de moradia do governo depois que voltaram do Nordeste. Como o acordo não se cumpria, ocuparam o morro, que ficava próximo à região portuária. A história da Avenida Central e de seu “bota-abaixo” se mistura à do Morro da Favela porque a expropriação de Pereira Passos provoca uma grande concentração de população negra nas imediações da Praça Onze de Junho, região da Cidade Nova, inclusive no morro, muito próximo dali. O Morro da Favela se transforma em um dos primeiros núcleos do samba carioca, e, a partir da década de 1920, é rebatizado por seus moradores de Morro da Providência – numa alusão a um rio que passava pela região de Canudos. 4 O desmonte do Morro do Castelo foi iniciado em 1922. O material do retirado da elevação serviu para aterrar a Praia de Santa Luzia e a Enseada da Glória. 5 O trabalho do espelho foi apresentado em Santa Teresa em 2001, no projeto Interferências Urbanas, na época, integrado ao evento Arte de Portas Abertas.
que impressionam pelas gigantescas telas de lona com materiais como óxido de ferro ou sal, como uma pintura feita em colaboração com o tempo – com a ideia de uma plantação casual. Com o peso simbólico de uma Babilônia, com tudo o que isso tem de bom e de controverso, a Rio Branco ganha, através do projeto do artista, o seu jardim suspenso. Recebe uma nova elevação, um novo mirante, de onde pode ser observada e pode observar o litoral e as redondezas. A terra levada por Rocha Pitta para o alto do prédio também alavanca a memória das toneladas de barro que lavaram as ruas de toda a região na ocasião do desmonte do Morro do Castelo,4 parte do projeto de remodelagem dessa zona central. Fotos de época mostram a população tentando livrar as ruas da lama por dias e dias seguidos, usando rodos, baldes e esfregões para tentar acelerar a retomada da vida normal. Com este projeto, Rocha Pitta reafirma sua imensa relação com a paisagem, não só aquela que se apresenta diante de cada trabalho seu, mas com a que foi registrada em séculos de história da arte. Abismo (2001), intervenção urbana, que projetou o artista mineiro no meio de arte carioca, já apresentava essa característica de maneira fortíssima. Uma plataforma de espelho foi instalada em Santa Teresa.5 O espelho avançava na direção do abismo, criando um trampolim – ou cadafalso – de onde era possível observar o Centro da cidade. Presos à “terra firme” por equipamento de escalada, os visitantes eram convidados a caminhar sobre o abismo, experimentando a vertigem de ter o céu projetado no chão, já que o espelho trazia o azul e as nuvens para a superfície de caminhada. A inversão entre céu e chão volta nesse jardim suspenso para a Rio Branco, assim como outra marca ainda mais relevante no percurso de Rocha Pitta: a ideia de duração. Nem antes, nem depois: durante. Observar e assimilar o processo de transformações de todas as coisas, incorporando-as e aceitando-as como algo mutante. O movimento e as pequenas mortes por que passam os objetos e a natureza talvez guardem a chave da eternidade, daquilo que permanece – como imagem, como sensação e como memória: é disso que nos lembra a obra de Rocha Pitta. Em Homenagem a Turner, ele incendiou um barco na Baía de Guanabara, registrando em vídeo seu lento desaparecimento no fogo. Na morte do barco, a ressurreição da imagem, com as batalhas marítimas do pintor inglês William Turner chegando à memória, trazidas por outras águas. Em Cinema fóssil, uma performance-instalação de 2009, as chamas reapareciam, ora como fogueira, ora como brasa adormecida. 82
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Vindo de um buraco retangular cavado no chão, o fogo era refletido em um espelho instalado sobre a cavidade, em ângulo que o transformava quase em uma tela de cinema. Assistia-se, ali, à imagem projetada da transformação, do durante, do processo. “Pelo fogo tudo se troca”, disse Heráclito, que também afirmou que ninguém pode se banhar duas vezes no mesmo rio. O tempo é senhor das mudanças. Rocha Pitta sabe bem disso. Em seus projetos de empena, natureza e tempo formam um binômio que atua na quase-pintura (ou quase-escultura ou quase-paisagem, a classificação, aqui, é o que menos importa) de sua tela de lona. É como um projeto calculado de descontrole, com a perenidade criada a partir dos acasos e de discretas epifanias. Em A rocky mist, projeto de 2010 realizado na Alemanha, o tempo reaparecia ao sabor das marés. Lâminas de vidro transparente mergulhadas em água salgada ganhavam uma cobertura branca opaca ao longo da duração da exposição. Reapresentado em outras dimensões na mostra “Paralela”, no circuito em torno da Bienal de São Paulo do ano passado, este trabalho cria uma topografia feita pelo sal no vidro através do qual se enxerga o ambiente expositivo – e eventualmente a paisagem em volta dele. Escultura instável, A rocky mist sobrepõe imagens e permite que se entrevejam experiências a partir de uma ampulheta na qual a contagem de tempo é elástica. Aceitar as bifurcações e os acidentes do tempo na paisagem é uma das chaves possíveis para se aproximar de Rocha Pitta e também desse mapa invisível sobre a Avenida Rio Branco. O jardim suspenso é inconcluso, cíclico, lembrando outro barco, o presente no vídeo Herança, de 2007, em que Rocha Pitta homenageia o pai recém-falecido. Carregando duas árvores, o barco fura as ondas do rio sem ter ninguém que o conduza. Não se sabe quando vai atracar, se é que vai um dia. Não há cais, há uma terceira margem, simbólica, como a de Guimarães Rosa. Assim como não há limites entre uma cidade e outra no tempo. Há cidades sobrepostas, que duram umas nas outras, modificando-se pela experiência de quem está nelas e pela obra das chuvas, do vento, do fogo e das marés.
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referências bibliográficas
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agradecimentos
Alexandre Vogler
OPAVIVARÁ!
Crianças da Maré que
Adriano Melhem
Mercadão de Madureira e todos
participaram do trabalho Mapamaré
os seus lojistas, proprietários, Angelo Venosa
locatários e funcionários
Bruno dos Santos de Andrade
Freesound Project, Achim von Heinitz,
Horácio Afonso
Caroline Bianca Matos da Silva
Bia Pimentel
Jerry D’Oxóssi
Christian Felipe da Silva Correia de Sá
Ophélia Patrício Arrabal
Emelyn Julie Souza da Silva
Anna Bella Geiger
Todos os mercadores do planeta
Enak do Nascimento
Augusto Ivan e Pedro Geiger
e de todos os tempos
Felipe Francisco Tomaz de Andrade
Instituto Pereira Passos – IPP
Serrinha, Portela, Império e toda a
Felipe Gaspar da Silva
galera Charmosa de Madureira
Gilson Paulino da Silva Junior
Daisy Xavier
Madureira 6 × 2 Operário, na volta
Jade Araújo Lopes da Silva
Integrantes da Colônia dos Pescadores
do tricolor suburbano à série C do
Juan Pablo da Silva C.
no Posto 6 da praia de Copacabana,
campeonato brasileiro.
Leandro Jorge do Nascimento
especialmente César e China.
Lucas Bernardo França Paulo Vivacqua
Matheus Santos do Nascimento
Daniel Senise
Ana Luísa Chafir, Cláudia Pinheiro
Mylena Oliveira da Silva
Administração do Cemitério
e Cristiano Menezes
Pedro Henrique dos Santos de Arruda
São João Batista
Rafaela Ribeiro da Cruz
Ana Fay, Arthur Chaves,
Rosângela Rennó
Raphael Veras Silva
Manoel Andrade de Souza e
Andrei Müller, Bruno Caracol,
Thainara Gama dos Santos
Marianne Giuliano
Caroline Valansi, Daniela Serruya Kohn,
Wellington Alessandro Froes da Silva
Dilce de Miranda, Luiza Burlamaqui
William Alessandro Froes da Silva
Luiz Alphonsus
e Maíra das Neves
Yuri Armando Costa de Souza
Domingos Guimaraens e Júlio Callado
Agradecimentos especiais a Martinho Oliveira Rocha
Luiza Baldan Funarte
Suzana Queiroga
Anand da Silva Pinho, Ângela Albuquerque
Projeto Redes de Desenvolvimento da
e funcionários do Mandarim
Maré, Ícaro Lira, Iuri Nicolsky, Marrytsa
André Brasil, José Antônio Ferreira Barçal
Melo, Rúbia Siqueira e Suélen Brito
e equipe da Manglares Carlos Felipe Carvalho, Ricardo Correa,
Daniela Name
Alexandre Amaro, Rodrigo França
Aline Magalhães, Bruno Castello,
e equipe Carvalho Hosken
Bruno Miguel, Carvalho Hosken, Casa da
Chico Fernandes, Fernanda Andrade,
Palavra, Daniel Venosa, Joaquim Ferreira
Gisele Camargo, João Dória, Mariana
dos Santos, Leo Name, Marcos Ramos,
Freitas e Mariana Schincariol Mello,
Maria Fortuna, Ni da Costa, Rafael Borelli,
Rafael Borelli, Shakti Leal, Tainá Diniz
Ricardo Penna, Roberta Rangel, Suélen
Rezende, Ted Decker e Vinícius Leal
Brito e Thereza dos Passos Miranda
Luiz Figueiredo, Danilo, Margarida, Lisete, Solange e equipe do stand
Tisara
FontVieille Marcelo Belache e Alexandre
Mariana Schincariol Mello
Flores (construção do FontVieille)
Thiago Branco Barboteo
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presidenta da república
Dilma Rousseff ministro de estado da fazenda
Guido Mantega presidenta da caixa econômica federal
Maria Fernanda Ramos Coelho exposição
catálogo
curadoria
textos
imagem da página
Daniela Name
Daniela Name
Planta de uma parte da cidade do
realização
realização
Tisara Arte Produções
Tisara Arte Produções
coordenação geral
coordenação geral
Montigny (1776-1850): o prédio aparece
Mauro Saraiva
Mauro Saraiva
em vermelho, voltado para o cais e o mar,
produção executiva
produção executiva
Heloisa Vallone
Heloisa Vallone
projeto gráfico
projeto gráfico
Verbo Arte e Design
Verbo Arte e Design
Fernando Leite
Fernando Leite
Julia Sampaio
Julia Sampaio
som e vídeo
revisão
Terceriza Som Áudio Visual
Rosalina Gouveia
iluminação
fotografias
Rogério Kennedy
Rubber Seabra p. 27, 28-29, 30
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Rio de Janeiro para compreensão da nova disposição do Paço Imperial e seus diversos anexos, de Grandjean de
onde hoje está a Praça Quinze Data desconhecida Nanquim e aquarela sobre papel 38,7 × 23,2cm Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil G randjean
de
M ontigny , 1776-1850
Coleção Thereza Christina Maria
Daniel Venosa p. 25, 40-41, 43
montagem
Jaime Acioli p. 17, 19, 21, 35,
Jorge Pinheiro
37, 47, 81, 83
cenografia
Ícaro Lira p. 78, 79
H.O Silva
Paulo Jabour p. 4, 6-7, 8-9, 10-11, 55, 56-57, 64-65, 70-71
administração
Luiza Baldan p. 51, 52, 53
Antonio Goes
Suzana Queiroga p. 79
Loane Malheiros
Wilton Montenegro p. 76-77 Pedro Victor Brandão p. 59, 60, 61 Claudia Pinheiro e Cristiano Menezes p. 63, 67 Matheus Rocha Pitta p. 69, 73
apoio
realização
patrocínio
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